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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.41 no.1 São Paulo  2023  Epub 29-Nov-2024

https://doi.org/10.70435/junguiana.v41i1.26 

Artigo

“África, o fio”: sobre a presença ancestral no inconsciente

“África, punto de anclaje”: sobre la presencia ancestral en el inconsciente

Ana de Oliveira Urpia* 

*Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Analista Candidata do IPABahia. E-mail: anaurpia@ufrb.edu.br


Resumo

Questionando o pensamento opositivo que terminou por exagerar as diferenças entre África e “Ocidente”, pretendemos: 1) fazer uma aproximação ao sentido de ancestralidade na África tradicional, sobretudo através da obra do filósofo ganense Kwase Wiredu, 2) apresentar a noção de “complexo [ou imagem] ancestral” em Jung, de modo a refletir sobre a “presença ancestral” no inconsciente junguiano e sua atuação na dinâmica psíquica. Nosso objetivo é ensaiar uma “comunicação transcultural” entre o pensar tradicional africano e o pensar junguiano, partindo do pressuposto de que há entre eles aproximações. Concluímos que uma clínica fundada no princípio da ancestralidade não nega as raízes do pensamento junguiano, ao contrário, aprofunda um aspecto da obra de Jung que à sua época sofreu muitas críticas, haja vista o olhar colonialista do mundo europeu para as Áfricas e as dificuldades da psicologia em tratar os chamados “fenômenos religiosos e anomalísticos” como “fatos psíquicos”.

Palavras-chave Ancestralidade; Psicologia Analítica; inconsciente; África; Jung

Resumen

Cuestionando el pensamiento opositor que terminó exagerando las diferencias entre África y “Occidente”, pretendemos 1) realizar una aproximación al sentido de ancestralidad en el África tradicional, sobre todo, a través de la obra del filósofo ghanés Kwase Wiredu, 2) presentar la noción de “complejo [o imagen] ancestral” en Jung, para, de ese modo, reflexionar sobre la “presencia ancestral” en el inconsciente junguiano y, sobre su participación en la dinámica psíquica. Nuestro objetivo, es ensayar una “comunicación transcultural” entre el pensamiento tradicional africano y el pensamiento junguiano, partiendo del presupuesto de que hay entre ellos un “punto en común”. Llegamos a la conclusión, de que, una clínica fundada en el principio de la ancestralidad no reniega de las raíces del pensamiento junguiano, todo lo contrario, profundiza en un aspecto de la obra de Jung, la cual, en su momento, sufrió innúmeras críticas, si tenemos en cuenta la mirada colonialista del mundo europeo de las diferentes Áfricas y las dificultades de la psicología para considerar, los llamados “fenómenos religiosos y anomalísticos”, como “hechos psíquicos”.

Palabras clave ancestralidad; psicología analítica; inconsciente; África; Jung

Abstract

Questioning the oppositional thinking that ended up exaggerating the differences between Africa and “West”, we intend to 1) approach the sense of ancestry in traditional Africa, especially through the work of the Ghanaian philosopher Kwase Wiredu, 2) present the notion of “ancestral complex [or image]” in Jung, in order to reflect on the “ancestral presence” in the Jungian unconscious and on its role in psychic dynamics. Our objective is to test a “transcultural communication” between traditional African thinking and Jungian thinking, based on the assumption that there is something common between them. We conclude that a clinic founded on the principle of ancestry does not deny the roots of Jungian thought, on the contrary, it deepens an aspect of Jung’s work that at his time suffered much criticism, given the colonialist look of the European world towards the Africas and the difficulties of the psychology in treating the so-called “religious and anomalistic phenomena” as “psychic facts”.

Keywords: Ancestry; analytical psychology; unconscious; Africa; Jung

Palavras iniciais - Avançando com os ancestrais

Um pé na frente outro atrás

Lá vão andando felizes

o novo com os ancestrais

o pé de trás, o ancestral, não vai sozinho,

indica, guia, alimenta o novo caminho

apoia o pé na frente, o presente, na gente

ancestral: luneta, farol de toda imaginação

ancestral: apoio, pilar de sustentação

o novo-ancestral sábio caminho

caminha pisando firme e macio

antigo-novo olhar diferente alimento bom

pra gente

alimento bom dentro da gente (TAVARES, 2012, p. 132).

