We're all one and life flows on
Within you and without you
(George Harrison).
Este 32º Moitará é decorrência do Moitará anterior, cujo tema foi “Plantas de Poder e Outras Substâncias Psicoativas”. Nós, os organizadores, resolvemos, dentro dos protocolos de pesquisa científica, experimentar as plantas de poder para melhor entender do que se tratava aquele nosso encontro. A pesquisa científica sobre o efeito positivo dessas substâncias em alguns transtornos psiquiátricos tem sido retomada após mais de 30 anos de repressão, uma decorrência da guerra às drogas capitaneada pelos Estados Unidos.
Hoje, como nos anos 50 e 60 do século XX, as substâncias psicodélicas integram linha de pesquisa promissora para o alívio de alguns sofrimentos psíquicos. Os experimentos científicos são sempre realizados com um acompanhante experiente, os sujeitos de olhos vendados e com uma lista de músicas para acompanhá-los. O setting é planejado para criar um ambiente acolhedor.
A consciência que se abre sob o efeito das plantas de poder é a de uma profunda identidade e empatia com a vida em seu sentido pleno. Essa certeza é um golpe em nossa tradição judaico-cristã, que afirma termos sido criados à semelhança de deus para reinar sobre a natureza. Em minha experiência, a fronteira de minha vida pessoal praticamente se desfez, imergindo numa corrente de vida. Uma continuidade que subjaz a nossa humanidade e à qual eu pertencia, naquele momento, mais do que a meu status de humano.
Nesta imersão uma imagem surgiu ao som de Violeta Parra a cantar “Gracias a la Vida”. Ouvi demais essa música e quando a reconheci não gostei. Mas a música desapareceu, e surgiu uma imagem no silêncio. Uma extensão enorme de terra marrom, que eu sabia estar sem vida. Eu planava sobre essa terra me movendo devagar, como se estivesse há uns 5 metros de altura. A terra não estava ressecada, com gretas, mas sim lisa, sem mudanças no tom da cor, um marrom alaranjado e escuro. Fui invadido por uma tristeza enorme e comecei a ouvir um lamento. Era minha tristeza e não era, estava associada à imagem, mas eu era parte dessa mesma imagem. Um amálgama inédito que não consigo reproduzir em palavras. Uma mínima parte minha observava esse meu amálgama com a Terra. E chorava-se, um lamento baixo, resignado, desesperançado, impotente. A terra estéril.
Depois, algumas referências foram surgindo e me ajudando a decantar essa experiência e escrever esse texto. Dentre elas, o poema “Os Homens Ocos”, de T.S.Elliot (2018), cujos últimos versos são os seguintes:
É assim que o mundo acaba
É assim que o mundo acaba
É assim que o mundo acaba
Sem estrondo, num gemido.
O segundo movimento da obra “Tábula Rasa” do compositor estoniano Arvo Part intitulado “Silentium” também me ajudou a revivenciar a experiência. E também o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert “A Queda do Céu” (2015), no qual lemos ser
a pele da floresta composta de um sopro frio que vem da escuridão do mundo de baixo, sopro frio que persiste porque as costas da terra estão cobertas de folhas e protegidas pelas árvores. Sem essa proteção, esse orvalho fresco que é como um esperma deixa de emprenhar as árvores e a terra perderá sua fertilidade. Ficará estéril (p. 470).
Jung nos mostra a proximidade de seu pensamento da compreensão ianomâmi ao afirmar que: “os nomes dados à alma no latim, no grego e no árabe estão vinculados à ideia de ar em movimento, de ‘hálito frio dos espíritos’” (1984, par. 664).
O que fazer com essa experiência? Compartilhar com os amigos, com a pequena tribo que formamos aqui como organizadores do Moitará? Jung afirma, e eu senti na pele, a responsabilidade que advém de uma vivência intensa do inconsciente. Na expectativa de compartilhar essa imagem com mais pessoas é que esse Moitará foi pensado e construído.
Muitos de nós estamos cientes da teoria desenvolvida por James Lovelock e Lynn Margulis, a hipótese Gaia. O uso deste nome não implica a crença da volta da divindade grega que se reergueria para tomar conta da vida na Terra. Seria, sim, a constatação de uma relação entre a composição da atmosfera e a existência e a manutenção de algumas formas de vida que povoam o planeta. Poderia se chamar “Sistema Biogeofísico da Terra” (DANOWSKI et al., 2022, p. 15). Gaia se autorregularia como um ser vivo. Aliás, ela sempre está em equilíbrio dinâmico. O nível dos oceanos sobe e desce de acordo com glaciações em ciclos de 10 a 15 mil anos. Já passamos por cinco extinções em massa da vida e somente uma foi pela queda de um asteroide. Todas as outras foram por mudanças climáticas produzidas por gases de efeito estufa. Portanto, a depender do grau de alteração climática, Gaia poderá “reajustar” seu estado termodinâmico para um outro conjunto de valores que seriam favoráveis, talvez, a algumas das espécies vivas atualmente existentes, bactérias, vírus, insetos, mas não necessariamente a nós, humanos (WALLACE-WELLS, 2019, p. 12).
