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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.45 no.86 Belo Horizonte dez. 2023  Epub 03-Fev-2025

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v45n86.13 

CLÍNICA

Desmontagem dos ideais na psicanálise1

DISMANTLING IDEALS IN PSYCHOANALYSIS

Vanessa Campos Santoro

Vanessa Campos Santoro

Psicóloga.

Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

E-mail:vansantoro@uol.com.br

1 

1Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais


Resumo

Através de um caso clínico, a autora analisa o árduo trabalho de desmontagem dos ideais superegoicos impostos pelos pais às crianças. A proposta da psicanálise é a escuta do um a um em sua singularidade, abrindo espaço para novas construções fantasmáticas para que possam emergir daí o sujeito e seu desejo. Comparando com as próprias instituições psicanalíticas, corre-se o risco de cair num ideário perigoso de certo e errado, com graves consequências para os psicanalistas em geral e aqueles em formação em particular.

Palavras-chave: Eu ideal e ideal do eu; Supereu; Formação do analista; Escuta analítica; Transmissão da psicanálise

Abstract

Through a clinical case, the author analyses the arduous work of dismantling the superego ideals imposed by parents on children. The proposal of psychoanalysis is to listen to one by one person, in their singularity, opening space for new phantasmatic constructions, so that the subject and his desire can emerge. Comparing it with psychoanalytic institutions themselves, there is a risk of falling into a dangerous idea of right and wrong with serious consequences for analysts in general, and those in training in particular.

Keywords: Ideal Ego; Ego Ideal; Superego; analyst training; analytical listening; transmission of psychoanalysis

A prática da psicanálise da criança, embora use os conceitos psicanalíticos desenvolvidos por Freud e Lacan, teve suas especificidades trabalhadas por Anna Freud, Melaine Klein e Arminda Aberastury.

Dificilmente a criança procura tratamento. Ela é trazida pelos pais, que fazem ao psicanalista o pedido “Consertem minha criança!”. Estamos falando do lugar que ocupam os filhos no imaginário dos pais.

Todos nós temos introjetados certos valores, transmitidos de pais para filhos, nossa herança arcaica. O olhar com que olhamos nossos filhos não é inocente. Assim como somos marcados pelos significantes do Outro, reeditamos nossa história edípica e nosso complexo de Édipo em nossas crianças. No fundo desejamos ter através de nossos filhos uma realização fálica.

Como João, que chega ao consultório com um pedido:

Você me ensina a ser médico? É o que papai quer de mim. Na nossa família tem um médico em cada geração. E nessa o escolhido fui eu. Mas nem posso ver sangue! Quero ser jogador de futebol! Quando falei pro meu pai, ele me tirou do futebol da escola. Disse que não aceita filho vagabundo.

Pergunto do por que do futebol, e ele responde:

Tenho pernas tortas, daí driblo todo mundo no jogo. Gosto de bola, de dar passe. É minha vida no recreio. Gosto da escola só por causa do futebol. É onde eu apareço bem. E sabe, é uma escolha minha!

Do alto de seus nove anos, João sustenta seu desejo. Passo a atender também os pais com o consentimento de João. A mãe, médica, quer que o filho seja feliz. Conta sua mágoa:

Sempre fui apaixonada por moda, costura. Faço meus próprios vestidos, mas lá em casa tinha que ser médica. Hoje me realizo na estética.

O pai de João teve muita dificuldade para entrar na faculdade de medicina.

Foram quatro tentativas estudando dia e noite. Não podia desapontar meu pai. Gosto de pegar pesado. Sou ortopedista dos antigos. Se João não passar de ano nem converso com ele.

O trabalho com os pais possibilitou um abrandamento desse ideal tão superegoico e tão distante do filho.

João foi escalado e jogou no time do colégio. Ganhou medalha e a possibilidade de treinar no juvenil de um clube. Aí o pai não suportou e tirou João da análise. “Chega de escutar besteiras! E você nem é médica!”. Mas João já havia sido tocado em suas fantasias e não era mais o mesmo.

Temos na psicanálise de criança duas correntes: Anna Freud e Melaine Klein, com algumas divergências teóricas sobre a formação do eu e do supereu, entre outras.

Anna Freud sustenta ser diferente a situação da criança e do adulto. A criança não tem consciência de sua doença nem desejo de cura. Não vai espontaneamente à análise e não faz associações verbais. Precisa de um período adaptativo para elaborar com o tratamento, apresenta dificuldades para estabelecer a transferência por estar muito ligada aos pais. Interpreta os sonhos e devaneios, mas não valoriza os jogos.

