Introdução
É da ordem do insólito, do mágico e do inesperado o que trata este conto. “A Autoestrada do Sul” é publicado em 1966, no livro “Todos os Fogos, o Fogo”. Nesta obra, são abordadas questões muito atuais como o estabelecimento de fortes, mas efêmeros vínculos sociais, sua importância na constituição tanto da identidade pessoal quanto das “invisíveis” redes sociais e a dorou estranhamento que surge quando se dá sua dissolução.
O primeiro encontro com este conto aconteceu há mais de 40 anos e, apesar desse encontro único, real e objetivo, por assim dizer, ele jamais saiu de minha vida. A partir dessa leitura, a cada novo congestionamento, a cada estrada paralisada, reencontrava a moça do Dauphine, o engenheiro do 404, e as freirinhas do 2HP. Olhava, ainda olho, curiosa os ocupantes dos automóveis vizinhos, tentando adivinhar, a partir do carro que dirigem, de sua origem (evidenciada por suas placas), dos objetos que carregam e de seus companheiros de viagem, quem são, para onde vão e como fazem suas viagens.
E, numa primeira aproximação ao tema proponho que a leitura do conto tanto tempo atrás seja já um primeiro encontro, por assim dizer, efêmero. Efêmero em sua duração e singularidade, mas absolutamente duradouro ao deixar marcas profundas em mim, leitora. Que impacto foi esse que o encontro com o conto provocou? Um único encontro, uma única leitura e – entre todos os contos do livro – uma única lembrança. O conto me encantou, permaneceu registrado em mim como um feitiço esperando a hora de ser novamente revelado. E ele era sim revelado a cada novo congestionamento, a cada nova estrada imobilizada.
Como seria se? Que vida era essa que acontecia no carro ao lado? Quantas histórias estariam neste mesmo momento, acontecendo em cada um dos automóveis parados ao longo da autoestrada, ao meu lado?
Na verdade, essa mesma sensação é experimentada em qualquer tipo de situação que envolva um relacionamento por assim dizer compulsório, por tempo determinado: longas viagens de avião, internações hospitalares, intermináveis filas e horas de espera em serviços públicos. Encontros se dão e acabam rapidamente, sem que tenhamos sobre eles o menor controle.
Serão esses encontros menores, por que breves e circunscritos, por que cotidianos? Estarão fadados ao esquecimento? Parece difícil conferir substância e importância ao sujeito ao meu lado, é desafiador sair do meu automóvel, da minha cadeira, da minha pele. Dizia Cortázar: “Mi noción de fantástico es una noción que finalmente no es diferente de la noción del realismo para mí. Porque la realidad es una realidad donde lo fantástico y lo real se entrecruzan cotidianamente” (1977).
O conto e seus movimentos
O conto começa com um colapso. Algo fora da ordem aconteceu e abriu uma nova camada de funcionamento. A possibilidade de transformação a partir do reconhecimento ou mobilização de aspectos diferentes dos habituais. Vivências pontuais, profundas consteladas a partir de encontros efêmeros. E proponho um poema para entrar no conto:
Cota Zero
Stop,
A vida parou
Ou foi o automóvel? (ANDRADE, 1978, p. 23).
Ao parar o automóvel, a vida que acontecia de forma contida dentro dele foi colocada em movimento. Stop, o automóvel parou e a vida nunca mais foi a mesma.
No começo, a moça do Dauphine havia insistido em fazer a contagem do tempo, se bem que, o engenheiro do Peugeot 404 pouco estivesse ligando. Qualquer pessoa poderia olhar no relógio, mas era como se esse tempo, amarrado ao pulso direito ou ao bip bip do rádio, medisse outra coisa fora do tempo dos que não fizeram a estupidez de voltar a Paris pela auto estrada do sul, num domingo à tarde... (CORTÁZAR, 1969, p. 3).
A autoestrada é ao mesmo tempo cenário e fio condutor, função mesmo da existência de uma estrada. Pensando com Fernando Pessoa, propomos a existência de um “processo divino que faz existir a estrada” (1981, p. 233) No entanto, o surpreendente é a paralisação total ou melhor a paralisação do movimento sugerido pela estrada no momento em que acontece o congestionamento. E a questão do tempo, então, se coloca na trama fantástica proposta por Cortázar desde o início do conto e, apesar de sua importância, veremos que não é possível avaliar qual a duração do congestionamento ou qual a duração do conto. “O tempo é uma realidade encerrada no instante e suspensa entre dois nadas” (BACHELARD, 2009, p. 17).