Nossa civilização ocidental contribui para que a existência humana e de outras formas de vida com as quais interagimos se torne cada vez mais difícil. “O aquecimento global atual ocorre em ritmo 10 vezes mais veloz do que ao final da última glaciação e de todas as glaciações anteriores. Portanto, os organismos terão de migrar ou se adaptar dez vezes mais depressa” (KOLBERT, 2015). A Ciência mostra dados alarmantes sobre o aquecimento dos oceanos e as extinções em cascata daí decorrentes.
A interferência humana acaba por determinar uma nova era geológica, o Antropoceno (DANOWSKI, CASTRO, 2015, p. 15). Deixaremos a marca de nossa presença nos sedimentos que futuros arqueólogos, se sobrarem humanos, quebrarão a cabeça para identificar no futuro (p. 190). O ambiente muda mais rápido do que a sociedade. O que fazer?
Em minha experiência, a imagem que surgiu da Terra é de passividade diante dos acontecimentos, reação que não precisa ser a única. É uma imagem de sofrimento frente a alterações que são incisivas no equilíbrio até então estabelecido. Mas o planeta se modificará para se equilibrar. Como já disse, Gaia não se preocupa particularmente com os humanos; ela é um receptáculo, sustentáculo para a vida em geral. Por que nós, humanos, teríamos alguma deferência? Isabelle Stengers (2015), filósofa da ciência, descreve o que chama “Intrusão de Gaia” na história humana, que pode ser entendida como um embate. Por um lado, o processo de mudança climática, e, por outro lado, o capitalismo em sua evolução atual. Alguns chegam a dizer que não estamos no Antropoceno, e sim no Capitaloceno, dada a importância conquistada pelo capitalismo em nossa cultura (MOORE, 2022). Nesse sentido, Gaia torna-se simbolicamente o planeta Melancolia no filme de Lars von Trier, colidindo e destruindo a vida como a conhecemos agora (DANOWSKI, CASTRO, 2015, p. 53).
Entramos em um cipoal de teorias sobre o caminho a ser tomado. Só posso mencionar algumas dessas tentativas pois cada uma delas se aprofunda em argumentos que estariam fora das possibilidades deste texto. Mas primeiro devemos fazer uma discriminação: não podemos dizer que a humanidade como um todo está colaborando para a mudança climática: trata-se de parte da humanidade, aquela que tem uma visão utilitarista e imediatista de utilização dos recursos providos pela natureza.
Eliane Brum relata um acontecimento dos anos 70 do século XX que pode servir de símbolo para essa parte da humanidade. O assim chamado marco simbólico da construção da Transamazônica, e da conquista daquele “imenso mundo verde inabitado...”, foi a derrubada de uma castanheira de mais de 50 metros que tombou com um imenso fragor. Essa morte foi aplaudida veementemente por apoiadores da ditadura militar e por parte da imprensa num palanque improvisado (BRUM, 2021). É a atitude de destruir sem ter a menor ideia do que se está destruindo. Em contraponto, temos aqueles que ficam fora desse bloco, os assim chamados (pela ciência europeia feita por homens brancos) povos primitivos, animistas. Ou a sub-humanidade mais rústica e orgânica que fica agarrada na terra, como define Ailton Krenak (2020, p. 82). Aí estão as culturas indígenas, sociedades tradicionais, caiçaras, ribeirinhos, quilombolas, todos os que não tem uma atitude de subjugação do meio ambiente no qual vivem.
