A gaia ciência: afeto, saber, virtude
Em uma passagem de Televisão, Lacan (1974/2003) responde às críticas de seus contemporâneos - como Laplanche e Green - que o acusam de pretender tudo reduzir à dimensão do significante e de, por isso mesmo, excluir da experiência analítica o campo dos afetos. Nessa passagem, o autor menciona a gaia ciência e articula esse saber poético-musical dos trovadores à ética da psicanálise e à ética do bem-dizer. O argumento de Lacan nessa resposta avança no sentido de dissolver a acostumada antinomia entre o intelectual e o afetivo, ao indicar que o afeto é indissociável do pensamento e ao afirmar que o corpo é afetado precisamente porque sobre ele incide o significante. A fim de exemplificar suas teses, Lacan evoca alguns afetos, entre os quais se destaca, em oposição à tristeza, não a alegria, simplesmente, mas o gaio saber.
Nesse trecho de Televisão, Lacan (1974/2003) inscreve expressamente os afetos no campo da ética. Ao tratá-los como “paixões da alma”, na esteira de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, afasta-os das visadas psicológicas e psicofisiológicas próprias da contemporaneidade e, sem deixar de reconhecer que eles têm uma ancoragem no corpo, toma os afetos em consideração a partir da relação que eles possam guardar com o problema do bem, ou mesmo do soberano bem. Não se trata, contudo, de transportar para a psicanálise a questão do soberano bem, tão cara ao pensamento antigo e medieval, mas de indicar que “é nessa abordagem tradicional da questão que a psicanálise encontra sua orientação” (Miller, 1986/2016, p. 109).
É eloquente, quanto a essa consideração dos afetos sob uma perspectiva ética, o exemplo da oposição evocada por Lacan entre a tristeza e o gaio saber. Em seu comentário, Lacan convoca Dante e Spinoza,2 os quais, cada um a seu modo, qualificam eticamente as paixões e reconhecem no afeto da tristeza, notadamente, uma falta, um pecado. Essa oposição entre a tristeza e o gaio saber é amplamente lastreada nas doutrinas médicas e filosóficas da Antiguidade e da Idade Média (Agamben, 1977/2007), que associam a tristeza ao pecado mortal da acídia - posição demissionária do sujeito em face do soberano bem - e reconhecem no gaio saber - ramo da arte do bem-dizer - um remédio para esse mal que nem a religião, nem a filosofia, nem a medicina sabem curar.
Desse par de opostos herdado da tradição, Lacan faz uma apropriação à sua maneira. A tristeza constitui para Lacan um problema ético - e é para dar evidência a esse ponto que, nessa passagem de Televisão, ele recusa expressamente o termo “depressão”, próprio ao campo semântico de uma abordagem psicofisiológica dos afetos. Já no que concerne à gaia ciência, virtude de um saber alegre que se encontra em oposição ao vício do saber triste da acídia, Lacan a considera não somente como a arte de entrelaçar com engenho as sílabas às notas musicais e as palavras umas às outras, mas também como uma arte de “gozar do deciframento” (Lacan, 1974/2003, p. 525), um modo de dar lugar ao gozo no exercício do saber, de propiciar alguma reconciliação entre o saber o e gozo. Como observa Miller (1986/2016, p. 110-111),
[o] gaio saber admite a extimidade do gozo, ele admite que esse gozo não é, decerto, absorvível no saber, mas que tampouco lhe é exterior. Notemos, quanto a esse aspecto, que o saber alegre não é o saber onipotente, mas aquele que faz passar da impotência ao impossível. A tristeza é a impotência [do saber], ao passo que o gaio saber é o impossível do saber. Por essa via, ele toca no real.
