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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020
O exílio e o reino: integração da família exilada
El exilio y el reino: integración de la familia exiliada
Bráulio Porto
Psicólogo (USP), especialista em psicologia analítica (Unicamp), psicanalista junguiano (C.G. Jung-Institut Zürich), membro da International Association for Analytical Psychology (IAAP). e-mail: <brauaporto@gmail.com>
RESUMO
A questão do exílio é um dos temas onipresentes no mundo. Ele se insinua em eventos que afetam o cotidiano das pessoas e o rumo dos países. Indo além da política, uma leitura psicológica permite refletir sobre esse impacto, não apenas no indivíduo ou coletivo, mas no que se relaciona à família exilada. A noção de família mítica ou arquetípica auxiliaria a clarificar o que emerge do contato entre dois povos e os desafios de sua integração. O estudo de um caso específico - famílias portuguesas em adaptação à vida na região de língua francesa da Suíça - revela um padrão que se reproduz em outros lugares. O choque cultural trazido pela aproximação de dinâmicas tão distintas resulta em um quadro de resistência psicológica em ambos os lados. O trabalho com adolescentes portugueses em análise permite vislumbrar o entrelaçamento desta matéria com as psicologias pessoais, apontando para sua solução criativa por meio da resolução dos conflitos e a abertura à diversidade, protagonizada pelas novas gerações. ■
Palavras-chave: Família, Imigração, Exílio, Integração, Arquetípica
RESUMEN
La cuestión del exilio es uno de los temas omnipresentes en el mundo. Se insinúa en eventos que afectan la vida cotidiana de las personas y el curso de los países. Yendo más allá de la política, una lectura psicológica permite reflexionar sobre este impacto, no sólo en lo individual o colectivo, sino en lo que se relaciona con la familia exiliada. La noción de familia mítica o arquetípica ayudaría a aclarar lo que surge del contacto entre dos pueblos y los desafíos de su integración. . El estudio de un caso específico - familias portuguesas que se adaptan a la vida en la región francófona de Suiza - revela un patrón que se reproduce en otros lugares. El choque cultural provocado por la aproximación de dinámicas tan diferentes da como resultado un marco de resistencia psicológica en ambos lados. El trabajo con adolescentes portugueses bajo análisis nos permite vislumbrar el entrelazamiento de este asunto con las psicologías personales, señalando su solución creativa a través de la resolución de conflictos y la apertura a la diversidad, liderada por las nuevas generaciones. ■
Palabras clave: Familia, Inmigración, Exilio, Integración, Arquetípica
1. Famílias no exílio
A leitura dos jornais e o acompanhamento dos noticiários de televisão não parecem deixar dúvida que um dos assuntos onipresentes em escala global é a questão do exílio1. Resultado de múltiplos fatores como perseguições e guerras, bancarrotas econômicas dos países e a busca dos indivíduos por melhores condições de vida - e nos dias de hoje, pandemia -, o deslocamento de grupos humanos tem sido a fonte de fenômenos semelhantes em lugares distintos. Nota-se sua presença como pano de fundo - ainda que por vezes oculto - em tópicos como: ataques terroristas, xenofobia, protecionismo econômico, leis para limitação da circulação de pessoas, racismo, previdência pública, desemprego, guetificação, construção de muros, entre outros. Partidos de direita e de esquerda se aproveitam desta temática comovente para justificar suas propostas, e a pretensa realidade do problema ganha camadas ideológicas bastante perigosas.
Impossível negar que muitas destas questões não sejam consequências trágicas da geopolítica mundial, envolvendo direta ou indiretamente os governos e seus laços de interesse. Cabe aos analistas políticos esclarecer a responsabilidade de cada um dos países no fomento da, podemos assim dizer, crise dos exilados, em especial aqueles atingidos pelo terrorismo, ainda que a perspectiva de um extremista não seja algo simples de se explicar. Esta matéria em particular implica considerar não somente o que se refere à política, mas também outras dimensões do problema, em especial o estudo da psicopatologia destes indivíduos e grupos. Neste tópico - um dos pontos mais agudos da questão -, podemos encontrar reflexões fundamentais vindas do conhecimento da psicologia, ficando evidente que uma leitura psicológica também contribui para compreensão dos eventos ligados ao fenômeno em seus demais desdobramentos.
A temática do exílio é comumente analisada a partir de dois extremos. Em uma escala macroscópica, através do impacto da presença de um grupo de pessoas de determinada nacionalidade em um país outro, trazendo consigo sua própria cultura, religião, hábitos e costumes. No polo oposto, microscópico, há uma preocupação com o exilado como indivíduo e a reflexão sobre suas idiossincrasias e reações ao meio cultural. Entretanto, entre estas duas posições é preciso considerar um ponto médio a igual distância, que guarda íntima relação entre o individual e o coletivo: a família. Na figura do exilado e de seu povo se revela a importância deste substantivo fortemente representado na psique humana, e por esta razão bastante simbólico.
