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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020
Identidade, duplo e imaginação ativa - leitura do conto Distante de Cortázar
Identidad, doble y imaginación activa - lectura del cuento Lejana de Cortázar
Marcia Moura Coelho
Psiquiatra, membro analista da Sociedade brasileira de Psicologia Analítica de São Paulo (SBPA-SP) e filiada à IAAP. e-mail: <marciamcoelho@uol.com.br>
RESUMO
Neste artigo trabalho na interface psicologia analítica e literatura num diálogo entre o conto Distante, do escritor Julio Cortázar, e a abordagem junguiana. Inicio apresentando uma breve sinopse do conto, tecendo relações e associações com alguns conceitos da psicologia analítica, para, posteriormente, fazer o recorte em três eixos de análise: a busca de identidade da personagem, o arquétipo do duplo e a imaginação ativa como método junguiano de trabalho com o inconsciente, análogo ao que ocorre com a protagonista do conto. Por fim teço considerações e aproximações entre o autor Cortázar e Jung, encontrando afinidades no processo criativo de ambos e na atitude simbólica diante da vida. ■
Palavras-chave: duplo, imaginação ativa, identidade, literatura, Cortázar
RESUMEN
En este artículo, trabajo en la interfaz de psicología analítica y literatura en un diálogo entre el cuento Lejana, del escritor Julio Cortázar, y el enfoque Junguiano. Comienzo presentando una breve sinopsis del cuento, tejiendo relaciones y asociaciones con algunos conceptos de psicología analítica, para luego hacer un recorte en tres ejes de análisis: la búsqueda de la identidad del personaje, el arquetipo del doble y la imaginación activa como método junguiano de trabajo con el inconsciente, análogo a lo que sucede con el protagonista de la historia. Finalmente, entretejo consideraciones y aproximaciones entre el autor Cortázar y Jung, encontrando afinidades en el proceso creativo de ambos y en la actitud simbólica hacia la vida. ■
Palabras clave: doble, imaginación activa, identidad, literatura, Cortázar
1. Introdução
Uma ponte, um rio abaixo e a busca inquieta de uma mulher por algo que lhe faça sentido...
A imagem acima, inspirada no conto Distante do escritor argentino Julio Cortázar e que trabalho neste artigo, me serve de mote para iniciá-lo. Compartilho aqui a experiência que desenvolvo no Núcleo de estudos: Sonhos, literatura e psicologia analítica, na Sociedade brasileira de Psicologia Analítica de São Paulo (SBPA-SP), a partir da leitura deste conto. Trata-se de um trabalho que venho realizando há alguns anos com grupos de psicólogos e psiquiatras interessados no tema, em que busco aproximações possíveis entre duas áreas, psicologia analítica e literatura, através de leitura e discussão de contos. O sonho, nossa produção ficcional cotidiana, é o ponto de intersecção entre as duas áreas e no trabalho com séries oníricas e com contos, novos olhares e releituras para as inquietações humanas vão se tecendo. Simultaneamente desenvolvo no núcleo um espaço para os participantes vivenciarem a leitura, de modo a apurar o próprio repertório simbólico. Percebo que esse espaço subjetivo de trocas e impressões fertilizadas pela leitura de contos, além de manter a conexão com a complexidade humana via linguagem literária, favorece a expressão espontânea dos participantes e o exercício da própria criatividade, o que penso ser fundamental na formação de um analista.
Trabalhei no Núcleo com vários outros contos do autor Julio Cortázar, que, à parte o valor literário de sua obra, tem em sua produção criativa uma influência confessa do mundo onírico. Em seus escritos, o real é inseparável do imaginário e a ordem cotidiana é desconstruída, revelando sempre uma outra ordem, desconcertante, incômoda, misteriosa. Escolhi o conto Distante por trazer o tema do duplo, que há muito é meu objeto de interesse e pesquisa, e que traz em si as questões de identidade, tema sempre relevante para psicoterapeutas e analistas. Também por ser um conto que traz em sua forma estrutural uma narrativa literária que favorece a imersão do leitor no tema e na personagem, já que ele é estruturado em sua maior parte como diário da protagonista. Esse aspecto mais subjetivo da leitura da obra literária não será o foco principal deste artigo, mas é aspecto importante no trabalho que desenvolvo no núcleo.
A psicologia analítica oferece recursos únicos e valiosos para a análise simbólica da obra literária e este artigo é uma contribuição. E assim, entre o relato do conto e da personagem, no intuito de contribuir com a área, sigo tecendo pontes e caminhos entre literatura e psicologia.
2. O conto Distante
Distante (Lejana) foi publicado no 1º livro de contos de Julio Cortázar, Bestiário, de 1951. Cortázar estava com 37 anos e só então sentiu-se maduro para publicar um livro. Talvez esse rigor explique algo da qualidade desse livro, considerado por muitos composto de contos perfeitos, hoje clássicos do gênero: além de Distante, contos bem conhecidos do autor fazem parte do volume: Circe, Casa Tomada, Carta para uma senhorita em Paris, entre outros. Distante traz na trama e na forma aspectos caros ao escritor e que seriam retomados e revisitados em sua obra futura, mais especificamente, o tema do duplo e o jogo, ou o brincar distraidamente, o lúdico, como modo de se adentrar outras realidades de consciência e apreensão de mundo e de si mesmo, o que possibilita desdobramentos na percepção de realidade.
