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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.41 no.1 São Paulo  2023  Epub 29-Nov-2024

https://doi.org/10.70435/junguiana.v41i1.25 

Artigo

Escritas que curam: complexo racial e narrativa memorialista

Escritos que curan: complejo racial y narrativa memorialista

Simone Rodrigues Neves* 

*Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestre em Saúde na Comunidade pela USP-RP. Especialista em Psicologia Analítica pela Unicamp. Analista Junguiana pelo Instituto de Psiologia Analítica de Campinas (IPAC/AJB/IAAP). Coordenadora da Especialização em Psicologia Analítica pelo Instituto Vincence Solaris. Professora de Psicologia da Faculdade ESAMC/Uberlândia. Coordenadora do Departamento de Literatura da AJB. E-mail: sipsineves@gmail.com


Resumo

O presente trabalho buscou refletir, por meio da perspectiva junguiana, sobre as contribuições das narrativas memorialistas para a transformação do complexo racial. Destacamos que a memória individual está interligada à memória coletiva e apontamos os impactos traumáticos decorrentes do aniquilamento das memórias dos afrodescendentes em decorrência do colonialismo ao longo da nossa história. Nesse sentido, analisou-se o romance “Becos da Memória” da escritora Conceição Evaristo, considerando a dimensão simbólica-arquetípica presente na obra e os aspectos do processo de individuação da autora. A sua obra literária, pautada no que ela própria denominou de “escrevivência”, é um exemplo de como as memórias traumáticas, carregadas pela potência dos complexos, quando “reeditadas” por meio da escrita, podem desencadear transformações psíquicas no campo individual e coletivo.

Palavras-chave Complexo racial; memória; narrativa; literatura

Resumen

El presente trabajo buscó reflexionar, a través de la perspectiva junguiana, sobre los aportes de las narrativas memorialistas a la transformación del complejo racial. Resaltamos que la memoria individual se entrelaza con la memoria colectiva y señalamos los impactos traumáticos derivados del aniquilamiento de las memorias de los afrodescendientes a causa del colonialismo a lo largo de nuestra historia. En este sentido, se analizó la novela “Becos da Memória” (Callejones de la Memoria) de la escritora Conceição Evaristo, considerando la dimensión simbólico-arquetípica presente en la obra y los aspectos del proceso de individuación de la autora. Su obra literaria, basada en lo que ella misma llamó “escrevivencia”, es un ejemplo de cómo los recuerdos traumáticos, cargados de la potencia de los complejos, al ser “reeditados” a través de la escritura, pueden desencadenar transformaciones psíquicas en el ámbito individual y colectivo.

Palabras clave Complejo racial; Memoria; Narrativa; Literatura

Abstract

This paper aims to reflect on a Jungian perspective, the contributions of memorialist narratives to the transformation of the racial complex. We emphasize that individual memory is intertwined with collective memory and we point out the traumatic impacts resulting from the annihilation of the memories of Afro-descendants as a result of colonialism throughout our history. Thus, the novel Alleys of Memory by the writer Conceição Evaristo was analyzed, considering the symbolic-archetypal dimension present in this work as well as aspects of the author's individuation process. Her literary work, based on what she has called escrevivência, is an example of how traumatic memories, carried by the power of complexes, when re-edited through writing, can trigger psychic transformations both in the individual and the collective.

Keywords: Racial complex; memory; narrative; literature

Somos seres tecidos pelos fios “emaranhados da memória”, por meio dela confirmamos e reelaboramos cotidianamente a nossa identidade. Como função psicológica, a memória está diretamente relacionada à ideia de que somos hoje a continuidade do que vivemos em nosso passado. Jung considera que memória e esquecimento são polaridades de uma mesma função, que se alternam e se regulam pelo movimento da energia psíquica (JUNG, 2015).

Conforme propõe Bachelard (1988), recordar é uma tessitura da imaginação, que se move por meio de um fluxo dinâmico e criativo. Portanto, a linguagem capaz de acessar o conteúdo da memória significativa não é a descrição objetiva, descritiva, mas sim a linguagem poética.

O neurocientista Oliver Sacks afirmou que “não somos capazes de ter acesso direto ao fato histórico, e o que sentimos ou afirmamos ser verdade depende tanto da nossa imaginação como dos nossos sentidos” (2017, p. 73). Por outro lado, construímos como “verdade narrativa” as histórias que contamos para nós mesmos e para os outros, recategorizadas e refinadas continuamente. As memórias são frágeis, mas também flexíveis e portadoras de imensa criatividade

Somos também tecidos por meio da memória coletiva. Halbawachs (1990) defende que nossas lembranças permanecem coletivas porque, na verdade, nunca estamos sós, pois o outro se faz presente mesmo na ausência, “[...] na realidade nunca estamos sós. Não é necessário que outros estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco uma quantidade de pessoas que não se confundem” (p. 26).

