É muito difícil escrever, todavia mais difícil ainda é ter coragem para escrever.
Michele Mello
Introdução
Este artigo inspirou-se nos estudos feitos no seminário A transferência, realizado no segundo semestre de 2022, no CPMG. Contou também com a escuta clínica de pacientes em meu consultório. Discorri sobre o que construí como aprendizado fundamentado em muitas leituras, discussões e trocas de experiências com os grupos de estudo.
Por várias vezes, escuta-se a pergunta: o que é a transferência? O que é isso que faz com que as pessoas se entreguem na relação analítica ou não? Na tentativa de responder às perguntas, houve construção e desconstrução de conhecimentos.
A transferência é a chave que abre portas para todas as relações. Na clínica do um a um de cada dia, o paciente processa a transferência de acordo com sua subjetividade. Para cada analista há alguém que estabelecerá com ele uma relação transferencial. Cabe ao analista o entendimento do modo como cada paciente funciona e o manejo clínico.
O manejo, a condução e o direcionamento construídos em cada sessão serão a base para que a análise ocorra. O amor transferencial é uma atualização de amores infantis na figura do analista.
Roudinesco (2016, p. 149) afirma:
Ouvir o sofrimento dos pacientes, decifrar suas linguagens, compreender a significação de seu delírio e instaurar com eles uma relação transferencial: tal era o programa terapêutico preconizado pela equipe hospitalar Burgholzli.
Um saber que o analisando deposita sobre o analista. Em Observações sobre o amor transferencial, Freud (1915/1996) nos pergunta se o amor de transferência não seria a cópia de um amor antigo. Ele admite que seria o amor transferencial próprio de reproduzir o enamoramento de modelos infantis. Para as relações analíticas acontecerem, entende-se que não é uma amizade fraterna ou uma troca de conselhos: o amor transferencial aqui pautado é o ponto de partida para que aconteça. “Sem transferência com associações do analisante dirigidas ao semblante do analista não há análise” (Freud, 1912/1996, p. 143).
Segundo o dicionário Silveira Bueno (2009, p. 908), transferência é o ato ou efeito de transferir ou ligar. Mas no caso da relação analítica, seria transferir o quê? Transferir algo a alguém nos dá a ideia de transpor, de conferir algo, de oferecer alguma coisa, essa palavra tão simples, mas uma forma complexa para cada novo contorno de relação, uma releitura dessas formas de amar/odiar que nos dizem sobre as neuroses.
No Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan, lemos:
[...] a transferência, comparada a uma falsa ligação, assumiu a acepção que mantém hoje, a de envolver o analista na psicanálise de um sujeito. Freud reconheceu de imediato o caráter perturbador da transferência, a saber o surgimento na análise do amor que volta para o analista, desempenhando um papel ao mesmo tempo revelador do passado, (catalisador, diria Ferenczi) mas também de resistência ao relato do passado (Kaufmann, 2009, p. 548).
O amor transferencial não só funciona em análise mas também está presente em todas as circunstâncias da vida. Sem ele é impossível estar em um lugar, se relacionar com alguém, gostar de uma disciplina ou de um professor, trabalhar ou até mesmo existir.
No seu artigo Sobre a dinâmica da transferência, Freud (1912/2017, p. 109) esclarece:
Cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica - isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nos instintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetido - constantemente reimpresso - no decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis permitam.
Vinhetas clínicas
Caso 1
Na clínica da psicanálise, todas as possibilidades de escuta são analisáveis a partir de uma escuta flutuante. Com isso, o paciente cita em suas sessões de análise a obra literária da modernidade O senhor dos anéis escrita por J. J. Tolkien e levada às telas de cinema por Peter Jackson em 2001. O filme, que faturou três bilhões de dólares e rendeu dezessete Oscar, foi a franquia mais premiada na história.
