O ser humano é um ser imerso no tempo. Seus movimentos, suas ações e seus pensamentos sempre remetem a um fim futuro, seja no próximo segundo, seja para a geração futura. Entretanto, como é um ser um ser histórico constituído por uma combinação entre seus fatores constituintes e as experiências adquiridas, tais movimentos carregam em si a experiência do passado na vivência atual. Podemos almejar o futuro, observar o passado, mas o tempo presente, o agora, essa intersecção entre o que já foi e o que será, passa quase sempre despercebido pelo planejamento e entendimento dos movimentos.
Vivemos em um tempo que se destaca por avanços tecnológicos até então inimagináveis pelas gerações anteriores, e a busca gananciosa por mais e mais é o que pauta uma sociedade apoiada na cultura do consumo. A profecia de Juscelino Kubitscheck de 50 anos em 5 foi a verbalização de um impulso comum da humanidade, que vem avançando rapidamente em comparação com o que podemos consultar nos livros de história.
Que entendimentos podem ser construídos com esse arranjo? Quais as diferenças de entendimento entre as pessoas que nasceram em gerações anteriores ao fácil acesso à internet e smartphones e as que já nasceram com esses recursos? Como essa overdose de tecnologia afeta os modos de expressão do ser humano? Que novos sintomas do sofrimento psíquico podem ser observados nesse cenário em relação aos sintomas clássicos da psicanálise?
1. Expressão e sintoma
Algumas pesquisas recentes no campo clínico apontam para a necessidade de um novo olhar acerca do acesso à realidade psíquica das pessoas. Leonardo Câmara (2020) critica a leitura do ser humano pautada exclusivamente na leitura da linguagem verbal e em interpretações que movem uma torção em nome do uso do simbolismo ou, como ele declara, uma “compulsão à transliteração”. Há muito nos registros da filosofia e da psicanálise. Sabe-se que algo vai além das palavras, por exemplo, o incognoscível de Kant, a coisa-em-si de Schopenhauer, o inconsciente de Freud, o real em Lacan.
Entretanto, ao que se lê no avanço das décadas, essa compulsão à transliteração aparece de forma mais incisiva na sociedade da informação, visto que tudo no mundo virtual é binário, zeros e uns, formando sistemas simbólicos que carregam em si a informação de forma transliteral, mas que são incapazes de reproduzir esse “algo a mais” que a essência humana transmite.
Evoco o termo “expressão” para aludir a algo da comunicação que vai além das limitações binárias de um sistema linguístico. Sándor Ferenczi (1913/2011), em seus estudos sobre o desenvolvimento do sentido de realidade, utilizava os termos “Ausdrucksbewegungen” [movimentos de expressão] e “Ausdrucksmittels” [meios de expressão] para designar realizações feitas por bebês e crianças, por vezes crianças já em posse de um idioma, que objetivavam comunicar algo. Sobre essas especificidades de expressão, apresento a seguir o resumo dos estados a elas relacionados, elaborado em um trabalho anterior:
1. Período da onipotência incondicional: Estado intrauterino em que nenhum investimento é necessário à saciedade das demandas, sendo estas providas pelo cordão umbilical.
2. Período da onipotência alucinatória mágica: Estado no qual a criança sente o surgimento da demanda no corpo, mas o ambiente cuidador ‘adivinha’ e supre tal demanda sem a necessidade de um investimento para além do próprio sentir.
3. Período da onipotência com a ajuda de gestos mágicos: Estado no qual a criança gesticula por aquilo que deseja. Mãos estendidas, contorções físicas ou ruídos não simbólicos.
4. Período dos pensamentos e palavras mágicos: Estado em que surge o domínio, mesmo que parcial, dos recursos linguísticos como recursos para clamar ao ambiente pelas demandas (Oliveira, 2022, p. 35).
Se no item 4 já é possível notar a presença desse algo a mais, em que as palavras se tornam “palavras mágicas”, capazes de prover o desejo com sua mera pronúncia, pouco é necessário acrescentar sobre as outras etapas. Ocorre que, a bem saber, quando existe uma distância entre o que o impulso humano deseja e o que a realidade material provê, isso que ‘sobra’ ou, melhor seria dizer, ‘falta’, mobiliza o sujeito com seus recursos conscientes e/ou inconscientes a uma reação. Nesse sentido, o sintoma se revela como uma forma de expressão daquilo que foge à medida do desejo.
