SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 número1“A Autoestrada do Sul”: movimento e paralisaçãoEscritas que curam: complexo racial e narrativa memorialista índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.41 no.1 São Paulo  2023  Epub 29-Nov-2024

https://doi.org/10.70435/junguiana.v41i1.22 

Artigo

Anima e animus – amizade e individuação

Anima y animus – amistad y individuación

Renata Ferraz Torres* 

*Médica formada pela Faculdade de Medicina da USP em 1998. Residência em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP concluída em 2001. Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e da International Association for Analytical Psychology desde 2006. Membro da Comissão de Ensino da SBPA desde 2011. e-mail: <renata.ferraz.torres@gmail.com>


Resumo

O artigo aborda a amizade entre um homem e uma mulher como propulsor da individuação de ambos. Através de uma leitura simbólica da correspondência entre os escritores brasileiros Clarice Lispector e Fernando Sabino, a autora mergulha na individuação proporcionada por tal relação de amizade, que perdurou por mais de 30 anos. Tece reflexões a respeito dos arquétipos da anima e do animus.

Palavras-chave Anima; animus; amizade; individuação

Resumen

El artículo aborda la amistad entre un hombre y una mujer como propulsor de la individuación de ambos. A través de una lectura simbólica de la correspondencia entre los escritores brasileños Clarice Lispector y Fernando Sabino la autora profundiza en la individuación proporcionada por tal relación de amistad, que perduró por más de treinta años. Hace reflexiones acerca de los arquetipos del ánima y del animus.

Palabras clave ánima; animus; amistad; individuación

Abstract

This article adresses the bond of frienship between a man and a woman as a booster of individuation of both. Through a symbolic reading of the correspondence between the brazilian writers Clarice Lispector and Fernando Sabino the author dives on the individuation booster by such a friendship, which lasted for more than thirty years. Reflections are made about the archetypes of anima and animus.

Keywords: Anima; animus; friendship; individuation

Introdução

O presente artigo propõe-se a refletir sobre como a amizade entre um homem e uma mulher pode funcionar como um aprofundamento da individuação. Através do mergulho na correspondência entre os escritores brasileiros Clarice Lispector e Fernando Sabino, a autora vai descortinando os fios que tecem o laço de uma amizade que perdurou por mais de 30 anos, e foi registrado através de cartas.

A leitura de tal correspondência é intrigante e emocionante, sentimo-nos como testemunhas dessa relação de profundidade e troca recíproca. Após a citação de várias cartas que ilustram a relação entre os escritores, é feita uma discussão de temáticas junguianas como coinunctio, hierogamia, individuação, relações anima – animus.

Por fim, são tecidas conclusões de como a amizade também pode ser uma via de individuação. Corresponder-se com um grande amigo é uma maneira de fazer alma.

Amizade e Individuação

Há algum tempo tenho me detido na reflexão sobre as diferentes qualidades e tipos de amizade que unem um homem e uma mulher. As especificidades das relações são tantas quanto são os amigos. Sem a pretensão de generalizar, aqui vai um recorte para compartilhamento.

Vejo a amizade como uma forma de amor. Ela nos convoca à individuação na medida em que nos desafia a encontrar um jeito próprio de nos relacionar. A amizade nos dá um retorno de como funcionamos no nosso melhor e no nosso pior, como sói acontecer nas relações de intimidade. O amigo me traz de volta quem sou, além de, concomitantemente, me convidar a ser outro, além de mim.

Segundo Platão (2010), a amizade é uma predisposição recíproca que torna dois seres ciosos da felicidade um do outro.

Quando refletimos sobre a amizade entre um homem e uma mulher, trata-se de uma relação com algumas particularidades. Na maioria das culturas tende-se a esperar que amigos sejam prioritariamente do mesmo sexo, e neste ponto a cultura brasileira não é diferente. Existe algum estranhamento a respeito de um par de amigos de sexo oposto, que inspira ora curiosidade, ora suspeita. “Serão amantes?”, especula- se com frequência. O senso comum diz que a pura amizade entre um homem e uma mulher não existe.