Weil (1996) desenvolveu o conceito de “enraizamento”, caracterizando-o como uma necessidade fundamental da alma humana. Segundo ela, o ser humano deve conservar vivos certos tesouros do passado para poder constituir sua existência social e coletiva. Desse modo, a transmissão dos conhecimentos acumulados ao longo da história de determinado povo possibilita o acesso e reconhecimento da riqueza cultural e ancestral sedimentada ao longo do tempo. Os valores coletivos entrelaçam-se com a história individual, permitindo ao ser humano se apropriar de sua herança ancestral.

A memória coletiva implica um fortalecimento da identidade individual e coletiva e possibilita aos grupos a preservação dos vínculos afetivos e resistência em meio aos conflitos e adversidades, nesse sentido, preservar a memória é promover a vida. Em contrapartida, o desmantelamento da memória coletiva pode implicar experiências traumáticas coletivas promotoras da experiência de desenraizamento.

Uma marca traumática que compõe a memória e a história brasileira se refere aos processos de apagamento da memória dos povos africanos escravizados em nosso território ao longo dos séculos. Na história da diáspora negra, a memória se insere no campo da resistência.

A perspectiva junguiana abre espaço para compreendermos a memória, componente da psique individual, como parte de uma coletividade. Nesse sentido, Shamdasani (2005) ressaltou que um dos traços distintivos do trabalho de Jung foi a maneira como ele concebeu a inclusão do indivíduo na história cultural ou como ele buscou considerar a integração da história cultural na psique do indivíduo. Os estudos sobre os complexos culturais possibilitam a ampliação da compreensão desse fenômeno.

Exploramos neste trabalho os impactos desse trauma histórico para a memória coletiva. Nos apoiamos em estudos desenvolvidos por autores junguianos e decoloniais, que nos esclarecem sobre como a condição de “outridade” imposta aos negros pelos brancos teve consequências traumáticas para sociedade, destacando as implicações do complexo racial no apagamento e reativação de memórias negras.

Em sequência, buscamos demonstrar esse fenômeno por meio da análise simbólica do livro “Becos da Memória” de Conceição Evaristo. Esse romance é fortemente atravessado pelas memórias da autora, onde as marcas do luto e da luta se apresentam como consequência traumática da diáspora negra e são reatualizadas na experiência de violência e opressão vivenciadas pela autora e sua comunidade. Nessa obra, observamos que as recordações quando transformadas pela imaginação se mostram como elemento fundamental de resistência e de preservação da memória individual e coletiva. Buscamos ainda relacionar o processo criativo da autora ao seu processo de individuação.

Racismo, complexo cultural e trauma

O termo “complexos culturais” vem ganhando relevância no cenário junguiano nos últimos anos. Tal ideia foi proposta por Kimbles e Singers no início do século XXI, tendo como ponto de partida a ampliação da teoria de Jung dos complexos afetivos e a ideia de inconsciente cultural proposta por Joseph Henderson nos anos 1960, considerando o processo de desenvolvimento de grupos e comunidades (SINGER, KAPLINSKY, 2019). Esses autores defendem a premissa de que existe um outro nível de complexos que atuam na psique da coletividade. Assim como os complexos afetivos, os culturais também são inconscientes, atuam de maneira autônoma, possuem grande mobilização emocional em torno de memórias, ideias e imagens “[...] que tendem a se aglomerar em torno de um núcleo arquetípico e serem compartilhados pelo indivíduo dentro de um coletivo definido” (SINGER, KAPLINSKY, 2019, p. 58).

Boechat (2014) destaca que o complexo cultural está relacionado a questões conflituosas que a coletividade desenvolve no decorrer de sua história. Ele aponta um paralelo na estrutura e origem dos complexos individual e coletivo. O primeiro pode se estruturar no início da vida, a partir de um trauma, mas irá atuar em momentos posteriores da vida necessitando de uma elaboração posterior. O segundo poderá originar-se nos primórdios da organização de uma cultura e poderão ter efeitos traumáticos na organização e mobilização futuras de uma sociedade.

Almeida (2019, p. 26) descreve o racismo como “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas conscientes e inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem”. O preconceito racial pode desencadear práticas discriminatórias de maneira direta, como o repúdio ostensivo a indivíduos e grupos, ou de maneira indireta, caracterizada pela prática discriminatória de forma inconsciente, sem intencionalidade explícita.

Sabemos que o Brasil tem como marca histórica ser o último país do ocidente a abolir a escravatura. Boechat (2014) enfatiza que essa especificidade faz com que a experiência da escravidão seja considerada um potente complexo cultural para a identidade brasileira.

Dias e Gambini (1999) destacaram que no Brasil a miscigenação superficialmente compartilhada como ideal de síntese de culturas escondeu uma nação fracionada e dividida, pois tanto os indígenas como os africanos não foram considerados pelo colonizador como indivíduos possuidores da alma, o que permaneceu no imaginário coletivo ao longo dos anos.