A estrada e aquela situação instauram algo da ordem da novidade, provocam uma alteração na vida daquelas pessoas, o normal e o cotidiano estão, a partir de agora, profundamente abalados. O escritor inaugura aqui a sensação de estranhamento, algo de diferente fez sua entrada na vida, que nunca mais voltará a ser a mesma. Como se a própria noção de ego com suas funções mais racionais fosse neste momento colocada em xeque: há um ego ativo, consciente. Ego que dirige um automóvel, com um objetivo definido voltando a Paris, pela autoestrada do sul, que domina a máquina que o transporta e acaba por o definir, ego que, nesta movimentação, exerce sua autonomia de forma automática.
Até que o congestionamento se dá e com ele a sensação contraditória de enclausuramento. E, neste espaço, presos a uma máquina, qual armadura moderna, concebida para correr, esse sujeito/ego é confrontado. O isolamento vivido, de forma normal e protegida, dentro do automóvel, movimentando-se em direção a Paris foi forçosamente rompido pelo congestionamento. Uma autoestrada cheia de automóveis na volta do final de semana deixa de ser ou ter seu movimento automático e passa a ser cenário ou espaço de relacionamento, de transformação?
O calor de agosto crescia, a esse tempo, do nível dos pneumáticos tornando a imobilidade ainda mais enervante. Tudo era cheiro de gasolina, gritos absurdos dos rapazolas do Simca, brilho do sol reluzindo nos vidros e cromados e, por cúmulo, a sensação contraditória de enclausuramento em plena selva de máquinas concebidas para correr (CORTÁZAR, 1969, p. 4).
A partir do momento em que os automóveis param, a vida que existe e acontece dentro deles é liberada. Aos poucos, os motoristas e seus acompanhantes passam a se movimentar, saem de seus veículos imóveis e passam a ser eles mesmos protagonistas. Como se o ego, nomeado pelo automóvel que dirige, seja a partir de então, obrigado a se abrir, ampliar seu espaço de atuação medido agora não por distâncias objetivas, mas por aproximações subjetivas.
Escolher um automóvel é sempre exercício de afirmação. Sabemos o quanto os carros que dirigimos representam aspectos da persona, no sentido daquelas características com as quais escolhemos nos apresentar ao mundo. Pensando nestes aspectos, o conto traz a necessidade de sair da persona (automóvel, armadura) com a qual cada um dos egos/sujeitos do conto se identifica e, em um processo de assimilação de aspectos inconscientes, ampliar sua autonomia e alcance.
Automóveis imobilizados, protagonistas do movimento da autoestrada do sul, dão lugar a seus ocupantes, agora livres, mas ainda por eles nomeados. O automóvel imóvel, sai da condição de autômato para a de quase um sujeito, passa a ser qualidade e ponto de referência do sujeito (ou sujeitos) que o habitam. E, cada um dos protagonistas faz esse processo à sua própria maneira.
E o engenheiro do 404, personagem principal e voz do conto, começa a conversar com todos a sua volta, num primeiro momento utilizando a forma habitual de conversa “boba”, superficial, aquela destinada a q uebrar o gelo, estabelecer um primeiro contato, iniciar algum tipo de interação.
Ninguém duvidava que um acidente muito grave tivesse acontecido naquela área, única explicação para aquela lentidão incrível. E, com isso, o governo, o calor, os impostos, o tráfego, um assunto atrás do outro, três metros, outro lugar comum, cinco metros, uma frase sentenciosa, ou uma maldição contida (CORTÁZAR, 1969, p. 5).
E então, como sempre, a conversa com o desconhecido ao meu lado começa da mesma maneira, o tempo, a demora, a espera, o que faz você aqui? Formas de aproximação quase protocolares, estabelecimento de contato mínimo sem aprofundamentos. De verdade, não quero saber nada a respeito do sujeito ao meu lado, ao menos nada que coloque em risco, ou em cheque, meu estado natural. A conversa boba tem a função de dar conta de nossa necessidade de contato, afinal, é um outro ser humano aqui ao meu lado: estabeleço algum contato, expresso um pouco de mim mesmo e me separo, sigo meu caminho. Não há necessidade ou espaço ou para uma troca verdadeira ou para uma transformação.
