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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.86 Belo Horizonte dez. 2023  Epub 03-Fev-2025

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n86.09 

PSICANÁLISE E CULTURA

Narcisismo na cultura: o ideal do eu1

NARCISSISM IN CULTURE: THE EGO IDEAL

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Especialização em Psicologia Clínica.

Psicanalista formada pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) e Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).

Clínica particular desde 1971.

Coordenadora do Seminário de Psicanálise e Cultura no CPMG, para formação de novos psicanalistas.

Presidente do CPMG de 1997-1999 e de 2011-2014.

Vice-presidente do CPMG de 2017-2020.

Delegada do Brasil para a IFPS desde 1998.

Editora regional, para a América do Sul, da revista International Forum of Psychoanalysis (IFP) desde 1997.

Tem artigos publicados em livros e revistas nacionais e internacionais.

Publicou três números da revista International Forum of Psychoanalysis como editora convidada.

E-mail:elianarpmendes@hotmail.com

1 

1Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


Resumo

A autora apresenta uma abordagem do narcisismo e do ideal do eu desde o seu conceito inicial até suas manifestações na cultura contemporânea. Mostra sua trajetória ao longo da obra freudiana e as contribuições de Lacan ao tema. Analisa brevemente a presença do narcisismo e dos ideais do eu nos tempos atuais, mostrando os impactos no sujeito através das tecnologias da informação, do consumismo exagerado, da corrupção política, dos racismos e da intolerância às diferenças sexuais. Termina apontando a importância dos movimentos populares, propiciados pela própria cultura, para o enfrentamento desses conflitos.

Palavras-chave: Narcisismo primário e secundário; Ideal do eu e eu ideal; Cultura contemporânea; Consumismo e corrupção; Diferenças sexuais

Abstract

The author presents an approach to narcissism and the ego ideal, from its initial concept to its manifestations in contemporary culture. It shows his trajectory throughout Freud’s work and Lacan’s contributions to the theme. She briefly analyzes the presence of narcissism and self-ideals in current times, showing the impacts on today’s subject, through computer technologies, exaggerated consumerism, political corruption, racism and intolerance of sexual differences. She ends by pointing out the importance of popular movements, fostered by culture itself, in facing these conflicts.

Keywords: Primary and secondary narcissism; Ego ideal and ideal ego; Contemporary culture; Consumerism and corruption; Sexual differences

O narcisismo é uma poderosa blindagem a favor da vida.

Coutinho Jorge

Narcisismo: o conceito

O termo “narcisismo”, que dentro da tradição grega significa o amor da pessoa por si mesma, foi primeiro apresentado por Ovídio, poeta romano nascido em 43 a.C., cuja obra máxima foi Metamorfoses, na qual apresentou o mito e o personagem de Narciso, que, ao ver sua imagem refletida nas águas do rio, sem saber que aquela era a sua própria imagem, apaixona-se por si mesmo e rejeita Eco, a ninfa que o desejava. Torturado pelo sentimento de fascínio pela imagem, acaba por perceber que aquela era a imagem de si mesmo. Isso o faz se agredir e sangrar até a morte, para se transformar então numa flor.

Em 1914, com o estudo de Freud Sobre o narcisismo: uma introdução o termo adquire a posição de um conceito teórico. Freud considera o narcisismo não apenas um desvio sexual, mas um elemento inerente à estrutura psíquica. O conceito de narcisismo, nesse contexto, diz respeito à criança e ao tipo de escolha que ela faz de sua pessoa como objeto de amor, numa fase em que ainda não tem plena capacidade de se voltar para os objetos externos. Essa oposição de libido do eu e libido do objeto não desaparece, e as duas permanecem, hipoteticamente, num movimento de báscula entre si. A primeira reformulação da teoria das pulsões faz desaparecer a separação entre as pulsões do eu (pulsões de autoconservação) e as pulsões sexuais (pulsões de procriação), em que o eu é um grande depositário da libido.

Em 1920, em Além do princípio de prazer, Freud vai falar da nova dicotomia das pulsões, com a nomeação de uma pulsão de vida (que engloba as pulsões do eu e as pulsões sexuais) e uma pulsão de morte. Seus últimos trabalhos vão falar da oposição entre natureza e cultura e as vicissitudes que advêm disso. As dicotomias mantêm a tensão da obra freudiana. Nelas está presente a ideia de conflito, inerente à psicanálise.