Assim relata o jovem paciente:
O jovem Frodo, Bolseiro, recebe do universo a responsabilidade de destruir um anel, assegurando também a destruição de seu dono. O anel teria o poder de dar a quem o possuísse uma força que jamais alguém teria sem ele. Todos que dele se aproximavam sentiam-se tentados a não destruí-lo, mas sim que o usasse para desfrutar do poder que conseguiria ganhar.
O paciente, um rapaz de 20 anos, cuja mãe me procurou para atendê-lo, havia tentado suicídio se cortando. Desesperada, ela se culpava por tudo aquilo. Recebo o rapaz em meu consultório. Muito tímido e calado, ele mal olhava para mim e, a partir dali, começamos o trabalho de escuta para entender a sua história. Ele tem um intelecto curioso, sempre traz revistas de mangás para a sessão a fim de discutir o que leu, conta casos e fala do curso que faz em uma universidade particular. Conta do seu cachorro, não gosta muito de falar de seu pai e relata várias situações em que seu conhecimento sobre os livros da Bíblia são vastos, apesar de não frequentar nenhuma igreja. Sua família tem raízes evangélicas, mas no atual momento apenas a sua avó frequenta os cultos. Certa vez, ele me pediu para ver o filme Sociedade do anel, dizendo que gostaria de conversar sobre as cenas que o afetaram. Contudo, o que ele trouxe para a análise foi construído e elaborado a partir de associações:
Frodo, o bolseiro, chega desolado perto de Gandalf, o mago, e se queixa do peso da responsabilidade de carregar o anel e levá-lo para ser destruído. O mago, por sua vez, chama a sua atenção para entender o papel do bem e do mal na história dos humanos, dizendo que “seria importante que ele considerasse esse fato como um desafio para sua vida, que tão somente passar por isso, era necessário e já estava escrito pelo Universo”.
O rapaz cita tais cenas associando em sua análise e me traz a seguinte fala: “Dra. tornar-se adulto é a mesma coisa, eu não quero o peso de tudo isso, mas eu tenho que passar por isso”. Através das associações, o jovem entendeu que o peso de levar a vida enfrentando os problemas, era como o Frodo enfrentando a maldade para levar o anel de Sauron para ser destruído. Tudo era uma questão de desafio. Com isso, ele seria uma pessoa mais preparada para lidar com a vida.
Entende-se a psicanálise não como uma cura, mas como um tratamento para que o sujeito se implique em suas demandas. Ela tem como pressuposto fundamental a tese de que o inconsciente determina nossos modos de ser, nossas escolhas e nossos meios de repetição que repercutem tanto em nossas características pessoais quanto em nosso comportamento. Logo, o que dizemos, a forma como vivemos e agimos, inclusive nossas decisões conscientes tudo é influenciado por outra lógica de pensamento, que chamamos de inconsciente.
Em A questão da análise leiga, Freud (1926/1996, p. 249) nos diz:
[...] assim como o minério do qual extraímos o teor de metal precioso a partir de determinados processos. Desse modo, o senhor também estará preparado para processar muitas toneladas de minério que talvez só contenham pouco daquela matéria preciosa que se busca. Aqui teríamos a primeira razão para a longa duração do tratamento.
Percebe-se que a extração do minério feita nas mineradoras retira o que há de maior valor no metal. Assim também, pode-se comparar ao trabalho de análise em que analista e analisando vão construindo o que há de mais libertador: a responsabilidade de pensar sobre si mesmo e ter a consciência de se implicar no processo analítico e em suas próprias demandas. Isto é, falar em primeira pessoa. O analista trabalha da mesma forma fazendo decantação da psique do sujeito.
Quando há transferência, conseguimos extrair mediante nossas intervenções o que há de mais precioso, pois é nas mais profundas instâncias de nossa psique, que se encontra aquilo que nos adoece. Para Roudinesco (2016, p. 257),
[...] o psiquismo é um campo de batalha, um palco noturno, em que se enfrentam duas forças elementares - Eros e Tânatos -, fadadas a se amar e se odiar por toda a eternidade.
