SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número86A transferência e suas implicações na escuta analíticaDesmontagem dos ideais na psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.86 Belo Horizonte dez. 2023  Epub 03-Fev-2025

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n86.12 

CLÍNICA

Consisto, logo existo: o imaginário na neurose obsessiva e suas repercussões especulares em torno do duplo

I CONSIST, THEREFORE I AM: THE IMAGINARY OF THE OBSESSIVE NEUROSIS AND ITS SPECULAR REPERCUSSION WITHIN THE DOUBLE

Paulo Victor Madureira Nunes Costa

Paulo Victor Madureira Nunes Costa

Psicanalista e psicólogo clínico pela Universidade de Brasília (UnB).

Especialista em teorias psicanalíticas e em psicanálise lacaniana pela Faculdade Inspirar (Curitiba - PR).

E-mail:psi.costapaulo@gmail.com

1 

Paula Oliveira Sobral

Paula Oliveira Sobral

Psicanalista.

Doutora em psicologia clínica e cultura pela Universidade de Brasília (UnB).

E-mail:paulasobral8@gmail.com

2 

1Psicanalista e psicólogo clínico pela Universidade de Brasília (UnB)

2Doutora em psicologia clínica e cultura pela Universidade de Brasília (UnB)


Resumo

Este trabalho explora a consistência imaginária do obsessivo em relação à sua constituição psíquica, utilizando a teoria do estádio do espelho, de Lacan, para pensar a dinâmica da imagem e sua relação com a posição do sujeito em relação ao Outro. O estudo revela como o obsessivo se sustenta no narcisismo e na agressividade. A estratégia usada pelo obsessivo para lidar com o imaginário requer uma análise cuidadosa e levanta a questão central da pesquisa: a hipótese de que o imaginário duplica para dar consistência de unidade ao obsessivo em relação a ser o falo imaginário para a mãe.

Palavras-chave: Neurose obsessiva; Imaginário; Narcisismo; Estádio do espelho

Abstract

This work explores the imaginary consistency of the obsessive in relation to their psychic constitution, using Lacan’s theory of the mirror stage to consider the dynamics of the image and its relation to the subject’s position in relation to the Other. The study reveals how the obsessive sustains themselves through narcissism and aggressiveness. The strategy used by the obsessive to deal with the imaginary requires careful analysis and raises the central question of the research: the hypothesis that the imaginary duplicates to give a consistency of unity to the obsessive in relation to being the imaginary phallus for the mother.

Keywords: Obsessive neurotic; Imaginary; Narcissism; Mirror stage

Introdução

O trabalho de análise, sem dúvida, requer um trabalho. Talvez o maior trabalho sobre o qual analista e analisando se debruçam em suas escutas e suas falas seja esse em torno da palavra. Um trabalho que faça elevar a palavra a uma outra ordem: a ordem do significante.

Como efeito de uma análise, a maneira habitual quanto ao uso da palavra é convocado para que seja possível construir outros usos. Em outras palavras, o trabalho de uma análise convoca uma disjunção dos sentidos já fixados às palavras e suas significações. A palavra na análise pode ser deslocada do seu sentido usual para que, livre da sua fixidez de um único significado, possa deslizar rumo ao significante.

Refletindo sobre essa dimensão a partir da estrutura neurótica obsessiva, teceremos algumas considerações que irão conduzir este trabalho. Com o obsessivo é possível notar uma amarra no sentido de que a palavra carrega, como se essa amarra apertasse tanto a palavra ao seu sentido, que essa seria a única forma de ligação. Um nó que dificulta a disjunção da palavra do seu sentido usual, para possibilitar o deslizamento significante. Por onde se desliza pelos significantes até onde somos conduzidos pela via dos significantes é uma questão que diz respeito justamente à propriedade do significante, que é nos levar a um puro furo (Melman, 2004).

Tal percurso é de suma importância para a psicanálise e para qualquer sujeito, pois o sujeito se faz sujeito essencialmente pela via dos significantes. Melman (2004) destaca que sem esse percurso não é possível desejar; sem esse percurso não é possível falar e nem mesmo se servir do significante.