A localização do narcisismo primário é enigmática e mais fácil de ser confirmada por dedução retroativa. O narcisismo primário é um berço simbólico que antecipa o próprio nascimento do bebê. Este já é pensado e falado por seus pais, que escolhem seu nome e lhe fazem atribuições que correspondem ao seu próprio desejo de genitores.

Para Lacan, o narcisismo do bebê é constituído pelo olhar do Outro parental, assim como se dá a erogeinização de seu corpo também pelo Outro. Na verdade, todas as pulsões, na teoria lacaniana, obedecem a uma demanda do Outro. Às diversas fases da libido que correspondem ao organismo vivo do bebê, Lacan acrescenta a linguagem, que é o que distingue o bebê humano de todas as outras formas de vida. Através dela a criança vai sendo gradativamente banhada no caldo da cultura que lhe é trazido pelo Outro experimentado.

Sua Majestade, o bebê, que demonstra o encantamento dos pais por seu rebento, nada mais é do que a manifestação de seu próprio narcisismo abandonado, em cujo lugar se constituiu gradativamente seu ideal do eu.

Através da construção do estádio do espelho, desenvolvida em 1949, por Lacan, vão sendo trabalhados os primórdios da constituição do eu. Paralelamente ao olhar da mãe, há um empréstimo do seu tesouro de significantes ofertados ao bebê, que vai se constituindo como eu.

Para Freud, a constituição do eu é um precipitado das relações objetais com o Outro. Uma unidade comparável ao eu não se dá como pronta sem a construção do narcisismo secundário, que aparece nessa intercessão. Temos, então, formada a seguinte equação: autoerotismo, narcisismo e relação objetal. A permanência do bebê humano em sua bolha narcísica não pode se manter para sempre. É com a entrada do Outro que se estabelece primariamente a passagem para a cultura.

Quanto ao narcisismo secundário, sua definição é menos problemática, e a formulação da segunda tópica não modifica seu conceito. O narcisismo secundário não se limita a casos extremos, pois o investimento libidinal do eu coexiste com os investimentos objetais em todos os seres humanos. O próprio Freud afirma que existe um equilíbrio de energia entre as duas formas de investimento que participam de Eros, que são a pulsão de vida e a sua luta contra as pulsões de morte.

O ideal do eu

A princípio, a criança era seu próprio ideal, o substituto do narcisismo perdido na infância. A renúncia à onipotência infantil e ao delírio de grandeza, típicos do narcisismo infantil é o que vai propiciar o surgimento de outro ideal. Essa renúncia existe como produto da submissão às proibições feitas pelas figuras parentais, alojadas na posição de modelo no momento em que a estrutura edípica começa a declinar. Tal renúncia situa-se na posição do recalque, processo que tem sua sede no eu e cuja realização exige um critério de avaliação. É com a entrada do Outro, representante da cultura, que advirá o ideal do eu, com o qual o eu ideal, onipotente por excelência, necessitará se confrontar. Dessa passagem surgirá o recalque.

Lacan (1963/1995), ao escrever sobre o relatório de Daniel Lagache, sublinha a passagem em que diz que a criança, mesmo antes de seu nascimento, é como um ser do desejo de outros, já traz consigo uma expectativa, projetos e atributos e vai ser sob esses anseios que ela vai ficar sufocada. Mas é também a partir dessa reserva de atributos que ela vai achar um lugar. Os pais, investindo narcisisticamente na criança, a colocam no campo do Outro, com os significantes que lhe cabem. A partir desse referencial simbólico, a criança construirá sua imagem, com o que é necessário para ser amada e para corresponder ao que a alteridade espera dela. No seminário 1: Os escritos técnicos de Freud,Lacan (1953-1954/1986) vai diferenciar o eu ideal do ideal do eu: o eu ideal é uma instância imaginária, a imagem no espelho, uma projeção. O ideal do eu se constitui numa introjeção e é o modelo simbólico que guia o eu ideal. Para Coutinho Jorge (2023), o eu ideal é uma figura de onipotência, e o ideal do eu é a dialetização dessa onipotência.