Ao propor um enfoque psicológico ao tema da família exilada, é fundamental estabelecer a diferença entre a forma como o assunto tem sido abordado de um lado pelas terapias familiares e sistêmicas, e de outro pela psicologia analítica2. O ponto nevrálgico que separa estas abordagens se refere ao abandono do viés individual e sociológico, cuja literalidade impregna a noção de família na leitura sistêmica, enquanto encontra na psicologia analítica a consideração do que pode ser chamado de família mítica ou arquetípica3. Esta diferença estabelece uma distância relevante entre estes enfoques. Importante observar que, ao se assumir esta discrepância, não se pretende afirmar que isto signifique também um juízo de valor quanto ao seu aspecto de qualidade. Somos todos presas de nossas fantasias em qualquer circunstância, e assim também o que se trata aqui é de uma questão de perspectiva.
O que se deseja ponderar com esta diferenciação é que parece ser possível compreender, tendo como base a noção de família mítica ou arquetípica, tanto os encontros como os desencontros que se sucedem do contato entre dois povos no desafio de sua integração cultural. A presença de qualidades distintas deste pano de fundo particular, dominantes na fantasia do que se entende como família, se estabelece como um fator determinante para a inserção dos grupos em um novo território, exercendo sua influência tanto da parte dos exilados quanto daqueles que os recebem. A importância dada a este padrão psicológico permitiria o entendimento de sua influência em temas como a resistência cultural, cuja expressão e psicopatologia se manifestam na vida íntima dos indivíduos envolvidos, assim como no entendimento do papel das novas gerações na resolução destes conflitos e na apreciação da diversidade.
Esta reflexão tem como foco o recorte de uma população e um país específicos, no caso os grupos oriundos do interior de Portugal em sua adaptação à vida suíça. Durante os anos que atuei como psicoterapeuta no país alpino, trabalhando na cidade de Fribourg com um número considerável de crianças, adolescentes e adultos exilados de origem portuguesa, percebi que o estatuto de estrangeiro representava um papel central nas queixas dos que vieram à parte de língua francesa da Suíça em busca de uma nova vida. A consideração da particularidade de seu processo de integração cultural permite induzir um padrão que se reproduz em outros lugares, ainda que separados no tempo e no espaço.
2. O mito do retorno
O entendimento do caráter português foi a preocupação essencial de muitos dos pensadores do país, encontrando na obra de seus poetas uma das suas mais altas expressões. Fernando Pessoa (1996) - o maior poeta português ao lado de Luís de Camões -, em seu poema Mensagem, se dedicou ao resgate e elogio da identidade portuguesa por meio de seus feitos heroicos no período das navegações e da descoberta dos novos mundos.
A segunda parte desta obra, denominada "Mar Portuguez", se refere ao evento fundamental no posterior desastre econômico do país, que foi a morte do Rei Dom Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Esta derrota significou a perda da independência do país e de sua supremacia marítima, sendo a gênese do movimento messiânico denominado Sebastianismo, caracterizado pela crença mística ou previsão do retorno do rei e a consequente restauração de uma glória perdida.
Mar Portuguez
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu (PESSOA, 1996, p. 58).
No poema citado, que leva o mesmo nome da segunda parte da composição, Pessoa exalta a honra, a grandeza e o triunfo destas expedições, como que aspirando ao despertar da alma portuguesa ancestral; ao longo da obra, estes eventos estarão ligados à imagem do retorno de Dom Sebastião. Enquanto em sua poética esta figura assume um caráter metafórico, no imaginário da população portuguesa analisada este complexo cultural4 encontrou eventualmente uma expressão concreta. Conteúdo de temática arquetípica, também migrou e se manifestou em outras culturas, por vezes sem grandes mudanças. No Brasil, por exemplo, Antônio Conselheiro, líder messiânico do movimento de resistência ao governo republicano de Canudos, arrebanhou no século XIX grande número de seguidores com a crença de que o rei Dom Sebastião voltaria dos mortos para restaurar a monarquia do país (CUNHA, 1983).
Como expressão específica de um living myth, tendo em sua apresentação esta roupagem histórica, pode se perceber a presença e dominância deste tema arquetípico na psique desses portugueses exilados dos dias atuais, e a sua expressão e reprodução no modo de vida de suas famílias. Enquanto oriundas de cidades menores e de zonas predominantemente rurais - e deste modo, afastadas da influência de outras dinâmicas psicológicas cosmopolitas -, esses grupos mantiveram pulsando em suas concepções familiares a fantasia de encarnarem, através de seus membros, a recuperação de um passado glorioso.
Em tempos que medem o sucesso e o valor social pela posse material, estas famílias passaram a se dedicar ao objetivo principal do ganho financeiro, tendo como meta um retorno futuro ao país de origem. Uma pequeníssima parte dos seus indivíduos procura se aproveitar desonestamente das brechas das leis para obter vantagens, seja tentando trabalhar menos, se aposentar mais rápido ou buscar um auxílio social de que não necessitam. Enquanto isto, o grande contingente das famílias se entrega de corpo e alma ao suor e ao trabalho na terra que escolheram imigrar. No entanto, ainda que diferentes, ambos os grupos vivem sob a regência da mesma dinâmica psicológica, o resgate de uma identidade nobre a partir do enriquecimento material.