Em Distante temos como personagem central uma mulher, Alina Reyes, que vive com sua mãe em Buenos Aires, e que escreve em um diário seus devaneios, sonhos, jogos de palavras e anagramas, subterfúgios para fugir da insônia e que a levam a uma outra cidade, Budapeste, e a uma outra mulher, mendiga que passa frio, sofre e apanha.
Quem é Alina Reyes? Jovem, mas nem tanto, como registra em seu diário - "27 anos e ainda sem noivo", vive no celibato, algo adolescente em suas atitudes e ligação com "mamãe". Transitando entre concertos e recepções típicas da burguesia local da época, apresenta-se criativa e bem-humorada em seu diário, toca piano, mas parece estar insatisfeita ao se descrever: "só, entre gente sem sentido". Escrito em primeira pessoa como um diário da personagem, o texto revela pistas da insatisfação de Alina. De Rainha a Rex aprisionada - um animal domesticado e preso, o que aponta para a condição feminina da época e para ambiguidades dessa condição. A música talvez seja para Alina um elemento de evocação de seus sentimentos mais profundos, e as noites insones, os momentos de conexão com o outro lado desconhecido, ou não tão desconhecido assim, mas rejeitado pela consciência.
Quem á a "Outra"? Distante, mulher, mais velha, pobre, não tem filhos, passa frio, sofre, apanha. Por ela, Alina ora sente ternura, quer cuidar, curar, ora sente ódio, a vê como aderência maligna, usurpadora. Alina quer que a outra se renda.
A trama inicia-se como uma distração, uma brincadeira inocente, e em especial os jogos com palavras que cria distraidamente nos permitem não só conhecer a personagem, mas também aspectos mais ocultos de sua personalidade, distantes da consciência, porém aspectos vivos, fugidios e em busca de expressão.
"Assim passo horas", diz Alina sobre suas noites, quando repete versos, busca palavras, até chegar aos palíndromos e anagramas.
[...] quero dormir e sou um horrível sino ressoando, uma onda, a corrente que o Rex arrasta a noite toda sobre as alfenas. Now I lay me down to sleep... Tenho que repetir versos, ou o sistema de buscar palavras com a, depois com a e e, com as cinco vogais, com quatro (CORTÁZAR, 1986, p. 36).
É nessa brincadeira, nesse jogo de espelho, com o avesso e/ou deslocamento de palavras e letras aleatórias inicialmente e, depois, de seu próprio nome que Alina Reyes, Rainha, descobre a outra:
Alina Reyes es la reina y... tão belo, este, porque abre um caminho, porque não conclui. Porque a rainha e...
Não, horrível! Horrível porque abre caminho a esta que não é a rainha, e que outra vez odeio de noite. A essa que é Alina Reyes, não a rainha do anagrama; que será qualquer coisa, mendiga em Budapeste, frequentadora de prostíbulo em Jujuy ou criada em Quezaltenango, em qualquer lugar distante e não rainha. Mas Alina Reyes, e, por isso, ontem de noite aconteceu outra vez, senti-la e o ódio (p. 36).
O duplo de Alina, sua outra identidade, surge como presença sentida por ela, oposta à identidade consciente - de Rainha à mendiga, prostituta ou criada. O contato com seu oposto, em condições de pobreza extrema, libertinagem ou inferioridade social provoca fortes sentimentos de aversão e ódio, a deixa contrariada, é horrível. Mas a personagem que emerge nesse jogo de palavras, do avesso de Alina, que é rainha, vai ganhando forma como uma mendiga em Budapeste "ideia que volta como Budapeste, acreditar na mendiga de Budapeste, onde haverá tanta ponte e neve que goteja" (p. 39). Também o espaço de devaneio vai se definindo em imagens, com pontes e frio que se transformam em Budapeste. E Alina Reyes desdobra-se de rainha nas recepções elegantes na alta sociedade de Buenos Aires à mendiga no inverno gelado de Budapeste.
Estranho, fantástico, possessão, enlouquecimento? Talvez um pouco de tudo isso, embora o deslocamento em si apresente-se como um fenômeno cotidiano e, portanto, nada extraordinário para Alina Reyes, como também para o escritor como veremos mais adiante. Entendo que a mendiga em Budapeste é uma imagem de fantasia que insistentemente volta trazendo aspectos ocultos da identidade de Alina e, carregada de energia psíquica, adquire força, provocando atração e curiosidade.
Fica muito evidente que a Rainha é a persona de Alina Reyes, uma aparência, como ela se mostra ou gostaria de ser ou ainda o que é esperado dela em seu convívio social.
A persona Rainha é também Alina, ou melhor, um compromisso que sua personalidade consciente tem com a sociedade em que vive, mas não expressa a totalidade da personagem. Outros aspectos seus, que também a constituem, vão sendo revelados nesse deslize de consciência que o jogo propicia.
A sombra emerge na consciência de Alina como o arquétipo do duplo, tema que pretendo evidenciar nesta leitura e retomarei mais adiante. A "outra", sósia sombria e mendiga, e a intimidade com essa outra que surge como avesso da rainha, geram sentimentos contraditórios em Alina: "Que sofra, que enregele; e eu suporto daqui, e acho que então a ajudo um pouco" (p. 37). "Às vezes é ternura, uma súbita e necessária ternura para aquela que não é rainha e anda por aí" (p. 39),
Os devaneios com a outra, a Distante, vão se tornando mais intensos e frequentes, invadindo não só suas noites insones, mas também o cotidiano da personagem, que se reconhece mais 'lá' do que 'aqui', sente-a "mais dona do seu infortúnio, distante e só, mas dona". Num ritmo absorvente, a Distante vai ocupando a consciência e a primeira voz narrativa no diário de Alina. Alina é Alina em Buenos Aires, mas é também a outra em Budapeste. "Não é que sinta nada. Sei apenas que é assim, que em algum lugar atravesso uma ponte no instante mesmo (mas não sei se é no instante mesmo) em que o menino do Rivas aceita o chá e mostra a sua melhor cara de tarado" (p. 37).
