E entre os tesouros da memória que todos os homens revisitam para seu próprio entretenimento, eles não relegam a segundo plano a colheita dos seus sonhos (STEVENSON, 2011, p. 110).
O breve relato de um homem e sua relação com seu mundo onírico poderia ser algo banal, não fosse assinado por Robert Louis Stevenson, o famoso escritor escocês, autor de aventuras, relatos de viagem, contos fantásticos, alguns considerados clássicos, como “A Ilha do Tesouro” e “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. Este último, publicado em 1886, teve sua inspiração onírica amplamente divulgada na época, tanto pelo sucesso imediato do livro, quanto pela produção frenética do autor que o escreveu em poucos dias após o sonho, mesmo debilitado pela tuberculose. O ensaio “Um Capítulo sobre o Sonho”, de 1892, é um delicioso relato de suas experiências oníricas e sua compreensão da influência destas experiências em seu processo criativo. R. L. Stevenson diz ser visitado durante o sono por brownies, uma espécie de elfo ou duende, espíritos domésticos do folclore escocês. Nessas visitas noturnas, seus brownies trabalham e produzem as brilhantes ideias que o autor transforma em histórias na sua vida desperta.
Como assim? Uma teoria sobre sonho e literatura que propõe a ação de elfos na criatividade literária? Sim, o autor tenta compreender sua experiência com os recursos criativos e literários que dispunha, numa época anterior à formulação do conceito de inconsciente. Segue também uma tradição cultural que atribuía a produção onírica, mais especificamente de pesadelos, à atuação e presença de criaturas e espíritos como demônios, íncubos, bruxas e elfos (ROSCHER, 2015). O escritor e crítico literário britânico A. Alvarez comenta que, na falta de um conceito formal para suas experiências com o inconsciente, Stevenson fez o que sabia, transformou o inconsciente em ficção (ALVAREZ, 1996, p. 187).
É possível encontrar sentido e ressonâncias psicológicas na tese de Stevenson e paralelos com ideias de Jung sobre sonho, criatividade literária e sobre a atuação dos complexos psíquicos como veremos mais adiante.
Stevenson e os sonhos
Stevenson era fascinado pelo universo onírico desde a infância, tumultuada por doenças respiratórias e noites povoadas de pesadelos e terrores noturnos. Em “Um Capítulo sobre o Sonho”, ele reconhece sua experiência onírica como fundamental ao longo de sua vida e com papel determinante em sua produção literária. O feliz talento do autor para a escrita aliado à inventividade do ficcionista resulta em um ensaio criativo e perspicaz, que, transcorrido mais de um século, continua vigoroso em sua investigação sobre o papel do sonho na criação literária. Entre sonho e literatura, o autor tece considerações sobre identidade e memória, e especialmente sobre a relação entre consciência e vida onírica, diante da matéria-prima de seu texto, no qual ficção, imaginação onírica, verdade e memória se mesclam numa teia de ilusões que fragiliza as certezas de uma identidade estabelecida.
O tema da identidade e a dualidade da consciência eram caros ao autor, resultando em sua obra de maior alcance, “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. É possível encontrar registros desse interesse na cuidadosa edição brasileira de “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde” publicada pela Editora Hedra, com tradução e organização de Braulio Tavares, que traz um apêndice com textos preciosos para os interessados em psicologia, literatura, sonhos e as múltiplas possibilidades do eu1. Esse pequeno conjunto de textos possibilita conhecer um pouco do contexto histórico e do método criativo de R. L. Stevenson. Além do ensaio “Um Capítulo sobre o Sonho”, traz uma carta de Stevenson ao amigo, poeta e psicólogo amador Frederic W. H. Myers com relatos sobre suas experiências de desdobramento da consciência, intitulada “Esse Outro Eu, meu Companheiro...” e um artigo do próprio Frederic Myers intitulada “A Personalidade Multiplex”; um texto do então renomado médico psiquiatra Henry Maudsley, intitulado “As Desintegrações do Ego”. Também fazem parte os depoimentos da viúva e do enteado do escritor, Fanny Van de Grift-Stevenson e seu filho, Lloyd Osborne, sobre as condições e detalhes da concepção de “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, inclusive sobre o pesadelo que originou a história, escrita em impressionantes três dias, com a primeira versão manuscrita jogada na lareira após críticas da esposa e reescrita em outros três dias – cerca de 60 mil palavras em seis dias. Um processo criativo espantoso levando-se em conta as condições físicas de Stevenson, na ocasião debilitado por hemorragias e febres decorrentes da tuberculose.