Na literatura, no cinema e na cultura pop muitos são os exemplos de amigos do sexo masculino: Dom Quixote e Sancho Pança, os três mosqueteiros, Sherlock Holmes e Watson, o Gordo e o Magro, os Três Patetas, Batman e Robin. Também temos muitos exemplos de pares românticos, assim como de irmãos de sexo oposto na cultura e na mitologia, mas exemplos de amigos do sexo oposto são difíceis de serem lembrados.

Na Grécia Antiga, considerava-se que a verdadeira amizade só poderia se desenvolver entre iguais, particularmente entre homens livres. A amizade entre um cidadão (um homem livre) e um escravo era considerada impossível, assim como entre um homem e uma mulher.

Há amizades que são eróticas, nas quais a sexualidade desempenha um papel proeminente, seja ela vivida concretamente ou não, seja ela correspondida ou não. Há amigos que são casos, assim como há casos entre amigos. E também as amizades devocionais, nas quais a admiração e até uma certa formalidade fazem parte do cenário. E vou desafiar o senso comum dizendo que também há amizades entre homem e mulher que, embora sendo entre desiguais, vive-se a fratria. Aqui, o amor é vivido num domínio social no qual lealdade e compa nheirismo predominam. Existe uma comunhão de pensamentos e reflexões, com a cumplicidade e a vivência de um grande amor que não é o romântico. Este amor pode acompanhar os amigos por décadas e pela vida afora, passando ao lado das relações conjugais sem atrapalhá-las, embora muitas vezes possa haver ciúme por parte dos parceiros desses amigos.

Quando na relação existe confiança e maturidade, às vezes é possível encontrar espaço para compreensão e integração de cada uma das relações com discriminação e criatividade, parceria e fidelidade entre amantes e amigos.

O objeto de minha reflexão é a amizade cultivada entre um homem e uma mulher heterossexuais – especialmente uma amizade que atravessa décadas e longas transformações na vida de cada um dos amigos e que se desenvolve no terreno do companheirismo. Outros recortes poderiam ser feitos, porém ressalto a especificidade escolhida para delimitação do tema.

Tal amizade pode ser fortemente propulsora da individuação dos envolvidos, pelo fato de um amigo com frequência abrigar a projeção seja da anima ou do animus do outro, e em outros momentos ser evidente que se trata de um ser diverso e independente, que surpreende por nada ter a ver com expectativas projetivas. Trata-se de um caminho qualitativamente diferente do que aquele trilhado numa relação romântica entre um homem e uma mulher, pois o vínculo se dá fora de um contexto conjugal e/ou sexual. Quando comparada a um relacionamento romântico, a pura amizade entre um homem e uma mulher heterossexuais apresenta um percurso com especificidades diferentes, obstáculos diferentes, raízes diferentes e frutos diferentes, a respeito dos quais se reflete pouco.

Para quem vive a experiência de ter seja um grande amigo ou uma grande amiga do sexo oposto ao seu existe uma rica oportunidade de vivência do amor numa perspectiva de transcendência anímica. Os arquétipos da anima, do animus e da coniunctio são constelados de uma forma diversa ao que se vive na conjugalidade e na sexualidade.

Correspondência Clarice Lispector – Fernando Sabino

Há alguns anos fiquei encantada com a leitura da correspondência entre dois grandes amigos: Fernando Sabino e Clarice Lispector, livro publicado em 2001. Grandes escritores que mergulharam com profundidade nos dramas e nas maravilhas experimentadas pela alma humana, os autores brindaram-nos com obras magistrais como “O Encontro Marcado”, “O Menino no Espelho”, “A Paixão Segundo G.H.” e “Laços de Família”.