Melaine Klein aposta na transferência espontânea da criança, que deve ser interpretada. Leva em conta a fantasia, os desenhos, os sonhos, os jogos e a primeira hora diagnóstica, quando, através do brincar, externaliza a fantasia de doença e a de cura. O analista não deve fazer o papel de educador. Melaine Klein postula o pré-édipo e o superego materno mais feroz que o paterno e enfatiza as angústias de devoração (incorporação) e aniquilamento. Lacan ressalta a “tripeira Melaine Klein” e sua importância no estudo das fantasias e posições esquizoparanoide e depressiva. Hoje a escola kleineana inclui entrevistas com os pais visando o encaminhamento deles para sua própria análise.

Aberastury e a escola argentina de muita influência na psicanálise de criança no Brasil enfatizam a importância dos pais no imaginário dos filhos, inicialmente numa postura “furor antimaterno”.

A psicanálise e os ideais

Estamos atravessando, no momento. mais um ataque à psicanálise comparada à astrologia e à homeopatia vindo de médicos conceituados em sua área, mas absolutamente desinformados quanto à psicanálise. Aliás, sempre houve restrições em relação à prática analítica e, desde os primórdios, ela foi atacada pelo discurso médico.

O próprio Freud (1950 [1895]/1996) com seu Projeto para uma psicologia científica, texto que depois deixou de lado, tentou inserir a psicanálise no discurso fisicalista da época. À medida que criava os conceitos teóricos da metapsicologia e exercia sua prática, foi se aproximando das artes e da filosofia, embora nunca deixasse de lado a biologia como em Além do princípio de prazer, quando descreveu a pulsão de morte (1920/1996).

Freud foi além do fisicalismo.

Desde o início, o psicanalista estava advertido quanto à necessidade de forjar um método próprio que transitasse entre registros discursivos diversos: era preciso combinar pelo menos o rigor conceitual do cientista com rigor formal do poeta (Iannini, 2022, p. 16).

Lacan, por sua vez, na releitura freudiana, também foi além do conceito antigo de ciência, quando introduz o objeto a, o real, o simbólico e o imaginário, com modelos de prática que incluem o tempo lógico, entre outros.

A psicanálise viveu um período de aproximação das outras ciências, como matemática, antropologia, letras e filosofia, sem perder a referência a seu fundador.

Por outro lado, afastou-se do discurso médico e, nessa lacuna, imperou o discurso do capitalista com a medicalização principalmente das crianças, rotuladas pelas teorias cognitivo-comportamentais de TDH, TOD, TDHA. Grande parte dos psiquiatras ignora a importância da psicanálise e utiliza apenas tratamentos medicamentosos.

Identificação e idealização

Em Psicologia das massas e análise do euFreud (1921/1996) fala de três tipos de identificação: a primeira ao pai (morto), que nos dá a noção de humanidade, a segunda ao traço, que constitui nossa singularidade, e terceira a identificação histérica com o desejo do Outro.

Freud fala não só da identificação mas também da idealização. O eu ideal está ligado ao que resta da vivência narcísica (Sua Majestade, o Bebê) onde a libido era toda investida no eu, seu reservatório. Essa libido, como próximo passo, deve ser investida nos objetos do mundo (libido objetal), ficando apenas uma parte ligada ao eu narcísico, constituindo o eu ideal, popularmente chamado de amor próprio ou autoestima.

Para Lacan, o eu se forma através do espelho do olhar do outro, de maneira que o eu (a) está sempre ligado ao ideal (aI) expresso, por exemplo, no esquema L

Fonte: Lacan, 1969-1970/1992, p. 72.

Fonte: Lacan, 1954/2010, p. 330.

Figura 1 O esquema L 

Também com Lacan podemos escrever o eu ideal como a vestimenta imaginária do objeto pequeno a: i(a).

O ideal do eu é simbólico e tem a ver com o Outro. É conotado como I(A), demonstrando que o ideal do eu, na realidade, é o ideal do Outro. São, portanto, traços do Outro cultural e familiar que são internalizados pelo sujeito, constituindo seus traços unários.

Dependem, por assim dizer, do que é valor naquele grupo. Lacan (1960/1998, p. 680), no esquema de Bouasse dos espelhos côncavos e planos, mostra que o ideal do eu é o espaço de onde eu me vejo amado, marcando claramente a articulação entre o ideal do eu e o eu ideal. Em outras palavras, quanto mais próximo eu estiver do Ideal do eu, mais estou autorizado a me amar.

Nisso consiste a alienação, nesses traços que o processo psicanalítico se propõe a desfazer. O supereu, por sua vez, é o que entra em cena como o reverso do amor próprio, como autocrítica.

Em Freud vamos observar que o supereu apresenta duas faces:

  • Como herdeiro do complexo de Édipo, portanto com um viés, digamos, protetor.