Nesse entrelace de perspectiva literária e perspectiva psicológica, tendo a teoria junguiana como referência, teço aproximações e correlações com a compreensão e o trabalho com a psique. A vida onírica de Stevenson é tratada por ele como palco de um “pequeno teatro mental” mantido “iluminado durante a noite”. Como escritor comprometido com sua criação, mantinha-se atento aos temas de seu interesse, seja permeando conversas, discussões com contemporâneos, seja nos sonhos, em seu palco iluminado. Como se parte fundamental de sua criação literária estivesse nessa colheita onírica espontânea, atento ao que fazia sentido em sua busca que, mesmo quando não intencionada, ocorria numa troca circular, entre mundo diurno e noturno, independente da vontade consciente.
É com os temas da organização da memória, da identidade e da inventividade onírica que Stevenson inicia seu ensaio:
O passado possui uma única textura, seja ela fingida ou experimentada, seja vivida em três dimensões ou apenas presenciada naquele pequeno teatro mental que mantemos brilhantemente iluminado durante toda a noite, depois que as luzes se apagam, e a escuridão e o sono reinam, sem serem perturbados, sobre o restante do corpo. Não há uma distinção clara entre nossas experiências; uma é mais vívida, a outra opaca, uma é agradável, outra é dolorosa à lembrança; mas qual delas é um sonho, é algo de que não temos como provar um fio de cabelo (2011, p. 109).
Para Stevenson, essa textura do passado se faz da experiência consciente desperta misturada à experiência onírica, a ponto de se diluírem sem distinção clara até o passado tornar-se um “fio de memória” essencial na costura da identidade: “Porque só nos guiamos e só nós reconhecemos, graças a essas reproduções fantasmagóricas do nosso passado” (p. 110). O autor levanta questões, deixando-as em aberto, mobilizando reflexões e indagações que persistem tão pertinentes quanto inquietantes: Nesse “fio de memória”, onde a memória é real onde falsa? E quando o vivido no sonho traz uma qualidade de maior autenticidade? Quem somos nós nesse fio de memória feito de brumas e fantasmagorias oníricas?
R. L. Stevenson narra a seguir as experiências oníricas de um suposto conhecido, que mais adiante revela ser ele próprio. Embora inicie exaltando a riqueza da vivência onírica, descreve suas primeiras experiências oníricas como aterrorizantes, seguindo seu relato com a evolução dessa relação entre sonhador e sonho. Constata que a consciência em seu caminho de amadurecimento vai simultaneamente dando maior suporte para as experiências oníricas, mesmo as mais assustadoras: “suas visões continuavam a ser terríveis, em sua maioria, mas ele já as suportava com mais firmeza” (p. 111). Na passagem da infância para os tempos de faculdade e juventude, o autor relata sonhos que surgem em sequência e intensidade, como se uma vida dupla, diurna e noturna, novamente o perturbasse. Mas o interesse pela vivência onírica não se dissipou e, ao escrever e publicar suas histórias, o que antes era divertimento ou horror tornou-se ofício para o sonhador.
Os brownies oníricos de Stevenson
Uma rica colaboração entre mundo onírico e consciência desperta é narrada por Stevenson, que, com bom humor, ternura e imaginação fértil denominou de brownies a sua gente pequenina do sonho, “as pequenas criaturas que dirigem o teatro íntimo da mente” (p. 115) que não se cansam de criar histórias e de lhe enviar ideias durante suas noites movimentadas:
Agora, as histórias precisavam ser desbastadas e polidas até serem capazes de ficar de pé sozinhas; precisavam ter começo e fim, além de poderem se encaixar (de algum modo) às realidades da vida; o prazer, para resumir, transformara-se em negócio; e isto não apenas para o sonhador, mas para as criaturinhas que habitavam seu teatro. Elas compreenderam essa mudança tão bem quanto ele próprio. Quando ele se deitava e fazia seus preparativos para dormir, já não pensava em divertimento, mas em produzir histórias publicáveis que lhe dessem algum lucro; e assim que começava a cochilar no leito suas criaturinhas entravam em atividade imbuídas dos mesmos propósitos mercantis (p. 115).