De volta às várias teorias sobre o caminho a ser tomado, encontramos os “Singularistas” (representados principalmente por Vernon Vinge e Ray Kurzweil): a singularidade será o ponto em que a tecnologia e a biologia humanas entrarão em fusão (DANOWSKI, CASTRO, 2015, p. 65), criando uma consciência maquínica que permanecerá a serviço do desígnio humano. Pensam mesmo que poderemos fazer um upload de nossa consciência para alguma rede, aplicativo, ou corpo biomecânico modificado geneticamente no que seria uma espécie de transmigração de almas. Poderíamos sobreviver em ambientes hostis. Poderíamos mesmo nos manter por muito mais tempo! Seríamos humanos sem mundo. A tecnologia conseguirá vencer tantos desafios no tempo que resta? E os animais, as plantas, serão virtuais também? Lembro-me de assistir a um filme norte-americano, lançado em 1972 que me impressionou. Chama-se “Corrida Silenciosa” e se passa em uma nave cuja missão era manter florestas vivas em enormes domos transparentes numa órbita perto de Júpiter. Quatro astronautas e dois robôs eram responsáveis pelo funcionamento da nave. Um dos astronautas mantinha uma relação viva com a floresta enquanto os outros, queriam voltar para casa o mais rápido possível, sem consideração pela floresta que mantinham viva. Recebem uma ordem para destruir os domos que já não tinham mais serventia, a Terra alcançara uma temperatura que não permitiria mais a vida. Para encurtar, o astronauta que mantinha uma relação com a natureza ali preservada, mata seus companheiros e a si mesmo na tentativa de impedir a destruição. Mas antes, consegue lançar no espaço um dos domos sob a supervisão de um robô, mantendo assim a floresta viva, mergulhada no cosmo, no inconsciente coletivo, mas viva. E a humanidade continuaria, cindida da natureza simbolicamente expressa pela floresta.
Além do Singularismo, outra proposta é aquela conhecida como “Aceleracionismo”. Seus adeptos afirmam que o capitalismo se mostra imbatível, e é ingenuidade acreditar na sobrevivência de algo fora dele. O único meio de recriar esse “fora” é acelerar o capitalismo “até que ele se autodestrua e se recrie em um mundo radicalmente novo” (DANOWSKI, CASTRO, 2015, p. 71). Em minha compreensão, considero o Aceleracionismo como uma variação do Singularismo.
Outra corrente de pensamento se opõe aos Singularistas/Aceleracionistas. São os que acreditam ser necessária uma desaceleração geral do “mais” que caracteriza o capitalismo: mais crescimento, mais produção, mais consumo, e assim por diante (HICKEL, 2022). As pessoas poderiam trabalhar menos horas para que o pleno emprego se mantivesse. O produto interno bruto (PIB) diminuiria a ponto de causar recessão? Se pensarmos numa economia fundamentada no crescimento, sim. Mas a proposta seria uma economia pós-capitalista, centrada no bem-estar das pessoas e não na acumulação. Seriam necessárias enormes mudanças estruturais que parecem impossíveis. Mas há pessoas debruçadas sobre essa questão que afirmam a realidade dessa possibilidade. Podemos nos valer da seguinte metáfora: se estamos em um trem e notarmos que erramos o destino, só podemos diminuir a velocidade do trem, mas não mudaremos o lugar da chegada. Adianta? Sim, se pensarmos que a ciência terá mais tempo para achar soluções, e as pessoas também terão mais tempo para perceber o que as afeta e o perigo que correm.
A jornalista Eliane Brum dialoga com essa corrente e vai além ao afirmar que “o colapso climático exige radicalidade. Não basta remodelar o capitalismo, como querem alguns, é preciso refundar a pessoa humana”. Amazônia Centro do Mundo, movimento criado por ela, defende que essa refundação só pode acontecer a partir da aliança entre povos-floresta e povos-deflorestados, aqueles que foram empurrados para as periferias e comunidades das cidades (2021).
Enfim, como chegamos aqui? Jung demonstrou fartamente como o homem ocidental confiou em demasia no intelecto, desprezando sua interioridade, seu inconsciente, sua alma. Somos humanos cindidos. Ou humanos ocos, título da poesia citada no início desse texto. Também nos cindimos do ambiente no qual vivemos e do qual dependemos. Cito Ailton Krenak (2019):
Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde não tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza (p. 17).
Para Kopenawa e Albert (2015, p. 480), natureza é tanto a floresta como a multidão de espíritos xapiris que a habitam, os animais, as árvores, os peixes, o vento, o Sol, tudo o que não tem cerca. Xapiris são as imagens dos ancestrais que dançam e cantam para os xamãs sob efeito do pó yacoana, substância psicoativa. São seres noturnos que recolhem seus cantos de árvores que estão onde a terra termina, onde estão fincados os pés do céu. Os troncos destas árvores estão cobertos de lábios que cantam sem parar e nunca repetem uma palavra. São esses os cantos cheios de sabedoria que os xapiris aprendem e ensinam aos xamãs. É uma cultura na qual o conhecimento é passado pelo canto e pela dança (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p. 114).