Referir-se à passagem da impotência para a impossibilidade é uma maneira de descrever o processo em jogo no final de análise. A travessia da fantasia deixa um resto não simbolizável, uma parcela irredutível de gozo sintomático, um ponto de real com o qual o sujeito passa a saber se virar. Por esse caminho, o sujeito neurótico abandona a impotência queixosa ante um desejo sempre inacessível ou insatisfeito e aprende a se haver com o impossível desse real de seu modo singular de gozo. Esse é um movimento animado pelo gaio saber, que leva o sujeito a “inventar o saber”3 que lhe convém quanto a esse modo de gozo e, consequentemente, a bem-dizer seu sintoma.
O impossível é, portanto, o outro nome do real. E de que maneira o saber alegre toca no real? As palavras de Lacan (1974/2003, p. 525) no trecho de Televisão em que ele se refere ao gaio saber propiciam o vislumbre de uma resposta a essa questão:
No polo oposto da tristeza existe o gaio saber [gay sçavoir] o qual, este sim, é uma virtude. Uma virtude não absolve ninguém do pecado - original, como todos sabem. A virtude que designo como gaio saber é o exemplo disso, por manifestar no que ela consiste: não em compreender, fisgar [piquer] no sentido, mas em roçá-lo tão de perto quanto se possa, sem que ele sirva de cola para essa virtude, para isso gozar com o deciframento, o que implica que o gaio saber, no final, faça dela apenas a queda, o retorno ao pecado.4
Ao explicar em que consiste a virtude do gaio saber, Lacan recorre a imagens de movimento - roçar, não fisgar, queda, retorno - e se refere a um gozo do deciframento. O movimento que ele descreve é, se ouso dizê-lo, que nem o voo rasante da garça sobre a “tensão flutuante do rio”5 da fala, roçando o sentido tão de perto quanto se possa sem fisgá-lo. Contudo, o gozo desse fluir que aflora o som e trisca o sentido não deixa de abarcar em certo momento o gozar com o deciframento, que é por onde se recai no pecado original. Pecado esse que redundou em nossa entrada na dimensão da linguagem, onde um símbolo “cavou entre nós, dentro em nós esse estranho jardim”.6 Não mais o jardim “de quem mantém toda a pureza da natureza, onde não há pecado nem perdão”,7 mas um jardim outro, feito com palavras, “o jardim que o pensamento permite”.8
De Toulouse a Itapuã: o gaio saber lacaniano e a gaia ciência brasileira
Embora a gaia ciência medieval pareça remota e inacessível à sensibilidade contemporânea, pode-se dizer que ela encontra uma espécie de ressurgência entre nós, brasileiros, na canção que aqui se tem produzido, sobretudo desde a segunda metade do século XX, como sugere José Miguel Wisnik (2004). Como manifestação cultural de um país, a canção brasileira constitui um caso ímpar no mundo. Além de sua evidente riqueza musical e poética, o amplo e diversificado repertório da MPB tem como marca o fato de constituir, como talvez em nenhum outro país, um quadro de referência para a memória coletiva e para a atribuição de sentido ao cotidiano. Talvez em razão do pouco letramento que caracteriza até hoje a sociedade brasileira, a canção veio a constituir no país um território no qual se encontram e se entrelaçam a literatura e a oralidade, a cultura erudita e a popular, e em que, sob a forma de uma teia de recados que as canções trocam entre si, é tecido o debate dos problemas nacionais. Nesse sentido, afirma José Miguel Wisnik (2004, p. 218), “podemos postular que se constitui no Brasil, efetivamente, uma nova forma de ‘gaia ciência’, isto é, um saber poético-musical que implica uma refinada educação sentimental”.