Diante disso, é interessante ressaltar que esse furo pelo qual somos constituídos enquanto sujeitos tem estreita relação com o desejo. Mas para que isso tome suas vias, é necessário que haja o deslizamento dos significantes, a disjunção dos sentidos dos quais as palavras já vêm atribuídas. Então, essa amarração do obsessivo confere uma fixidez que impede o deslize e, mais ainda, o impede de se deparar com o desejo. Há algo do obsessivo que não se quer dar ao trabalho de saber sobre o seu desejo, por isso ele se furta de alguns artifícios.

Seremos convocados a pensar como o registro do imaginário atua nessa amarração, atando esse nó tão firme, que trabalha nessa consistência de produção de sentido. Trilharemos por essas questões para percorrer outras que consideramos mais importantes: Por que o imaginário duplica? Como o obsessivo se posiciona frente a essa especularidade?

Para tanto, este trabalho dará atenção ao registro do imaginário, passando pelo estádio do espelho, além da dualidade que se dá na imagem do outro para o eu. Veremos que a formação do eu se dá por essa relação de especularidade e fundamentaremos que essa noção passa pelo narcisismo.

E para finalizar, levantaremos as principais considerações que foram possíveis ao longo deste percurso. Longe de buscar por uma conclusão, por uma palavra que se fixe como resposta para nossa hipótese, os desdobramentos dessa investigação se orientam para um contínuo deslizamento, indicando direção para trabalhos futuros.

O imaginário

Quando falamos na origem da vida humana, tendemos a achar que a prematuridade do bebê se dá quando o seu nascimento é antes do previsto, acarretando algumas disfunções orgânicas no desenvolvimento do corpo. Contudo, para a psicanálise, um saber que se passa para além da fronteira do orgânico, é possível dizer que todo ser humano, independentemente do tempo do seu nascimento, nasce prematuro.

Iniciamos falando do corpo e sua prematuridade psíquica para introduzir a dimensão do registro imaginário. Ao nascer, o corpo não está dado em sua totalidade. Esse corpo é apreendido somente por partes. O bebê sente a mão, o pé, mas não como partes dele, como partes de um corpo. Esse corpo despedaçado vai tomar forma e contorno a partir do imaginário. Por ele é permitido visualizar um corpo com outro acabamento.

No texto O estádio do espelho como formador da função do eu (1949), Lacan (1949/ 1998) afirma que a experiência de ser visto por um outro assegurando sua imagem produz um júbilo que confirma uma totalidade que só era vivida em partes. Vale destacar precisamente esse instante, e seus desdobramentos no que diz respeito à constituição do eu, pois não é no momento em que a criança se depara com sua imagem que é possível dizer algo de uma constituição egóica. A imagem vista é outra, completamente estranha ao olhar da criança, que vê nessa imagem duplicada uma fusão de um eu com um outro.

Logo depois, a criança volta seu olhar para um adulto e, nesse instante, no que Lacan (1949/1998, p. 97) sinaliza como azáfama jubilatório, é ratificado um sentido à imagem: “Esse para quem olha é você!”. A força da imagem sobre a constituição do eu se dá nesse momento. O destaque para esse tempo é fundamental para pensarmos que o eu, nas palavras de Freud (1917/2010), realmente não é senhor em sua própria casa, haja vista que dessa experiência o eu não é tomado para si ao ver sua imagem. É nesse mau olhado, nessa má posição do olhar, que Lacan (1953-1954/2009) pondera sobre o olhar no espelho dizendo que vemos a imagem lá onde não está.

Assim, a proposta de Lacan é descentralizar esse eu submetido à experiência da percepção-consciência e destacar o sujeito real - o sujeito do inconsciente. Tal processo perceptivo diz respeito a algo além de uma esfera consciente, bem como dos sentidos de se perceber por eles - e um deles é a visão.

Quinet (2012) nos lembra que, segundo Freud, a percepção visual do corpo é a base do imaginário e da identificação especular e que o eu é antes de tudo corporal. Destaque-se que todas as imagens valem por seu uso simbólico (Lacan, 1954/2008, p.82 ). Ou seja, existe algo que atravessa essa armadilha do mau olhado que se sustenta somente em sua dimensão orgânica, imaginária, corpórea. O esquema L contribuirá para essa articulação entre a proposta do estádio do espelho e o imaginário.