Isto não seria surpreendente se considerada a crise econômica vivida em seu país em décadas anteriores, visto como um elemento "traumático" na vida coletiva. No entanto, não se trata simplesmente do estabelecimento sadio no novo lugar, e sim da construção de um patrimônio respeitável em Portugal, onde se possa também ser reconhecido (e por vezes, invejado) pelos seus pares. Regra geral, encontram-se famílias vivendo uma realidade dura no país de destino - nos moldes deste "além da dor" do poema -, enquanto constroem residências confortáveis em sua terra natal. O pragmatismo se mostra também no objetivo que almejam para suas crianças: um trabalho, independente do nível escolar que consigam alcançar, em que possam ter segurança econômica na vida adulta.
A escolha pela Suíça Romande como local para se estabelecer, neste caso, se revela como puramente circunstancial. Em que pese a presença de uma comunidade portuguesa já bastante numerosa, do suporte de parentes e da facilidade de comunicação - muitos não chegam a aprender o idioma francês -, o motivo principal se revela bastante pragmático: a saúde econômica da região e como consequência, suas oportunidades.
3. A psique portuguesa no solo suíço
Não é difícil imaginar quais serão os resultados do estabelecimento de famílias exiladas com uma dominância arquetípica particular em qualquer outro ambiente em que a dinâmica psicológica das famílias nativas seja simplesmente distinta: um prognóstico pessimista quanto à sua integração cultural, vista por vezes como simplesmente impossível.
Esta ideia pode ser compreendida no caso das famílias portuguesas que se instalam na Suíça de língua francesa. Previamente resistentes à integração, conforme discutido no tópico anterior, elas se apresentam essencialmente formadas por um casal heterossexual e seus filhos, tendo primordialmente uma dinâmica de forte apego à figura da mãe, cuja ubiquidade se impõe nas decisões de cunho afetivo do grupo e em atividades como o cuidado com a saúde das crianças, alimentação e serviços domésticos. Em geral, são as esposas que complementam o salário dos maridos, exercendo um trabalho predominantemente físico, seja nas limpezas de residências e escritórios ou em funções fatigantes dentro de médias e grandes indústrias.
O pai, ainda que relegado a um segundo plano na ordem afetiva, é notadamente uma figura de autoridade moral e econômica, sob a qual se repousam as expectativas de prover e dar a segurança material. A rigidez e a cristalização destas posições se devem à força de um padrão machista, no qual é esperado que os meninos venham a assumir seu papel de provedor, enquanto as meninas se ocupam aos poucos das mesmas funções maternas, como o cuidado familiar e a complementação da renda, se vislumbrando num "bom casamento" em um futuro próximo. Na região, estes homens se ocupam fundamentalmente de serviços voltados à construção civil, também oferecendo seu trabalho físico para empresas e indústrias.
A perspectiva de desenvolvimento dos descendentes da família portuguesa não segue o padrão de afastamento familiar. As novas famílias que surgem das relações afetivas dos filhos tendem a continuar orbitando ao redor dos pais, transformados em avós. Esta dinâmica de honrar os ancestrais não se limita à família, mas se expande à própria terra natal, se revelando no gosto pela manutenção de seus costumes. Este apego se revela na palavra saudade, termo da língua portuguesa inexistente ou de difícil tradução em outras línguas. Para o poeta Olavo Bilac, ela é "a presença dos ausentes" (BILAC, 2002). Machado de Assis, um dos nossos maiores escritores, escreve em um de seus romances que "é o passar e repassar das memórias antigas" (ASSIS, 1994). Pode-se pensar neste termo como uma espécie de nostalgia no presente, a falta emocional de uma dinâmica que se encontra distante, tanto no tempo quanto no espaço5.
A família suíça da região de língua francesa, no entanto, apresenta no geral uma configuração arquetípica bem diferente (PORTO, 2015). Ainda que se possa notar a pressão política (baseada em razões econômicas) para que um dos genitores se responsabilize pelo cuidado das crianças - muitas vezes tendendo para a figura da mãe -, há uma maior equidade nos papéis exercidos pelo casal, seja ele hetero ou homossexual6. Não há nenhuma expectativa na família para que os filhos se mantenham ligados ao casal parental na idade adulta, sendo inclusive algo desencorajado. Deste modo, a mãe não irá ocupar necessariamente o papel principal de centro afetivo da família estendida, havendo o estímulo conjunto para que os filhos venham a construir seus próprios núcleos íntimos.
Encontrando uma cultura familiar voltada à autonomia dos seus indivíduos e, neste sentido, promotora de independência e também de afastamento, o contexto dirigido para os casais heterossexuais do país permite que pais e mães possam ocupar posições mais homogêneas no mercado de trabalho - embora ainda muitíssimo longe do desejado -, sendo as oportunidades dadas às mulheres um dos temas de maior destaque em qualquer proposição de emprego contemporânea. Contudo, este é um privilégio especificamente voltado ao indivíduo suíço, não servindo para outras nacionalidades, sobretudo as que no contexto ideológico ocupariam uma posição inferior em uma escala de importância cultural ou econômica7.