Indagando-se sobre as tais criaturinhas, conclui que elas mantêm estreita relação com o sonhador, participando das mesmas preocupações financeiras, compartilhando de sua educação, de sua habilidade em arquitetar histórias e dosar emoções, mas reconhece um talento maior nesses seres oníricos:
Quanto às criaturinhas, nada posso dizer além de que eles são os meus brownies, e Deus os abençoe! – e são eles que fazem metade do meu trabalho enquanto durmo, e, provavelmente, também fazem todo o restante, quando estou desperto e julgo que estou inventando coisas sozinho (p. 121).
E Stevenson continua o relato dessa inusitada colaboração reconhecendo sua participação consciente e ativa na obra:
[...] de sorte que, no fim das contas, o conjunto dos meus livros publicados deve ser o produto do trabalho solitário dos meus brownies, de algum demônio familiar, algum colaborador invisível, que eu mantenho trancafiado em algum quarto dos fundos, enquanto recebo todos os louvores e ele apenas um pequeno pedaço (que não posso deixar de conceder-lhe) do bolo. Sou um excelente conselheiro, [...], sei suprimir, sei recortar, sei revestir o conjunto com as melhores palavras e frases que sou capaz de encontrar e de produzir; sou também o que segura a pena; e sou o que senta à mesa, que é de todas as partes a pior; e quando tudo está pronto sou eu que preparo o manuscrito e providencio seu registro; de modo que, no cômputo geral, tenho certos direitos a reivindicar nos lucros do empreendimento, embora não tanto quanto os que de fato exerço (p. 121-122).
O nome escolhido pelo autor para personificar sua vida onírica revela a postura lúdica e receptiva com os sonhos e total afinidade com a tradição oral das histórias, lendas e mitos. No folclore escocês, brownies são pequenos seres, espíritos benignos tipo elfos ou duendes, que habitam a casa e saem à noite auxiliando no trabalho doméstico, especialmente quando acolhidos e bem tratados, em troca de leite ou outros alimentos. Também são descritos como sensíveis, sujeitos a travessuras e facilmente magoáveis, sendo que em situações de muitas mágoas e maus-tratos podem se rebelar vindo a se tornar perigosos para seus donos humanos ou mesmo abandoná-los (BROWNIE, 2023).
Ao tratar de brownies, “o pequeno povo do sonho”, Stevenson expressa sua atitude amistosa com o mundo onírico inconsciente, o que propicia uma fluência de comunicação consciente e inconsciente fértil e criativa. Vale ressaltar o tom de brincadeira e autoironia do escritor ao falar de sua dúvida em relação à própria autoria, mas também a relação de humildade e espanto diante da experiência com os mistérios da criatividade e da psique. Uma relação de colaboração é cultivada entre a consciência do escritor e a criação onírica, inconsciente, por ele nomeada como “demônio familiar”, “colaborador invisível”, os seus brownies. Com a curiosidade aguçada pelo próprio processo criativo, permite-se questionar a autoria de suas histórias, reconhecendo nos brownies a responsabilidade pelas ideias mais originais, sendo ele mero executor. Mas também reconhece seus créditos na colaboração necessária entre esses seres familiares e criativos que o habitam, sua produção inconsciente, e seu eu consciente que observa, cultiva, recolhe e trabalha literariamente com os frutos de sua colheita.
Stevenson, Myers e a multiplicidade da consciência
Stevenson estava imerso no campo cultural de discussões sobre sonhos e experiências de desdobramento de consciência que fervia naquele final de século XIX, com pesquisas e publicações que fizeram parte e deram substrato para desenvolvimentos teóricos futuros de Freud e de Jung, como amplamente detalhado por Henri F. Ellenberger em “The Discovery of the Unconscious: The History and Evolution of Dynamic Psychiatry” e por Sonu Shandasani em “Jung e a Construção da Psicologia Moderna – O Sonho de uma Ciência”.