Souza (2021) e Gonzalez (2020) apontaram que o negro, para se afirmar ou se negar, deveria tomar o branco como referencial de identidade. O colonialismo introduziu o sentimento de inferioridade no colonizado por meio de estratégias de dominação, por meio da difusão ideológica de uma suposta superioridade do colonizador. Dessa forma, o colonizador é retratado como portador de valores civilizatórios superiores e universais, que deverão ser modelos a serem seguidos. Aqui prevaleceram as teorias de miscigenação e da democracia racial, nas quais parte da população não reconhece o racismo como um componente presente e atuante na sociedade. Tal alienação é sustentada por meio da ideologia de branqueamento, que busca negar a existência do negro por meio do silenciamento e da opressão camuflados pelo discurso de igualdade racial.

Kilomba (2019) destaca que a linguagem do trauma é adequada para compreender tais experiências cotidianas de racismo, pois são capazes de promover rupturas internas de si.

Apesar da temática das questões raciais fazer parte da tradição da psicologia social, na área da psicologia clínica, os estudos sobre essa temática ainda são escassos no Brasil (BENEDITO, FERNANDES, 2020). O silenciamento diante do tema presente por muitos anos dificulta a elaboração do trauma. É preciso considerar que tal postura diante de uma sociedade que vive sob os impactos do complexo racial, denuncia a negação e dificuldade de enfrentamento e de elaboração desse trauma coletivo.

Ramos (2010) destaca a necessidade de reconhecer que o racismo no Brasil é um fenômeno complexo, e que se faz necessário investigar o quanto os impactos da escravidão ainda afetam o inconsciente pessoal de indivíduos negros e brancos e o inconsciente coletivo. Nesse sentido, é preciso mobilizarmos estudos e pesquisas que se movam diante da negação coletiva, para atitudes de reconhecimento, responsabilidade e transformação do complexo racial.

Consideramos fundamental retornarmos às ricas contribuições do pensamento junguiano no que se refere à compreensão e intervenção no campo da transformação do complexo racial de maneira criativa. Nessa perspectiva, devemos considerar que, assim como o trabalho para a elaboração e integração dos complexos emocionais exige a intervenção por meio da dimensão simbólica, o complexo cultural também exige um trabalho similar como caminho para a transformação coletiva. A literatura negra mostra-se como um espaço de abertura para a conscientização e transformação dos complexos culturais negados por séculos, um dos caminhos percorridos por essa escrita é o acesso e restauração de memórias pessoais e ancestrais.

(Con)fundindo escrita e vida: memórias negras e “escrevivência”

Se houvesse um monumento à memória negra, deveria ser construído no fundo do mar, em homenagem àqueles que se perderam na travessia. Na impossibilidade de levantar tal monumento, me dedico a construir uma obra literária sobre o tema (EVARISTO In MEIRELES, 2022, n.p.).

Conceição Evaristo, escritora reconhecida nacional e internacionalmente, é uma das grandes referências da literatura na atualidade. É romancista, contista e poeta. O seu trabalho apresenta como tema central a vivência de pessoas negras, em especial das mulheres. Seu trabalho se fundamenta em reflexões e críticas profundas em relação às desigualdades raciais brasileiras. Caracteriza a sua narrativa com termo “escrevivência”. Associa a criação do termo com o jogo de palavras escrever, viver e ser, apontando para uma inversão ao histórico que se fundamenta na fala de mulheres negras escravizadas que tinham que contar suas histórias para a casa-grande. A “escrevivência” apresenta-se como uma proposta abrangente, e subversiva que vai além do campo da literatura.

Conceição afirma que a sua escrita busca “borrar” essa imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história de ninar para os brancos. Ela lembra que os negros foram silenciados ao longo dos séculos de maneira opressiva. “A escrevivência quer provocar a denúncia, rompendo com o silêncio secular: E no campo da literatura essa provocação vai ser feita da maneira mais poética possível” (EVARISTO In MEIRELES, 2022, n.p.).

Podemos identificar a sua obra como um espelho capaz de apresentar múltiplas imagens das vivências dos afrodescendentes. As forças opostas da brutalidade e da delicadeza se encontram e ganham contornos em suas palavras minuciosamente tecidas em figurações poéticas bem desenhadas. A sua escrita é capaz de mobilizar densas emoções ao descrever a crueza de uma realidade desnudada.

Os seus escritos possibilitam ao leitor um encontro com memórias ancestrais. Ela despe com as suas palavras os nossos complexos dialogando com os fantasmas dos navios negreiros. É uma voz secular, profunda. Deparamo-nos em suas palavras com o olhar poético da mulher preta que atravessou os séculos e que encontrou como suas armas o lápis, papel e a memória. Ela alcança um lugar muito tênue entre a ficção e a realidade, e as suas memórias pessoais estão atravessadas pela memória coletiva.