No conto, no congestionamento, depois de muito tempo as “conversas bobas” não são mais suficientes, necessidades básicas de sobrevivência impelem a outro tipo de contato. O que fazer? Temos comida? Como passar a noite? E as pessoas são quase que forçadas a entrar verdadeiramente em contato. Quando a própria existência está em risco, quando o funcionamento automático habitual é rompido, então o estabelecimento de vínculos de relacionamento, a criação de redes sociais, o olhar para o outro a surge como a única saída, única possibilidade. E aqui, o ocupante do 404, protagonista do conto, identificado com sua persona de engenheiro, começa a exercer um papel organizador, racional.
A terceira fila do lado de fora deixava de interessar-lhe, porq ue teria que afastar-se perigosamente do 404; enxergava cores, formas, Mercedes Benz, ID, 4R.... o catálogo completo. À esquerda, sobre a pista do lado oposto, estendia-se um outro matagal interminável de Renault, Anglia, Peugeot, Porsche, Volvo... (CORTÁZAR, 1969, p. 6).
No conto, os grupos de pertencimento se dão por acaso – um acaso regido pela localização no tempo e espaço: os 12 automóveis que “se mexiam praticamente em bloco, como se um guarda invisível, no fundo da autoestrada, ordenasse avançar simultaneamente sem que ninguém pudesse levar vantagem”. E, ao mesmo tempo, a partir já dessa localização, tendo como ponto de partida o lugar de meu automóvel na autoestrada, começam a se estabelecer limites de segurança. Até onde posso ir? O que ê que me interessa? O que é confortável? Começo a me relacionar com o meu próximo, com meu grupo; o distante, o de fora pode ser ameaçador. Começo a ampliara noção e os limites do ego, do que é meu e do que é outro e do outro.
Somos impelidos a nos transformar. Os aspectos da persona deste ego/sujeito terão de ser revistos e características desconhecidas abarcadas. Cada uma das figuras do conto é desafiada a partir da inusitada paralisação a se rever. E cada um faz isso à sua própria maneira, a partir de suas possibilidades internas.
O insólito neste conto é introduzido como uma total inversão de sentidos. O que era autoestrada – lugar máximo de possibilidade de movimentação – se transforma em um imenso mar de automóveis paralisados. E o que era a imobilidade de um grande congestionamento torna-se então a fluidez de indivíduos em relação.
A parte esses avanços mínimos, era tão pouco o que se podia fazer que as horas acabavam por se sobrepor, por ser sempre a mesma na lembrança; em determinado momento, o engenheiro pensou em riscar esse dia de sua agenda, e conteve uma risada, mas pouco adiante, quando começaram os cálculos contraditórios das freiras, dos homens do Taunus e da moça do Dauphine, viu-se que teria sido conveniente fazer melhor a conta (CORTÁZAR, 1969, p. 9).
Um tempo, por assim dizer, paralisado ou suspenso, é acompanhado da sensação de infinito, quase uma cápsula temporal. Mas no conto, como na vida, o real se dá e o movimento, literalmente, pode ser alterado. Pequenas movimentações, em oposição ao avanço feérico dos automóveis na estrada, dão lugar a processos mais sutis. Ao sair do automóvel e exercer sua individualidade fora dele, os personagens são levados ao estabelecimento de novas relações e, com isso, a uma ampliação da consciência.
Um grupo começa a se constituir a partir das necessidades de sobrevivência dos ocupantes daqueles 12 automóveis que estão próximos. Interessante pensar que a necessidade de organização do grupo surge a partir da fala dos camponeses que têm provisões e demandam um comando, uma organização superior. Importante confiar em alguém, entregar o poder, submeter-se a um chefe, um organizador. Terei assim minha responsabilidade diminuída? Entregarei ao outro o controle de minha vida? De que instâncias do sujeito falamos aq ui nós? Há um ego/sujeito identificado com o automóvel que dirige, desafiado neste momento a exercer um novo tipo de funcionamento. Esse movimento se dá em um processo contínuo de ir e vir, entrar no automóvel, ficar na persona e sair, relacionar-se, amplificar o alcance do funcionamento ampliando a consciência. E, mais uma vez, como na vida real, cada um dos protagonistas do conto o faz à sua própria maneira, a partir de sua própria equação pessoal.
Para grande surpresa sua, os camponeses mostraram-se muito amáveis; compreendiam que em semelhante situação era necessária a ajuda mútua, e achavam que, se alguém se encarregasse de comandar o grupo (a mulher fazia um gesto circular com a mão abrangendo a dúzia de automóveis que os cercava) não passariam privações até chegarem em Paris (CORTÁZAR, 1969, p. 9).