Pressionados pela necessidade de mão de obra nesta região do país, voltada especificamente aos trabalhos para os quais ou não tem profissionais e conhecimentos suficientes, ou não se sentem dignos a fazer, esses suíços acolhem (por vezes a contragosto, seguindo a fantasia de um Überfremdung)8 a massa das famílias portuguesas em seu território. O que se pode concluir deste quadro é que a dominância arquetípica das famílias portuguesas acaba por não encontrar a mesma expressão no que se refere às famílias suíças, ficando, portanto, sem seu solo psicológico. Deste modo, já predispostos à preservação de uma conexão com a terra de origem e diante da percepção de não serem bem-vindos, a reação dos exilados tende a ser a de fechamento em seus próprios grupos, alimentando e reforçando suas tendências específicas.
Temos, portanto, o encontro entre o afeto extrovertido e o introvertido; a fala em voz alta e a expressão discreta; o contato físico próximo e o toque afastado e cuidadoso; a flexibilidade com o tempo e a pontualidade; o maldizer alheio como way of life e o modo polido de crítica de outrem. Apresentado desta maneira, estes aspectos revelam uma simples questão de diferenças; contudo, aquecidos pelo caldo inconsciente dos complexos culturais, com a cegueira característica dos pontos de vista unilaterais, este encontro passa a ser um embate, com suas consequências indesejáveis.
Parafraseando C. G. Jung (2014, par. 420), ao se estabelecer um espectro no qual cada cultura ocuparia um dos polos, em seu extremo suíço, ultravioleta, teremos o estranhamento com o excesso de afetividade, o incômodo dos diálogos barulhentos, o sentimento de intrusão física, a impaciência com os atrasos, tudo isto criticado de um modo polido e elegante, ainda que vil; do extremo português e infravermelho, o sentimento da falta afetiva, o terror vindo do silêncio insuportável das ruas, a frieza dos abraços e beijos, a rigidez dos horários, pontos comentados abertamente e sem filtros com qualquer um disponível a ouvir.
4. Patologia ou diversidade
Frente a uma realidade em que o termo choque cultural parece ser a melhor expressão, pode-se acreditar que realmente a integração destas famílias exiladas jamais será alcançada. As diferenças que emergem da aproximação entre dinâmicas arquetípicas tão singulares, capitaneadas pelas famílias estrangeiras e nativas, acabam por promover resistência cultural e psicológica em ambos os lados.
Considerando que os indivíduos pioneiros na mudança de país tendem a se manter fortemente ligados à sua cultura original, é na segunda geração de exilados que estas questões costumam emergir, não sendo incomum verificar uma alta taxa de casos de doenças mentais e comportamentos psicopatológicos nesta população. Estes indivíduos apresentam questões psicológicas pessoais entremeadas com situações específicas do exílio, como o apego a um padrão arquetípico que não se sustenta no novo ambiente, o sentimento de não aceitação pelos camaradas, a resistência de sua família exilada em assimilar o que traz de novo em seu modo de vida a partir de uma outra organização psicológica. De forma resumida, descrevo dois casos em que esse quadro pode ser vislumbrado.
***
O primeiro deles é o de um adolescente português de 12 anos de idade, cuja família morava na Suíça havia quatro anos. Chegaram ao país após o pai, de 46 anos - já residente, trabalhando nas construções -, ter sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) no canteiro de obras. Uma das sequelas de sua lesão foi a perda progressiva das capacidades cognitivas, agravada três anos depois por outro incidente, a queda de uma escada alta. Nessa ocasião, ele teve traumatismo craniano e precisou ser operado. Seu equilíbrio foi abalado e, por isso, acabou avaliado como completamente inapto para o trabalho por um período indeterminado.
Sua esposa, de 40 anos de idade, trabalhava a semana toda "nas limpezas", complementando o salário do marido pago pelo Fundo de Seguro de Acidentes Suíço (SUVA). Enquanto isto, ele se submetia a cada trimestre a uma série de exames para avaliar o seu grau de comprometimento físico e mental, aguardando a concessão da aposentadoria e também o pagamento de uma indenização pelo governo, cogitando a ideia de talvez poder retornar com a família para Portugal.
O filho havia sido diagnosticado dois anos antes com Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (F90.0) e era medicado diariamente com Ritalina 10 mg e Concerta 36 mg desde então. A queixa principal, no entanto, não eram os problemas de concentração na escola, mas a falta de objetos definidos para o seu medo. Esta questão se mostraria como o tema mais importante de seu processo, estabelecendo o diagnóstico posterior como Transtorno ansioso não especificado (F41.9). Nossos encontros ocorreriam uma vez por semana, por 18 meses, com pausas nos feriados e férias.
Logo de início, ficou evidente que o rompimento vivido com o exílio lhe fora duplamente perturbador, tanto pelo choque causado pelo estado pós-traumático do pai quanto pela mudança repentina de país. Apresentava medos difusos que lhe eram fonte constante de angústia. Um deles dizia respeito à existência da figura do Pé-Grande, a quem temia que chegasse ao anoitecer em seu quarto, enquanto ouvia os sons que entravam pela janela. Três meses antes de iniciar a psicoterapia, havia adquirido o hábito de dormir na cama dos seus pais, totalmente grudado a um deles.
Com dificuldade de socialização e sofrendo bullying da parte dos seus colegas, alimentava a crença de que suas agruras acabariam após o retorno ao país de origem em um futuro próximo, mesmo que os pais não tivessem ideia de quando e se isto iria acontecer. Sem poder contar com a presença de uma figura paterna estável, estabeleceu uma relação transferencial comigo, oscilando entre o encontro afetuoso de uma referência e o posterior embate contra um rival, quando usava de intensa agressividade.