Conheceram-se em 1944, quando Clarice tinha 23 anos e Fernando, 20. A amizade perdurou até que a morte os separasse, no caso, a morte de Clarice, em 1977. Portanto a relação durou mais de 30 anos. Para nossa sorte, uma parte desta relação ficou registrada em cartas, pois ambos moraram fora do Brasil por longos períodos. Assim, é possível ter a oportunidade de participar como observador desta relação de delicadeza, cooperatividade, bem-querer e admiração mútuas.

Segundo conta Fernando, quando jovens os escritores tiveram um convívio quase que diário em encontros numa confeitaria do Rio de Janeiro ou na casa de um dos dois, onde tinham longas conversas que duravam horas, discutindo literatura, visão de mundo, ideologia e política, além de submeterem seus trabalhos um ao outro para apreciação, críticas e comentários. Nas palavras de Fernando:

juntos reformulávamos nossos valores e descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era mais do que paixão por literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens “perto do coração selvagem da vida”: o que transparece em nossas cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solidários ante o enigma que o futuro reservava para o nosso destino de escritores (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 8).

No caso de Fernando e Clarice, o amor vivido não foi nem o romântico nem o sexual, mas o fraterno. Vibravam com o sucesso um do outro, davam-se sugestões, além de as cartas serem muito espirituosas, dotadas de senso de humor e uma impressionante maestria com as palavras.

Além dos momentos engraçados, houve os dramáticos. Clarice descreve sua profunda angústia existencial, insegurança profissional, apatia, timidez, bloqueio criativo, os quais faziam com que ela passasse por grandes dificuldades. Fernando a apoia reiteradamente, volta-se para ela com respeito e compaixão, lealdade, solidariedade, compreensão. Nestas cartas, talvez o mais bonito seja ver como Fernando tem uma fé inabalável na capacidade de Clarice reerguer-se, um respeito muito grande por ela, enxergando dignidade em seu sofrimento.

Selecionei alguns trechos da correspondência, e convido os leitores para que os degustem imbuídos de uma escuta poética.

Começo com as palavras de Clarice a Fernando de um trecho retirado de uma carta escrita em 5 de agosto de 1946. A autora estava morando na Suíça com seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, e enviou a carta à Nova Iorque, onde Fernando residia na ocasião. O trecho diz assim:

Fernando, [...] recebi carta [...] [com] seu artigo “O Sentimento e a Palavra”. Li de novo e fiquei tão contente... Foi de novo uma carta sua, e uma conversa. Fiquei animada, não importa que daqui a pouco acabe e que eu vá com alma morta para a costureira... O que importa é que fiquei como estou agora, bem na primavera. De repente me pareceu que eu devo continuar a trabalhar, que tudo está ruim, mas que é assim mesmo, que as coisas são desconhecidas até que rebentam numa conhecida [...], e que de vez em quando a gente pode receber este presente gratuito que é a palavra amiga de um amigo, e suponho que se há compensação – e não vejo porque ela haveria de ser maior – esta já é grande e mais do que se merece (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 51).

Clarice explicita o quanto as palavras de um amigo, mesmo que distante, são capazes de trazer a primavera. Fala sobre o “presente gratuito que é palavra amiga de um amigo”, imagem poética que alude à dádiva que é a amizade.

Fernando, que acompanhava o sofrimento de Clarice, algumas cartas depois, escreve de Nova Iorque para ela, em 17 de setembro de 1946, depois de ler um conto escrito pela autora:

Clarice, [...] gostei muito do seu conto: admiravelmente bem escrito, não falta nem sobra nada. [...] Por ele posso perceber uma coisa muito mais importante do que a própria importância do conto: que você está escrevendo bem, com calma, estilo seguro, sem precipitação. Talvez porque agora você já não esteja sofrendo muito, mas sofrendo bem: é uma diferença bem importante, para a qual o Mário [de Andrade] sempre me chamava a atenção. A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 60).