Frederic William Henry Myers (1843-1901) foi um interlocutor especial para Stevenson, partilharam interesses e trocaram cartas desde a publicação de “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. Ensaísta, crítico literário e poeta, um dos fundadores da Society of Psychical Research, Myers tornou-se um importante estudioso e pesquisador de psicologia, especialmente nas associações da pesquisa de fenômenos oníricos com espiritualidade, campo da consciência e telepatia. Compreendia o sonho como fonte capaz de maior veracidade nas representações e revelações da psique e como fenômeno que ocorria dia e noite num continuum, uma “consciência subliminar” existindo simultaneamente à consciência supraliminar, a da vigília (SHANDASANI, 2005). Jung refere-se a Myers em alguns de seus textos2, e o conceito de consciência subliminar é citado indiretamente por duas vezes no texto “Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico”: uma nota de rodapé traz citação extensa de W. James que, por sua vez, valoriza uma grande descoberta de 1886 (a concepção de consciência subliminar de Myers)3; em outro trecho do mesmo texto, ao tecer considerações sobre a fluidez na relação consciência e inconsciente, Jung cita a denominação de W. James do inconsciente como “franja da consciência” e, numa outra nota de rodapé, Myers é citado por W. James, que identificava similaridades neste seu conceito com a noção de consciência subliminar de Myers.
Sonu Shandasani coloca em destaque a obra de Myers no contexto histórico, para ele significativa o suficiente para reformular “a tarefa da psicologia, enquanto exploração do subliminar: a psicologia da consciência deveria ser reconstruída a partir dessa base” (SHANDASANI, 2005, p. 138). Em outro ensaio, Myers ultrapassa a perspectiva de dualidade para uma multiplicidade da consciência, que denomina de “personalidade multiplex” e em perspectiva muito próxima ao que Jung posteriormente desenvolveu, defende a ideia de que tais estados de dissolução do eu nem sempre resultavam em piora e patologias graves, como também provocavam melhoras: “a inconstante duna de areia do nosso ser pode se recompor de repente numa estrutura mais firme e mais bem equilibrada” (MYERS, 2011).
Certamente o caldeirão de ideias fervia naquele final de século XIX: 1886 foi um ano fértil para Myers e Stevenson, ambos lançaram obras importantes, em suas respectivas áreas, abordando o caráter mutável da personalidade humana. Stevenson publicou “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde” e Myers, o capítulo “Notas sobre uma Proposta de Modelo de Interação Psíquica”, avaliado por Sonu Shandasani como um importante apêndice do livro Phantasms of the Living (Fantasmas dos Vivos) publicado em conjunto pelos pesquisadores britânicos Frederic Myers, Edmund Gurney e Frank Podmore.
É possível imaginar o caloroso encontro entre Myers e Stevenson, aquecido pela afinidade de interesses e confiança externada no compartilhamento de experiências pessoais que Stevenson relata em sua carta à Myers intitulada “Esse outro Eu, meu companheiro” e nas ideias desenvolvidas no ensaio “Um Capítulo sobre o Sonho”. Ocorre-me que outro fato curioso une paralelamente os dois, uma ocorrência significativa: a ligação de Stevenson e Myers com os irmãos William e Henry James. Como referido acima nas citações de Jung, William James, o renomado filósofo e psicólogo demonstrou publicamente seu grande apreço pela obra de Myers. Seu irmão, o escritor Henry James, autor de contos e romances como “A Fera na Selva”, “Os Amigos dos Amigos”, “Pelos Olhos de Maisie”, “Os Bostonianos”, “A outra Volta do Parafuso”, entre outros, foi, por sua vez, grande amigo e admirador de Stevenson. No Brasil a editora Rocco publicou o livro “A Aventura do Estilo: Ensaios e correspondência de Henry James e Robert Louis Stevenson”. Os ensaios e a troca epistolar saborosa evidenciam a grande estima nutrida por ambos e a paixão comum pelo ofício da literatura.
Sonhos e processo criativo
Tão antigo quanto o fascínio pela experiência onírica talvez seja a expressão desta em alguma forma de arte, sendo que a relação arte e sonho há muito instiga pesquisadores, artistas e curiosos, resultando em vasto material sobre o tema.