Por um lado, essa refinada educação sentimental é implicada no saber poético-musical posto em ato pelos cancionistas, sejam eles compositores, sejam intérpretes. Por outro, ela também se processa no público que consome as canções - e as incorpora ao seu cotidiano, à sua história de vida, como o atesta o belíssimo documentário As canções, de Eduardo Coutinho (2011). Em qualquer dos casos, nossa educação sentimental é refinada ao modo brasileiro e, portanto, apesar de seletiva, é pouco afeita aos ideais iluministas, eurocêntricos, de purificação e sublimidade. Seu refinamento é aquele capaz de abarcar a invenção, a bricolagem, a antropofagia oswaldiana. Seu referencial estético se equilibra perfeitamente na tensão entre a triagem - cuja referência principal é a bossa nova - e a mistura - encarnada por excelência pelo gesto tropicalista, como ensina Luiz Tatit (2004).
No que interessa particularmente ao discurso analítico - num país onde, mais do que em outros, “todos entoam” (Tatit, 2007) -, a gaia ciência brasileira parece oferecer, a quem se deixa tocar pelas várias vozes que a compõem,9 um caminho para sentir-pensar o modo como lalíngua ressoa no corpo, uma via régia para o real de lalíngua. E, assim como o gaio saber dos trovadores medievais é “oposto à tristeza” (Lacan, 1974/2003, p. 525), a gaia ciência brasileira constitui, em grande medida, um antídoto contra os aspectos melancólicos - porque racistas, autoritários, predatórios, escravagistas, negacionistas - do laço social brasileiro. Desde que o samba é samba, a tristeza é senhora. Mas é ainda o samba que, com seu grande poder, transforma a dor.10
Ao revisitar, em Estâncias, a tradição dos trovadores medievais, Giorgio Agamben (2007) evidencia a amplitude com que as doutrinas médicas e filosóficas da Antiguidade - em especial, a teoria do fantasma e a do pneuma - permeiam o saber e o fazer poético nessa tradição e influenciam o tratamento que ela dá ao problema da melancolia. Para a filosofia e a medicina da Antiguidade e da Idade Média, a melancolia, associada à bile negra e ao temperamento saturnino, é uma doença difícil de circunscrever e de tratar. Para a religião, é um pecado mortal de difícil remissão. O único lugar onde a cultura ocidental consegue, de certo modo, acolher a melancolia, diz Agamben (2007), é na stanza, isto é, na estrofe da poesia dos trovadores. Em seu comentário ao argumento de Agamben (2007), observa José Miguel Wisnik (2020, s.p.):
Agamben não ressalta, no entanto, o fato de que o gênero poético em questão seja a canção, isto é, implícita ou explicitamente música e, portanto, voz. Mas é ali que se instala e se instaura a doutrina do pneuma: a canção é inspirada pela força cósmica do ar que se respira, capaz de ativar a fantasia e acolher o impossível do desejo - a palavra insuflada de ar e acolhida na stanza, a estrofe.
Quando Agamben (2007) se pergunta se é possível atualizar em nosso tempo o gesto do trovador medieval em face da melancolia, sua resposta já está dada de antemão. No entanto, propõe Wisnik (2020, s.p.), uma outra estância é possível:
A certa altura ele [Agamben] indaga, numa pergunta que se quer retórica, porque já pressupõe a resposta, algo assim: quem, hoje, remontando à força inspiradora do pneuma, perdida pelo Ocidente, seria capaz de, num salto à frente, retomá-la? Em vez de responder “ninguém”, como a pergunta sugere, minha resposta é: “Dorival Caymmi!” [risos]. Sim, Dorival Caymmi, como exemplo daquela experiência luminal da canção que também desponta em Guimarães Rosa.
Uma amostra desse feito na obra de Caymmi é a canção Coqueiro de Itapuã (1959) Seus correlatos na obra de Guimarães Rosa são a canção de Siruiz, em Grande Sertão: Veredas, e a canção de Laudelim, no conto O recado do morro.