Hillmann (2010) faz uma provocação para a temática das ficções que construímos em nossas trajetórias como forma de alcançar um sentido e uma verdade para elas. Segundo o autor, cada um carrega consigo sua própria trama, escrevendo sua história tanto retrospectivamente quanto em direção ao futuro, à medida que a memória “se cura” na imaginação. Podemos associar essa ideia ao processo de criação de Evaristo, descrito nos seus relatos, pois é uma escrita que brota no espaço intermediário entre memória e ficção.

Brewster (2020), apoiando-se no pensamento de Jung, destaca que a transformação de um complexo, seja ele individual ou coletivo, só será possível por meio de uma força de oposição ao movimento que fere nossos valores e integridade. Ela aponta que a literatura negra americana surgiu como uma força de oposição às narrativas brancas da sociedade racista. Por meio dela é possível reativar a memória do que somos enquanto indivíduos e etnia.

Desse modo podemos considerar que a escrita exerce um importante papel no contexto individual e coletivo ao dar visibilidade às experiências de sofrimento e perdas vivenciadas no processo de diáspora e suas trágicas consequências ao longo dos séculos. Por meio de sua dimensão simbólica, a literatura poderá contribuir de maneira significativa no processo de elaboração do luto coletivo.

Becos da memória – individuação e “escrevivência”

“[...] nada que está narrado em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da memória é mentira” (EVARISTO, 2018, p. 9). “Becos da Memória” é um marco da origem da “escrevivência” de Conceição Evaristo, que afirmou que esse trabalho surgiu ao escutar a voz de sua mãe, narrando um fragmento da memória longínqua. Nesse momento, ela foi transportada no tempo, ficando assim, face a face com o seu eu-menina e, dessa forma, foi possível retomar suas vivências reais e imaginárias junto a sua família e comunidade da favela em que viveu em Belo Horizonte durante a infância e o início da adolescência. A escrita do livro surgiu como uma possibilidade de cobrir os vazios das lembranças transfiguradas.

Em “Becos da Memória” acompanhamos por meio de Maria Nova, uma menina de 13 anos, as histórias e as vivências dos moradores da favela em um período próximo a um desfavelamento. No romance são apresentadas as narrativas de três gerações do clã familiar – Mãe Joana, sua mãe, Maria Velha e Tio Totó – e a comunidade como família estendida de Maria-Nova. As trajetórias são marcadas pela dor, pelo sofrimento e por violações de várias ordens, mas sobretudo por resistência, solidariedade e afetividade. É por meio do olhar ambíguo e questionador da adolescência, que vagueia entre a desilusão e a esperança, que a obra transita com muita profundidade. Os personagens são constituídos por mulheres e homens negros, descendentes de escravizados. É possível acompanhar o desenvolvimento psíquico de Maria-Nova por meio de sua interação com os demais personagens que compõem o romance.

A casa, segundo Bachelard (1998), representa o nosso canto do mundo, o nosso primeiro refúgio, por essa razão, muitos dos escritores a tomam como imagem de proteção e estabilidade. Em uma perspectiva imagética, “tendemos a imaginá-la sempre mais do que ela é, pois, com esta imagem arquetípica, estamos justamente no ponto de união entre imaginação e memória: o espaço habitado transcende o espaço geométrico” (BACHELARD, 1998, p. 62).

Por meio da narrativa de Maria-Nova, acessamos uma imagem arquetípica de casa ampliada. A casa de suas memórias, seu universo inicial, referência primeira de proteção e pertencimento, é a favela. Nesse território, os barracos não estão isolados, eles se amontoam e se conectam por meio dos becos, assim como a sua memória. Na introdução do romance, Maria-Nova, já adulta, destaca que o livro é uma homenagem a todas as figuras que se amontoavam dentro dela, assim como os barracos da favela.

No romance, podemos acompanhar os desdobramentos do trauma psíquico vivenciado por uma menina que tem o seu espaço habitacional concreto e subjetivo destruído de maneira brutal. Acompanhamos assim a reatualização do trauma recorrente da diáspora dos afrodes-cendentes. A dor e o sofrimento são inevitáveis diante da expulsão do território continente, dos sonhos e das memórias da coletividade. Em aproximadamente um ano os barracos são demolidos e os moradores gradativamente vão se retirando. Uma nova diáspora é forçada, com a expulsão, os habitantes da favela abandonam a sua comunidade.