Aos poucos, vamos saber que, assim como o grupo de 12 veículos, protagonistas de nosso conto, outros grupos são constituídos ao longo da estrada. Cada um deles tem o seu representante e assuntos de interesse maior são discutidos entre os comandantes dos grupos vizinhos. Grupos pequenos dentro de grupos maiores, dentro de grupos cada vez maiores, dentro de uma estrada paralisada. E perdemos muitas vezes a noção de totalidade, de pertencimento. A vida instaurada a partir do congestionamento oferece a possibilidade desse olhar. Do individual ao coletivo, do microcosmo ao macrocosmo, a vida em grupo acontecendo ao mesmo tempo em que a vida interior, de cada um acontece, dentro e fora, juntos e separados.
Tentativas de favorecimento ilícito são atacadas impiedosamente, o comando ê soberano e apaziguador, favorece estratégias de sobrevivência na medida em que prioriza o coletivo. Daqui por diante a máxima ê: um portodos e todos por um. O individual a serviço do coletivo, o eu a serviço de algo maior. “As mulheres improvisavam aos poucos suas atividades samaritanas, indo, de um automóvel a outro, ocupando-se das crianças para que os homens ficassem mais livres...” (CORTÁZAR, 1969, p. 13).
O conto é estruturado a partir de um funcionamento mais patriarcal, egos identificados com aspectos mais tipificados do comportamento masculino/feminino. Mulheres repetem aqui os papéis mais antigos e estereotipados, ficando com o cuidado da prole, dos mais velhos e dos doentes, atividades que Cortázar chama de “samaritanas”. Já os homens vão à caça, saem em busca de alimento, garantindo a ordem, a subsistência e a segurança do grupo. Relações de comando, veremos, também são exercidas, no conto, pelos homens, não à toa a voz do conto ê a do engenheiro do 404.
Aos poucos aquele grupo vai se constituindo e reproduzindo relações sociais: uma ambulância é improvisada no 404 com materiais de tendas de campanha dos rapazes do Simca; a velhinha que passa mal é colocada nesse vagão-leito para descansar. Um médico, que pertencia a outro grupo, ê chamado para vê-la; passa a visitá-la no dia seguinte e a libera do “hospital”. Em um primeiro momento os sujeitos do conto são nomeados pelos automóveis que ocupam. À medida que a paralisação permanece e os personagens saem de suas “armaduras”, as atividades que exercem passam também a defini-los. O engenheiro, o médico, as freiras são agora identificados e reconhecidos.
E há o sujeito/ego que não suporta a paralisação forçada. O homem do Caravelle se suicida, sendo o médico novamente chamado para constatar o óbito. Causa mortis: ingestão de veneno. Ficamos sabendo que ele, além de sua óbvia fragilidade (não saiu de seu automóvel e não estabeleceu relações próximas com os motoristas a seu lado), não suportou a vida sem Yvette que o abandonara em outra cidade. A dor provocada pelo rompimento e o isolamento que se segue a esse corte são as causas prováveis para o suicídio. Teria esse sujeito um ego frágil, incapaz de suportar os inevitáveis desafios que a vida oferece? A dor do abandono acentuada pela paralisação compulsória deve ter provocado algo da ordem do impossível. Dentro de seu automóvel, agora preso no congestionamento, a falta da amada e tudo o que isso pode representar se tornaram insustentáveis.
Em outra baixa, ficamos sabendo que o motorista do Floride desertara durante a noite, o que fez com que fosse necessário redistribuir os responsáveis pelos automóveis para que o grupo continuasse caminhando junto. E o que ê desertar senão abandonar, sair de cena, desistir, não aguentar? Deserção ê também uma forma de desaparecimento objetivo. Aquele que estava ao meu lado até agora escolhe pela própria vida, sem mim, me deixa sozinho no caminho. E há no grupo constituído o imperativo de que ele continue caminhando junto, o abandono daquela armadura/persona não ê possível. Há que se designar outro responsável e manter aquela pequena ordem.
O que dá movimento ao conto ê a paralisação. Como em um profundo paradoxo: tempo da vida em movimento a partir da vida imobilizada. Relações íntimas e profundas se constelam no espaço ocupado pelos automóveis imobilizados, na autoestrada sem movimento. Como se livres das expectativas geradas por esses automóveis/armaduras, os seres humanos ali “contidos” passam a se exercer enquanto protagonistas de sua própria história, podendo existir a partir da imobilidade, para além das defesas, além das personas emprestadas no conto pelos automóveis que as nomeiam.