Ao sentir-se desejada por Luis María, seu pretendente e futuro esposo, reconhece uma parte indesejada em si mesma, rejeitada pelo meio familiar e social e também por ela própria:
Porque a mim, a distante, não a querem. É a parte que não querem e como vai me dilacerar por dentro sentir que batem em mim ou a neve entra nos meus sapatos quando Luis María dança comigo e sua mão na minha cintura vai subindo como um calor de meio-dia, um sabor forte de laranja ou bambus chicoteados, e batem nela e é impossível resistir e então preciso dizer a Luis María que não estou bem, que é a umidade, umidade entre essa neve que não sinto e está entrando nos meus sapatos (p. 38).
O conto/diário de Alina vai nos revelando a intensidade e a característica obsessora deste encontro com a outra/duplo/mendiga, e limites cada vez mais indefinidos e permeáveis entre eu e inconsciente, de forma que Buenos Aires e Budapeste, realidade e fantasia, ficam separados por um triz...
O encontro vai se tornando possível e exige um local, como que um chamado. Alina vai seguindo e atendendo essa invocação, obcecada e fascinada por esse encontro, mandando telegramas imaginários, buscando o lugar, criando nomes, uma praça, um rio, uma ponte. Os símbolos vão se constelando na consciência e no diário de Alina: a praça como centro, as duas margens que se comunicam via ponte, e a ponte que recebe o nome de Ponte dos Mercados, local de trocas e negociações. Alina imagina um encontro vitorioso em que a outra se entregaria. Pensa no casamento e lua de mel como via de chegar à outra e pensa algo curioso que não é revelado no diário. Algum pressentimento ruim?... "Escrevo até aqui, sem vontade de continuar me lembrando do que pensei. Vai me fazer mal se continuo me lembrando. Mas é verdade, verdade; pensei uma coisa curiosa" (p. 43).
O que Alina não quis escrever no diário? O que imaginou, pressentiu e não contou? O encontro é feliz ou infeliz?
Lembro de que parei para olhar o rio que estava como maionese encrespada, batendo contra os pilares, enfurecidíssimo e soando e chicoteando. (Isto eu pensava.) Valia a pena assomar ao parapeito da ponte e sentir nas orelhas a quebra do gelo ali embaixo. Valia a pena ficar, um pouco pela vista, um pouco pelo medo que me vinha de dentro - ou era o desabrigo, a nevada violenta e o meu casaco de pele no hotel (p. 42).
O diário de Alina interrompe-se... a parte final do conto tem outra voz narrativa, um narrador anônimo e onisciente conta que Alina casou-se e foi a Budapeste, dois meses antes de divorciar-se, e que o encontro com a outra se deu na Ponte dos Mercados. Não sabemos o que aconteceu, a não ser o que o narrador conta. O rio e o ritmo das águas, metáfora e símbolo do fluxo de emoções e da vida inconsciente, se apresentam instáveis, perigosos, ora "rio trovejante de gelos quebrados e barcaças e algum martim-pescador", ora "como maionese encrespada, batendo contra os pilares, enfurecidíssimo e soando e chicoteando". E ainda, ora "rio quebrado" e dele, do Danúbio, "cresce um vento de baixo, difícil, que prende e fustiga", "estilhaçado golpeando nos pilares" no momento do encontro das duas, para logo instantaneamente ao abraço, momento de fusão total e de felicidade igual ao "rio cantando".
Sem temor, libertando-se afinal - acreditava-o com um sobressalto terrível de júbilo e frio - chegou junto a ela e estendeu também as mãos, se negando a pensar, e a mulher da ponte se apertou contra seu peito e as duas se abraçaram rígidas e calaram na ponte, com o rio estilhaçado golpeando nos pilares.
Alina sentiu o fecho da bolsa que a força do abraço cravava entre os seios como uma laceração doce, suportável. Apertava a magríssima mulher sentindo-a inteira e absoluta dentro do seu abraço, com um crescer de felicidade igual a um hino, a um soltar de pombas, ao rio cantando. Fechou os olhos na fusão total, recusando as sensações de fora, a luz crepuscular; repentinamente tão cansada, mas certa de sua vitória, sem celebrá-lo por tão seu e finalmente (p. 45-6).
Há um instante de plenitude entre Alina e a mendiga, que logo se desfaz, com a troca de lugares, a passagem de um lado para o outro, que pode gerar um novo movimento de busca, novas inquietações, pois o novo, apesar de terrível por ser dor e sofrimento, chegou. E do momento de encontro, fusão e felicidade plena, nova separação, e uma terrível troca de lugares, uma permuta de identidades, e o encontro total de Alina Reyes com a dor, o frio, as fadigas incalculáveis, o choro, num final inquietante e fascinante, que nos deixa, leitores, ali, suspensos na ponte, neste espaço talvez eterno de encontros e desencontros, de busca e transformação. O que acontece à Alina fica em aberto:
Pareceu-lhe, docemente, que uma das duas chorava. Devia ser ela porque sentiu molhada as faces, o próprio pômulo doendo como se tivesse ali levado um golpe. Também o pescoço, e logo os ombros, curvados por fadigas incalculáveis. Ao abrir os olhos (talvez gritasse agora) viu que se haviam separado. Agora, sim, gritou. De frio, porque a neve estava entrando por seus sapatos furados, porque andando a caminho da praça ia Alina Reyes lindíssima em seu vestido cinzento, o cabelo um pouco solto contra o vento, sem voltar o rosto e andando (p. 46).