A contação de histórias é o fio condutor do romance. Maria-Velha e o Tio Totó, um casal de velhos, e o andarilho Bondade são portadores e transmissores das histórias da comunidade e da ancestralidade. Esses anciões reproduzem a cultura africana milenar de contação de histórias, eles são os portadores da memória do povo e os transmissores de ensinamentos. A eles cabe o papel “dos griots”, guardiões das memórias coletivas, cuja função é compartilhar as experiências ancestrais para as novas gerações por meio da narrativa oral. Esses indivíduos são referências tradicionalmente importantes para a preservação e transmissão dos conhecimentos dentro da cultura de vários países africanos (HAMPATÊ, 2010).

Bosi (1994) destaca que a narrativa só ganha sentido a partir da ressonância de quem escuta. Dessa forma podemos inferir que o narrador se alimenta com a presença ativa do ouvinte. Os jovens ouvintes, a partir da escuta, mergulham em suas raízes por meio das histórias/memórias narradas pelos ancestrais. Nesse movimento, o velho adquire um valor fundamental para a família e comunidade. Conforme propôs Benjamin (1987), diferentemente da informação, que só tem valor no momento imediato em que é novidade, a narrativa, como forma artesanal de comunicação, conserva suas forças germinativas ao longo do tempo. É por meio dos conhecimentos compartilhados e transmitidos entre gerações que o narrador constrói a sua narrativa, a partir de sua experiência pessoal ou por meio da incorporação das histórias relatadas pelos outros.

É nessa perspectiva que Maria-Nova, no auge de sua adolescência, introjeta os ensinamentos transmitidos pelos mais velhos. Diante das experiências vividas, ela carregava um estranho sentimento no peito. Sentia naquele momento de sua vida, mesmo sem saber como, que haveria de contar as histórias dela e dos outros. Ao acompanharmos as suas elocuções internas, é possível identificarmos aqui o ponto de partida do trabalho literário de Conceição Evaristo. Intuitivamente, Maria-Nova reconhece o “chamado” de sua alma inquieta e assumiria para si, como destino, ser porta-voz de seu povo. Nesse momento criação e criatura se (con)fundem, ficção e realidade se entrelaçam. Conceição denominou como “escrevivência” esse fenômeno de entrelaçamento, no qual as vivências individuais e coletivas, a subjetividade e coletividade se encontram por meio da literatura.

Podemos compreender esse caminho percorrido por ela, e tão bem descrito em “Becos da Memória”, como uma marca significativa do seu processo de individuação. Conforme proposto por Jung (2016, p. 166), “a individuação se refere ao processo do desenvolvimento da personalidade, por meio da integração dos conteúdos do inconsciente, pessoal e coletivo, à consciência”. Significa um alargamento da consciência, de maneira contínua, não linear. Porém, esse processo só é possível de se realizar por meio da experiência do encontro com o outro, seja na relação concreta do indivíduo com a comunidade a que se pertence ou na internalização do(s) outro(s) em si, em sua dimensão subjetiva e simbólica (BARRETO, 2010).

Maria-Nova amplia a consciência de si à medida que se relaciona com o seu entorno, se reconhece e se enraíza nas experiências da coletividade. Em muitos momentos do romance, ela é descrita com os sentidos aguçados, recolhida em profunda introspecção.

Desse modo, podemos inferir que a sua energia psíquica se movimenta por meio da introjeção contemplativa e de reflexões solitárias. Por outro lado, a sua indignação se manifestava de maneira recorrente e a fazia se projetar em uma realidade diferente. Diante da destruição e mortes presentes na favela, “Maria-Nova sentia que seria preciso modificar a própria história, tinha um compromisso com a vida e não podia recuar” (EVARISTO, 2018, p. 48).

O banzo como expressão arquetípica do luto

O pai do tio Totó, ao narrar as histórias dos antepassados, comentava sobre uma dor estranha que nos dias de muito sol apertava o peito.

Era a dor do banzo. O avô de Maria-Velha também falava da mesma dor ao perder quase todos os filhos vendidos pelo seu senhor. Maria-Nova também era dada à tristeza, já tinha o banzo no sangue, guardava no peito saudades de uma vida longínqua, não vivida (EVARISTO, 2018, p. 89).

No decorrer da trama, a menina, ao testemunhar o sofrimento de várias ordens, é tomada por grande tristeza, o seu coração se enchia de dor, ela havia herdado o sentimento do banzo.

O termo banzo é amplo, abarca a tristeza, a nostalgia, o luto e o desassossego da alma vivenciados pelos negros escravizados. Segundo Lopes (2011), banzo é uma palavra originária das línguas quicongo e quimbundo e refere-se a pensamento, lembrança, saudade, paixão e mágoa. Era uma nostalgia mortal que acometia os negros escravizados no Brasil. No primeiro dicionário da língua portuguesa (ODA, 2008) a palavra banzar foi definida como ação de “pasmar com pena”. Referia-se, no passado, a uma reação à experiência traumática do sequestro e da escravidão vividos pelos povos negros. A partir dali homens e mulheres escravizados viveriam em estado de desassossego da alma, decorrente do exílio forçado e dos desdobramentos da escravidão, tortura e aniquilamento da existência. No século XVIII, o banzo foi classificado como epidemia psiquiátrica decorrente de uma enfermidade melancólica relacionada ao desgosto causado pelo afastamento violento da África, rompimento brutal com os vínculos familiares e comunitários, e a revolta pela perda de liberdade e as reações aos castigos pesados e injustos (ODA, 2008).