Outro trecho de carta de Fernando, essa escrita em 27 de julho de 1947, de Nova Iorque, traz a dimensão da gratidão em relação ao compartilhamento da vida como um todo:

Por ora preciso que você me escreva, preciso que você mande notícias suas, que você diga que não ficou zangada por causa do meu silêncio e conte bastante coisas daí. Para que eu saiba afinal se você continua vivendo, porque viver é de graça, de favor, ninguém pediu licença para nascer nem pagou entrada no mundo, e já que não temos a quem agradecer tanta gentileza, agradecemos mutuamente. Muito obrigado, Clarice (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 90).

É interessante perceber como nas cartas há um certo recato ao se falar sobre questões da conjugalidade – de certo, trazem também um certo espírito da época, porém demonstram o zelo e a delicadeza dos papéis vividos e bem circunscritos. Fernando era casado com Helena Sabino. Clarice era casada com Maury. Além da amizade entre Fernando e Clarice, com muitos assuntos profissionais em comum, Helena e Maury também participavam da relação. Os quatro mantinham um convívio de carinho e amizade, encontrando-se quando era possível; e nas cartas são frequentes as manifestações de apreço seja entre Fernando e Maury ou Clarice e Helena. Os correspondentes perguntam sobre o cônjuge do outro, mandam-se beijos e abraços, lembranças. No entanto, uma carta escrita por Fernando em 12 de junho de 1953 segue do Rio de Janeiro e num dado momento diz o seguinte:

Vou vender a casa e me mudar daqui. O que você já deve ter ouvido falar de mim é verdade: estou vivendo sozinho há dois meses e pretendo continuar. Começando de novo – só que não tenho mais dezessete anos, o que afinal não passa de uma constatação meramente literária (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 95).

Fernando segue, na mesma carta, falando de múltiplos assuntos num tom semelhante ao das cartas anteriores, sem entrar nos sentimentos e conflitos que, possivelmente, motivaram a separação do casal. Comenta assuntos factuais, faz comentários estilísticos e literários. Parabeniza Clarice pelo nascimento de seu segundo filho; comenta sobre uma briga política e jornalística entre Carlos Lacerda e Samuel Wainer; emenda mais três assuntos genéricos. No fim da carta escreve apenas assim: “quando me mudar lhe mando meu novo endereço. Helena e as crianças estão morando com os pais dela – para o caso de eu ter sido muito eufemístico ou hermético ao lhe falar que nos separamos” (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 97).

Na carta seguinte, não há qualquer menção ou comentário de Clarice sobre a separação do amigo. Tanto podemos supor que eles conversaram por telefone ou, talvez com maior probabilidade, que discutir pormenores das relações conjugais de cada um não era uma prática vigente entre estes amigos.

Em setembro de 1954 Clarice escreve de Washington, encabulada por ter dispensado a oferta de Fernando de buscá-la no aeroporto por ocasião de sua chegada em breve visita que fez ao Rio de Janeiro. Clarice sentiu que tinha incorrido numa falta de cortesia, a qual poderia ter deixado o amigo zangado. Interpreta desta forma pois, a seguir, Fernando ficara de lhe telefonar num determinado dia desta estadia dela no Rio, coisa que não fez. Voltando a Washington, onde agora morava, Clarice escreve assim:

me encabulo de estar sempre chegando e indo embora, o que obriga os amigos a um movimento em torno de mim, um movimento que às vezes nem cabe direito na vida deles. [...] Maury diz sempre que eu costumo ter reações pessoais a coisas chamadas ‘de praxe’. Parece que é mesmo verdade. Parece que eu seria capaz de pedir sinceramente a alguém que não apanhasse minha luva caída no chão para não amolar esse alguém, sem entender que incômodo é não apanhá-la (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 118-9).