O manejo da clínica através da escuta e da transferência dá ao analista condição de estabelecer com o sujeito uma relação de confiança e de provável ressignificação de seus sintomas.
Freud (1926/1996, p. 344) afirma em A questão da análise leiga:
Não se pode esperar uma convicção maior que essa por parte do paciente em relação ao poder de cura da análise; ele pode ter trazido consigo um tanto de confiança diante do analista, confiança que é reforçada através dos momentos a serem despertados pela transferência positiva pela produtividade.
Foi a psicanálise que possibilitou o entendimento, a compreensão e o estudo da transferência no desenrolar de uma análise: “É nesse cenário que o gesto freudiano de reconhecer a verdade do sofrimento psíquico funda a psicanálise” (Iannini; Tavares, 2017, p. 10).
Uma característica da transferência, algo que vai além de pessoas, são as identificações que o sujeito vai (re)construindo na relação com o analista. Somente assim o analisando exterioriza o objeto de interpretação, que é a fantasia inconsciente. Esse objeto, que se inclui também nos sonhos, é revelado através da associação livre, da palavra que vem carregada de significantes e nos sentidos que nos mostra onde realmente se esconde o desejo do sujeito.
Freud (1912/2017) conceitua a transferência como o processo por meio do qual certas relações e acontecimentos do passado, junto com suas composições afetivas, são sentidas e repetidas ou reeditadas, na relação com o analista, sob a influência do princípio da compulsão à repetição.
A análise proporciona ao analisando um momento de implicação e responsabilização do transbordamento daquilo que o incomoda, para uma ressignificação de sua vida psíquica. Através da ressignificação, ele conseguirá alcançar uma melhor capacidade para lidar com a vida e suas demandas, construindo mais qualidade no seu funcionamento. Enfim, transformar o seu sofrimento neurótico “em infelicidade comum” (Freud, 1893-1895/1996, p. 363).
É por meio da palavra que a ressignificação virá. A intervenção que o analista propõe dar ao analisando um modo de repensar sua vida e os porquês de suas queixas. Na análise, o analista se preocupa em entender o que o analisando quer dizer, pois quando fala ele realmente está dizendo sobre o seu desejo.
Freud sempre se preocupava com o momento certo de confrontar as resistências extremas dos pacientes. Ele aguardava o estabelecimento da transferência e o tempo necessário até que o analisando tivesse apresentado indícios dignos de confiança para jogar uma observação contra uma colocação de seu paciente.
A psicanálise valoriza a palavra e a forma de construir caminhos para acolher a alma humana que sofre e busca entender seu sofrimento. É na relação analítica que, via transferência, a palavra ganhará sentido e significado para libertar o analisando de suas prisões e de seus temores. No vínculo e na confiança construídos na relação transferencial a esperança da vida se renova e se reinventa através daquilo que Freud citado por Roudisnesco (2016, p. 214) nos fala sobre o poder do amor transferencial: “mais que nunca a psicanálise foi vista como uma revolução da liberdade, suscetível de mudar o destino dos homens”.
A força da palavra foi a grande descoberta de Freud, que indicou os caminhos que culminaram no estabelecimento da especificidade da sua disciplina. Vale lembrar o acontecimento no qual Freud tenta hipnotizar uma paciente. Ela o interrompe e pede para falar, e ele logo entende que precisava dar voz ao paciente de forma consciente, para que acessasse o inconsciente através do trabalho analítico. É através do acesso pela transferência que se dará o ato de libertação de suas patologias.
Para Freud (1926/1996, p. 11),
[...] palavras também são ferramentas essenciais do tratamento anímico. O leigo achará difícil entender que distúrbios patológicos do corpo e da alma possam ser eliminados por ‘’meras” palavras do médico. Ele achará que lhe imputa acreditar em magia. E ele não está de todo enganado; as palavras de nossos discursos cotidiano nada mais são do que magia empalidecida.