Como em muitos de seus contos, Cortázar encerra este com um final em aberto, circular, e o jogo de busca pode se reiniciar... Em todas as ocasiões em que trabalho com esse conto nos grupos, esse final mobiliza discussões acaloradas e propicia fantasias de continuidade do processo da personagem. Ela enlouquece? O que houve com esse casamento que durou apenas dois meses? Quem desiste dele e pede o divórcio: ela ou o marido?... Esse momento de "suspensão" é crucial, e de impacto muito similar ao que os pesadelos provocam no sonhador.
Em minha opinião, a forma condensada e a brevidade são elementos de afinidade entre o conto e o sonho, e o final brusco, em aberto, é o elemento recorrente no conto fantástico e no pesadelo. O impacto de um bom conto fantástico e de um pesadelo tende a provocar uma reação análoga, em que se continua após a leitura e, após o despertar com aquela história voltando, aquelas imagens intrigando, em que a consciência não suporta deixar em aberto uma situação e tende a buscar um fechamento, que possa acalmar a inquietação, seja mais feliz ou infeliz, mais transformador ou conservador... É um momento oportuno e muito criativo para o trabalho com narrativas literárias e a interação subjetiva de cada leitor, um momento em que o espaço entre o leitor e a obra fica mais permeável. Essa permeabilidade entre planos e espaços aparece nos devaneios de Alina e a Distante, e também no espaço entre ficção e realidade, entre leitor e obra, entre o sonho e a realidade, especialmente entre o pesadelo e a consciência desperta. O que acontece ou pode vir a acontecer não está mais no plano do texto, mas reverbera na imaginação do leitor, na elaboração consciente do sonhador. O tema da continuidade dos espaços é retomado em vários contos de Cortázar e magistralmente, como já anuncia o título, em Continuidade dos parques (CORTÁZAR, 1974), um brevíssimo conto em que ficção, realidade e literatura se entrelaçam e confluem em efeitos múltiplos. Em Distante, o não dito e pressentido por Alina no diário também não se conclui na narrativa final, e o mistério não dito e não escrito é parte essencial do conto, o intangível que está para além do texto e para além da consciência.
3. O arquétipo do duplo e a busca de identidade
Parece que o homem não se aceita como uma unidade. De alguma maneira, ele sente que poderia estar, simultaneamente, projetado em uma outra entidade que ele conhece ou não, mas existe (BERMEJO, 2002, p. 33).
Percebo a busca de identidade mais profunda da protagonista como a trama principal do conto e o arquétipo do duplo como símbolo central da narrativa, com Alina Reyes e sua outra distante, a ideia de desdobramento da personalidade, a existência de um outro eu, com características opostas, malignas ou não. Entre jogos de palavras, devaneios e sonhos, surge o duplo de Alina, propiciando diálogos entre a personagem, suas imagens internas e seu diário, entre consciente e inconsciente, entre persona e sombra.
O tema arquetípico do duplo apresenta-se em vários aspectos no conto: na história de Alina e da outra, em citações que surgem no diário, como o homem com cara de "retrato de Dorian Gray"1, no jogo de palavras que usa para se distrair nas noites insones - os anagramas e palíndromos são duplicações com as palavras e letras, espelhadas ou reconstruídas em outra ordem. A vivência de desdobramento da consciência está presente na atitude lúdica com a fantasia, o brincar consigo mesma, com os devaneios, que permitem e estimulam o livre fluxo da consciência e abrem passagem entre consciente e inconsciente, algo que o próprio Cortázar prezava em seu modo de encarar a vida e a literatura, e que para alguns críticos é marca de sua obra.
Outra duplicação importante é a do espaço, com duas cidades, Buenos Aires, cidade de Alina e sua vida "real, objetiva", e Budapeste, a cidade da fantasia, onde vive a outra, mendiga, que sofre e passa frio; como num jogo de espelhos, temos em Budapeste, duas cidades - Buda e Peste, que foram posteriormente unificadas. No cenário do encontro das duas, temos a praça como centro de convergência e de dispersão, o rio que divide os dois lados e a ponte que une as margens e serve de passagem. O ato de fazer um diário também remete a um tipo de desdobramento, na medida em que convida ao diálogo consigo mesma e à reflexão sobre a própria vida. Não à toa é comum entre adolescentes, momento de intensa busca da própria identidade.
Em entrevista ao jornalista uruguaio Ernesto Gonzales Bermejo (2002), o próprio Cortázar reconhece ter certa obsessão pelo tema, influenciada talvez pelas leituras precoces de Doctor Jekyll and Mr Hide de R. L. Stevenson2, de William Wilson de E. A. Poe3 ou pela literatura alemã, segundo ele, "habitada pelo duplo"4. E nesta mesma entrevista recorre a Jung e à ideia de arquétipo e inconsciente coletivo para explicar a recorrência do tema do duplo em sua obra:
Não acredito que se trate de uma influência literária. Quando escrevi o conto que você citou, "Distante", entre 1947 e 1950, estou absolutamente seguro - e neste sentido tenho boa memória - de que a noção de duplo não era, absolutamente, uma contaminação literária. Era uma vivência (BERMEJO, 2002, p. 31).