O conceito do ideal do eu é bastante polêmico e sofre várias modificações na teoria freudiana. Aparece pela primeira vez em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1974). Nesse texto, a criança, no seu narcisismo infantil, tem a si mesma como seu próprio ideal e se atribui uma perfeição imaginária. Quando se vê sendo alvo das reprimendas de terceiros e pelo aparecimento de seu próprio julgamento crítico, sente uma ferida narcísica, ao se confrontar com o ideal do eu. O fato é que ela não está disposta a desistir de sua perfeição narcisista infantil perdida, e o ideal do eu passa a ser o confronto com essa perfeição.

Trajetória do ideal do eu

Em 1917, nas Conferências introdutórias sobre psicanálise (Freud, 1917/1974), o ideal do eu passa a ser um subcomponente do eu, carregado de uma consciência moral.

No texto Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/1974), o ideal do eu aparece como uma instância separada do eu, que tem a capacidade de entrar em conflito com ele. Entre suas várias funções estão a auto-observação, a consciência moral, a censura onírica e a participação no processo de recalque.

O eu e o isso (Freud, 1923/1974) mostra o ideal do eu já identificado com o supereu. O texto ainda fala da origem do ideal do eu como sendo formada por identificações com os pais e seus substitutos sociais.

Nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (Freud, 1933/1974), o ideal do eu aparece como um precipitado da antiga representação parental e como uma função do supereu.

O termo “supereu” aparece como tal no artigo O ego e o isso (Freud, 1923/1974), mas já tinha sido apontado por Freud em 1914, quando falou sobre o narcisismo. Aparece como uma instância psíquica especial, que atuaria a partir do ideal do eu, exigindo satisfação narcísica e, ao mesmo tempo, observando o eu e mostrando o quanto ele está longe desse ideal. Mais tarde, a consciência moral é trazida a partir da crítica dos pais e da sociedade.

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/1974) vai falar que a severidade do supereu nem sempre se liga à severidade dos pais, mas está principalmente ligada à pulsão de morte. A lei do supereu é uma lei insensata, que, ao mesmo tempo em que proíbe o gozo, também o incita (Lacan, 1953-1954/1986). O comando superegoico seria: Goza, goza, seu filho da puta!

Em A dissecção da personalidade psíquica, Freud (1933/1974) diz que o supereu tem como uma de suas funções ser veículo do ideal do eu. Mas o supereu não tem como função ser modelo, tal qual o ideal do eu, que está do lado da lei, ou com a introjeção da autoridade parental. Ao contrário, o supereu, feroz e tirânico, fala muito mais de uma quebra desse modelo simbólico.

O narcisismo na cultura

No capítulo VI de O mal-estar na civilização, Freud (1930/1974) apresenta a luta entre as pulsões libidinais e as agressivas. A inclinação para a agressão aparece como uma disposição pulsional original e autossubsistente, constituindo-se no maior empecilho à civilização e na principal representante da pulsão de morte. Já a civilização é um processo a serviço de Eros, cujo trabalho é combinar entre si os seres humanos, promovendo a união de famílias, lugares, povos e nações numa grande unidade: a unidade da espécie humana. As duas pulsões andam lado a lado na evolução da civilização, nessa contenda entre as duas forças antagônicas.

O capítulo VII discute o aparecimento do supereu e do sentimento de culpa que o acompanha. Esse sentimento tem uma dupla origem: o medo da autoridade e o medo do próprio supereu, quando este já foi introjetado. A severidade do supereu é uma continuação da severidade da autoridade exterior, à qual ele sucedeu e em parte substituiu.

O capítulo final VIII vai falar que o supereu é uma instância inferida por Freud e a consciência é uma função dessa instância. A integração a uma comunidade humana tem sempre uma renúncia a ser feita em termos da própria satisfação das pulsões. Pode-se dizer que a comunidade dá origem a um supereu sob cuja influência se processa o desenvolvimento cultural. O supereu de uma época de civilização tem origem semelhante à do supereu individual. Ele se baseia na impressão deixada atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes da época. Freud faz uma menção à ética, que pode ser

[...] considerada como uma tentativa terapêutica, como um esforço por alcançar, através de uma ordem do supereu, algo que não foi conseguido até agora por meio de quaisquer outras atividades culturais (Freud, 1930/1974, p. 167).

A cultura contemporânea

O século XX, no qual Freud escreveu a maioria de seus textos, foi um tempo de enormes mudanças numa tal velocidade nunca antes vista num período histórico. Nessa esteira de transformações, surge a psicanálise, conhecimento novo que propiciou a ruptura na racionalidade, ao mostrar que nós, seres humanos, não somos donos de nossa própria casa e que somos falados e antecedidos por uma polifonia de vozes que nos constituem.