A análise acontecerá somente através da relação transferencial, por isso é preciso conquistar a confiança do paciente e trabalhar suas desconfianças e seu senso crítico até que se neutralizem. Com a transferência, as associações vão se tornando mais claras e os pensamentos vão sendo ressignificados com implicação e responsabilidade.
Caso 2
Cito aqui o caso de uma jovem de trinta anos que procurou análise por indicação. Ela estava passando por um momento difícil em sua vida, por ter perdido o tio que morreu com picada de cobra em uma pescaria. Esse tio era muito amado e próximo dela.
Além disso, o seu marido sofreu ameaças de bandidos, pois havia se envolvido com a namorada de um traficante. Ela relata que não estava dando conta de sair de casa, tinha severas crises de depressão e pânico, não conseguia ficar em lugares fechados ou com muitas pessoas. Sua qualidade de vida caiu e seus relacionamentos não estavam indo bem.
Ela chorava muito, tremia enquanto falava da dor de ter perdido o tio e o medo de perder mais alguém da família. Seu discurso também trazia o medo da morte e a tristeza por tudo o que aconteceu na pandemia. Ela trabalhava perto de um hospital e sempre via o movimento de ambulâncias chegando e saindo com pacientes.
Seu relato traz um fator interessante: ao entardecer, naquele momento em que o crepúsculo vai chegando, o seu desespero era intenso e devastador. Ela não conseguia ficar sozinha em casa e chorava desesperadamente até o marido chegar. Seu relacionamento conjugal estava um caos devido a tanto medo e o seu marido tinha que buscá-la e levá-la aos diversos lugares, uma vez que ela não conseguia mais andar só. Ele a trazia para as sessões e esperava na porta do consultório até finalizar. Quando estava em casa, olhava o tempo todo pela janela com medo de alguém invadir a sua casa, tinha medo dos bandidos que ameaçaram matar o seu marido. Ela não tinha paz e já estava tendo pesadelos de morte todas as noites.
Iniciei um trabalho de interpretar seus sonhos com ela, pois quem sabe do seu sonho é o sonhador. Em um determinado sonho ela fala da mãe, que estava grávida dela, chorando e esperando pelo pai. O interessante era que em conversas com a mãe descobre que a mãe também morria de medo de ficar sozinha em casa e todos os dias, ao cair da noite, sempre ia para a varanda da casa esperar o marido chegar e ali ficava aflita até que ele chegasse. A casa ficava em um lugar ermo e, com isso, ela ficava muito apreensiva. O pai era viciado em bebidas alcóolicas, e eles não ficaram muito tempo casados por causa do vício.
Diante dessa escuta, fui manejando com cuidado e entendendo a história da jovem, uma vez que percebi que havia algo que ela estava dizendo que não era sobre a morte do tio, mas de um medo de tudo que a cercava. Estabeleci com ela uma transferência e ela pôde se abrir e falar de seus desejos e angústias. Entende-se o trabalho de análise como uma escavação em que, juntos, analista e analisando vão buscando o real significado da queixa, para ressignificar a dor.
A transferência aponta não um representante de um objeto, mas vivenciado como objeto primário. Percebe-se o quanto o processo identificatório que forma o Eu, esse precipitado de objeto abandonado surge como um recurso que irá nortear a percepção do analista em relação à estrutura (Lora; Silva, 2018, p. 202).
A paciente foi se lembrando de coisas da infância tais como o medo do pai chegar bêbado em casa e brigar com a mãe, o medo da virada do dia. Percebeu-se que esse medo tinha raízes mais profundas e antigas do que ela não imaginava. A jovem teve a percepção de procurar fazer um trabalho de implicação para entender de onde viria tanto medo da morte. Sua qualidade de vida havia caído e ela não aceitava o que estava acontecendo, não conseguia mais sair de casa, nem ficar com a família em datas festivas. Sua vida perdeu a qualidade.