Na carta, ao mesmo tempo em que revela seus sentimentos, Clarice descreve suas fantasias como “complicações tolas”. Fernando responde, a seguir:

Clarice, suas “complicações” não são tolas mas inúteis. É verdade que você não precisa absolutamente se preocupar, não fui ao aeroporto porque você não queria e então acabou-se, não telefonei porque na hora deve ter acontecido alguma coisa de que já não me lembro, e depois você já não estava. Mas valeu o desencontro porque forçou uma carta tão boa que parecia uma carta de Mário de Andrade, e isto é elogio. [...] Preciso do seu estímulo – o de alguém que, não vendo as coisas de perto, tem perspectiva. [...] Abrace por mim ao Maury e acredite sempre na amizade do seu Fernando (SABINO, LISPECTOR, 2001, pp. 120-1).

Fernando observa que um amigo é capaz de ter perspectiva sobre a vida do outro. A verdade é que, não vendo as coisas tão de perto, o amigo também não as vê de longe. Distante o suficiente para ser capaz de enxergar, próximo o suficiente para ser capaz de dizer.

Outra carta de Clarice, escrita também em 1954, tem um tom brincalhão:

Alô Fernando, estou escrevendo para você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. [...] Se você responder esta carta com outra onde você também não saiba o que dizer, vai parecer aquele jogo que você certamente já brincou um dia: o jogo de “vamos ver quem pisca antes”, quem aguenta mais tempo ficar com os olhos bem abertos (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 122).

Na presença de um grande amigo, mesmo sem nada a dizer, inventa-se um assunto. A proximidade traz a vivência do silêncio significativo.

Os escritores vibram com o texto um do outro, participam de suas viagens literárias. Em carta datada de 30 de março de 1955, a respeito de um grupo de contos de Clarice que futuramente integraria o livro “Laços de Família”, Fernando escreve assim:

Resta o consolo de pensar que se eu fosse capaz, como você, de dizer o indizível, eu teria a dizer certas coisas que você ainda vai dizer. E me limito a ficar esperando. [...] você fez oito contos como ninguém nem longinquamente conseguiu fazer no Brasil. Você está escrevendo como ninguém – você está dizendo como ninguém ousou dizer. Me desculpe o entusiasmo muito pouco ao seu jeito, mas não é possível deixar por menos (SABINO, LISPECTOR, 2001, p. 125).

O amigo diz o que poderíamos – mas não saberíamos – dizer. Clarice e Fernando inspiram-se mutuamente, admiram-se mutuamente. Nesta admiração, os amigos miram-se um ao outro e a si próprios. O amigo é o espelho que me reflete de volta, e também aquele que, ao não me oferecer imagem especular nem simétrica, mas diversa, mapeia meus contornos e diferenças, me revela.

Em 8 de janeiro de 1957, Clarice escreve uma carta que considero comovente. Impactada pela beleza do livro “O Encontro Marcado”, escrito por Fernando e cujo manuscrito ela acabara de ler, Clarice diz assim:

Fernando, seu livro me espantou. Comecei lendo suas frases cortantes [...], perguntei-me de início aonde você pretendia levar o leitor e se levar. O que me espantou é que [...] me vi inesperadamente dentro do livro, entendendo tudo o que você queria, experimentando tudo [...]. É curioso como seu livro e o meu têm a mesma raiz. [...] Mas Fernando, o fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu não é o começo da maturidade? [...] Amém, Fernando, amém. Para nós todos. Nunca me senti tanto pertencendo a uma “geração”. Pela primeira vez, talvez, senti a palavra “geração” em outro sentido [...] Eu queria ser mentalmente mais organizada para poder lhe escrever uma carta direita, pondo em palavras impressões que tive, [...], mas difíceis em mim de atingirem o plano das palavras. A verdade, Fernando, é que depois desse livro, ainda sou mais sua amiga. Mas a verdade também é que, se não tivesse gostado tanto, também seria (SABINO, LISPECTOR, 2001, pp. 186-8).

Discussão

A teoria da contrassexualidade de Jung nos convida a refletir a respeito de como o sexo oposto, este alter se constitui como uma força magnética que conduz à ampliação de consciência ao longo da vida, por trazer aportes de funcionamento e percepção contrapostos ao ego e à consciência. A formulação original de anima e animus foi avançada para o seu tempo, pois foi teorizada décadas antes de os cientistas sociais começarem a falar em conceitos distintos para sexo e gênero.