“Coqueiro de Itapuã - coqueiro; areia de Itapuã - areia; morena de Itapuã - morena; saudade de Itapuã - me deixa”. Caymmi insufla ar, pneuma, em cada palavra, fazendo os lugares (coqueiro, areia, morena, Itapuã) presentes e ausentes, em parceria com o vento que “faz cantigas nas folhas / no alto do coqueiral” - fazendo um pacto com o vento e jogando uma flor no colo da morena ausente, enquanto acolhe a impossibilidade do desejo no colo da canção. Ou seja, é a stanza o lugar onde está acolhida luminosamente a melancolia. E é assim na canção de Siruize na canção de Laudelim, com as propriedades misteriosas envolvidas nesse jogo entre os sentidos e os sons musicais da palavra, esse som que cai mas que vem na voz (Wisnik, 2020, s.p.).
Nessa passagem, as “propriedades misteriosas do jogo entre os sentidos e os sons musicais da palavra” evocadas por Wisnik parecem corresponder, em dialeto lacaniano, aos efeitos - que são afetos - produzidos por lalíngua nessa substância gozosa que constitui o “mistério do corpo falante” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 178), outro nome do inconsciente. Do mesmo modo, a articulação do significante com o objeto a, a que alude Miller (1986/2016, p. 109) quando se refere à relação entre a ideia e o afeto, parece encontrar uma designação mais poética na menção feita por Wisnik a “esse som que cai mas que vem na voz”. Também se pode ensaiar uma aproximação entre o impossível do real lacaniano e a “impossibilidade do desejo” a que se refere Wisnik, e sugerir que, em ambos os casos, o impossível aí em questão é o real faltoso, desencontrado, da não relação sexual.
Para além dessas possíveis correspondências, em que mais a canção pode interessar à psicanálise ou, mais especificamente, a uma reflexão sobre a interpretação analítica? Ora, a canção, fruto do gaio saber do trovador ou do cancionista, pode servir como referência para a interpretação tal como Lacan a conceitua nos últimos anos de seu ensino. Afinal, sob essa perspectiva, a interpretação se aproxima da canção na medida em que o ato interpretativo se afigura como o meio hábil para “fazer soar outra coisa que não o sentido” (Lacan, 1976-1977, s.p.),11 para “passar pelas entranhas” (Miller, 2015, p. 34) do analisando e para produzir em seu corpo um acontecimento que tenha “efeito de sentido real” (Laurent, 2018, p. 70) e que seja capaz, no limite, de debelar o sintoma.
Se não, voltemos aos versos que emolduram a canção de Caymmi:
coqueiro de Itapuã - coqueiro
areia de Itapuã - areia
morena de Itapuã - morena
Cada repetição de nome é mais do que uma ecolalia, uma vez que, na repetição, os nomes que evocam cada um destes objetos - coqueiro, areia, morena - são entoados alguns graus acima na escala, de uma maneira que parece dimensionar espacialmente a distância a que esses objetos se encontram, e quem entoa assume a inflexão de quem quer chamá-los para perto. E se, na poesia clássica chinesa que François Cheng ensinou a Lacan, a trama dos ideogramas parece fazer cantar o texto,12 no Coqueiro de Itapuã, inversamente, é a entoação dos nomes por Dorival Caymmi que parece sulcar ou pigmentar no corpo do ouvinte, como ideogramas, algo da presença dos objetos que esses nomes evocam.13 Ao cantar esses ecos, Caymmi, o nosso Buda Nagô, insufla ar, vida, pneuma, em cada palavra e presentifica um traço do objeto ausente - reconhecendo, em todo caso, a impossibilidade do encontro. Seu parceiro nessa façanha é o próprio vento, que faz cantiga nas folhas no alto do coqueiral, o vento que ondula as águas, o vento a quem Caymmi confidencia que nunca teve saudade igual. E é o vento que, a pedido de Caymmi, traz boas notícias da terra distante e joga uma flor no colo de uma morena em Itapuã. Essa flor, como a própria canção em que ela flutua, dá testemunho da invenção de que o sujeito é capaz quando acolhe na estância da canção o encontro faltoso, a saudade sem igual, de modo a bem-dizer a causa de desejo.