A psicanálise é um instrumento de liberdade e a transferência é a ponte que nos conduz a esse instrumento. O grande desafio do analista é o manejo da transferência de forma que o paciente possa reatualizar, em sessão, os clichês estereotípicos criados ao longo da via. Tais estereótipos se reproduzem em suas falas, seus sintomas, suas angústias. Cabe ao analista trabalhar o significado e suas repetições. Pode-se dizer que a psicanálise é uma apropriação dos conteúdos inconscientes pelo consciente (Wo Es war, soll Ich werden) (Freud, 1933/1996, p. 102).
Estabelecida a transferência, conseguimos que ela buscasse em sua história fatos dos quais ela não se recordava. Em uma visita à tia, perguntou sobre acontecimentos relevantes da gravidez de sua mãe. A tia, muito próxima, contou-lhe um caso bastante trágico em que a sua mãe, grávida de oito meses, estava na casa da sogra. Seu sogro chegou bêbado e queria bater na sogra. Ela tentou proteger a sogra afastando-a dele. Quando ele viu que a esposa estava sendo protegida, sua ira aumentou e ele pegou um machado, e começou a dar machadadas na cadela da família, matando-a. Diante de tal cena a mãe da jovem ficou tão desesperada que desmaiou e quando acordou não se lembrou de mais nada. Pouco tempo depois, devido ao susto que a mãe passou, o bebê nasceu antes do tempo previsto. Quando perguntou à mãe sobre esse acontecimento, ela não se lembrava de nada.
Temos, por hipótese, que o trauma da mãe resultou na antecipação do parto. A violência vivida pela mãe, a angústia do desespero da cena presenciada foi recalcada, gerando, anos depois, uma fobia de ameaça de morte. A angústia suprimida na perda de memória foi o grito de dor pela cena devastadora da morte da cadelinha da família.
França (1997, p. 31) esclarece:
A relação do grito do objeto é que provoca a dor, pois o que o sujeito não pode falar ele grita por todos os poros; a angústia é Unheimliche, porque indica o que resta do inassimilável.
Essa mulher, grávida de oito meses, não conseguiu gritar a sua dor de ver tanta crueldade e, com isso, desmaiou e acordou sem memória. Quando a jovem escuta o caso e relata em sessão o ocorrido, desaba em choro, com lágrimas de desespero e angústia. Ela começa a entender o pânico que tinha de tumultos e conversas em voz alta. Entendeu por que não simpatizava com o avô paterno, e nunca quis ser próxima a ele, pois não se sentia bem em sua companhia.
O trabalho de associações foi trazendo à memória que ela estava reproduzindo em seu cotidiano o mesmo medo que a mãe tinha de ficar sozinha. Repetia, assim, a história de sua mãe. O adoecimento mental pode ser a solidão de não conseguir colocar em palavras aquilo que se sente. A proposta que a análise oferece é sobre o que sentimos e por que sentimos.
Ao sentir intensamente sua dor encarnada de vivências trágicas de sua vida intrauterina, a jovem conseguiu colocar palavras e simbolizar aquilo que a devastava. A palavra como inscrição do sentimento, a pulsão que busca a representação exigindo a satisfação fez dessa jovem uma refém durante muito tempo. E foi assim que, através da transferência, ela se entregou ao momento de falar sem ser impedida, censurada ou julgada.
Ao nascer, estamos marcados pelo desamparo fundamental do humano. O desamparo1 surge da primeira angústia devido à total dependência do recém-nascido, candidato a sujeito, ao Outro (Ceccarelli, 2021, p. 237). Conjecturamos que a mãe, devastada e cheia de medo diante dos perigos vivenciados, receba o recém-nascido dentro dessa organização psíquica. Nessas condições, a sobrevivência física e psíquica que a filha constrói, possibilita o suporte para que ela, ao perder a vida intrauterina, se humanize através do berço psíquico oferecido por quem a recebeu no mundo.