Fonte: Lacan, 1954/2010, p. 330.

Figura 1 O esquema L 

Essa demonstração nos indica dois eixos que se cruzam, um sobrepondo-se ao outro. O primeiro eixo, qualificado às relações imaginárias, pode ser também compreendido como o eixo do enunciado. É justamente onde o analisando muitas vezes se firma e se afirma com seu sintoma. Por vezes aparece em falas como “sou ansioso”, “sou depressivo”. Em outras palavras, é o lugar onde o eu se apoia na sua queixa. Diz de um apoio em que o eu faz da sua imagem semelhança. E é interessante observar que esse eixo imaginário (a-a’) é o que se sobrepõe ao eixo do inconsciente (A-S). E o que isso pode elucidar?

Se transcrevêssemos essa sobreposição na linguagem matemática, no formato de fração teríamos (a-a’/A-S) e aqui vemos que se trata de um atravessamento e, como é próprio de qualquer fração, uma divisão. Temos como numerador a parte acima da barra, que nos mostra a parte inteira que será dividida. Ou seja, o eixo imaginário está situado como a parte que dá inteireza - é justamente o que é descrito quando o infans é visto se vendo no espelho. A outra parte da fração, a parte abaixo da barra é chamada de denominador e mostra em quantas partes será dividido o numerador. Com isso, o eixo do inconsciente, ao atravessar a especularidade do outro eixo, divide o eixo imaginário, momento que no estádio do espelho pode ser aludido à frase do adulto que diz “tu és isso”.

Desse modo, tanto o estádio do espelho quanto o esquema L nos possibilitam pensar que, para a psicanálise, o sujeito do inconsciente, está alhures ao que é visto na superfície especular do espelho, alhures ao eixo imaginário.

O imaginário na neurose obsessiva

No seu ensaio A predisposição à neurose obsessiva, ao se questionar sobre a “escolha da neurose”, Freud (1913/2010) busca a origem dessa predisposição. Nessa busca, ele traça que algo no desenvolvimento tanto das funções sexuais quanto das funções do eu sofre uma alteração que poderia indicar tal predisposição à neurose. Durante sua investigação, Freud atenta para o fato dos sintomas ditos neuróticos ocorrerem sumariamente nas fases mais iniciais do desenvolvimento libidinal, anteriores à própria escolha de objeto. Assim, foi possível se encaminhar para a ideia de que essa predisposição está situada no autoerotismo, assim como no narcisismo (Freud, 1913/2010).

Na discussão sobre o narcisismo, é possível notar vários desdobramentos. Temas sobre a identificação, ideal de eu e eu ideal, autoerotismo, que carregam uma relação principalmente com a imagem. E o imaginário, enquanto registro, concerne à imagem. Lacan (1953-1954/2009) dará uma atenção especial ao tema logo no Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud, no capítulo VII A tópica do imaginário.

Assim sendo, temos Freud apontando para uma predisposição à neurose obsessiva num momento primordial da libido, ao lado da tópica imaginária de Lacan. É importante refletir que, ao pensar a tópica como lugar tópos, podemos encaminhar para a intersecção dessas duas ideias, a questão norteadora deste trabalho, ou seja, pensar qual é o lugar que ocupa a imagem dentro das primeiras relações. Estamos falando sobre a relação mãe-bebê e, assim, em outras palavras reformulamos: Qual é o o lugar da imagem do filho para essa mãe na neurose obsessiva?

Lacan (1957-1958/1999), abordando o complexo de Édipo em três tempos, endossa que, no primeiro tempo, ocorre a formulação de uma questão da criança em relação ao desejo da mãe: “O que essa mãe quer de mim para que eu possa ser aquilo que lhe satisfaz?”, uma paráfrase da questão posta anteriormente. E uma das possíveis repostas é ser o falo para essa mãe.