Os homens fazem tentativas de sair da autoestrada e procurar alimento nas granjas e vilas vizinhas que, hostis, não favorecem nenhum tipo de contato. Ao contrário, além de jogar pedras a cada tentativa de aproximação dos motoristas lançam, num gesto da mais pura violência, uma foice em direção ao grupo. Será a vida que nasce na estrada ameaçadora? O estrangeiro, o de fora, precisa ser negado, não pode ter espaço. O perigo da contaminação pelo outro ê extremo.
Sem que se pudesse saber por que, a resistência externa era total; bastava sair do limite da autoestrada para que, de qualquer lugar, chovessem pedras. Em plena noite, alguém jogou uma foice que bateu no teto do DKW e caiu do lado do Dauphine (CORTÁZAR, 1969, p. 20).
O que há de tão ameaçador no contato com o diferente, com o estranho? Há uma questão de sobrevivência. Os sujeitos presos no congestionamento necessitam se alimentar, ser atendidos em suas necessidades básicas. São vistos, no entanto, como ameaças aos nativos, aos locais, que não os reconhecem como iguais. Além das importantes questões vividas pelos sujeitos paralisados com seus automóveis na autoestrada, também os que vivem à margem da estrada são afetados pela imensa paralisação. Também em suas vidas o acontecimento introduz algo de insólito. E, defesas acirradas, atacam os motoristas, não se abrindo para uma troca criativa, ao contrário, se defendendo da invasão do outro. Será esta uma metáfora visionária para os tempos que vivemos?
E vamos aos poucos sendo conduzidos através da movimentação dos personagens do conto através das atividades mais cotidianas sendo reproduzidas naquela estrada congestionada. Surgem Porches e Fords Mercuris vendendo água a preço exorbitante, preço esse que dobra a cada dia. Há os traficantes de víveres, as disputas e os mal-entendidos entre os diversos grupos, uma lata de leite condensado ê suficiente para disparar quase uma guerra entre tribos.
E o tempo vai passando no congestionamento da autoestrada. O que era calor e sol escaldante no início, torna-se frio e neve ao longo do conto para depois voltar a ser um tempo mais ameno. A passagem do tempo ê marcada no conto pela passagem das estações.
À noite, os grupos estavam em outra vida, sigilosa e privada; as portas se abriam silenciosamente para deixar entrar ou sair alguma silhueta encolhida; ninguém olhava para os outros, os olhos estavam tão cegos quanto a própria sombra. Sob cobertores sujos, com mãos de unhas crescidas, cheirando a fechado e a roupa sem mudar, algum sinal de felicidade persiste aqui e ali (CORTÁZAR, 1969, p. 22).
No escuro da noite, no tempo das sombras, com os olhos cegos, uma vida sigilosa e privada acontece e, com ela, a possibilidade de germinação do novo. Uma troca tão fecunda se dá naq ue-le espaço e tempo que uma gravidez acontece. O novo surgindo da noite escura, da relação entre um masculino, o engenheiro do 404, e um feminino, a moça do Dauphine, despidos de suas personas, entregues à felicidade mais bruta.
E a neve termina, o tempo melhora, relações com os outros grupos são retomadas e transações comerciais começam de novo a acontecer. Porsche continuou vindo e controlando o mercado negro, embora Ford Mercury tenha sumido. A moça do Dauphine conta timidamente ao engenheiro que está grávida dele. E então:
Tudo podia acontecer a qualquer momento, sem horários previsíveis, o mais importante começou quando já ninguém esperava, e o menos responsável foi quem percebeu em primeiro lugar... então ouviram o tumulto, algo como um pesado mas incontrolável movimento migratório que acordava de um interminável torpor e experimentava suas forças. Taunus ordenou-lhes gritando que voltassem a seus carros (CORTÁZAR, 1969, p. 24).
E o congestionamento subitamente se desfez rompendo os grupos constituídos pelos automóveis paralisados. E, novamente, quando a autoestrada ê liberada e o movimento começa a fluir, a vida que se constelou na imobilidade dos automóveis ê então paralisada.
O 404 havia esperado que o avanço e o recuo das filas lhe permitissem chegar novamente até o Dauphine, mas cada minuto o persuadia de que era inútil, de que o grupo se dissolvera irrevogavelmente, de que já não voltariam a repetir-se os encontros de rotina, os rituais mínimos, os conselhos de guerra no automóvel de Taunus, as carícias de Dauphine na paz da madrugada... (CORTÁZAR, 1969, p. 26).