Ceccarelli (2021, p. 240) esclarece:
O trauma é marcado pela impossibilidade de responder, adequadamente, a um afluxo de energia que ultrapassa a capacidade de elaboração psíquica do sujeito. Trata-se de um excesso de excitação que atualiza antigas situações de desamparo, deixando o sujeito sem reação.
Há uma verdade e uma dor por trás de cada queixa que os pacientes nos trazem. Cabe ao psicanalista escutar com atenção flutuante para entender e interpretar o que está sendo falado ali, o dito, para entender o não dito.
As emoções que essa jovem passou foram fenômenos fisiológicos e psíquicos que reagem a descargas biológicas. Entender e validar o que se sente é melhorar o que se vive. E era isso que a paciente veio procurar: uma vida na qual ela havia se perdido, onde não se reconhecia mais e não entendia o que estava acontecendo com ela. “Toda experiência no mundo exterior se refere implicitamente a algo que já foi percebido e impresso em um passado mítico” (França, 1997, p. 30).
Os sintomas que a jovem apresentava nos levavam a considerar que, por trás da sua dor, havia um passado em que o sofrimento conduziu ao adoecimento. Diante das queixas de perda de funcionalidade cotidiana, ela não conseguia mais trabalhar e sair de casa para nada a não ser acompanhada, o que trouxe para a família uma grande preocupação, pois quando o marido não podia buscá-la ou levá-la, seu comportamento e suas emoções se alteravam trazendo grande transtorno para todos.
A paciente foi encaminhada a um psiquiatra, pois, em muitos casos, é preciso um olhar da psiquiatria. Não se pode negligenciar a importância desse atendimento profissional quando a demanda vai além da palavra. O corpo sente quando a alma já não dá mais conta de suportar a dor e o sofrimento.
Medicada e acompanhada em análise e pelo psiquiatra, a jovem foi restabelecendo sua posição na vida e no mundo. Sabe-se que o nosso mundo imediatista e de valores capitalistas nos leva a sofrer muito mais porque não se pode parar nem para adoecer, o capital precisa do trabalhador e o trabalhador precisa do capital.
Bauman (2001, p. 182) analisa:
A modernidade era de fato, também o tempo do capitalismo pesado, do engajamento entre capital e trabalho fortificado pela mutualidade de sua dependência, os trabalhadores dependiam do seu emprego para sua sobrevivência; o capital dependia de empregá-los para sua reprodução e crescimento [...]. Capital e trabalhadores estavam unidos, pode-se dizer, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, até que a morte os separasse.
O que se percebeu várias vezes nos discursos da jovem foi a angústia de não conseguir trabalhar; sentia-se improdutiva e devastada com seus sentimentos de impotência frente à vida.
O amor transferencial é a matriz das relações humanas, o combustível para que os afetos circulem de forma fluída. A vida sempre está em constante mudança e com isso os estados emocionais dos sujeitos alteram provocando disrupção no psiquismo. A escuta se dá no caso a caso, e não há um modo específico de escutar os sujeitos: há apenas uma escuta analítica. Cabe ao analista interpretar e ajudar o paciente a se implicar em sua demanda para entender o que aconteceu em sua vida. Por isso, o caminho que precisamos apontar ao paciente é a sua própria retificação subjetiva.
Conclusão
Uma das especificidades do tratamento psicanalítico ocorre tendo a transferência como o seu motor, o que somente é possível ao preço do abandono não somente da hipnose e outras formas de sugestionabilidade, mas também de um ideal de sujeito definido positivamente. A transferência estabelece um modo de vínculo baseado nos afetos projetados na figura do analista, a partir da suposição do saber, que é feita sobre ele. O sujeito encontra no setting analítico o acolhimento e o lugar que precisa para ressignificar sua vida e como lidar com os seus problemas.
A psicanálise proporciona ao sujeito a oportunidade de pensar e enxergar como uma nova forma de se posicionar no mundo e frente ao outro. Por isso, além de ser uma possível cura através da fala, a psicanálise é definida por Freud como uma transformação através do amor.