Jung poderia falar de uma espécie de arquétipo. Não se esqueça de que os duplos - não sei se explicitamente em Jung, mas, em todo caso, nas cosmogonias, nas mitologias do mundo -, o duplo, os personagens duplos, os gêmeos ilustres, como Rômulo e Remo, Castor e Pólux, os deuses duplos, são uma constante do espírito humano como projeção do inconsciente convertida em mito, em lenda (p. 32).
Pesquiso há algum tempo o tema do duplo. É um ponto de convergência importante nas relações entre psicologia e literatura. Tema importante para a psicologia profunda, que trabalha com a ideia de inconsciente, este outro eu mais profundo, e que muito se inspirou também na literatura alemã, "habitada pelo duplo" como diz Cortázar, para desenvolvimento de suas ideias. Jung incorporou o tema do duplo, como doppelgänger, o irmão sinistro, ao conceito de sombra inspirado pela leitura do romance Os Elixires do Diabo, do autor alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm5. Para Jung, psique é natureza, vasta, carregada de mistérios, e é da natureza da psique funcionar segundo pares de opostos, rejeitando qualquer unilateralidade. Considerava a existência de opostos como pré-condição de vida psíquica. Em sua autobiografia descreve sua vivência pessoal do duplo, na adolescência, como personalidades nº 1 e nº 2, sendo que o nº 2 é o outro em mim, o "homem interior". A alternância, o conflito e a tensão entre opostos podem indicar, para além da patologia, o despertar da consciência em seu rumo à individuação, lembrando que experiências de dissociação e fragmentação da psique constituem muitas vezes condições necessárias para o seu desenvolvimento. A realidade interna da psique é tão real quanto o universo exterior e o Self é, para Jung, ao mesmo tempo muitos e um só, não podendo ser reduzido a uma de suas polaridades. O símbolo surge como elemento unificador, e a enantiodromia, o passar para o oposto, é considerada inevitável na dinâmica psíquica, vista como uma função autorreguladora.
4. Alina, seus devaneios e seu diário - diálogos com o inconsciente e imaginação ativa
Assim como desloca as letras que compõem seu nome, a protagonista Alina desloca-se para outra ordem que não a da consciência. Como num jogo de espelhos, a brincadeira distraída com seu nome - "Alina Reyes es la reina y...". Alina que é rainha e... Este e... abre caminhos para outros estados de ser que também são Alina, e essa vivência de alteridade em si mesma, que a consciência rejeita ou nega, é expressa e personificada em seus devaneios como a outra, a Distante.
Sonhos, devaneios e fantasias são produções espontâneas da psique e vias de acesso a conteúdos que podem ser integrados num processo de ampliação da consciência, em que a identidade mais profunda, inconsciente, pode emergir, transformando a personalidade. Jung considerou fundamental o que chamou de confronto com o inconsciente, tanto em sua vida pessoal, quanto em seu método clínico e denominou de imaginação ativa essa técnica de diálogo, dando voz e expressão às figuras do inconsciente coletivo. Tendo a fantasia espontânea como funcionamento natural da psique, afirmou que, à medida que o inconsciente vai encontrando espaços de expressão, a consciência vai perdendo a liderança, possibilitando assim a integração desses conteúdos, uma diminuição gradual da influência dominante do inconsciente e a "transformação da personalidade" (JUNG, 1991a). Trata-se de uma nova ordem na consciência, mais integrada à identidade profunda inconsciente, o Self, e seus chamados. Esta é a meta do trabalho analítico, o caminho de individuação, como conceituado por Jung.
Curiosamente, ao falar da dinâmica do trabalho clínico com a dissolução da persona em um de seus textos iniciais, a analogia usada por Jung é a do jogo, um jogo de xadrez, em que quem decide é um jogador inconsciente, o Self, esse outro eu profundo e invisível: "Assim pois, sem que o perceba, a personalidade consciente, como se fora uma peça entre outras num tabuleiro de xadrez, é movida por um jogador invisível. É este quem decide o jogo do destino e não a consciência e suas intenções" (JUNG, 1991a).
Quase todo escrito na primeira pessoa, com a voz de Alina Reyes escrevendo seu diário e somente no parágrafo final com uma 3ª voz narrativa, o conto/diário revela a angústia e inquietação da personagem, suas vivências mais íntimas, seu discurso interno e as possibilidades de diálogo e aproximação que faz com suas imagens inconscientes. A atividade inconsciente da personagem se intensifica e as imagens oníricas penetram a consciência de Alina insistentemente até na vigília, de forma que ela vai vivenciando sensorialmente essas imagens: "Só resta Budapeste porque ali é o frio, ali batem em mim e me afrontam. Ali (eu sonhei, não é mais que um sonho, mas como adere e se insinua até a vigília) [...]" (CORTÁZAR, 1986, p 39, grifo do autor).
E Alina vai aos poucos fazendo uma espécie de imaginação ativa, dando continuidade e vida às imagens que emergem do inconsciente, seja em sonhos ou devaneios, vai se relacionando com elas, dando nome e lugar, personificando pessoas e lugares, e o que era uma distração para fugir da insônia ganha intensidade e realidade psíquica. Antes de serem interpretadas, as imagens inconscientes são reconhecidas, vivenciadas, percebidas em sua carga emocional e física, como também deve ser no trabalho clínico. É onde sente frio que Alina sabe que é o lugar do encontro. O contato ativo com as imagens inconscientes também vai produzindo reflexões, questionamentos: quem sabe o que a castiga? Pode ser: "[...] um homem, uma mãe furiosa, uma solidão" (p. 40).