Cumpre dizer que é importante a exposição das quatro fases da onipotência infantil, que são trabalhadas de forma exaustiva no ensaio de 1913 pelo psicanalista húngaro, pois funcionam como bússola para a classe do sintoma manifesto. Contudo, se falamos da expressão do sintoma em uma sociedade da informação, binária e aprisionada pelo principado da linguagem verbal, como essa expressão pode extrapolar o limite de caracteres e demonstrar algo além do que é escrito?
2. Vaidade e exposição em redes sociais
A primeira das exposições acerca dos sintomas e sua forma de expressão é também a causa fundante da psicanálise de Freud: a histeria. A manifestação histérica é figurada nos tempos de Freud por meio de paralisias, tensões de órgãos, dores diversas, sensações de desconforto físico, bem como por fantasias de traição e insatisfação constante. Ferenczi associa as manifestações histéricas a reproduções do período de onipotência infantil com a ajuda de gestos mágicos. Pensa-se no histérico como a criança que deseja algo e gesticula com as mãos em direção ao objeto desejado.
Fala-se em estado de onipotência infantil, pois a criança que move essa gesticulação, de fato, acredita na onipotência da realização do desejo por meio dessa expressão. Não há ainda consideração racional suficiente para compreender que um adulto em posse de suas próprias vontades e passível de ‘sim’ ou ‘não’, está, por livre opção, escolhendo realizar o desejo expresso pela criança. Do mesmo modo, em uma manifestação histérica, o sujeito, em sua expressão, está para além de um pensamento crítico. Há em si um ímpeto que mobiliza a sensação de certeza onipotente que algo da saciedade pode ser obtido através da expressão histérica.
Observamos diariamente, nas redes sociais, famosos e anônimos que postam suas fotos no Instagram, por exemplo, com os mais belos ângulos ou em cenários invejáveis, tudo isso para que se sintam afirmados por numerosos likes e comentários. É a expressão pela exposição que diz a internautas do mundo inteiro: “Deem-me o que quero. Adorem-me. Cortejem-me”. Muitas vezes inclusive, em um movimento que visa subjugar o outro à subserviência. Assim como a criança que espera com os braços estendidos pelo brinquedo e depois o atira para longe, o instagrammer recebe vários likes e finge não se importar.
Outro ponto da expressão de sintoma é a própria expressão do sofrimento como modo de comoção. O sofrimento é inerente ao estado civilizado, entretanto, na expressão histérica, ele é usado como recurso para a obtenção do objeto de desejo. Como algumas crianças que choram enquanto o olhar dos adultos está voltado para elas e cessam o choro quando esse olhar se esvai, o histérico da sociedade da informação posta sua insatisfação para atrair os olhares e qualquer tipo de atenção especial que deseje.
3. Dependência de tela
Mais uma queixa comum dos dias atuais é “perder muito tempo” nas telas. Tal hábito tem se mostrado tão frequente e prejudicial a ponto de acarretar a inclusão no manual diagnóstico da Organização Mundial da Saúde, a CID-11 (2019), observável como aspecto psicopatológico pela deterioração significativa dos laços sociais.
Podemos observar como expressão sintomática do ato de permanecer preso a uma tela, mais comumente ao smartphone, por horas a fio, uma reprodução do estado de onipotência infantil da alucinação mágica. Nesse estado, segundo Ferenczi, o bebê sente o desejo e alucina sua realização. Pense na cena do bebê recém-nascido ao qual o cuidador tende a ‘adivinhar’ as necessidades, conforme a preocupação materna primária descrita por Winnicott (1956/2000), capacidade na qual a mãe psicotiza e pode alucinar no próprio corpo as necessidades do bebê. De fato, a criança sente a falta em algum momento, há um intervalo cronológico entre o sentir e a realização, intervalo no qual Ferenczi descreve que a criança alucina seu estado de satisfação, coincidindo posteriormente com a realização material e dando origem a uma outra forma de onipotência infantil.
Esse estado é mais comumente associado aos obsessivos, de modo que a onipotência por meio de uma alucinação é comparável aos pensamentos repetitivos e ritualísticos presentes no sintoma obsessivo. Esse movimento causa o afastamento do sujeito da sua realidade externa, bem como na ligação inabalável do sujeito ao celular. Ficar horas a fio olhando aplicativos, vídeos, responder de forma imediata a qualquer notificação, uma característica já visivelmente obsessiva, corresponde à alucinação onipotente. Quando o sujeito está em ligação de sua atenção aos estímulos da tela, ele deixa de sentir e é movido a uma compulsão contínua que pode até mesmo anestesiar temporariamente demandas fisiológicas como alimentação e sono tal qual o bebê que alucina uma satisfação com o punho na boca.