  • Como expressão da pulsão de morte, tal como observamos em O mal-estar na civilização.

Para Lacan o supereu está ligado ao real, como lei insensata, que caracteriza o desejo do Outro.

Concluindo

Pensando nas instituições psicanalíticas notam-se movimentos pendulares de fechamento e abertura, dissolução e estabelecimento, acompanhados de um rigor teórico excessivo. Vemos o exemplo da psicologia do ego privilegiando a segunda tópica freudiana em detrimento da primeira e em certas práticas e jargões lacanianos, que se esquecem da metapsicologia freudiana.

Temos que levar em conta o narcisismo das pequenas diferenças, com a dificuldade de admitir e conviver com a diferença e os diferentes.

“Isto não é psicanálise”, preso a um ideal narcísico de excelência. “Quem pensa e fala como eu, me aproximo, aprovo. Quem pensa e faz diferente está fora (Austossung e Behahung).

Moustapha Safouan (1985) aborda em Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas um histórico desde Freud e as primeiras sociedades psicanalíticas de Viena e Berlim, até Lacan.

A psicanálise e sua transmissão são colocadas numa posição terceira: análise pessoal, estudos teóricos, prática clínica supervisionada. Como um chiste, temos o analisando, o analista e o Outro que pode ser o supervisor ou a própria instituição. Na lição de 9 abr. 1967 do Seminário 21: Le non-dupes errent, Lacan (1973-1974, inédito) afirma; “O analista não se autoriza senão por si mesmo e alguns outros”.

Voltando ao tema de nossa jornada Clínica psicanalítica: mais ainda, parafraseamos Noel Rosa quando diz “O samba me deu régua e compasso”, dizemos “A clínica nos deu régua e compasso”.

O estudo (és-tudo) da teoria não diz tudo sobre a psicanálise, que é montada no desamparo do ser humano, quer dizer, na sua falta.

Segundo Weill (2006, p. 23), “a teoria não pode agir como o supereu sobre o analista reduzindo nele o silêncio e a presença do sujeito do inconsciente”.

A transmissão de um saber que em si implica o tropeço, requer, sem dúvida, uma prática clínica supervisionada e, principalmente, a análise pessoal.

Dunker, Ramirez e Assadi (2023, p. 116) afirmam: “O essencial em uma análise não é a recuperação plena de uma história, mas a incorporação pelo sujeito de sua história”

Ou seja, o saber que interessa em análise é aquele que diz algo do gozo de cada um. Em A questão da análise leiga, Freud (1926/1996, p. 225) nos fala: “Mas ponho ênfase na exigência de que ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formação específica”.

Em nenhum caso, a formação está ligada a uma autoridade institucional que lhe daria essa justificação. Em Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan (1967/2003, p. 249) afirma que há “um real em jogo na própria formação do psicanalista”. E acrescenta que a formação do analista se refere a efeitos da formação que é pontual, inacabada, portanto, permanente.

A degradação do rigor em rigidez desloca o discurso do analista pelo discurso universitário. Isto é, o agenciamento do real em jogo no discurso psicanalítico foi substituído pelo agenciamento do saber no discurso universitário, embora o saber sempre tenha um pé no discurso universitário Portanto, Freud ironiza as autoridades de Berlim e preconiza uma dose de liberdade na formação dos analistas.

Assim o candidato é autorizado por analistas experientes a começar uma prática supervisionada, enquanto prossegue sua formação. Por outro lado, o analista obtém sua qualificação da própria formação.

Vê-se aí a indicação do lugar terceiro na transmissão da psicanálise, o que torna a formação analítica um espaço de desmontagem de ideais e a escuta do novo que surge, ao lado do estudo dos textos freudianos, dos atendimentos clínicos supervisionados e da análise pessoal.

Embora o psicanalista seja posto no lugar do sujeito suposto saber pelo analisando, ele não deve se identificar com lugar, ou melhor, é somente ao não se identificar com esse lugar que pode fazer a análise prosseguir (Coutinho Jorge, 2006, p. 92.).

Essa é a posição simbólica que admite a falta, revendo falhas e trabalhando os ideais narcísicos na superação e análise de cada analista. A repetição, no entanto, é uma manifestação do inconsciente presente na história dos movimentos psicanalíticos. Como se faz em análise com João e seus pais. Procura-se separar as fantasias de modo que cada um possa se haver com sua construção fantasmática e com seu sintoma, desmontando os ideais narcísicos, para que o sujeito e seu desejo possam advir.

1Texto apresentado no XXV Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e na XLI Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, realizada em Belo Horizonte, em 28, 29 e 30 set. 2023.

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Recebido: 20 de Outubro de 2023; Aceito: 24 de Novembro de 2023

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