O banzo atravessou os séculos e ainda se faz presente nos descendentes que ainda sofrem as sequelas de um sistema social escravocrata. A favela atualiza a vivência da senzala em fome, falta de higiene básica, violência física e simbólica e exploração do trabalho.

No meio da favela existia um buraco imenso que crescia na época da chuva e dos desbarracamentos, era depositário do lixo dos moradores e ameaçava a comunidade. Maria-Nova o descreveu como uma imponente cratera que desafiava o mundo (EVARISTO, 2018). No momento de despedida da favela, após olhar o “buracão” bem no fundo, sentiu que dentro de si havia um buraco vazio, maior que aquele que externamente observava. Por um minuto, ao contemplar o buracão, sentiu como se tudo se desintegrasse dentro de si.

Cidinha-Cidoca, outra moradora da favela, bonita e faceira, tinha “o rabo de ouro”, desejada pelos homens e odiada pelas mulheres, naquele momento andava quieta, suja e descabelada, com o olhar parado no vazio. Tomada por amargura e desilusão, endoideceu, cansada de padecer do “não viver”, lançou-se no buracão da favela que engolia tudo e assim morreu.

A experiência traumática pode ser visualizada como uma grande fenda que se abre no inconsciente. Podemos aproximar a imagem do buracão de uma personificação sombria do trauma coletivo da diáspora negra, atualizando a experiência de fragmentação emocional por meio da violência e exclusão a que a comunidade é exposta cotidianamente. O trauma, associado à força autônoma do complexo emocional, é capaz de atrair para si, de maneira ameaçadora, a energia psíquica e criativa, interrompendo assim o fluxo do desenvolvimento espontâneo da vida. Kalsched destaca que os complexos crescem por agregação, atraindo cada vez mais realidade, como um buraco negro no espaço, triturando pedaços de experiência (KALSCHED, 2013, p. 122). O buracão da favela, cova funda e exposta, como um câncer faminto, devora a terra, elemento que simboliza a sustentação da vida concreta. Considerando ainda que a terra pode ser associada às imagens maternais de fecundidade e regeneração, o buracão, como uma chaga aberta, é o alerta sempre presente da ameaça e aniquilação da vida.

Bastide (1943) e Oda (2010) apontaram que, no período da escravização no Brasil, o suicídio de muitos escravizados estava relacionado ao banzo. Em muitos casos, o suicídio foi associado à manifestação de resistência e à busca de libertação da brutal condição de aprisionamento e aniquilamento da condição de humanidade dos indivíduos. Uma das formas descritas de suicídio frequente dos escravizados, adoecidos pelo banzo, era por meio de ingestão da terra, prática trazida pela África. Dessa maneira, simbolicamente, os negros buscavam, paradoxalmente, por meio da morte física, retornar a vida simbólica, ao resgatar a liberdade perdida.

Kilomba (2019) descreve a presença de muitos relatos que ligam o suicídio ao impacto do racismo e do isolamento nas narrativas dos escravizados no período colonial e de negros na contemporaneidade. A autora reflete que, em contexto de aniquilamento da humanidade por meio do racismo, o suicídio pode emergir como uma função subversiva dentro das dinâmicas de opressão racial. Como performance final o sujeito reivindica a própria subjetividade. É nesse sentido que podemos compreender o suicídio de Cidinha-Cindoca, como ato de reivindicação de um desfecho final trágico, porém de legítima autonomia diante do desespero diante da própria existência. Brewster (2020), ao se referir às nuances dos complexos raciais, destaca o “luto arquetípico” como parte do trauma cultural decorrente do efeito da escravidão. O complexo racial carrega emoções de medo, tristeza e raiva profundos, e o trauma é reativado transgeracionalmente à medida que as experiências similares de opressão são revividas nas gerações posteriores. Somos fortemente afetados pelo nosso passado pessoal e coletivo. As gerações carregam em sua memória ancestral a dor da inferiorização e da invisibilidade. O luto vivenciado pelos ancestrais é reativado em Maria-Nova ao entrar em contato com as narrativas dos mais velhos e por meio das suas vivências pessoais e da comunidade. A cultura escravagista ainda não foi desfeita, ela se atualiza diante do olhar da menina, que terá diante de si como desafio para a sua jornada, o trabalho elaborativo dos seus lutos pessoais e coletivos.