Stevenson revela no ensaio “Um Capítulo sobre o Sonho” alguns detalhes do sonho inspirador e de sua parceria com a imaginação onírica. Conta que há muito tempo vinha trabalhando uma história com o tema e que tentava encontrar uma forma: “um corpo, um veículo, para aquela poderosa sensação da duplicidade do ser humano, que às vezes se apossa do espírito de toda criatura pensante” (STEVENSON, 2011, p. 122). Num momento de dificuldades financeiras, em que a pressão por escrever tornou-se maior, teve o sonho que gerou o livro, com poucas cenas, como descreve:
Durante dois dias maltratei meu cérebro tentando extrair dele um enredo de qualquer natureza; e na segunda noite sonhei com a cena da janela, e depois, com outra cena, dividida em duas, em que Hyde, perseguido por um crime qualquer, bebe a poção e sofre a transformação diante de testemunhas. Todo o restante escrevi desperto, e consciente, embora eu creia perceber nele o traço característico dos meus Brownies. O significado da história pertence portanto a mim, [...], sou o responsável pela maior parte da moralidade do conto. [...] Também é meu o cenário, e são minhas as personagens. Tudo o que me foi dado foi um conjunto de três cenas, e a idéia central de uma mudança voluntária que passa a ser involuntária (p.122).
Como o autor coloca, a criação de histórias era também um veículo para expressar temas e questões humanas que o intrigavam e a criação literária era seu foco no trabalho com os sonhos. O drama da dualidade humana encontra “corpo e veículo” na história de Dr. Jekyll e seu duplo sombrio Mr. Hyde, narrada pelo autor em fragmentos narrativos com diversos pontos de vista e no capítulo final, intitulado “A Confissão Completa de Dr. Jekyll”, o drama íntimo do Dr. Jekyll é revelado num autoexame impiedoso diante de sua derrota e rendição final. Cidadão tipicamente vitoriano, aparentemente respeitável e bondoso, Dr. Jekyll reconhece na humanidade e em si próprio a maldição de duas naturezas opostas, e arrisca a previsão de que serão mais que duas pois futuramente “o homem acabará sendo reconhecido como uma assembleia de inquilinos múltiplos, incongruentes e autônomos” (p. 86). Em sua arrogante e ambiciosa tentativa de separar totalmente o bem e o mal, o justo e o injusto, visando desfrutar de ambos e escapar do conflito moral e da tortura que seria suportar essa tensão de opostos, cria uma tintura que acaba por liberar e o transformar no totalmente mal e perverso Mr. Hyde. Com o domínio de Mr. Hyde e a consequente perda de controle de Dr. Jekyll, este vê-se finalmente como “um velho Henry Jekyll, aquele misto incongruente que eu já perdera as esperanças de moldar e aperfeiçoar” (p. 90). Só então assume que sua arrogância e aspirações desmedidas foram agentes desencadeantes da monstruosidade que gerou em si “criando uma divisão ainda mais profunda do que na maioria dos homens, afastou de mim a parte sã e a parte doentia que dividem e formam a natureza dual do ser humano” (p. 85).
A cena onírica da janela revelada por Stevenson no ensaio foi escrita como um curto capítulo do livro, em que Mr. Utterson, advogado e amigo de Dr. Jekyll, em passeio com Mr. Enfield, passam pela porta dos fundos da casa de Dr. Jekyll e avistando o médico sentado próximo à janela entreaberta param para conversar com ele. O médico é descrito “com uma expressão de infinita tristeza, como um prisioneiro sem esperanças” e a conversa dura pouco, pois logo o sorriso breve e amistoso do médico é varrido por uma expressão de terror e desespero, a janela é fechada com violência e os dois cavalheiros visitantes saem dali assombrados, em silêncio. Intitulado “O Incidente da Janela”, o capítulo traz um movimento anterior à queda final, com um Dr. Jekyll aprisionado e desesperançado, ainda se permitindo olhar pela janela entreaberta e fazer algum contato e volta à sua condição anterior, mas sendo violentamente dominado por Mr. Hyde, numa transformação aterrorizante para ele mesmo e para os que o veem.