O conto tecido por Cortázar leva-nos a construir relações de íntimo afeto junto com os ocupantes dos veículos da autoestrada. Paralisados, somos levados pelo movimento/paralisação durante 20 páginas. E, então, quando estamos entregues, vivendo já a vida cotidiana dos sujeitos fora de seus automóveis, dentro do congestionamento, quando tudo aquilo já nos parece normal, então os automóveis retomam seu movimento, a velocidade aumenta e as relações ainda há pouco tão fortes são desfeitas.
E tudo isso acontece nas seis ou sete páginas finais. E não saberemos jamais o que terá acontecido com a moça do Dauphine e o bebê que ela espera. Como viverá o velhinho do ID roxo, cuja esposa morreu, e o que será feito dos rapazotes do Simca. Relações próximas, nem tão próximas, simplesmente relações, são desfeitas e cada um volta a seu lugar. A vida segue seu ritmo, sua complexidade. Como mensurar a efemeridade dos encontros propostos pelo autor no conto? Como avaliar o impacto provocado por esses encontros em cada um dos ocupantes dos automóveis imóveis?
O que é o real, o único, o importante só o é naquele tempo e naquele espaço. Tudo o mais passa a ser uma lembrança, e o que são lembranças senão marcas de acontecimentos transformadores.
O congestionamento durava já tempo suficiente para conferir à questão um status de normalidade. Não havia por que supor naquele momento a necessidade de anotar nomes ou números de telefone ou mesmo placas de automóveis que poderiam com facilidade ajudar a identificar seus proprietários.
Fossem os personagens deste conto sujeitos reais atuais, a história poderia ser modificada, as relações poderiam ser retomadas a partir de uma simples busca ou inserção no Facebook ou Instagram: Grupo de condutores dos veículos paralisados no grande congestionamento da autoestrada do sul. Seriam mais reais essas relações então entregues à normalidade da vida cotidiana, não teriam seu impacto exatamente por conta do paradoxo de sua existência?
Nada mais se podia fazer a não ser entregar-se à marcha, adaptar-se mecanicamente à velocidade dos automóveis em redor, não pensar... Absurdamente aferrou-se à ideia de que às nove e meia seriam distribuídos os alimentos, teria de visitar os doentes, examinar a situação com Taunus e o camponês do Ariane; depois viria a noite, seria Dauphine subindo sigilosamente em seu automóvel, as estrelas ou as nuvens, a vida. Sim, tinha de ser assim, não era possível que isso acabasse para sempre (CORTÁZAR, 1969, p. 27).
E o tempo agora?
Tempo da paralisação, do congestionamento, situação inusitada, incontrolável que faz com se estabeleça uma rede de relacionamentos improváveis. Na autoestrada do sul (como na vida), estabelecemos contato com os que nos são próximos, com aqueles com os quais dividimos espaço, com o colega ao lado.
Seria nossa vida um imenso congestionamento? Em que tipo de mobilidade nós estaríamos vivendo? O virtual versus o real, objetivo versus subjetivo, simbólico versus concreto, em que camada nós transitamos?
Fechados em nossos automóveis, aquários protegidos, morremos de medo de nossos vizinhos concretos, tentamos desesperadamente contato virtual através de nossos celulares, tablets e computadores, fazendo uso de nossas redes sociais. É preciso fazer contato, precisamos muito fazer contato – sabemos que apenas através da relação com o outro podemos encontrar nosso melhor e nosso pior, podemos crescer e nos desenvolver.
Relacionamentos virtuais crescem num esforço de propiciar esse contato, estabelecer novas relações, sair do isolamento social. Podem funcionar como canal de expressão, mas favorecem, ao mesmo tempo, formas de vida mais protegidas. Postagens diárias, fotos no Instagram, todo tipo de exposição narcísica pode isolar mais do que facilitar o contato real. Desejamos tanto quanto tememos o relacionamento.
Nas assim chamadas mídias sociais, e também nos sites de busca, muitas vezes acabamos por encontrar mais do mesmo, acentuando as características e formas de funcionar que já conhecemos. Andamos em círculos ou melhor circulamos entre estradas e cidades já conhecidas, vendo, revendo e revisitando sempre os mesmos pontos.