Como observou Roger Brooke em uma palestra organizada pela Thiasos1 em 2022, Jung nos deixou uma inegável herança de sua aproximação com África, mas também deixou sua sombra e a sombra de seu tempo. Para “avançarmos com o nosso ancestral”2, vamos precisar reconhecer isso e atualizar o diálogo com África em novas bases. Ao olhar para a África, diz Brooke, Jung a viu como uma espécie de retorno da humanidade no tempo. Em sua viagem ao continente africano, ansiava poder encontrar uma parte de si mesmo (e do europeu) que considerava ter sido perdida no processo civilizatório. Uma expectativa que responde em parte à datação de sua obra e ao grau de reflexão antropológica dominante na época. Mas a visita à África assim como ao México não deixaria Jung jamais sossegado, de tal sorte que a sua teoria seria profundamente marcada por essa experiência.

Assim, em Seminários sobre sonhos de crianças: sobre o método de interpretação dos sonhos: interpretação psicológica dos sonhos de crianças (JUNG, 2011), o iniciador da psicologia analítica denuncia, um tanto incomodado com a adjetivação, que o estavam acusando de ser “primitivo” e de praticar “demonologia”, justamente por esta sua aproximação ao pensamento “tradicional”, que é bom que se diga, não é exclusivo de África (WIREDU, 1984). A ousadia de Jung foi afirmar que havia convergências no material psíquico dos “homens [ditos] primitivos” e dos “homens [ditos] culturais” (JUNG, 2011), pressuposto que mais tarde resultaria na tese da existência de um “inconsciente coletivo”. Sua ousadia foi, pois, concluir, após anos de estudo comparativo de material simbólico de sonhos, o que não deveria ter sido necessário provar não fosse o eurocentrismo dominante, a humanidade de África!

Como sublinha Eboussi-Boulaga numa entrevista a Achille Mbembe e Célestin Monga (2009 apud KOM, 2009), o homem da condição africana precisou e precisa afirmar-se ainda hoje, superando tudo aquilo que desafia e contesta sua humanidade e a coloca em perigo. Cabe-lhe avaliar sua situação enfrentando o que e quem for preciso para encontrar não somente um lugar para si, mas seu lugar num mundo comum. Para fazê-lo, é necessário, sem dúvida, como observa Mbembe (2014), um olhar cuidadoso ao mundo dos afetos e do imaginário, visto que ao longo de séculos, mantivemos com África uma relação fundamentalmente imaginária, moldada por narrativas de “fatos” que foram muitas vezes inventados.

Este artigo busca retomar em novas bases o diálogo da Psicologia Analítica com África. Pretendemos estabelecer uma “comunicação transcultural” (SODRÉ, 2017, p. 194) entre o pensamento tradicional africano e o pensamento junguiano, buscando não cair numa armadilha muito comum nas tentativas de aproximação dos pensamentos afro e ameríndios na psicologia, que é a redução destes pensamentos a categorias do pensamento ocidental. Isso implica um importante deslocamento epistêmico, na medida em que o que está em questão, como sublinha Sodré (2017), não é a revelação antropológica de um sistema simbólico coerente, mas o reconhecimento de outra forma de pensar com o qual seja possível uma comunicação, que o autor denominou transcultural.

Tomando “África como fio”3, e sustentados pelas pesquisas e reflexões de intelectuais afro-brasileiros como Muniz Sodré (2017) e Eduardo Oliveira (2021), e intelectuais africanos como Eboussi-Boulaga (1977), Mbembe (2014) e, particularmente, do filósofo ganense de origem Akan Kwase Wiredu (1984, 2010), buscamos nos aproximar de um dos mais centrais princípios do pensamento tradicional africano: a ancestralidade; para em seguida, apresentar a noção de “complexo [ou imagem] ancestral” em Carl Gustav Jung, identificando suas aproximações com o pensamento tradicional africano, bem como destacando o lugar que os ancestrais ocupam no inconsciente junguiano e como atuam na vida psíquica.