Detive-me na cena da janela, no drama do Dr. Jekyll aprisionado pelo temor de revelar seu duplo criminoso e dominado pela transformação involuntária. O capítulo assemelha-se a um pesadelo, transmite o conteúdo junto a uma atmosfera própria de terror e estranhamento. Sabemos, pelo ensaio do autor, a confirmação de que a cena veio do sonho, e do sonho ao texto temos uma narrativa curta, duas páginas apenas, uma cena inicialmente prosaica, final abrupto e um clima gélido de silêncio e terror que atinge personagens, escapa das páginas e continua nos leitores, como um pesadelo escapa do sono atingindo a vigília. E neste caso, a atmosfera onírica impregnando a estética e forma da obra, provocando um efeito que também comunica e expressa o drama. As outras cenas sonhadas trazem a ideia da perseguição pelo crime, da poção como meio de transformação e do segredo da transformação sendo revelado. E a ideia central, como reconhece Stevenson – a transformação antes voluntária que passa a ser involuntária.
O trabalho literário de Stevenson em parceria com seus brownies, desde trama, cenário, estilo e atmosfera, traz a questão do conflito humano em sua natureza dupla e múltipla, apontam que esse conflito vai emergir, insinuando forças que ultrapassam a vontade consciente, um aspecto visionário do autor antecipando questões importantes nas reflexões sobre a condição humana. Algumas leituras sobre Jekyll e Hyde apontam, em chave interpretativa junguiana, a tensão entre opostos e o arquétipo da sombra e do mal (SANFORD, 2005). Visto que a leitura simbólica de “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde” ultrapassa o campo de atenção deste artigo, ressalto na obra seu enfoque do drama da identidade em duplas ou múltiplas expressões, a tensão entre luz e sombra como um dos aspectos desse campo, o horror e a destruição que a arrogância do ego e o racionalismo desmedido do Dr. Jekyll pode impingir a si mesmo e à sociedade, seja pela repressão extrema ou pela cisão.
Retorno ao ensaio “Um Capítulo sobre o Sonho” e ao tema da identidade presente no ensaio como interesse do autor, com suas indagações sobre o “fio de memória” composto de imagens vividas e imagens sonhadas e que costura nossa identidade. Há no autor o reconhecimento de uma identidade em construção, aberta aos mistérios e tensões. Penso na importância dessa atitude mais flexível e o quanto uma consciência receptiva e capaz de se indagar, conversar consigo mesmo e negociar é base importante para o suporte de conflitos e tensões. De forma espontânea, intuitiva talvez, Stevenson tem uma atitude oposta à de seu personagem Dr. Jekyll, não reprime nem exila seus brownies, ao contrário, os convoca para uma diligente colaboração.
A imaginativa “teoria” proposta por Stevenson em “Um Capítulo sobre o Sonho”, de que suas histórias são criadas por brownies, entes folclóricos que habitam suas noites em um teatro da mente, tem paralelismo significativo com a compreensão junguiana de criatividade literária e poética e com sua concepção de complexo e com a compreensão do sonho como narrativa, o drama onírico.
A atuação dos brownies oníricos descritos por Stevenson ilustra o que Jung denominou de complexo criativo autônomo da psique e de um modo visionário de criar, mais próximo do inconsciente coletivo. Tais experiências visionárias de criação se impõem ao artista, fazem emergir angústias noturnas, sonhos, inquietações “que despertam nos recantos obscuros da alma” (JUNG, 1991, p. 89, par. 143). Para Jung o momento de concepção de uma obra de arte assemelha-se a algo com vida própria, como “uma árvore que surge do solo do qual extrai seu alimento” (JUNG, 1991, p. 67 par. 122), uma região da psique, até então inconsciente, que é ativada, reanimada e se desenvolve, insubmissa ao controle da consciência. É o que denomina de complexo autônomo criativo. Nesse mesmo texto Jung tece considerações que permanecem relevantes sobre as aproximações entre loucura e arte. Para ele, tais processos criativos podem se assemelhar a condições patológicas, mas considerava que a existência de complexos autônomos eram características normais da psique, e que apenas em manifestações frequentes, intensas e incômodas poderiam evidenciar sofrimento e doença.
O texto “Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte Poética” surgiu de uma palestra realizada por Jung na Sociedade de Língua e Literatura Alemãs em maio de 1922, em Zurique. Nesse texto ele deixa claro que seu campo de interesse e observação psicológica é a dinâmica psíquica da criação artística e não a psicologia pessoal do autor. Este texto, junto ao ensaio “Psicologia e Poesia”, reúne importantes ideias de Jung sobre criação literária. Ambos são textos curtos, cujo tema central é a criação poética, mas Jung também tece considerações sobre criatividade e arte, criatividade e loucura e sobre o papel social e terapêutico da arte, preservando sua ampla perspectiva de compreensão da psique humana.