No ambiente escolar, a incompreensão da parte de seu professor quanto ao seu estado psíquico começou a lhe prejudicar, tendo a exigência de uma melhor performance exercido uma pressão que levou ao aumento do estresse e ansiedade. Nas sessões, acabamos por encontrar um modo de trabalho que lhe agradou, em que estabelecíamos um diálogo com o medo. Isto se dava por vezes como se eu pudesse incorporar este sentimento, sendo que em outros momentos era ele quem fazia este papel. Mantínhamos também as persianas fechadas e os olhos cerrados, tentando criar uma atmosfera semelhante ao que ocorria à noite, em sua casa. Esta vivência se mostrava como uma realidade intensa, e o trabalho imaginativo o encaminhava a um estado de relaxamento próximo ao do sono. Explorávamos a consciência dos sons diferentes, chegando à conclusão de que ao anoitecer tudo era mais perceptível.
Finalmente, a pressão que sentia veio a se mostrar em toda a sua intensidade a partir do recrudescimento dos problemas escolares. Em uma sessão, trouxe duas fotos impressas para me mostrar, com imagens do rio português onde amava pescar. Foi ao sandplay e construiu um cenário bastante conturbado e confuso, onde além da areia revirada e da água em excesso, arremessava bolas de areia contra os edifícios que ali colocara. Descreveu a cena como se fossem meteoritos atingindo os edifícios turísticos importantes de alguns países, como a estátua de Nova Iorque, o Relógio de Londres e a Torre Eiffel.
A atmosfera apocalíptica daquele cenário me impressionou. Era possível entender que o ataque às estruturas fálicas se ligava ao medo da vida que se abria com a puberdade, como uma recusa de crescimento. Os desafios exigidos pelo ambiente escolar surgiam como um elemento incômodo que o forçava a avançar em uma direção a qual não queria ir. Passou a ser ainda mais evidente o seu descontentamento quanto à vida na Suíça e a exacerbação da fantasia de que o retorno para Portugal resolveria de forma definitiva os seus problemas. Ao mesmo tempo, a condição do pai inspirava um questionamento sobre sua eficácia como figura masculina de referência, dada a sua perda severa de energia vital. Ainda que difícil, este momento veio a se converter em um turning point no seu processo analítico.
Após alguns meses de psicoterapia, a abertura de um espaço continente permitiu compreender a sua inadequação social como essencialmente ligada à condição de exilado forçado, o que levou à mudança do seu diagnóstico e a retirada da medicação por parte de seu psiquiatra suíço. Sua melhora psicológica acompanhou a aquisição de habilidades para lidar com a situação vivida na escola, passando a poder dormir em sua cama sozinho.
Pouco depois de seu pai receber o resultado da decisão do governo quanto à sua compensação financeira, discuti com o casal a importância de uma definição final sobre seu futuro, como forma de evitar que o tema se tornasse fonte de ansiedade. Logo que optaram pelo retorno a Portugal, o jovem veio à sessão trazendo um fidget spinner. Assim que entramos na sala, pediu para que eu fechasse as cortinas como fazíamos nas primeiras sessões. Ele queria que eu observasse seu brinquedo de girar, que se iluminava no escuro. Compreendi que isto representava como agora podia lidar com a noite de uma maneira metafórica.
Nos últimos encontros, tratamos das suas fantasias relacionadas à mudança de país. Se mostrou ciente de que não seria uma vida fácil ou idílica, embora sua excitação fosse enorme. O desejo de mudança reservava também uma chance de viver o período da adolescência de uma nova forma, em outro lugar, com possibilidades originais. Antes de partir, ele confidenciou que tinha arrumado uma namorada em Portugal, e seu aspecto não era mais de um menino, mas sim de um jovem cheio de entusiasmo.
***
O segundo caso é o de uma adolescente portuguesa de 14 anos de idade. Ela se mudou para a Suíça com os pais aos dois anos e meio. O pai, operário de 38 anos, migrou para o país ao arrumar um emprego com seus conterrâneos, trazendo consigo a esposa de mesma idade. Essa última, como muitas portuguesas, também se engajou na ocupação de faxineira. Instalados no país, tiveram outra filha, que completara oito anos de idade. A paciente havia sido acompanhada nos cinco anos anteriores por psicólogos escolares, devido a um importante déficit cognitivo.
Durante a segunda gravidez da mãe, ela havia ficado radiante, mas quando a irmã começou a andar, revoltou-se. Os pais se queixavam de sua rebeldia, alternando fases "doces com outras difíceis". Perdera a convivência com os avós maternos no ano anterior - de quem recebeu cuidados por 11 anos -, depois da decisão de voltarem para Portugal na aposentadoria. O percurso acidentado nos estudos havia se instalado já na primeira infância, com mudanças e conflitos, estando matriculada naquele instante em uma escola especial financiada pela Assistência aos Inválidos (AI) da Suíça.