Maria-Nova, ao se aproximar da realidade que se desvela em cada beco da favela e das memórias compartilhadas pelos mais velhos, se depara com a dolorosa experiência do “banzar” percebe que “Todos morreriam um dia, inclusive alguns dos moradores da favela, no desespero da vida repetiam a trajetória dos negros escravizados nos séculos passados e encontrariam na morte a única saída” (EVARISTO, 2018, p. 38) Ela compreende que precisaria seguir a sua vida, gostava de aprender, essa seria a sua esperança e salvação. Junto à experiência do desassossego do banzo, estavam presentes as sementes das histórias narradas pelos griots. Tais sementes serão incorporadas na psique de Maria-Nova e germinadas em suas memórias. As suas “escrevivências” reverberam como expressão de resistência. Aos olhos dos velhos da comunidade, a sua vida representava a esperança da transformação presente na nova geração.

Despedida e iniciação

As últimas páginas do livro relatam os momentos de despedida de Maria-Nova dos últimos moradores que restavam na favela ao final da devastação ruidosa do desfavelamento.

O último lugar que ela foi visitar antes da partida foi a casa de Vó Rita, moradora antiga da comunidade, que transbordava amor por todos os lados. Muitos moradores haviam nascido por meio de suas mãos de parteira. Chegando a essa casa, Maria-Nova, ao atravessar o portão despencado, sentia como se estivesse ultrapassando o próprio limite da vida, sem morrer. Vó Rita a recebe carinhosamente e abençoa a sua jornada.

Podemos considerar que o processo de despedida de Maria-Nova da favela e as bênçãos recebidas pelos velhos simbolicamente apontam para um ritual de passagem para a sua vida adulta. Após esses encontros, Maria-Nova teve um grande sonho:

Vó Rita entrou devagarinho no quarto. De repente. Calada. Ela que não tinha a voz calada nunca, pois, se não estava falando, cantando estava; que nunca chegava de repente, pois se sabia de longe que Vó Rita estava chegando. E eis que ela chegou pé ante pé. Grandona, gorda, desajeitada. Abriu a blusa e através do negro luzidio e transparente de sua pele, via-se lá dentro um coração enorme. E cada batida do coração de Vó Rita nasciam os homens. Todos os homens: negros, brancos, azuis, amarelos, cor de rosa, descoloridos... Do coração enorme, grande de Vó Rita, nascia a humanidade inteira (EVARISTO, 2018, p. 141).

Pela riqueza simbólica e poética presente no relato de Maria-Nova podemos inferir que se trata de um Grande Sonho (JUNG, 2014). Tais sonhos são carregados de imagens arquetípicas capazes de gerar transformações emocionais profundas e redimensionamento da própria vida. Vó Rita, que cotidianamente representava “a grande mãe da comunidade”, sempre com uma postura tão barulhenta, no sonho, entra no quarto de Maria-Nova de maneira cautelosa. A forma grande e gorda de Vó Rita remete ao arquétipo da força do materno ancestral. Ganha destaque na imagem onírica o seu “ventre coronário” como fonte geradora da vida, visível através de sua pele iluminada e transparente, o que nos remete à dimensão espiritual da imagem.

No sonho, a alma de Vó Rita é revelada e é por meio do pulsar de seu coração que os homens, com todas as suas diversidades de cor, são gerados. A origem da humanidade surge assim do pulsar da amorosidade da alma maternal. No vocabulário mandê, Nimba significa o feminino enquanto alma, esse significado está presente na antiquíssima deusa da fertilidade Nimba, cultuada em rituais praticados pelos povos africanos Baga e Nalu. Segundo Paiva (2021), nos rituais, Nimba é representada por muitas cores, é uma deusa que gera, atua, coopera, compartilha e tece o destino da vida dos seres.

Considerando a dimensão arquetípica do sonho, podemos pensar que Maria-Nova foi visitada em seu quarto pela alma feminina universal, já que o termo “avó” transmite uma forte referência afetiva da matriz ancestral. Podemos pensar que, simbolicamente, Vó Rita constela a imagem da Mama África fortemente identificada com a origem da humanidade, considerando os vários indícios já descobertos de que o homo sapiens surgiu naquele continente. Se nos aproximamos um pouco do nosso território, podemos inferir que a matriz africana constitui uma das marcas da nacionalidade brasileira, tais referências negras se atualizam nas imagens das Mães de Santo, nas tias da periferia, nas rainhas das congadas, entre tantas outras.

O quarto, espaço de intimidade, limitado pelo tempo e espaço, pode ser associado à consciência egoica de Maria-Nova, que é penetrada, de maneira cuidadosa pelo conteúdo arcaico e ancestral do inconsciente coletivo. É uma experiência arrebatadora, na qual ela se depara com a força curativa de sua ancestralidade, presente nas imagens da fecundidade, solidariedade e criatividade, elementos essenciais para a sua trajetória pessoal e legado coletivo pautados em sua “escrevivência”. Evaristo relatou que, à medida que entrava na adolescência, a escrita passou a ser para ela um lugar de suporte para desaguar as suas dúvidas e angústias:

Se a leitura desde a adolescência foi para mim um meio, uma maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que eu vivia, a escrita também, desde aquela época abarcava essas duas possibilidades. Fugir para sonhar e inserir-se para modificar (EVARISTO, 2005, p. 3).