Em “Um Capítulo sobre o Sonho”, Stevenson testemunha que sua criação onírica inconsciente não só é reconhecida pela consciência como ocorria em feliz comunhão com o modo mais consciente de criar, ou em termos junguianos, uma união entre modo psicológico e modo visionário de criação. Sua obra é o produto de um trabalho colaborativo entre mundo diurno e noturno, demonstrando total disponibilidade e compromisso do autor para com sua arte e com os mistérios do inconsciente.
Curiosamente Jung também aludiu a seres folclóricos e falou de sua gente pequenininha, os “lares e penates”, ao se referir aos complexos e seus efeitos nos sonhos e sua presença nos clássicos literários:
Na verdade, os complexos constituem objetos da experiência interior e não podem ser encontrados em plena luz do dia, na rua ou em praças públicas. [...] Eles são os Lares e Penates que nos aguardam à beira da lareira e cuja paz é perigoso enaltecer. São o gentle folk que tanto perturbam nossas noites com suas travessuras. [...] os complexos não são de natureza mórbida, mas manifestações vitais próprias da psique, seja esta diferenciada ou primitiva. Por isso encontramos traços inegáveis de complexos em todos os povos e em todas as épocas. Os monumentos literários mais antigos revelam sua presença (1984, p. 103, par. 209).
Ao tratar complexos emocionais como “entidades” com funcionamento autônomo na psique, Jung introduz a ideia de personificação no campo da psicologia profunda, inovando a compreensão da dinâmica e autonomia desses conteúdos inconscientes como também o acesso e abordagem na clínica. O método de imaginação ativa proposto por Jung implica o reconhecimento, a personificação e o diálogo com as imagens que surgem do inconsciente, trazendo para a psicologia um método criativo, provavelmente comum à Stevenson, e outros escritores e artistas, mas na época inovador no campo da psicologia clínica. Tanto na criação literária e outras formas de criação artística, quanto na clínica psicológica, podemos afirmar que alguma colaboração consciente-inconsciente é dado fundamental.
Comunicação entre mundos
De certa forma estamos falando de uma comunicação e colaboração entre mundos diversos: o mundo desperto dos humanos e o noturno dos elfos na teoria onírica de Stevenson, do mundo da consciência e do inconsciente coletivo na teoria de Jung. Nesse fio de memórias, oníricas ou não, o real e o falso ganham outra dimensão, a dimensão intermediária da realidade psíquica, a realidade da alma. Nesse estado, em que sabemos que o vivido no sonho ganha vida em nós, sonhamos e somos sonhados. Algo análogo acontece com a criança quando brinca, que sabe que aquele universo criado é e não é ao mesmo tempo. Semelhante também ao que ocorre quando lemos um romance ou mergulhamos num filme, e vivemos e sofremos com os personagens e habitamos aquele mundo, mesmo sabendo que é ficção.
A qualidade de autonomia e insubordinação aos critérios conscientes é muitas vezes fator de rejeição, temor ou crítica pela consciência. Também é frequente a sensação incômoda de não ser o verdadeiro autor da criação, experiência comum encontrada em depoimentos ou ensaios de grandes escritores. O escritor Julio Cortázar, por exemplo, sentia-se como “médium” ao escrever seus contos (COELHO, 2020) e defendia uma atitude receptiva, disponível para o jogo, entendendo o lúdico como forma de condução humana pela vida afora e que habitar um mundo lúdico significava ser “colocado dentro de um mundo combinatório, de invenção combinatória, que está continuamente criando formas novas” (apud PREGO, 1991, p.126). Stevenson expressa esse aspecto lúdico em seu ensaio e descreve suas pequenas criaturas oníricas “como crianças que tivessem entrado numa casa e a encontrado deserta, não como atores experientes representando uma peça de verdade” (STEVENSON, 2011, p. 115).