Com seu trabalho, Freud traz à luz uma outra cena até então oculta na escuridão da nossa memória. Essa instância, ainda não reconhecida, alojada no mais profundo do psiquismo, pode fazer uma irrupção a qualquer momento, quando menos se espera: o inconsciente. Essa criação propicia a consideração das subjetividades, outro fator preponderante para inaugurar um novo capítulo na história das mentalidades.

Ao considerar a normalidade como um conceito econômico e a sexualidade como um continuum desde o nascimento até a morte do ser humano, Freud intrigou seus contemporâneos, mas principalmente trouxe uma pergunta sobre a constituição do sujeito: o que faz do Homem um ser humano? A psicanálise, na sua trajetória subversiva e libertária, propiciou questões que ela mesma hoje é convocada a responder.

Ainda na segunda década do século, acontece a Primeira Guerra Mundial, que porá em confronto as nações da Europa, tidas como altamente “civilizadas”. Essa guerra proporcionou uma validação para a nascente psicanálise, trazendo uma visão pulsional dos processos históricos coletivos. Na guerra, a pulsão é superdimensionada: pode-se ver que a tradição é extremamente precária e a cultura tem limitações. Além disso, tudo o que é produzido pelo ser humano é relativo. E nessa circunstância de um conflito armado, há uma quebra dos padrões de normalidade. A Segunda Guerra Mundial traz uma ferocidade ainda maior do que a primeira, o que também muda os comportamentos vigentes.

A partir da metade do século XX, nos anos 1950 e 1960 a cultura vai viver uma intensa mutação. Num esforço de situar a nova realidade complexa e distópica, e descrever a cultura de forma crítica, muitas obras foram produzidas, desde a literatura ficcional, com o Admirável mundo novo (Aldous Huxley, 1932); 1984 (George Orwell, 1949); Fahrenheit 451 (Ray Bradbury, 1953), até ensaios de pensadores, filósofos e sociólogos. Entre esses, temos: A era do vazio e O império do efêmero (Gilles Lipovetsky, 1983, 1987); A cultura do narcisismo (Christopher Lash, 1979); O declínio do homem público e A corrosão do caráter (Richard Sennett, 1977, 1999); A cultura do espetáculo (Guy Debord, 1992); A modernidade líquida e Vida líquida (Zygmunt Bauman, 2001, 2005); A sociedade do cansaço e A agonia de Eros (Byung Chul Han, 2010, 2012); O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias (Elizabeth Roudinesco, 2022) e muitos outros. Todos esses títulos são alguns significantes que definem nosso mundo contemporâneo.

Assistimos à dissipação dos valores até então respeitados, que começam a ser duramente questionados, com o aparecimento de novas configurações não só na vida material, mas principalmente na vida psíquica. O desalojamento da figura masculina, no mundo ocidental, dos lares para a guerra, faz com que o trabalho feminino seja necessário nas várias classes sociais, o que vai transformando a autoridade patriarcal, com gradativo declínio da figura masculina. A própria ciência, num avanço significativo, consegue propiciar a fertilização de um óvulo por um espermatozoide, o que já não depende de um encontro sexual, mas de uma manipulação encomendada, na qual a figura masculina se esvanece. O grande desenvolvimento da tecnologia em geral, já começado antes, com o século das luzes, vai modificando os modos de produção, descartando certas profissões e fazendo surgir outras.

Entre essas evoluções, as técnicas da informática vão se aperfeiçoando ainda mais, deixando de se apresentar com um maquinário lento e pesado para chegar a um objeto pequeno e portátil, ao qual muitos podem ter acesso. As distâncias se encurtam, numa nova dimensão de tempo e espaço, onde se pode ao mesmo tempo estar em lugares diferentes. As telas passam a dominar todas as comunicações, que agora podem ser feitas simultaneamente através da voz e do olhar. As comunicações em rede, a cada dia com recursos mais avançados, tornam o mundo uma aldeia global. Assistimos à criação de aplicativos, como Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, Chat GPT e toda uma gama de possibilidades de comunicação e informação, pondo em cena a inteligência artificial.