Um grave problema intestinal, ocorrido aos sete anos de idade, fez com que necessitasse de um tratamento agressivo, do qual os pais não tinham total conhecimento. Como a doença acometia bebês e adultos, o hospital não tinha aparelhos adequados ao seu tamanho, precisando ser submetida ao procedimento voltado para pessoas maduras. Na posição deitada, seu intestino tinha que ser preenchido e depois esvaziado com um líquido muito quente. Sentia dores terríveis, e embora tratada por pouco tempo, tal experiência foi intensa e dolorosa, causando um impacto relacionado a tudo que envolvesse doenças e vacinas. Seu diagnóstico era o de Transtorno fóbico-ansioso não especificado (F40.9). Nossas sessões aconteceriam uma vez por semana, pelos 22 meses seguintes, com interrupções nas férias e feriados.
No começo do processo, apresentava um comportamento retraído, receosa diante das situações que a afetavam fisicamente. Evitava lidar com os produtos de limpeza em casa, amedrontada com a chance de se envenenar. A relação com os pais era permeada por atritos, especialmente quando se recusava a seguir o modelo dos deveres exigidos pela mãe. Ela esperava que a filha cuidasse da casa e aprendesse sua ocupação, imaginando que conseguiria um trabalho semelhante. No entanto, tudo o que envolvia aquele padrão desagradava a filha. Mesmo as idas esporádicas a Portugal para visitar a família estendida lhe eram insuportáveis, estando à vontade com sua identidade suíça.
O aspecto fundamental que marcava essa perspectiva dizia respeito ao idioma que escolhera usar no atendimento. Se, no primeiro encontro, me senti à vontade para nos comunicarmos na nossa língua comum, em instantes fui percebendo que sua expressão íntima só ocorreria em francês. Assim que ela começou a responder as questões que eu fazia em português usando a língua francesa, logo também passei a me comunicar do mesmo modo, nunca mais deixando de usar esse idioma.
Em uma fase de transição da infância para a idade adulta, ela temia o julgamento dos colegas se descobrissem o seu gosto por brincar, algo visto como inadequado. Colecionava pequenos animaizinhos, desejando fazer um vídeo e postar no YouTube. Me mostrava algumas dessas produções bem produzidas e narradas por meninas francesas que criavam esquetes com os brinquedos manipulados pelas mãos. Sugeri que fizéssemos nossa versão caseira, a partir de um roteiro escrito por ela. Durante algum tempo escolheu personagens e montou cenários, usando também miniaturas do sandplay. Suas estórias narravam eventos reais pelos quais passava, centrados em uma gatinha de nome Angel, "apaixonada por tecnologia e ciumenta da sua irmã mais nova".
As entrelinhas dos diálogos e situações revelavam memórias sensíveis de uma experiência dolorosa de apego à mãe. Mais tarde, essa última confessaria que, no final da sua gravidez em Portugal, ficara distanciada do marido, que trabalhava na Espanha. Ele estava envolvido em um momento de adicção ao jogo, enquanto ela cuidava da recém-nascida sozinha, não podendo aleitar devido ao seu estado depressivo. Ainda que as feridas da primeira infância continuassem presentes, o desenvolvimento da paciente em direção ao mundo externo começava a tomar cada vez mais espaço. Abruptamente, de uma semana para outra abandonou as brincadeiras a que se dedicara, trazendo tópicos ligados ao grupo de amizades. Parecia ter esgotado a necessidade daquelas encenações com os brinquedos, não se mostrando psicologicamente mais relevantes.
Nos meses seguintes, matérias genuinamente adolescentes foram a tônica da psicoterapia, começando com a tão aguardada menarca. Sua mudança física e a aparência pessoal, o interesse nos rapazes e a relação com ambientes em que o álcool e cigarros eram oferecidos passaram a ser o seu foco. Situações experienciadas com as amigas que envolviam o risco da exposição de suas vidas na internet eram refletidas nas sessões, enquanto buscava um equilíbrio entre seus desejos e a realidade. Finalmente, passou a demonstrar urgência em planejar o que ocorreria nos dois anos seguintes, época de início dos estágios profissionais. Percebeu que seu nível intelectual não permitiria sonhar com coisas grandiosas, vislumbrando o que poderia concretamente alcançar, escapando assim da expectativa de uma comunidade coesa que esperava sua adesão aos seus modelos femininos tradicionais.
A abertura de um canal mais tolerante com os pais foi primordial para criação de um tempo de paz em casa. Eles foram orientados a serem respeitosos com a sua intimidade, se abrindo para a maneira como ela se posicionava nos assuntos da vida adulta, como namoros, autonomia e participação familiar. O tratamento psiquiátrico da depressão materna também contribuiu para acalmar as brigas, havendo uma melhora geral nos seus medos, que eventualmente ainda apareciam. Passou a dar respostas cognitivas mais eficientes, se tranquilizando e achando soluções para certos incômodos.
Encorajada pelo suporte oferecido na relação terapêutica, encontrou a força necessária para superar suas dificuldades intelectuais por meio de uma rotina intensa de estudos, enfrentando uma avaliação que permitiria a saída da escola especial e o acesso à escola regular. Ao cabo de alguns meses, recebeu o resultado positivo, o que teve como consequência imediata a diminuição dos eventos ansiosos e das situações de conflitos. Relatou a sua alegria de se sentir parte de um novo grupo de amigas e amigos, bem inserida e sem apresentar incômodos com o fato de ser estrangeira. Interrompemos o trabalho quando se preparava para iniciar o estágio como assistente veterinária.