5. Busca de identidade
Ir para me buscar [...] (CORTÁZAR,1986, p. 40).
Alina pensa, inventa, confabula, sonha, de alguma forma sabe que é assim que pode se encontrar. Alina faz um caminho de busca de identidade. A jovem entediada, insone, insatisfeita encontra-se com uma imagem de si mesma sofrida, desamparada, maltratada pelo frio, pela neve em seus sapatos furados, que insiste no encontro com essa outra porque faz algum sentido, porque é curiosa e quer saber aonde vai dar, porque quer se procurar e se encontrar, porque se reconhece "só entre essa gente sem sentido" (p. 37). Alina quer ir a esse encontro "para se curar" como anota no diário, com fantasias por vezes ambíguas, ora de cuidar da outra, ora de fazê-la render-se ao status iluminado da consciência...
Alina segue suas imagens, trabalha com elas em seu diário, quer se buscar, quer se curar. Curar de quê? Curar-se do celibato, mas pode-se deduzir algumas outras possibilidades, naturalmente não excludentes: curar-se do sofrimento, da solidão, da mãe furiosa, do estado de submissão aos códigos sociais e familiares, dessa vivência de animal domesticado, de sua sexualidade acorrentada, da frigidez. Seus devaneios e seu diário são ativados pela insônia, no meio da noite, quando a intimidade consigo mesma pode aparecer, as máscaras podem ser retiradas e as defesas da consciência baixam guarda: "[...] quero dormir e sou um horrível sino ressoando, uma onda, a corrente que o Rex [supostamente seu animal domesticado] arrasta a noite toda sobre as alfenas" (p. 35).
Como não pensar em conflitos relacionados com a sexualidade surgindo na consciência de Alina, quando, ao dançar com o noivo, sente sua mão na cintura como um "calor de meio-dia" (p. 38). Entre fragmentos do diário, a personagem vai revelando seu emaranhado interno e a enorme tensão entre seus opostos, como o contraste do calor de Buenos Aires e a neve de Budapeste.
Num determinado momento do diário, Alina recusa-se a escrever algo que sente, ou melhor, pressente. "Como quando pensei a praça, o rio quebrado e os ruídos, e depois... Mas não o escrevo, não o escreverei jamais" (p. 44). Decide então terminar o diário, "porque a gente ou se casa ou escreve um diário, as duas coisas não andam juntas" (p. 44). Exibe uma atitude esperançosa e ao mesmo tempo desafiadora em relação aos conteúdos perigosos pressentidos e suas últimas anotações no diário são:
E será a vitória da rainha sobre essa aderência maligna, usurpação indevida e surda. Entregar-se-á se realmente sou eu, se somará a minha zona iluminada, mais bela e verdadeira, apenas por ir ao seu lado e apoiar uma mão no seu ombro (p. 44).
Alina assume neste momento uma atitude de dominação em relação à outra, que é vista como aderência maligna, usurpadora, que deve se render à Rainha e sua "zona iluminada". O conflito de poder entre consciente e inconsciente da personagem se agudiza, simbolizado pelas imagens da natureza violenta do rio quebrado, estilhaçado golpeando nos pilares, no momento do encontro das duas, numa narrativa vertiginosa.
Diante de um conflito de opostos, espera-se uma resolução do impasse, que uma terceira via surja, o nascimento de uma possibilidade de ver o conflito por outro ângulo e de uma nova atitude para sair desse impasse. Na prática clínica podemos propiciar e favorecer essa terceira via mediante uma longa mediação e negociação entre os aspectos conflitantes da psique, evitando-se assim uma crise ou ruptura. Mas nada garante uma solução favorável ou pelo menos confortável, e, retornando à analogia do jogo entre consciente e inconsciente, Jung dizia que o inconsciente "cria ludicamente, e a destruição é parte inevitável do jogo" (JUNG, 2000, par. 286).
Ainda citando Jung, diante dos conflitos consciente /inconsciente o risco existe e torna-se mais perigoso, não pelo conteúdo inconsciente em si, mas principalmente pela atitude da consciência em contato com o inconsciente.
O inconsciente não é um monstro demoníaco. Apenas uma entidade da natureza, indiferente do ponto de vista moral e intelectual, que só se torna realmente perigosa, quando a nossa atitude consciente frente a ela for desesperadamente inadequada (JUNG, 2013, par. 329).
6. O processo criativo - Aproximações entre Cortázar e Jung
Penso ser importante destacar aspectos que considero significativos na aproximação entre Jung e Cortázar.
Algumas características me sugerem afinidades relevantes entre ambos, especialmente na valorização da apreensão simbólica e mítica do mundo que eles trazem para suas produções.
Observando comentários do próprio Cortázar sobre o sonho e a relação do universo onírico com sua obra, sobre como vê o lúdico como uma atitude e disposição para estar no mundo, vemos que, nele, homem e obra estão intimamente ligados, num fluxo contínuo de vida e arte. Ou num modo que Jung (1991b, par.139) considerava como modo visionário de criar, em que o processo criador é vivo e o artista é o meio para a realização.
Para Cortázar, o lúdico torna-se um meio privilegiado não só para a criatividade e inventividade humanas, mas também para a possibilidade de interferir e alterar a ordem e a função pré-estabelecida das coisas, algo que o escritor toma como aspecto constituinte de sua relação com o mundo desde sempre:
O lúdico não é um luxo, algo agregado ao ser humano, que pode ser útil para se divertir: o lúdico é uma das armas centrais pelas quais o ser humano se conduz ou pode se conduzir pela vida afora. O lúdico, não entendido como jogo de cartas ou partida de futebol: entendido como uma visão na qual as coisas deixam de ter suas funções estabelecidas para assumir muitas vezes funções bem diferentes, inventadas. O homem que habita um mundo lúdico é um homem colocado dentro de um mundo combinatório, de invenção combinatória, que está continuamente criando formas novas (PREGO, 1991, p. 126.)