Atualmente é considerado que não há equivalência entre Logos ou princípio de criatividade e o sexo masculino, nem Eros ou princípio de receptividade e o sexo feminino. Os dinamismos estariam presentes na psique tanto do homem quanto da mulher. Fato é que, através da cultura, existe uma ênfase de reforçar Logos e princípio de atividade na psique do homem e Eros e princípio de receptividade na psique da mulher. Assim, os conteúdos contrários ficaram reprimidos ou não expressos na consciência, às vezes por serem desconhecidos ou não apresentarem uma quantidade de energia necessária para sua irrupção.

Através da relação com a alteridade e a contrassexualidade nos tornamos mais profundos e mais singulares. Embora tais arquétipos estejam em atividade durante todo o ciclo da vida, eles se tornam especialmente potencializados a partir da metanoia, quando o processo de identidade se aprofunda e a possibilidade de autoconhecimento – para quem o busca – pode se adensar.

James Hillman (2008) escreve sobre a anima numa perspectiva ampliada. Em Hillman, anima é psique, ou alma, e está presente tanto em homens quanto em mulheres, sendo descrita através da imagem poética dos vales, em oposição aos picos, habitados pelo espírito. Nos picos existe luz, clareza, altitude, elevação espiritual, é onde a pneuma reside. A anima reside nos vales, onde existe escuridão, umidade, depressão, profundidade. A alma – seja nos homens ou nas mulheres – é o que possibilita que a experiência seja transformada numa experiência psíquica.

Aprendemos a fazer amigos na infância. Frequentemente os primeiros amigos são os irmãos, os primos, os colegas de escola. Com os amigos aprendemos a nos relacionar de forma simétrica, o que é diverso do que experimentamos com os pais, os professores, as figuras de autoridade e mais tarde com os filhos, os alunos, pessoas para quem nos constituiremos como figuras de autoridade. Com os amigos aprendemos a dividir, a compartilhar, experimentamos outras formas de estar no mundo, conversar, se comportar, amar. Aprendemos a cooperatividade (emprestar e tomar emprestado, colaborar, produzir junto) e a competitividade (discutir, discordar, rivalizar, romper).

Jung (1997) escreveu sobre o arquétipo da coniunctio, o qual se refere à união de elementos opostos. Trata-se de um símbolo que aparece recorrentemente na alquimia, e que pode ser representado pela união entre o sol e a lua, o masculino e o feminino, o rei e a rainha. A representação gráfica do símbolo do Tao é a união e justaposição entre o yang – elemento claro, criativo, masculino – e o yin – elemento escuro, receptivo, feminino. O I Ching (WILLHEM, 2002), livro oracular chinês consultado desde tempos imemoriais para buscar autoconhecimento, descreve, através de imagens, como princípios de criatividade e de receptividade se complemen tam e se estimulam reciprocamente. Quando um deles chega ao seu ponto máximo de expressão, manifesta dentro de si a semente de seu oposto.

A coniunctio alude à união de elementos desiguais e opostos, complementares, e simbolicamente representa a relação sexual através da qual um novo elemento nasce. Este é simbolizado pela criança divina, a qual manifesta um potencial para uma totalidade maior do que a simples somatória dos elementos que inicialmente a geraram. Assim, 1 + 1 = 3. A coniunctio representa processos intrapsíquicos que culminam na possibilidade de transformação e renascimento, e símbolos que a representam exercem fascínio e temor. O emparelhamento da sizígia masculino-feminino aparece em ilustrações alquímicas de grande significado, como a série de gravuras do Rosarium Philosophorum que Jung (1999) utilizou em seu livro “Ab-reação, análise de sonhos e transferência” para compreender e elucidar os fenômenos transferenciais que se constelam na análise.