Sabemos já que mecanismos de busca na internet, os algoritmos, favorecem o encontro de resultados cada vez mais “adequados” ou em sintonia com o perfil de quem faz a busca, baseado em pesquisas anteriores. Para cada um de nós, um tipo de resultado, dependente do tipo de busca que costumamos fazer, do tipo de site que costumamos acessar e do tipo de palavras que costumamos usar. Isto é, a tendência a acentuar o andar em círculos, as novidades aos poucos são sempre as mesmas e a tendência é encontrar “mais do mesmo”.
Há uma relação cada vez maior com pessoas iguais a mim. As semelhanças são cada vez mais valorizadas, o diferente excluído. Grupos de pertencimento são definidos, intemautas passam a gravitar em torno de si mesmos. Criação de microcosmos cada vez mais perfeitos, seguros.
Interessante também pensar que muito do uso que fazemos da internet e mídias sociais ê “por divertimento”, e esquecermos o sentido mesmo da palavra, ou seja: divertimento, diversão: distrair, desviar, recrear – do latim divertere –, ir embora, afastar-se de. E então parece que o que chamamos divertimento não é um desvio do caminho. Mídias sociais vendem divertimento e não o entregam; nos distraem de nossos vazios, de nossos tédios e os preenchem com o que poderia ser o novo, mas não ê. Na verdade, ao se pensar nas escolhas mais cotidianas estamos sempre a ocupar nossas vidas com assuntos parecidos com o que já vivemos. A última atualização pode serapenas uma simples atualização; o último modelo pode ser apenas ligeiramente diferente do anterior, nada que altere a ordem das coisas. Estamos apenas querendo sempre mais do mesmo, nos mantendo dentro de uma bolha de pertencimento?
Temos a necessidade de viver em um mundo ordenado, um mundo que tenha e faça sentido. Precisamos aprender a pensar o que ê andar em círculos e o que é a circum-ambulação de que falava Jung. Em nosso narcisismo onipotente, acreditamos ser pontos fora da curva, enquanto tudo o que fazemos é tentar desesperadamente pertencer a um grupo, a uma ideia, a uma escola, a uma sociedade. Encontrar nosso verdadeiro lugar e fazer contato com o outro a partir dele é muito difícil.
Cortázar, com seu conto, nos coloca no desvio, na verdadeira possibilidade de diversão; o fantástico, que como diz está na realidade cotidiana, nos coloca no espaço subjetivo em que tudo pode acontecer, daí sim a possibilidade de ser diferente, diverso. A paralisação da estrada, na volta de um final de semana de verão – este sim o suposto divertimento – provoca um desvio, a diversidade, o diferente aparecendo apenas aí.
Onde está o diferente na vida virtual, a possibilidade de transformação? Serão os hackers os agentes “do mal” dessa tentativa de ruptura? E seremos também nós, analistas, tipos especiais de hackers? Não será nosso papel roubar as senhas de segurança desses sistemas, aproveitando as brechas deixadas pelos protocolos de segurança e promover um desmanche no sistema de funcionamento de nossos pacientes? Uma verdadeira diversão?
Será o projeto de vínculo real e duradouro falso? Estaremos fadados a relações cada vez mais virtuais? E o que será o real? Existe algo como o real, fora do tempo e do espaço?
Pode-se compreender este conto como metáfora para a discussão do paradoxo efêmero versus duradouro. Como no poema de Drummond, o desejo ainda é o de encontrar um amigo “desses calados distantes, que leem versos de Horácio, mas secretamente influem na vida, no amor, na carne” (ANDRADE, 1978, p. 63). A relação, na carne, da moça do Dauphine com o engenheiro do 404, frutificou uma gravidez. Algo na carne se fez. E para além de toda a transitoriedade da experiência do congestionamento um novo ser foi gerado, algo da ordem do duradouro, do real.
E não é nosso desejo como analistas provocar também algo da ordem do duradouro? Transformar o mundo interno de nossos pacientes ajudando-os a encontrar o que poderia ser o momento real, revelador? Aquele capaz de provocar alterações “na carne”. E não será o real revelado a partir do estranhamento?
Uma das funções da literatura, e ouso dizer também do trabalho analítico, ê justamente poder provocar o estranhamento, fazer perguntas, levantar questões que possam romper o fio conhecido e permitira entrada do novo. Divergir.
O real e o fantástico. Cortázar parte do real e vai levando o leitor a uma situação extrema na q ual o fantástico passa a ser o real. E vamos nos habituando a ela, apenas para, de repente, ser o real introduzido novamente e através desse movimento “nos tirar do lugar”, nos deixar sem chão. Como em um movimento elástico, Cortázar estica o conto até o ponto máximo e de repente o solta, nos obrigando à necessidade de um súbito reposicionamento.