Evitaremos oposições entre África e Ocidente, assim como as comparações entre uma suposta África tradicional e um Ocidente moderno, civilizado, um tipo de relação que obscurece o fato de que todas as civilizações têm algum tipo de pensamento tradicional como pano de fundo, inclusive a civilização ocidental, assim como o fato de que há muitas Áfricas no continente africano, dentre elas, Áfricas tradicionais, que convivem contemporaneamente com Áfricas modernas (WIREDU, 1984; EBOUSSI-BOULAGA, 1977). Consideramos, com Eboussi-Boulaga (1977), que o ter-em-comum da tradição foi uma resultante do fato histórico da violência colonial, não fosse isso, não haveria “tradição africana”, porque não havia “africano”.

Ressaltamos que o nosso objetivo não é comparar o pensamento tradicional africano com o pensamento junguiano, haja vista os efeitos perniciosos de tal prática, descritos muito bem por Wiredu (1984). Segundo o autor, esse tipo de comparação, em vez de tomar as características não científicas básicas do pensamento tradicional africano como um tipo de pensamento tradicional em geral – características presentes em todo e qualquer pensamento tradicional dentro e fora de África –, conclui que estas definem uma forma peculiar de pensamento africano (WIREDU, 1984). Esse tipo de abordagem acaba por exagerar as diferenças de natureza entre o modo de pensar dos povos africanos e dos ocidentais, e criar uma imagem de inferioridade intelectual dos povos africanos, vistos como povos que tendem a dar explicações dos fenômenos naturais a partir da atividade de deuses e espíritos ancestrais, ou seja, explicações não científicas.

“O novo com os ancestrais”

Impossível falar de Áfricas sem fazer referência à questão ancestral. A ancestralidade é um princípio fundante no pensamento tradicional africano. No Brasil contemporâneo, ela deixa de remeter a uma simples relação de parentesco consanguíneo, como acontecia entre os fins do século XIX e início do XX, para ser alçada por intelectuais e ativistas afro-brasileiros à categoria analítica e metafísica capaz de recuperar miticamente o sentido de africanidade. A ancestralidade é a fonte de onde emergem os princípios da tradição africana recriada no Brasil pelas comunidades de terreiro, mas não está hoje limitada à esfera religiosa e às fronteiras do candomblé, ela é contemporaneamente símbolo de resistência negra (OLIVEIRA, 2021).

Mas o que significa falar em ancestralidade desde a perspectiva tradicional africana? Pergunta importante se não queremos nos arriscar a esvaziar o sentido e a potência desse princípio fundante do pensamento afro no Brasil bem como o sentido mais amplo de falar em “imagens ancestrais” no inconsciente junguiano. Recorreremos sobretudo a um filósofo ganense de origem Akan que nos apresenta em profundidade o sentido africano de ancestralidade em seus escritos: Kwase Wiredu. Com Wiredu (2010), antecipamos que falar de ancestralidade é mais que falar de vida após a morte, é nos remeter ao próprio sentido e continuidade da vida. É falar, como no poema que não só abre como funda e guia este artigo, do “novo com os ancestrais”, da continuidade destes últimos, na trajetória de vida dos primeiros.

Wiredu (2010) 4 começa questionando a própria ideia de vida após a morte. Segundo ele, do ponto de vista do pensamento tradicional africano não é possível afirmar que o mundo dos mortos seja um outro mundo, seria mais correto dizer que é uma parte deste mundo. Há uma unidade cultural entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, quase como se um fosse a extensão do outro.

Em suas palavras, “[...] esta vida pode ser vista como uma preparação para uma vida após a morte, cujo significado, no entanto, consiste em garantir o bem-estar dos vivos” (WIREDU, 2010, p. 141). Há um relacionamento contínuo e constante entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, ou como observa Wiredu (2010, p. 138), “[...] talvez devêssemos dizer [o mundo d] os mortos-mas-vivos”.