O falo com o qual a criança se identifica é colocado como o falo imaginário, na medida em que é o objeto de desejo da sua mãe. Jorge (2017) e Ribeiro (2011) irão dizer que a identificação do obsessivo se dá justamente aí. Nesse tipo de neurose, o eu se fortifica - e ao mesmo tempo se protege - através da imagem desse outro semelhante, que faz contorno, que o reconhece. Dessa maneira, esse outro é imprescindível; do contrário, sem contorno, correria o risco de se fragmentar (Delorenzo, 2014). E a última coisa que o obsessivo quer é correr risco. Ele até quer correr, mas do seu desejo - utilizando essas identificações imaginárias.

Portanto, a relação imaginária fálica com a qual o obsessivo se identifica é importante, tendo em vista que é um recurso para ele se apoiar na imagem que o constitui com um eu. A manutenção desse lugar na tríade edípica, ou seja, se ocupar do falo imaginário custará uma dívida eterna em meio aos seus pensamentos, aos seus rituais, o que o manterá ocupado afastando-se da angústia. Afinal, a função dos rituais é esta: impedir o advento da angústia. E toda angústia é angústia de castração. Assim, em vista da lógica fálica do obsessivo enquanto ser, junto à promessa da passagem edipiana para vir a ter, é preciso que haja uma renúncia em ser. Todavia, é preciso colocar o corpo para jogo, para que se possa ser marcado pela castração. Porém, aos olhos do obsessivo a castração é vista não como promessa para vir a ter, mas sim como a própria morte, a própria mutilação (Delorenzo, 2014).

Dessa maneira, com o objetivo de situar essas questões referentes à neurose obsessiva e ao imaginário, é possível identificar o aspecto especular no que diz respeito à característica agressiva do obsessivo, pois esse traço, segundo Freud (1913/2010) tem uma estreita relação com as pulsões parciais erótico-anal e sádica, que vêm dominar essa organização pré-genital.

Como anteriormente apontamos, nas discussões sobre o narcisismo, é possível falar sobre as identificações. Falaremos delas nesse campo da agressividade com base no texto de Freud (1919/2010) Batem numa criança. Na leitura desse texto, Lacan (1957-1958b/1999) se utiliza de uma compreensão dos três tempos dessa fantasia de espancamento para falar da rivalidade com o outro semelhante, para ocupar uma cena que se inverte tanto em posição sadismo-masoquismo, como em afeto ódio-amor: num primeiro momento meu pai bate em uma criança que eu odeio, mas no segundo momento, meu pai me bate. Com isso, há uma manobra realizada pelo sujeito para assumir o lugar do rival.

Para que esclarecer tal raciocínio, no Seminário 6: O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-1959/2016) cita um exemplo nas confissões de Santo Agostinho, em que a criança vê seu irmão de leite em posse do seio materno. Lacan afirma que o sujeito se dá conta do seu objeto desejado somente ao ver a imagem desse outro em posse de uma posição que é sua. Nasio (1997) coloca que é pela identificação com esse outro que seu desejo aparece como o desejo do outro. A imagem do outro passa a ser rivalizada para que o sujeito venha a assumir o lugar dele.

E quando esse outro semelhante se revela como um outro alheio à sua especularidade, quando o outro se mostra como um outro estranho ao eu? Não era esse mesmo outro que, com amor, o reconhecia em sua imagem? Assim, pelo não reconhecimento, sua imagem se vê frágil, prestes a se fragmentar. Aqui se mostra, então, o quanto uma relação especular é ambivalente, pois o outro que me reconhece - e que eu amo por isso - é o mesmo por quem nutro ódio, pois ele também pode me desconstituir. E assim, fica o eu do neurótico obsessivo, sempre cativo de seu outro. A duplicidade promovida pela imagem mostra o quanto esse cativeiro de um outro deixa o neurótico obsessivo refém do seu desejo.

Narcisismo e a imagem dupla

Para fomentar a discussão a essas questões, proponho revisitar o mito de Narciso (Ovídio, 2017), que elucida um modo de ver a imagem e suas repercussões. Devido às inúmeras recusas amorosas de Narciso diante das suas pretendentes ninfas, elas decidiram se unir para que Narciso fosse punido por seus maus-tratos e pelo tamanho orgulho por sua beleza. Assim, Narciso é condenado a enamorar-se de ninguém menos que ele próprio. E isso ocorre no momento em que, para saciar sua sede, ele vê uma pessoa refletida no lago que o saciava. Fascinado pela imagem e apaixonado, tenta consumar sua paixão se inclinando para um beijo. Vendo nisso uma impossibilidade, reconhece que aquele que via era ele mesmo. Narciso passa, então, os restantes dos seus dias definhando ao lado de sua imagem.