A busca pelo encontro e pelo sentido são universais e atemporais. O caminho passa tanto pelo efêmero quanto pelo duradouro. Pelo fixo e pelo fluido, pelo imediato e pelo definitivo. Estamos, às vezes, no individual e, às vezes, no coletivo; no polo do espírito e no polo da carne. O trânsito, a mobilidade ê a única saída: poder caminhar, ir e vir, experimentar, desvendar, desbravar.
Considerações finais
A vida “fora” parou de repente, fomos obrigados a “ficar em casa” e tivemos nosso fluxo de movimento cotidiano paralisado. Tivemos de olhar para nossos vizinhos de outra forma, utilizando outros recursos, estabelecendo trocas que em um movimento normal seriam “impossíveis”.
Nossa experiência do isolamento social, durante o período de pandemia, aconteceu também de forma abrupta. Embora as notícias sobre o vírus já estivessem chegando até nós, foi de forma repentina que nos recolhemos a nossos espaços de isolamento. Cada um de nós foi “obrigado” a permanecer em sua casa, inventando novas formas de relacionamento com o trabalho, a casa, nossos companheiros próximos e nossos queridos distantes que de forma virtual estão também conosco. Como se em um tempo fantástico, podemos mais uma vez repetir com Cortázar: “La realidad es una realidad donde lo fantástico y lo real se entrecruzan cotidianamente”.
O fantástico entrou em nosso cotidiano, sem que nos déssemos conta. E o movimento externo em nossa vida, assim como o trânsito na autoestrada do sul, parou. O isolamento vivido, de forma normal, dentro do automóvel se movimentando para Paris, foi forçosamente rompido pelo congestionamento. A partir do momento em que os automóveis param, a vida que existe e acontece dentro deles ê liberada.
E, então, quando a própria existência está em risco, quando o funcionamento automático habitual ê rompido, o estabelecimento de novos vínculos de relacionamento, a criação de outras redes sociais e a possibilidade de olhar para o outro de forma diferente surgem como saídas. Em busca de uma resposta coletiva, nacional e porque não global, somos levados a atitudes individuais de isolamento e cuidado. Em nome da alteridade, temos de ser cada vez mais responsáveis por nós mesmos e nossas relações. E assim, um tempo, paralisado, ou suspenso, ê acompanhado da sensação de infinito, quase uma cápsula temporal. Mas no conto, como na vida, o real se dá, e o movimento literalmente pode ser alterado.
E paradoxalmente não será também a percepção de paralisação que pode dar movimento à vida? Não será este também o mote para profundas transformações? Já nos disse Jung, há muito tempo, que a fixação é o problema (Jung, 1989 par. 925). E, não estaremos nós muito habituados a movimentações automáticas, acreditando em um movimento tão automático que passa a ser paralisação. Em que movimento estamos nós afinal?
Como no conto, vivemos o paradoxo da movimentação a partir da paralisação. Podemos pensar nas diferentes relações que foram estabelecidas neste período de isolamento social, entre nós e dentro de nós, nas várias descobertas que foram feitas, na possibilidade de lidar com o tempo a partir de outro referencial. E também nos trabalhos que pudemos realizar de forma virtual, na vida que pode fluir sem os congestionamentos habituais, energia liberada para outras maneiras de fruir o tempo e o espaço.
E, então, com a liberação do isolamento compulsório, muitos de nós vivem o desconforto da volta à vida assim chamada “normal”. Como não perder os ganhos acumulados durante este período, como manter as ricas conexões e descobertas conseguidas no período de paralisação. E quando a estrada volta a fluir novamente, como seguiremos nós?
A vida volta ao normal e, com ela, seu louco fluxo intenso, seu movimento desenfreado, colocando novamente uma aceleração que nos afasta do outro, que “rompe” as ligações estabelecidas. Relações tão sutis e efêmeras que não se sustentam, que nos deixam com o gosto amargo da percepção da falta.
E onde o fantástico, onde o encontro no meio do confinamento compulsório? A estrada rumo a Paris encontrou seu fluxo, sua velocidade. Perde-se o contato com o outro portanto tempo confinado ao meu lado. E, o que levo disso? Vingará a gravidez da moça do Dauphine?
Termino com Cortázar:
E, na antena do rádio flutuava alucinadamente a bandeira com a cruz vermelha e se corria a oitenta quilômetros por hora em direção às luzes que cresciam pouco a pouco, sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, porque essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente (1969, p. 28).