O autor explica que as próprias descrições da vida após a morte em geral incluem indicações explícitas de que a transição desta vida para a próxima é feita por viagens terrestres, ou seja, de uma região do território para outra. Os limites entre um mundo e outro são muitas vezes marcados por rios e o ponto alto da jornada post-mortem, a travessia de um rio. É, pois, após cruzar um determinado rio na “embarcação dos mortos” (PARÉS, 2016, p. 70), que a pessoa entra na terra dos que partiram, juntando-se assim à sociedade dos ancestrais.

Na África Ocidental, o objetivo de fazer a última jornada é se tornar um ancestral. Mas o que significa se tornar um ancestral? Não obstante essa última jornada seja um marco importante no processo referido, seu significado mais profundo se relaciona menos com a passagem para o mundo dos mortos e mais com a responsabilidade que se assume a partir de então: cuidar dos assuntos dos membros vivos de suas famílias, ajudando os merecedores e punindo aqueles que delinquem. A condição para tornar-se um ancestral na África Ocidental não está no fato de morrer, mas no fato de ter vivido uma vida plena e significativa e de ter deixado descendentes que lhes honrarão e darão continuidade a sua existência.

“Um ancião Nuer ou Dinka, por exemplo, embora tome como certa a existência da vida após a morte, não dá muita importância a ela” (WIREDU, 2010, p. 144, grifo nosso). Wiredu (2010), citando o trabalho de Evans-Pritchard (1956), observa que na sociedade dos Nuer, “todo homem tem pelo menos um filho e através deste filho, seu nome é para sempre um elo em uma linha de descendência. Esta é a única forma de imortalidade na qual os Nuer estão interessados” (WIREDU, 2010, p. 144).

Embora não seja possível universalizar esse pensamento para todos os povos africanos, um outro aspecto curioso dessa discussão é que, na visão de alguns povos, como os Akans de Gana, uma pessoa cuja vida foi interrompida por um acidente ou uma doença “impura” ou qualquer outra circunstância desagradável, não ganha acesso imediato ao país ou mundo dos ancestrais, torna-se um fantasma da vizinhança, uma fonte de aparições, assombrando os vivos até que possa voltar a nascer para construir uma vida plena, tornando-se assim um ancestral. Nota-se que para estes povos há uma distinção entre ser um fantasma e ser um ancestral. Daí que embora reconhecendo o valor da imagem do “fantasma” na obra junguiana e em trabalhos como o de Samuel Kimbles (2014) e de James Hollis (2017), e suas importantes consequências para a compreensão da influência invisível dos ancestrais no domínio psíquico, consideramos que algo se perde do sentido da ancestralidade nesta imagem, motivo pelo qual preferimos a imagem do ancestral.

Segundo Wiredu, entre os Akans de Gana e da Costa do Marfim, os Yorubás (também conhecidos como Nagôs no Brasil) de Nigéria e Benim ou os Mende de Serra Leoa, “[...] os ancestrais são altamente valorizados e respeitados, e a ideia de um dia tornar-se um ancestral é, de fato, música para seus ouvidos”. Mas, sublinha o autor, “no entanto, tornar-se um ancestral, como já apontado, apenas habilita a pessoa a ajudar os vivos a realizar os propósitos humanos” (WIREDU, 2010, p. 144). Uma vida com sentido é aquela em que a pessoa se empenha em promover o bem-estar pessoal, familiar e comunitário, uma vida desse tipo é significativa, ainda que não exista crença na vida após a morte. Isto porque na cosmopercepção desses povos, “o destino humano começa e termina neste mundo” (WIREDU, 2010, p. 145).

Nota-se, pois, que o conceito de imortalidade para estes povos é pragmático. É a imortalidade a serviço da comunidade ou da humanidade. A terra africana dos mortos não é o paraíso, e a vida dos ancestrais não é uma vida feliz, mas uma vida de dignidade e serenidade. “A única preocupação dessa existência é”, de acordo com Wiredu (2010, p. 145-6), “com o bem da ala viva da família e do clã. É sobre sua capacidade de atingir esse objetivo que a importância dos ancestrais é baseada”.