Porque nenhuma outra imagem pôde despertar o seu enamoramento? É nesse ponto que Freud (1914/2010) abre as discussões conceituais sobre o narcisismo, ao perceber que foi preciso ser uma imagem igual para que Narciso se afogasse no amor. Nesse sentido, também se discute o narcisismo apoiado no desenvolvimento da instância psíquica do eu. Ou seja, por essa divisão imaginária, com a produção de dois corpos iguais, se buscou unir imagem e semelhança (a-a’) para que houvesse uma complementaridade.

Lacan (1953-1954/2009), ao se dedicar ao registro do imaginário, nos mostra um experimento óptico, denominado buquê invertido:

Fonte: Lacan, 1953-1954/2009, p. 107.

Figura 2 A experiência do buquê invertido 

Dessa experiência, em conjunto com suas formulações sobre o estádio do espelho, Lacan toma nota sobre a formação do eu. O raciocínio a essa nota segue de maneira que, na superfície dessa caixa, é colocado um vaso real e no interior dela, um buquê de flores. O jogo de reflexos a partir desse espelho esférico produzirá uma imagem real - o buquê dentro do vaso. Contudo, o buquê dentro do vaso é imaginário, não passa de uma ilusão. “Vocês a veem lá onde não está” (Lacan, 1953-1954/2009, p. 108).

Esse esquema serviu a Lacan para pensar que a imagem do corpo carrega semelhanças com o experimento. O vaso imaginário com o buquê de flores seria uma metáfora para a imagem do corpo. Por essa lógica, podemos reafirmar o caráter de complementaridade do eu; afinal, o buquê é o que completa o vaso - embora seja uma ilusão.

Com isso, há uma repetição desse eu com um outro, repetição que nos remete à indissociabilidade entre o eu e o outro investigado por Lacan (1949/1998) no estádio do espelho. O título que o psicanalista francês dá a esse trabalho nos vem dizer justamente que esse estádio opera como função formadora do eu. Ou seja, o eu se constitui a partir de um outro. Essa busca narcísica compete por uma imagem dupla, especular. E é dessa relação que se instaura o traço da eliminação, do mortífero - tema comum à discussão das neuroses obsessivas (Delorenzo, 2014).

Enfim, é quando um terceiro se instaura nessa relação dual possibilitando visualizar uma marca de diferença - que excede a repetição -, que algo do desejo pode advir. O lugar do terceiro é fundamental para a abertura de uma falta e, consequentemente, abertura ao desejo. Fuks (2010) discorre sobre os narcisismos, entendendo primeiramente no campo da pulsão, em que existem somente o eu e o outro. Porém, quando a relação antes dual dá passagem a uma triangulação, na qual existem o eu, o outro e a falta, ocorre uma passagem também do campo pulsional para o campo do desejo.

A neurose obsessiva e o desejo

É comum escutar que o desejo na neurose obsessiva é da ordem do impossível. Porém, ao se chegar a essa afirmação, é necessário percorrer um raciocínio e, para isso, indicamos o grafo do desejo.

Fonte: Lacan, 1957-1958/1999, p. 404.

Figura 3 O grafo do desejo 

Nessa imagem, é possível visualizar que existe uma semelhança entre as partes. Nisso é dito que a primeira parte do grafo - a que compreende o primeiro arco de orientação do significado do Outro s(A), para o tesouro dos significantes (A) - concerne ao nível da demanda. Já a parte acima, que compreende o segundo arco, concerne ao desejo.