Sobre seu processo criativo, temos um autor impressionantemente lúcido e consciente de sua abertura para os processos inconscientes da criação. Cortázar descreveu sua experiência criativa, que ele não separava de uma atitude diante da vida, em diversas entrevistas, mas também em ensaios, artigos e palestras, material riquíssimo e certamente muito estudado nas academias literárias. É um mestre da narrativa breve, e suas teorias acerca desse gênero são tão sintéticas e geniais quanto seus próprios contos6. Tais descrições ilustram de forma fascinante a teoria do processo criativo de Jung, para quem a arte nasce do inconsciente coletivo, que, em vários momentos é metaforicamente definido como um mar ou "leito de rio encravado no fundo da psique" (JUNG, 1991b, par. 127), repleto de imagens primordiais, os arquétipos. A linguagem do inconsciente é mítica e expressa-se através de símbolos, e o processo criativo segundo Jung (1991b, par. 115) é "uma essência viva implantada na alma do homem".
Ao escrever contos, sempre me sinto um pouco como um médium; vejo as frases nascerem com uma certa independência das minhas decisões, como se estivessem sendo ditadas por alguém. Não tenho problemas para assinar os romances, mas tenho uma certa vergonha de assinar os contos. Não estou certo de ser eu o autor deles.
Não conheço o final da maioria dos meus contos. Não sei o que vai acontecer neles e creio que, se soubesse, isso mataria os contos em mim. Seriam uma simples construção literária: princípio, meio e fim. Seria apenas escrevê-los bem (BERMEJO, 2002, p. 118).
Sobre a função criativa da psique Jung reconheceu e denominou esse elemento autônomo de complexo criativo autônomo da psique e sua importância no processo criador:
Todo homem criador sabe que o elemento involuntário é a qualidade essencial do pensamento criador, e porque o inconsciente não é apenas um espelhar reativo, mas atividade produtiva e autônoma, seu campo de experiência constitui uma realidade, um mundo próprio (JUNG, 1991a).
Cortázar foi um autor interessado e curioso nas relações entre literatura, arte, inconsciente e sociedade. Não ficou restrito às influências do surrealismo e da psicanálise. Em seus textos críticos, há um ensaio sobre a poesia, Para uma poética (CORTÁZAR, 1999) em que desenvolve sua concepção mitopoética da criação literária e considera de fundamental importância na atitude poética a ideia de "participation mistique" do antropólogo Lévy-Bruhl. O conceito de participação mística, a possibilidade de se ver projetado simultaneamente em um objeto ou pessoa, também teve grande atenção de Jung, que o definiu como:
um modo peculiar de vinculação psíquica ao objeto. Consiste no sujeito não conseguir diferenciar-se nitidamente do objeto, vinculando-se a ele em virtude de uma relação direta a que poderíamos dar o nome de identidade parcial. Essa identificação baseia-se numa unidade a priori do objeto e do sujeito. Portanto a "participation mistique" é um remanescente desse estado primordial. (JUNG, 1987).
As ideias de Lévy-Bruhl no campo da antropologia e do que ele considerava a cosmovisão do homem primitivo, logo se tornaram polêmicas e defasadas, por conter em si uma visão preconceituosa de um europeu frente a outras culturas, por ele tachadas de primitivas. Preconceitos e polêmicas à parte, Lévy-Bruhl observou nessas culturas uma atitude perante o mundo em que o mito, o irracional (pré-lógico) e a participação são condições inerentes à mentalidade desses povos, por ele chamados primitivos.
Jung também teve forte influência do pensamento de Lévy-Bruhl, e considerou tais condições como primordiais e remanescentes das camadas mais arcaicas da psique, do inconsciente coletivo. Entendo que nesses princípios fundamentais, que envolvem uma forma de ver e estar no mundo, esteja a base do que considero as afinidades essenciais entre Cortázar e Jung, pois ambos encontraram nesses conceitos mais do que afinidade intelectual, mas também certa proximidade vivencial.
Em uma entrevista com Bermejo, Cortázar refere-se à psicologia junguiana com certa simpatia e familiaridade: "Foram feitas investigações psicanalíticas de meus contos tanto pela linha freudiana quanto junguiana e as duas são igualmente fascinantes. Mais a linha junguiana, que acho que se adapta muito mais ao universo da criação literária." (BERMEJO, 2002, p. 30). E ao comentar sobre a identificação do leitor com seus contos, ele diz:
Eu acredito que o interesse das pessoas pelo conto tem a ver não apenas com o prazer literário que possa proporcionar a elas, mas com alguma coisa que toca suas próprias experiências profundas. Aquilo que dizíamos de Jung e do inconsciente coletivo (p. 120).
Também encontro afinidades entre o processo criativo de Cortázar e o de Jung, uma visão de homem e de mundo sem grandes cisões entre o mundo da alma, da imaginação e o mundo real, uma vida simbólica em sua essência. Os diálogos com o inconsciente e a imaginação ativa fizeram parte de todo o processo criativo de Jung e do desenvolvimento de sua obra, o que é testemunhado em sua autobiografia Memórias, sonhos e reflexões e se confirmou mais ainda com a publicação, em 2009, do Livro Vermelho. Trata-se de um manuscrito realizado entre 1914 e 1930, em que entre textos, sonhos, visões e pinturas, num trabalho de imaginação ativa, dedicação e arte, Jung relata sua jornada pelas próprias profundezas.