A pulsão escópica, o olhar, funciona predominantemente, num mundo onde as imagens são cada vez mais importantes, em detrimento do simbólico, que se encontra enfraquecido. Parecer feliz é uma exigência ainda maior do que ser feliz. A fruição dos momentos bons se torna fragmentada com a interrupção do tempo para as fotos, roubando a espontaneidade do momento. O registro da cena visa o olhar do outro, sua aprovação, sua inveja. As selfies apresentam o Eu soberano à frente, dominando cenários variados. Hoje os adolescentes, presas fáceis de gadgets e da premência de contato, trazem o mundo na palma da mão, com tudo que precisam para se instruir e se distrair.

O ideal do eu está muito mais próximo das figuras da rede do que estaria dos pais ou dos educadores em outros tempos. O fascínio pelas figuras midiáticas é muito mais forte do que pelas figuras parentais, muitas vezes ausentes e pouco preparadas para o embate educativo. O número de likes na rede pode levar alguém ao céu ou ao inferno, assim como se cria a ilusão de seguidores voláteis que não comparecem na hora em que a solidão aparece e se precisa de um abraço amigo.

Mas não se pode demonizar ou santificar a informática. Ela veio para ficar e tanto podemos nos encantar com um movimento espontâneo e poderoso de seus usuários, como foi a Primavera árabe, levante sem líderes explícitos em países árabes contra a opressão, quanto nos indignarmos com a cultura nefasta das fake news e com as barbaridades da deep web ou dark web, com seu rastro impune dos crimes mais hediondos contra a humanidade.

O apelo ao social, a demonstração, o par antitético ver e ser visto dominam a cena e os sentimentos. A sociedade do consumo também é uma realidade que hoje se impõe. Com a produção em massa feita pelos países ricos, é urgente que se crie a necessidade do novo, que leva ao maior consumo. Vemos que hoje o princípio da utilidade se tornou dependente do princípio da realidade.

Para Freire Costa (2004) o consumo está muito mais na redefinição dos ideais de felicidade do que na natureza alienante das mercadorias. Para Bauman (1997), o objeto agrega valor social - e não sentimental - a seu portador, um tipo de passaporte que o identifica em qualquer situação, lugar ou momento da vida. O ideal do eu se modifica. Estar feliz é sentir-se corporalmente igual aos vencedores, às pessoas de grande visibilidade, como os astros e estrelas midiáticos. O corpo é o último reduto do qual se pode apossar e ornar como se queira.

Hoje se tem a figura do digital influencer, alguém que foi ungido no altar do consumo para ditar aos seguidores o que deve ou não deve ser usado, o que é certo sentir e como se comportar. A celebridade hoje é a autoridade do provisório. Ídolos são projetados e derrubados rapidamente. O supereu também se torna volátil nessas situações. O que vale é a aliança entre o sucesso e a visibilidade. A ascensão social idealizada se afasta da decência moral e as duas não têm a possibilidade de estar juntas.

Esse é também o caso da corrupção política. A mulher de um ex-governador do Rio de Janeiro justificou-se diante das acusações que lhe foram feitas, sobre a rapinagem de tantos bens materiais, respondendo que, ao fazer suas transações escusas “estava em êxtase”. Cai-se num infindável deslizamento de objetos de desejo que acaba por trazer a angústia.

A angústia (Lacan, 1962-1963/2005), além de um afeto, é um tempo de passagem entre o gozo e o desejo. Se o gozo representa um excesso, o desejo é o que move na direção da verdade de cada um. Não se acede ao desejo sem que se sinta angústia. Ela ocupa um tempo de desprender do sentido que se dava a algo e que clama por mudança. Quando há uma fixação nesse desprendimento, é aí que a falta faz falta, porque se fica colado a uma representação qualquer que tampona essa falta. É o que acontece na posição de um consumismo cego ou no êxtase dos políticos corruptos. Se a falta é obturada totalmente, o desejo fica travado em seu movimento e tem lugar uma repetição interminável de uma mesma cadeia onde se está aprisionado e, por que não dizer, consumido. Consumidos ou desaparecidos como sujeitos estão os que não desejam mais (Mendes, 2015).

Quanto ao racismo, o ideal do eu está sempre aquém do modelo oficial. A atriz Viola Davis, grande intérprete norte-americana do cinema e do teatro, fala numa entrevista no Instagram, que o máximo que a sociedade branca pode lhe conceder é chamá-la de Meryl Streep preta. É como se ela fosse apenas um rascunho em negativo, sem nunca poder brilhar com luz própria. A referência ainda é a branca.