Na neurose obsessiva, há uma fixação na primeira parte do grafo, uma fixação na demanda que torna impossível aceder ao nível do desejo. No gráfico, temos uma maneira esquemática de representar, por exemplo, a dinâmica mãe-bebê, assim como o próprio estádio do espelho juntamente com a posição em que o obsessivo assume diante do desejo, ao incorporar o falo para essa mãe. É no percurso que se dá do sujeito barrado () a uma imagem i(a) frente à mãe - localizada como o Outro (A). Essa imagem é aquela que vem causar um estranhamento em que a criança não sabe se se trata de um outro ou não. O papel desse Outro é fundamental para que o percurso pelo grafo do desejo siga, pois quando a mãe assegura tal imagem, é possível ir adiante na orientação que leva de i(a) até o eu (m - do francês moi). O obsessivo se fixa nessa passagem i(a) - m, em que uma imagem - por isso falo imaginário - assegura um lugar em relação ao Outro. E dizer que essa estruturação psíquica se assenta majoritariamente sobre o imaginário e, no grafo do desejo, em uma fixidez em torno da demanda pode endossar os artifícios obsessivos para configurar sua consistência enquanto sujeito.

É falado sobre o desejo enquanto impossível dada a sua fixidez na etapa da demanda. Porém, para se manter fixo, o obsessivo busca anular o desejo. Lacan (1957-1958/1999), ao discutir sobre a dialética da demanda e do desejo, pontua que para o obsessivo se manter apoiado sobre a margem da demanda e não se lançar para além dela - lugar que sinaliza o desejo -, é necessário negar o elemento da alteridade. Ou seja, o Outro é negado para que haja lugar somente para o outro, imaginário, para que assim possa consistir sua existência.

Ribeiro (2011) explica as estratégias obsessivas para essa anulação comentando que se trata de fazer calar o desejo do outro reduzindo-o aos pedidos que o outro lhe faz. É aí que vemos a solicitude com que o obsessivo se mostra, atendendo da melhor maneira aos pedidos para que não haja espaço para o desejo. É possível afirmar que os rituais e as ideias obsessivas partilham dessa mesma função com o desejo, ou seja, se ocupar deles para que o desejo não tenha espaço, tornando-o impossível, como é o caso do paciente de Freud, Ernst Lanzer, quando esse cria um percurso mirabolante para o pagamento de uma dívida (Freud, 1909/2013).

Um furo na relação especular abriria a possibilidade de tomar o eixo simbólico, ascender ao segundo andar do grafo do desejo. É pelo buraco do furo que se deseja, e não pela completude que a dimensão imaginária oferece.

Dessa maneira, pensar em anular a duplicidade entre imagem e reflexo talvez seja uma maneira de se haver com a diferença e, ao mesmo tempo, pensar enquanto possibilidade de uma outra posição diante o Outro. Como mencionado na introdução deste trabalho, diz respeito a desatar as amarras dos sentidos usuais, para que se possa experimentar outros.

Momento de concluir

No desenvolvimento deste trabalho, foi possível investigar como a dimensão imaginária está implicada nas relações que dizem respeito à constituição psíquica do eu. Vimos a partir de algumas leituras da teoria lacaniana, do estádio do espelho, de esquemas gráficos, de como o registro do imaginário se firma a fim de dar consistência a esse eu. Vimos também as características do duplo, que aponta, nos polos do eixo imaginário do esquema L, um eu que leva a outro (a-a’) e a linha que os une como próprio desse registro: fazer um, constituir um todo para a formação de uma imagem - como demonstrado no esquema do buquê invertido.

Assim, tendo explorado essas discussões, quanto à principal questão para a produção deste trabalho, percebemos que a imagem fálica - o falo imaginário - é o que garante a consistência para uma unidade, é o que faz, por assim dizer, a união entre mãe e bebê poder ser dita, e escrita, nesse formato “mãe-bebê”. Essa união proveniente do lugar fálico que a criança ocupa no desejo da mãe se fixa para o obsessivo. Sua fala, em um trabalho de análise, destaca essa fixidez. As palavras, no seu estado bruto de sentido, amarradas pelo imaginário, ficam impedidas de deslizarem por outras significações.

Constatamos que há uma lógica por trás dessa fixação que obstrui a passagem para o eixo simbólico. Notamos que é aí que o obsessivo se retém. Sabemos que o desejo se ordena pelo significante que opera fazendo sulcos para que a palavra possa deslizar em direção ao desejo. No entanto, na estrutura obsessiva, se observa essa fixação no eixo especular (a-a’), da imagem com o seu duplo, da palavra com seu sentido usual, precisamente para não cometer o deslize que o conduziria ao desejo.