4. As fake news
Outro sintoma derivado do encontro dos dias atuais com o uso da tecnologia que não poderia ficar de fora desta abordagem é o das tão faladas fake news. Uma fake new é uma notícia falsa que causa um dano tanto ao sujeito em si quanto à sociedade. Pode parecer inicialmente uma problemática apenas acerca do acesso à informação correta, entretanto basta observar a exposição de fake news na internet para se notar que algumas tratam de supostos fatos que são muito distantes da realidade externa ou de uma fácil contraposição por notícias fidedignas.
Ferenczi não associou uma nosologia específica de sintoma psicanalítico a essa etapa, contudo é possível associar o ato da disseminação ou crença em fake news ao estágio da onipotência infantil com o auxílio de palavras e pensamentos mágicos, o que pode ser visto como uma derivação ou extensão de sintomas obsessivos mais intensos, como os TOCs e a recitação de mantras.
Neste estágio, a criança que se iniciou na linguagem verbal ainda não trata o idioma como um mediador simbólico entre o sim e o não. A criança que chama por mamãe, magicamente a vê aparecendo. É um desdobramento da alucinação em pensamento formal e pronúncia da palavra adquirida por mimetismo que ainda faz a manutenção do sentir-se onipotente. Do mesmo modo, algumas pessoas, no ímpeto pelo estado de satisfação onipotente, escolhem disseminar ou acreditar em textos que expressem concordância com seus desejos e anseios, independentemente de que eles estejam ou não de acordo com uma verdade apoiada no campo da realidade material. Trata-se de um estado da perversão, no qual a criança considera apenas as palavras que convergem com seu desejo, desconsiderando a existência de quaisquer outras.
Questionamentos finais
Este ensaio teve por objetivo traduzir sintomas atuais pautados no contato do sofrimento humano com a tecnologia, gerando novos tipos de expressão de acordo com as possibilidades do universo binário e transliteral.
É fato que o sujeito em sofrimento, assim como a criança onipotente, não tem consciência da base de tais expressões, embora por vezes reconheça o potencial nocivo delas. Isso endossa a premissa de que um adulto não abandona suas tendências infantis, apenas traduzindo-as de forma a combinarem com as possibilidades disponíveis., Desse modo, o sintoma torna-se uma compensação da onipotência perdida da criança. À leitura que considera elementos da atualidade, os recursos tecnológicos da vida cotidiana consistem apenas na atualização histórica de um fenômeno constituinte da condição humana. Todavia, a pertinência do sintoma como inerente não acarreta a simplificação do processo.
É sabido que a condição civilizatória consiste na repressão do desejo em nome da convivência em sociedade e que, contrariamente, a vazão descontrolada da pulsão é uma característica das condições sub-humanas. Assim sendo, o sofrimento da não realização é uma constituinte da humanidade (Freud, 1930/2006), e à psicanálise cabe a busca de tratar tal sofrimento mantendo a convivência civilizada.
Alice Balint (1933/2022) propõe ao tratamento psicanalítico a direção da “elasticidade do recalque”. Se, por um lado, o recalcamento é necessário, por outro, a rigidez pode ser dispensada em nome de um caminho que promova tensão combinada com certa liberdade de movimentação, que seria a vivência de uma parcela do desejo fora da via sintomática.
A autora dá como exemplo o comparativo entre crianças do campo e crianças da cidade. As crianças do campo exercem alguma liberdade fora das vistas de seus fiscais, enquanto as crianças da cidade padecem de excesso de vigilância e, consequentemente, são profundamente mais adoecidas.
O cenário descrito no parágrafo acima foi observado por Balint na Europa dos anos 1930. Como se pode, no entanto, praticar esse afrouxamento da supervisão recalcadora quando os olhos mantenedores da norma estão em todos os lugares, pela via dos smartphones? Se o fundamento da neurose, nos tempos de Freud, se dava pela ação e pelo olhar dos pais, quais serão as consequências para o bebê que, no início de sua vida, tem nas mãos uma janela para a vigilância do mundo inteiro?