Nos anos 1960 foi necessário que um modelo de orgulho racial fosse referência de fora para dentro: as grandes marchas e campanhas de Martin Luther King, nas quais foram lançados slogans para despertar o narcisismo massacrado da população negra, com as palavras de ordem: I am somebody! [Eu sou alguém], Black is beautiful! [Preto é belo], reforçadas ainda hoje. Seres invisíveis e sem procedência definida, os pretos norte-americanos tiveram nessa mesma época um livro de referências - Roots: the saga of an American Family, publicado em 1976 por Alex Haley. A saga de Kunta Kinté sustentou muitos ideais do eu fragmentados. A última manifestação massiva contra o racismo: Black lives matter! [Vidas pretas importam] convocou muito mais brancos do que antes.

Mas ainda hoje assistimos supremacistas brancos invadirem a sede do governo, berrando seus eus ideais representados por uma figura caricata de poder. No Brasil de hoje, onde antes se procurava branquear os pretos, como foi feito com Machado de Assis, há toda uma política de incrementar a participação dos negros, numa busca de trazê-los a uma cena da qual estiveram sempre afastados.

Com a população LGBTQIA+ acontece o mesmo. As marchas de orgulho gay, os reality shows que mostram pessoas desse segmento como elementos bem-sucedidos e capazes de interagir proveitosamente com os não pertencentes a seu grupo, como The queer eye for the straight guy [Um olhar gay para o cara hétero], falam em favor de uma interação pacífica e proveitosa com essa parcela social.

Também aqui a aceitação de fora para dentro é muito importante para que se forme um ideal do eu cultural. Vários estudiosos do tema das sexualidades, como Thomas Laqueur (1992), consideram que o avanço da aceitação e a inclusão dos sexualmente diferentes, não se deram em função da ciência, mas em resposta às necessidades políticas fundamentais para a construção da sociedade contemporânea.

As diversas formas de interpretar o corpo e as diferenças entre os sexos resultam não de um conhecimento específico, mas de uma produção discursiva, explicitada principalmente dentro de um contexto de lutas e conflitos em que estão em jogo gênero e poder. Lopes (2017) vai dizer que as novas redesignações sexuais não vieram da área médica ou psicanalítica, e sim foram impulsionadas pelos grandes movimentos políticos e sociais.

A imprensa livre, assim como a literatura, o cinema, o teatro e as artes em geral têm muita importância para a aceitação e a inclusão desse segmento, com fatores não só do esclarecimento público, mas também da aceitação subjetiva de uma outra configuração sexual. Os movimentos de liberação sexual promoveram significativas modificações jurídicas e políticas nas estruturas familiares.

Com seu livro O Eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias ,Roudinesco (2022) afirma que as tais derivas vêm substituindo as lutas coletivas. Não se pode pensar as sociedades sem algum universal: a liberdade, por exemplo, é sempre um valor. Depois do fracasso do comunismo (já questionado e previsto por Freud no Mal-estar na civilização), com a queda do muro de Berlim, os esforços coletivos para se manter a coesão da humanidade estão muito diminuídos. Num mundo como o nosso não se tem o controle do que está por vir. É um mundo em desconstrução, mas o pensamento crítico deve ser mantido, fazendo-se uma ligação da nossa herança clássica com as novidades. Talvez assim se encontre alguma saída.

Essas operações de reforço social e cultural trarão mudanças significativas para o ideal do eu, formado tão precocemente na vida da criança? Até que ponto são eficazes para a construção ou reconstrução do ideal do eu? São perguntas que nos angustiam e para as quais buscamos respostas.

A pós-modernidade nos apresenta uma batalha de forças conflitivas: de um lado as ofertas sedutoras para o eu ideal em sua onipotência, sustentadas pelo império das imagens e, do outro, um ideal do eu líquido, cujos fundamentos se mostram tão fragmentados quanto o tempo em que vivemos.

A nós, analistas, cabe o desafio de saber lidar com isso.

1Conferência apresentada na jornada promovida pela Rede Americana de Psicanálise (RAP) SUA MAJESTADE, O EU, NARCISISMO NA TEORIA, NA CLíNICA E NA CULTURA do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, realizada no nos dias 31 mar. e 1.º abr. 2023.

Referências

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Recebido: 10 de Agosto de 2023; Aceito: 24 de Novembro de 2023

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