Para o contorno dessa angústia seria interessante ponderar a via simbólica. Por ela é possível lapidar a palavra elevando o seu grau de significante, ressaltando, assim, o que é de mais indispensável para qualquer experiência de análise: a falta. A falta é a possibilidade de saída da organização especular obsessiva, que recobre o eixo inconsciente demonstrado no esquema L. Assim, é pela via da elevação dessa outra versão do discurso que o analista insiste, enquanto o analisando resiste a isso que escapa da sua própria boca.

Como última consideração, é importante ressaltar que isso já estava posto desde Freud. Em Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926/2014) comenta algo sobre a neurose obsessiva, que conflui com as observações deste trabalho. Nesse texto, Freud aponta o papel do eu na formação dos sintomas dizendo que há um apego à sua relação com a realidade e com a consciência. Então, não seria esse apego à relação com a realidade e consciência o próprio eixo que no esquema L está descrito como relação imaginária?

Lacan (1953/1998, p. 250), em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, complementa e, em vez de apego, utiliza o termo “despossessão”, dizendo que o sujeito não se empenha em ‘despor’ do ser de si mesmo. Seu narcisismo o faz se reconhecer na sua obra imaginária que se construiu como um outro e que se reconstrói para um outro, dando consistência ao obsessivo para a sua existência.

Referências

DELORENZO, R. Neurose obsessiva. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014. (Clínica psicanalítica). [ Links ]

FREUD, S. “Batem numa criança”: contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais (1919). In: ______. História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 293-327. (Obras completas, 14). [ Links ]

FREUD, S. A predisposição à neurose obsessiva (1913). In: ______. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 324-337. (Obras completas, 10). [ Links ]

FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia (1926). In: ______. Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 13-123. (Obras completas, 17). [ Links ]

FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). In: ______. Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-50. (Obras completas, 12). [ Links ]

FREUD, S. Observações sobre um caso de neurose obsessiva “O homem dos ratos” (1909). In: ______. Observações sobre um caso de neurose obsessiva (“O homem dos ratos”), Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos (1909-1910). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 13-112. (Obras completas, 9). [ Links ]

FREUD, S. Uma dificuldade da psicanálise (1917). In: ______. História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 240-251. (Obras completas, 14). [ Links ]

FUKS, L. B. Narcisismo e vínculos na atualidade. In: ______. Narcisismo e vínculos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. (Clínica psicanalítica). [ Links ]

GRAVES, R. Narciso. In: ______. Os mitos gregos, v. 1. Tradução: Fernando Klabin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 430-432. [ Links ]

JORGE, M. A. C. Da angústia ao desejo. In: ______. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, v. 3: a prática analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. p. 187-214. [ Links ]

LACAN, J. Introdução do Grande Outro. In: ______. O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Marie Christine Laznik Penot. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 318-335. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. A fantasia para além do princípio de prazer. In: ______. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 241-257. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. A risada dos deuses imortais. In: ______. O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação (1958-1959). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Cláudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. p. 231-251. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. A tópica do imaginário. In: ______. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 2. ed. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 101-121. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: ______. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 238-324. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. O desejo do outro. In: ______. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 399-416. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: ______. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 96-103. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. Do símbolo e de sua função religiosa. In: ______. O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose (1953). Tradução: Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 45-82. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. Os três tempos do Édipo. In: ______. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 185-220. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

LACAN, J. Sobre o narcisismo. In: ______. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 3. ed. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 146-159. (Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]

MELMAN, C. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. [ Links ]

NASIO, J.-D. O conceito de narcisismo. In: ______. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. (Transmissão da Psicanálise). [ Links ]

OVÍDIO, P. Livro III. In: ______. Metamorfoses. Tradução: Domingos Lucas Dias. São Paulo: São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]

QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. (Passo a Passo, 94). [ Links ]

RIBEIRO, M. A. C. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. (Passo a Passo, 23). [ Links ]

Recebido: 08 de Março de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.