O arquétipo da conuinctio também se expressa no tema do hieros gamos, expressão que, em grego, significa “casamento sagrado” e que alude ao ritual de cópula e/ou casamento entre um homem e uma mulher representando a união entre um deus e uma deusa, com significado arquetípico. A hierogamia também pode ser compreendida como o diálogo diferenciado entre o consciente e o inconsciente de uma pessoa, situação que pode representar a meta da individuação.

Conclusões

Podemos dizer que na relação de amizade entre homem e mulher existe a constelação de um quatérnio representado pelo homem e sua anima, a mulher e seu animus. Estes quatro elementos se interligam de forma direta e cruzada, e tanto através de sua anima quanto de sua amiga o homem se relaciona com seu inconsciente. O mesmo pode ser dito a respeito da mulher em relação ao seu animus e seu amigo. O arquétipo de alteridade contrassexual carrega aspectos reprimidos, idealizados, atemorizantes e numinosos do sexo oposto. Através da amizade com uma pessoa do sexo oposto, especialmente se for uma amizade que atravessa longos períodos, o indivíduo terá aportes trazidos pelo outro de como tende a se relacionar com o seu alter interno. Estes amigos, assim como parceiros amorosos, mas de forma que não é idêntica, podem ser consciente ou inconscientemente escolhidos por carregarem projeções idealizadas ou terríveis do sexo oposto. Nossos parceiros representam o que admiramos ou tememos, o que adoramos ou detestamos em nós mesmos, o que conhecemos e o que desconhecemos a respeito de nossa jornada. Ao nos relacionarmos externamente com estes aspectos apartados de nós mesmos, podemos nos reaproximar de pedaços de nossa alma.

A amizade duradoura entre um homem e uma mulher pode ser uma via de individuação complexa e plena de possibilidade de desenvolvimento como o casamento. E quando digo “como o casamento”, não quero dizer “igual ao casamento”, pois existem qualidades e dificuldades diferentes envolvidas, porém quero ressaltar o quanto um par de amigos de sexo oposto também é um casal que forma uma sizígia.

Cultivar uma amizade como esta requer habilidade e trabalho, discernimento e clareza, trazendo frutos numerosos e compensadores.

Interessante ressaltar que a palavra “correspondência” significa responder reciprocamente. As cartas entre Fernando Sabino e Clarice Lispector nos inspiram com lirismo para desenvolver relações de cumplicidade e convivência fraterna. Corresponder-se com um grande amigo é uma maneira de fazer alma.

Não quero dar a entender que a amizade é sempre maravilhosa e, assim, parecer ingênua. As dores da amizade podem cavar vazios mutilantes dentro de nós. Isto é um risco para qualquer natureza de amizade. Os desencontros representados pela incompreensão, pela má elaboração do ciúme, da inveja, os ataques de ira e de rivalidade, atuações de complexos de poder e de inferioridade – tudo isso pode causar feridas terríveis na vida de qualquer ser humano. Propositadamente quis me aprofundar no lado luminar da amizade, pois a psiquiatria e a psicologia já tendem a enfocar por demais a patologia em detrimento da fisiologia.

Por fim, concluo: a amizade – entre pessoas de diferentes sexos e gêneros, idades, crenças e comportamentos – é uma das razões pelas quais a vida merece o mergulho.

Referências

HILLMAN, J. O livro do Puer. São Paulo: Paulus, 2008. [ Links ]

JUNG, C.G. Mysterium coniunctiones. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. [ Links ]

JUNG, C.G. Ab-reação, análise de sonhos e transferência. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. [ Links ]

PLATO. O banquete, ou, do amor. 6. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010. [ Links ]

SABINO, F.; LISPECTOR, C. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro: Record, 2001. [ Links ]

WILLHEM, R. I Ching: o livro das mutações. 20. ed. São Paulo: Pensamento, 2002. [ Links ]

Recebido: 24 de Fevereiro de 2023; Aceito: 02 de Julho de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.