Parece-me que o Cortázar que se revela em algumas de suas entrevistas publicadas em livros ou em vídeos, embora vivendo em outra época, vindo de outro contexto e não nomeando com os mesmos termos, viveu de modo análogo seus confrontos e jogos com o mundo onírico e sua imaginação criativa. E nesse ponto encontro uma afinidade com Jung.
Dessa conexão muito íntima, vívida e vivida entre mundo interior e exterior, um fez literatura, o outro fez psicologia.
7. Considerações finais
Escrevo por falência, por deslocamento; e como escrevo de um interstício, estou sempre convidando que outros procurem os seus e olhem por eles o jardim onde as árvores têm frutos que são, por certo, pedras preciosas (CORTÁZAR, 1993, p. 165).
Busquei fazer aqui uma leitura do conto Distante, com base na psicologia analítica, priorizando meu olhar na angustiante busca de identidade de Alina Reyes. Nessa busca, persona e sombra da personagem se comunicam via devaneios em que surgem imagens do arquétipo do duplo, imagens carregadas de grande intensidade emocional e expressas em seu diário. Considero esse um processo muito semelhante ao método de imaginação ativa, desenvolvido por Jung, e nesse aspecto teço conexões entre a leitura simbólica do conto e aspectos teórico-práticos da clínica.
A literatura certamente é um espaço privilegiado de imaginação, de reflexão, de revelação da complexidade humana. Mas em tempos tão apressados, com tanta informação técnica, qual a importância do contato com a literatura na formação de psicoterapeutas e analistas? Percebo que um aspecto muito rico da experiência no Núcleo de Estudos: Sonhos, literatura e psicologia é a oportunidade que a literatura propicia de penetrar outros mundos, ver com outros olhos, vivenciar e participar das reflexões que o homem tem diante de si mesmo, do "outro" e da sociedade em que vive. Percebo uma ampliação da subjetividade do leitor, como se ocorresse um alargamento, um espaço interno para apurar a própria sensibilidade e criatividade, tão importante na prática clínica.
Esse é um aspecto interessante no trabalho com o conto Distante. Quase todo narrado na 1ª pessoa, em forma de diário, faz com que o leitor penetre na mente de Alina Reyes, seja um pouco Alina Reyes. E esta é uma das grandes qualidades de Cortázar como escritor: a arte, a magia de tornar seus leitores tão íntimos e tão cúmplices, tão envolvidos na atmosfera de seus contos a ponto de serem nocauteados no final, num efeito digno dos melhores pesadelos. Com sua, porque não dizer?, "magia literária", ele convida o leitor a penetrar num outro mundo e o contamina, reverberando outros movimentos em sua própria direção. Cortázar nos convoca à participação: como o poeta lírico, ele supera distâncias entre obra e leitor, como também transcende barreiras entre ele mesmo e sua obra.
Por fim, a experiência da leitura de um conto como Distante permite uma vivência de desdobramento e passagem para outras experiências humanas ampliando e enriquecendo o leitor. Afinal, somos todos ligados por um fio de afinidades anímicas. ■
Referências
BERMEJO, E. G. Conversas com Cortázar. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2002. [ Links ]
CORTÁZAR, J. Bestiário. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1986. [ Links ]
___________. Continuidade dos parques. In: CORTÁZAR, J.; ROITMAN, A.; WATCH, P. Final do jogo. Rio de Janeiro, RJ: Expressão e Cultura, 1974. p. 11-13. [ Links ]
___________. Do sentimento de não estar de todo. In: CORTÁZAR, J. Valise de cronópio. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 1993. p. 165-172. [ Links ]
___________. Para uma poética. In: ALAZRAKI, A. (Org.). Obra crítica volume 2: Julio Cortázar. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1999. p. 251-270. [ Links ]
COELHO, M. M. C. G. Jung, S. Freud e o estranho E. T. A. Hoffmann. Junguiana, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 44-53, jan./jun. 2014. [ Links ]
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara, 1987. [ Links ]
___________. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991a. (Obras completas de C. G. Jung, v. 7/2). [ Links ]
___________. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991b. (Obras completas de C. G. Jung, v15). [ Links ]
___________. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. (Obras completas de C. G. Jung, v16/2). [ Links ]
___________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Obras completas de C.G. Jung, v.9/1). [ Links ]
PREGO, O. O fascínio das palavras: entrevistas com Julio Cortázar. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1991. [ Links ]
Recebido em: 25/02/2019
Revisão: 19/06/2020
1 Alusão ao personagem de O Retrato de Dorian Gray, romance de Oscar Wilde, publicado pela primeira vez em 1890.
2 O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hide, de Robert Louis Stevenson, publicado pela primeira vez em 1886.
3 William Wilson, conto de Edgar Alan Poe, publicado pela primeira vez em 1839.
4 Termo utilizado por Cortázar para aludir brevemente à presença recorrente e bastante significativa do tema do duplo na literatura alemã (BERMEJO, 2002, p. 30).
5 Discorro mais sobre o tema no artigo "C. G. Jung, S. Freud e o estranho E. T. A. Hoffmann" (COELHO, 2014).
6 Por exemplo a ideia do conto como esfera e como irmão misterioso da poesia (CORTÁZAR, 1974) e a analogia em que o conto está para a fotografia assim como o romance para o cinema (CORTÁZAR, 1999, p. 350).