***
Estes casos sugerem um padrão de enredamento das questões do exílio com mitos individuais, causando situações conflituosas no seio destas famílias. Neste sentido, são exemplos da patologia que pode advir quando o tema não é refletido com profundidade. Nesta situação pode-se encontrar novamente uma grande diferença entre as terapias familiares e a psicologia analítica: enquanto as primeiras terão como foco o grupo e seus papéis sociais, a última buscará no indivíduo seu foco de atenção.
A respeito desse quadro, afirma James Hillman: "Pela ênfase sobre a alma individualizada, a psicologia arquetípica coloca essa alma, e sua formação, exatamente no centro do mundo" (1992, p. 54). Thomas Moore adverte que é "o membro problemático da família que precisa de mais atenção, não alguma outra figura" [tradução livre] (MOORE, in HILLMAN, 1989, p. 194). Portanto, repousa no sujeito a chave para que a crise patológica se desdobre criativamente através da descoberta de sua própria identidade. Este fenômeno importante e comum aponta para uma resolução interessante deste conflito, tendo como meio de transformação o encontro entre as crianças e os jovens nascidos tanto nas famílias no exílio quanto naquelas estabelecidas em seu país natal. Por intermédio de seu convívio, a nova geração acaba por carregar os germes de uma integração cultural desejada e viável.
Inseridos em um meio social extremamente rico pela presença de culturas distintas, fruto de uma sociedade formada em um bom número por estrangeiros, estes indivíduos em desenvolvimento têm como característica uma abertura psicológica aos valores multiculturais muito mais ampla do que os seus pais. Sua posição ainda marginal no que se refere ao papel individual e arquetípico no seio da família favorece um distanciamento dos complexos culturais desta população, e, portanto, a flexibilidade no encontro de outros modelos de identificação.
O ambiente de ensino, seja a escola ou a creche, é o lugar por excelência para que este contato ocorra. Se por um lado pode servir como palco para a expressão psicopatológica, por outro seu acesso público e não elitista também vem a fomentar a sociabilidade, tendo como principal ferramenta o aspecto lúdico. A brincadeira e o jogo aproximam as pessoas e tendem a minimizar as diferenças. Usualmente, os bons educadores sabem disto e se esforçam por criar no ambiente escolar uma atmosfera favorável para a integração cultural. Por vezes, se deparam com questões complexas que envolvem crenças religiosas e tópicos sensíveis trazidos por famílias exiladas de culturas bastante dissemelhantes. Neste caso, não é raro encontrar uma busca por uma solução intermediária, que contemple com respeito as partes envolvidas.
Na batalha entre os aspectos do senex, representado pela família arquetípica e seu determinismo, o modo como carrega e reproduz seus complexos culturais e a resistência à mudança, e os traços do puer, simbolizados pelo desejo de transformação e renovação, conforme identificados na psique dos sujeitos da nova geração, deve-se reconhecer que a integração cultural só pode acontecer a partir da relação entre ambos. Quando se pode manter o vínculo com os ancestrais - sem a rigidez e o conservadorismo deterministas -, ao mesmo tempo que com abertura e curiosidade para um outro mundo cultural.
5. A integração possível
Transformados em bodes expiatórios em um único bloco de estrangeiros, diante da adversidade da economia sustentada pela fantasia de ser a pior de todos os tempos, os exilados são paradoxalmente aqueles que não trabalham e se aproveitam do sistema, ao mesmo tempo em que roubam os "nossos" empregos. Enquanto ideologias como esta, de extensão global e sincronizadas com o espírito do tempo, suportam decisões como o controle sobre o ir e vir das pessoas e seu cerceamento por muros, há também em toda parte um conjunto de reações contrárias a esta tendência, compreendendo que a integração cultural é a única saída para os problemas causados pelo exílio. Na Suíça, por exemplo, a aprovação de um processo de naturalização facilitada para a terceira geração de imigrantes é simbolicamente importante neste sentido (CUMMING-BRUCE, 2017). Em um mundo radicalmente transformado pela pandemia da Covid-19, tal desejo deveria ser um dos objetivos a serem perseguidos pelas pessoas e seus países.
No entanto, a questão do exílio - em especial o tipo que inclui os imigrantes e refugiados - afeta as populações mais sensíveis às crises econômica e sanitária que acompanham o desenrolar da pandemia. Afinal, são esses sujeitos que estão aglomerados em campos de refugiados ao lado de milhares, em uma espera que pode durar alguns anos; que encontram obstáculos de acesso ao serviço de saúde mínimo, com as dificuldades adicionais da falta de documentos e da inépcia na comunicação do idioma local; e que sofrem com a falta do apoio de parentes e de uma rede de ajuda social, inseridos na informalidade. Dados da Organização Internacional para Migrações (OIM) indicam que 25,9 milhões de pessoas estavam nessa situação em 2018, em um universo de 272 milhões de migrantes internacionais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019).