Criar narrativas, ato tão próprio do fazer literário, é um ponto de convergência da literatura com a psicologia profunda se pensarmos que a conceituação do inconsciente acontece quando Freud abandona a teoria do trauma com suas conexões factuais objetivas e privilegia a capacidade de fantasiar. Independentemente de ser realidade objetiva, trabalha-se com a realidade da psique, reconhecendo o poder da fantasia e da imaginação. Nesse contexto, Jung compreende o sonho como uma narrativa com estrutura dramática e considera essas fases da estrutura narrativa como forma de aproximação e ampliação da compreensão do sonho, dividindo o drama onírico em fases: 1ª fase – exposição (lugar, personagens, situação inicial); 2ª fase – desenvolvimento da ação; 3ª fase – culminação da peripécia; e a 4ª fase, que pode faltar – lise, solução ou resultado (JUNG, 1984). Jung desenvolve a ideia de que essa mesma potência que cria sonhos e cria fabulações doentias também pode criar sanidade. A realidade da psique é, portanto, matéria-prima no trabalho com a psique e o sonho um espaço privilegiado de experiência da habilidade humana de fantasiar, produzir imagens, narrativas e habitar “outros mundos”.
Se para o escritor, esse processo criativo desencadeia a realização da obra literária, como é isso na vida de pessoas não comprometidas com uma proposta artística? A meta do trabalho psicológico é de se encontrar, se criar, o que Jung chamou de trabalho de individuação realizado através do diálogo mediado por figuras da imaginação, seja com emoções, sofrimentos e angústias, seja com experiências oníricas, imagens de memória ou devaneio. Entendo a clínica analítica como um trabalho criativo em si, em que a individuação se faz na tessitura do vínculo e de retalhos sonhados, lembrados, revividos, reinventados e reeditados para o momento presente, reciclando a textura da existência com um sentido profundo de alma.
É o resgate de uma atitude simbólica diante da vida e das experiências. Viver o símbolo e habitar um mundo simbólico traz em si conexão e intimidade com a vida inconsciente, por natureza criativa. Nossa dupla vida, noturna e diurna, onírica e de vigília, é e pode ser mediadora de um processo criativo extremamente valioso, seja como inspiração para a vida seja para a criação literária, como no caso de Robert Louis Stevenson, ou Tusitala, o contador de histórias, nome que recebeu dos nativos de Samoa, onde viveu seus últimos anos e foi enterrado.
Considerações finais
A paixão e dedicação de Stevenson pelo ofício literário ressoa em seus livros, hoje clássicos. É possível que sua paixão pelos sonhos tenha sido de grande influência nos rumos de sua vida e identidade, um homem de saúde frágil que não se furtou aos desafios da criação literária.
O enorme sucesso de “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde” atesta a dimensão literária do autor. A história foi rapidamente adaptada para teatro e cinema, com diversas versões cinematográficas desde os primórdios do cinema. Tamanha popularidade faz considerar a dimensão arquetípica da obra que se tornou mito literário, com a trama do médico e do monstro conhecida parcialmente por muitos que não leram a obra. Jung considera que o segredo da ação da arte está na ativação e atualização de imagens arquetípicas e na elaboração da obra de arte que cumpre então um significado social na contínua educação do espírito da época (JUNG, 1991, par. 130). Ao elaborar o drama de Jekyll e Hyde em uma história ainda hoje viva, lida e readaptada em várias formas de expressão artística, Stevenson continua contribuindo com a consciência coletiva, nos lembrando de nossa condição dividida, mista, falível, imperfeita, sempre em construção.
Robert Louis Stevenson é dos raros escritores que, a parte o sucesso de público e de vendas, ainda hoje reúne grandes nomes da literatura como seus admiradores4. Entre os literatos entusiastas de Stevenson encontramos o acima mencionado Henry James, que não poupou elogios ao escritor; Vladimir Nabokov ministrou aulas sobre “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, com direito a desenhos e esquemas feitos por ele para ilustrar o que considerou um “fenômeno estilístico”, que se lê “como quem bebe um bom vinho”(NABOKOV, 2011, p. 196) e Jorge Luis Borges, que dizia que ler Stevenson é uma das formas de felicidade.
Compartilho plenamente essa impressão, os textos de Stevenson irradiam algo mágico e prazeroso. Felizes seus leitores, entre os quais me incluo, que podemos saborear seus livros, frutos do trabalho com sua colheita onírica.