A partir da exploração da obra “Becos da Memória” e dos relatos de Conceição Evaristo, podemos considerar que o seu processo criativo por meio da experiência literária, iniciada em sua adolescência, foi determinante para o seu desenvolvimento individual com grandes reverberações na coletividade. Por meio do exercício da introversão imaginativa foi possível distanciar- se dos impactos presentes na realidade concreta e, nesse movimento introspectivo, encontrou os elementos necessários para o enfrentamento e transformação da realidade por meio do exercício da escrita.

Jung destacou a força do processo criativo como um impulso que brota do inconsciente. Ele recorre à imagem do desenvolvimento de uma árvore para descrever o anseio criativo que: “[...] vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai o seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem” (2013, p. 75). Ele denominou tal essência como “complexo autônomo” devido à dimensão arquetípica, transpessoal, que caracteriza o impulso criativo. Desse modo, a produção da obra de arte tem uma dimensão coletiva que se manifesta na elaboração do trabalho individual do artista. O processo criativo ocorre por meio da ativação de conteúdos arquetípicos presentes no campo do inconsciente coletivo. Jung atribuiu um papel fundamental da obra de arte como agente educativo e curativo no campo da coletividade:

[...] trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação do presente, a ânsia do artista recua até encontrar no inconsciente aquela imagem primordial adequada para compensar de modo mais efetivo a carência e unilateralidade do espírito da época (2012, p. 83).

O incômodo e a indignação vividos por Conceição Evaristo nos anos iniciais de sua vida diante das contradições impostas pelo racismo em suas diversas manifestações foram as sementes geradoras de seu processo de libertação na dimensão pessoal com forte impacto na psique coletiva. A sua obra literária, pautada no que ela denominou por “escrevivência”, é um exemplo de como as memórias pessoais, incluindo as traumáticas, carregadas pela potência dos complexos individuais e coletivos, quando experimentadas e reeditadas em sua dimensão simbólica por meio da escrita podem desencadear transformações psíquicas de maneira criativa no campo individual e coletivo. A escrita de “Becos da memória” revela o processo de iniciação de Conceição Evaristo (2018) em sua jornada literária por meio da escrevivência:

As histórias são inventadas, mesmo as reais quando são contadas. Entre o acontecimento e a narração do fato, há espaço em profundidade, é ali que explode a invenção [...]. Na base, no fundamento da narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e dos meus. Escrever Becos foi perseguir uma escrevivência (p. 9).

Considerações finais

A consideração da dimensão simbólica como elemento estruturante da condição humana, tão presente nos estudos junguianos, é uma referência primordial para a compreensão da realidade psíquica e coletiva. Tal perspectiva se apresenta como muito valiosa em tempos sombrios como o que atravessamos, em que os discursos rasos, rígidos e literalizantes da vida ganham espaço e se apresentam como sintoma coletivo de um profundo esvaziamento.

O ato de narrar e compartilhar memórias é uma forma de construir e se reconstruir enquanto referência de continuidade e subjetividade, dessa forma é possível, por meio da fala e da escrita, estabelecer contato com a história pessoal e coletiva, fortalecendo a própria identidade. As narrativas memorialísticas se movimentam de maneira fluida, entre ficção e realidade, entre o inconsciente e a consciência. Desse modo tais narrativas nos aproximam do passado de maneira reconstrutiva por meio dos recursos apresentados no presente e podemos assim nos projetar no futuro.

O Brasil pode ser reconhecido como uma nação que se constituiu com uma grande riqueza no que se refere a sua diversidade cultural, por outro lado, é também identificado como um país com uma grande dívida simbólica no que se refere à segregação, à exploração e ao abuso dos povos indígenas e dos descendentes africanos.

Tal silenciamento é consequência de um projeto colonizador que, de forma consciente e inconsciente, causou rupturas profundas que repercutiram em nossa psique individual e coletiva ao longo dos séculos.

Partindo da perspectiva de que a nossa individualidade se desenvolve por meio do reconhecimento da nossa totalidade, as memórias também podem ser consideradas como matéria- prima da alma coletiva. Um povo, quando tem as suas memórias apagadas, padece do sofrimento de desenraizamento e aniquilamento simbólico, muitas vezes oriundos de uma fissura traumática grave. Nesse sentido, a restauração das memórias negras, por meio das narrativas, se insere no campo da resistência e da cura.

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Recebido: 21 de Fevereiro de 2023; Aceito: 02 de Julho de 2023

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