Diante de tal realidade, o que se pode exigir é a atenção rigorosa aos padrões internacionais de proteção a esses grupos, com o respeito às normas fundamentais das leis de refugiados. No contexto no qual os direitos humanos são colocados em risco, com a ameaça de tensionamento do racismo, xenofobia, exploração sexual, faz-se necessária a atuação de uma consciência coletiva guiada pela empatia e responsabilidade ética, que permita a aproximação de grupos distintos em um patamar de equidade.
Este panorama indica que o estabelecimento de uma dinâmica de horizontalidade é um dos pontos fundamentais para que os antagonismos venham a se desvanecer9. A presença do outro, quando considerada de um horizonte similar e não hierárquico, desfavorece a constelação de uma relação baseada no poder, permitindo que este encontro se dê sob a regência do eros e os auspícios do arquétipo ligado à fratria. Pode-se encontrar na história exemplos em que esses fenômenos promoveram o desenvolvimento de uma efetiva solidariedade entre os povos, sedimentando um tipo de integração cultural bem-sucedida. Um deles diz respeito à influência dos japoneses no desenvolvimento cultural do estado de São Paulo (CARNEIRO, TAKEUCHI, 2010).
Chegando ao Brasil nas primeiras décadas do século XX, as famílias japonesas foram uma fonte de mão de obra fundamental na economia cafeeira paulista. Embora estigmatizadas como uma raça inferior e vitimizadas por políticas discriminatórias de Estado, essas comunidades desenvolveram estratégias de resistência, sobrevivendo à xenofobia e às barreiras sociais. Nos dias de hoje, é impossível negar sua influência cultural em aspectos como a arquitetura, a culinária, as artes plásticas, mesmo que se continue a mostrar fundamental o debate sobre a desconstrução de preconceitos e estereótipos ainda existentes, garantindo o reconhecimento de sua contribuição para a multietnicidade do país.
A inserção de um grupo de indivíduos em um novo ambiente cultural força a mudança na dominância arquetípica estabelecida e reproduzida em seus coletivos familiares, atingindo também os complexos psicológicos dos que os recebem. Este entrelaçamento pode fomentar, em seu viés criativo, a valorização da pluralidade da personalidade individual e a contemplação e respeito à diversidade pela comunidade. ■
References
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Recebido em: 27/02/2019
Revisão: 14/07/2020
1 A escolha do termo exílio busca contemplar as diferentes variantes da experiência de se estar fora do seu lugar de origem, seja por meio de indivíduos e grupos imigrantes, expatriados, banidos ou refugiados.
2 Ainda que se leve em consideração as especificidades das diferentes escolas de terapia familiar, algumas premissas comuns se mantêm, como a concepção da família como sistema histórico e aberto, a tendência de sua função autorreguladora em prol da homeostase e o papel do sintoma como elemento interpessoal (COSTA, 2010, p. 97). Quanto a esses pontos, a abordagem da psicologia analítica se apresenta de maneira diametral, tendo uma compreensão da família como entidade ficcional onde as inter-relações pessoais são "desequilibradas" por desejos íntimos e as patologias expressas a partir de emoções individuais remitologizadas (KERÉNYI, HILLMAN, 1995, p. 73).
3 A noção de família mítica ou arquetípica se refere à identificação de certos padrões que independem das expectativas sociais sobre seu funcionamento como grupo. Sendo a ideia de família definida como uma fantasia, a leitura psicológica implica sua significação enquanto metáfora e consequentemente, seu sentido particular (MOORE, in HILLMAN, 1989, p. 193). O mesmo autor advoga o "reconhecimento arquetípico da família como uma metáfora suprema para o suporte da condição humana, tenha o indivíduo uma família ou não" [tradução livre] (HILLMAN, 1996, audiolivro).
4 O conceito de complexo cultural parte da premissa de que "outro nível de complexos existe dentro da psique do grupo e do indivíduo [...] Chamamos esses complexos de grupos de 'complexos culturais', também podendo ser definidos como agregados de ideias e imagens carregados emocionalmente que tendem a se agrupar em torno de um núcleo arquetípico, sendo compartilhados por indivíduos em um coletivo identificado" [tradução livre] (SINGER, KAPLINSKY, 2010, p. 22-37).
5 "[...] as lembranças da infância idílica, o desejo de reencontro com os amores perdidos, a falta dos amigos queridos ou as imagens do lugar de origem acolhedor e distante promovem, ao sujeito da saudade, a experiência de estrangeiro no presente, 'exilando-o' na escrita dos tempos pretéritos" (PALOMO, 2015).
6 Dados como os 80% de "não" da população de Zurique à definição de casamento como estritamente heterossexual e a reforma para a adoção de crianças por famílias homoparentais embasam esta afirmação (GESSLING, 2016).
7 Para a historiadora Brigitte Studer, "se a Suíça tem uma das leis de naturalização mais restritas da Europa é também porque sempre viu o estrangeiro como mão-de-obra descartável para usar e abandonar, e não como um cidadão para integrar" [tradução livre] (SUMMERMATTER, 2017).
8 Termo alemão que representa o medo do excesso de estrangeiros ou de sua influência no país.
9 "[...] o Outro significativo, define meu ser no mundo e meu amor pelo mundo em níveis além daqueles da mãe e do pai" [tradução livre] (BARCELLOS, 2016, p. 19).