A perspectiva indígena da natureza aproxima-se do conceito grego physis, que corresponde à nossa palavra natureza. Physis abrange um conceito de natureza muito mais amplo do que hoje, com nossa visão restrita e nossa arrogante objetificação de tudo o que é vivo, para podermos manipular como quisermos. Aristóteles afirmava ser impossível definir Physis. Physis transcende o humano que nela cabe. Posso afirmar algo sobre ela, mas será sempre insuficiente. Para a ciência atual, Physis virou matéria passiva, e muito foi conseguido a partir dessa perspectiva. A técnica trouxe enormes benefícios, mas houve um preço. A natureza perdeu seu mistério e sua dimensão. Se ampliarmos a noção de natureza, como faz a filosofia grega, chegaremos a uma totalidade muito próxima da noção indígena.
Percebo ter experienciado a maneira indígena de adquirir conhecimento. Não é pelos livros, pela pele de papel como diz Kopenawa. É pela experiência imediata mediada pela planta de poder. Jung deu grande ênfase às experiências imediatas do inconsciente que sempre trazem algum perigo. O Ego pode se identificar com o símbolo que emerge e ser patologicamente engrandecido ou diminuído. A capacidade do ego manter uma atitude crítica frente ao experienciado é que determinará o sucesso ou fracasso da empreitada.
Tento afirmar que a proposta de Jung de exploração do inconsciente se aproxima daquela que descrevi. Jung propunha a imaginação ativa, uma meditação sobre um sonho ou uma imagem, cujo propósito seria realizar um diálogo entre a consciência e o inconsciente. O ego precisaria aprender a se retirar do centro da consciência e a se tornar um observador com muito menos autonomia. Jung, como também outras pessoas, tinha facilidade em obter esse tipo de acesso ao inconsciente. Não me encontro entre eles. Mas foi o que consegui obter por meio de minha experiência com a planta de poder. É uma possibilidade de acesso ao inconsciente, assim como a imaginação ativa. O próprio Jung escreveu sua teoria amparado nas imaginações ativas registradas em seu “Livro Vermelho”. Mas isso não implica pensarmos que toda imagem se tornará ciência. Estaríamos transformando as imagens em pré-ciência e exercendo o poder tirânico de afirmar o que é real. Não hierarquizarmos as maneiras de conhecer o mundo, colocando o racional acima das imagens, abre-se um campo mais criativo.
Minha vivência despertou-me para a compreensão de uma perspectiva que facilita a empatia com o universo indígena. Neste, os espíritos são o reflexo das coisas que existem em nosso mundo. É como uma biblioteca que se abre; em vez de livros, temos cantos e danças de espíritos que revelam conhecimento. Causa um frio na barriga pensarmos que nossa civilização coloca em risco essa biblioteca. Lembro de ficar impressionado com a destruição da biblioteca de Alexandria. Hoje, corremos o perigo de perder outra.
Retomemos as ideias de Krenak e Kopenawa sobre a natureza. Estamos imersos nela, cuja amplidão nos ultrapassa. Da mesma maneira, estamos imersos na psique, segundo a compreensão junguiana. O conceito de uma totalidade psíquica da qual fazemos parte como psiques individuais é ideia fundamental do pensamento junguiano. Para representá-la, símbolos religiosos sempre foram utilizados. Cada cultura tem suas imagens da divindade, do Criador, do Profeta, que representam esse arquétipo. Cristo é frequentemente citado por Jung como uma dessas possibilidades. Mas depois de todo esse contato com a Natureza e seus biomas, naturalmente vem surgindo a certeza de que um símbolo possível seria a própria natureza. O filósofo Espinosa, estudado por Nise da Silveira, afirma que Deus é a natureza.
Retorno à pele da Terra. Fui lembrado de Guimarães Rosa por minha mulher. Na novela Campos Gerais, Miguilim, o protagonista de oito anos, coloca óculos pela primeira vez quando um viajante percebe que ele espremia os olhos para ver: “Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores....” (ROSA, 1970, p. 101).
Precisamos de um olhar novo. Somos nós o índio cantado por Caetano Veloso. Temos de achá-lo na nossa interioridade e nos religarmos, segundo a canção, ao que pode ter permanecido sempre oculto embora seja o óbvio. Reaprender a sonhar, não ficarmos com a cabeça cheia de esquecimento nas palavras de Kopenawa e Albert (2015, p. 462). Deixarmos de ser somente o povo da mercadoria e reaprender a sonhar grande e não só vermos em sonhos o que nos é próximo. E assim respeitar as árvores e a camada de folhas que formam a pele da terra.