Se por um lado, os ancestrais estão lá para cuidar bem dos vivos, por outro, os vivos se sentem não apenas em dívida com os ancestrais por sua ajuda e proteção, mas também obrigados a honrá-los. Há duas formas interconectadas de honrar os ancestrais. A primeira é simplesmente viver em retidão. Viver honestamente é uma forma de honrar a família, e como os ancestrais constituem parte da família, honrá-la significa consequentemente, honrá-los. Conduzir-se de forma equivocada, por outro lado, traz desgraça à família viva e desagrado aos antepassados.

Os ancestrais, em sua condição post-mortem, têm seu status moral elevado e por isto não são passíveis de serem acometidos por infortúnios, mas devido à sua mais alta moralidade, sentem-se mais escandalizados pelas más ações dos vivos do que os anciãos da família. A conduta errada pode assumir três formas básicas: desrespeitar a lei moral, desrespeitar os regulamentos civis ou os costumes e tabus da comunidade e deixar de cuidar bem dos assuntos familiares.

A segunda forma de honrar os ancestrais é de ordem menos geral e, portanto, mais particular: um membro falecido da família pode ter deixado para seu sucessor um projeto incompleto, junto com os recursos adequados para sua conclusão, completá-lo significaria honrar os ancestrais; um membro falecido deixou algumas dívidas a serem pagas, essa poderia ser uma oportunidade de defender sua honra; esse membro pode ter deixado dependentes a serem cuidados ou instruções específicas podem ter sido dadas antes da morte para que certas coisas sejam feitas. Uma vez que essas questões dizem respeito a obrigações bem definidas, seu descumprimento pode provocar punição do ancestral, que em geral assume a forma de doenças inexplicáveis, como teria observado também Jung (2013ª) em sua viagem ao continente africano.

Os complexos (ou imagens) ancestrais no inconsciente junguiano

Falar de ancestralidade não é algo estranho ao pensamento analítico. Ao contrário. A própria proposição de Jung de um inconsciente pessoal, ou subjetivo, e outro coletivo, transpessoal ou objetivo, deve algo a este princípio fundante do pensamento tradicional africano. A ancestralidade é a própria base a partir da qual a ideia de inconsciente coletivo se erige, de tal sorte que poderíamos dizer que o inconsciente junguiano é ancestral, ou, dito de outro modo, há imagens ancestrais no inconsciente! Nas palavras de Jung, “o inconsciente coletivo compreende toda a vida psíquica dos antepassados desde os seus primórdios” (JUNG, 2013ª, p. 58), mas a presença de imagens ancestrais no inconsciente não se resume a sua porção coletiva, ela também está viva no inconsciente pessoal.

Para Jung (2014ª), há uma camada mais superficial do inconsciente que é formada por conteúdos de ordem pessoal, ele a denominou inconsciente pessoal. Este, no entanto, repousa sobre uma camada mais profunda, que, ao contrário desta camada superficial, não tem sua origem em experiências pessoais reprimidas, esquecidas ou não assimiladas pelo consciente, antes, é inata. A esta camada mais profunda e primeira, ele deu o nome de inconsciente coletivo. O nome “coletivo” aponta para o fato de que seu conteúdo não é de natureza individual, mas “[...] de muitos indivíduos ao mesmo tempo, ou seja, de uma sociedade, de um povo, ou da humanidade” (JUNG, 2013b, p. 435). Para Jung, o ser humano “[...] possui, como todo animal, uma ‘psique pré-formada’ de acordo com sua espécie, a qual revela também traços nítidos de antecedentes familiares [...]” (JUNG, 2014ª, p. 85).

A dimensão coletiva do inconsciente em Jung é constituída por uma espécie de substrato comum de natureza psíquica suprapessoal – os arquétipos – herança de toda uma cadeia de experiências ancestrais, que existe em cada indivíduo. Esse substrato comum a todos/as e anterior ao inconsciente pessoal e ao eu-consciente funciona como uma disposição para criar imagens (JUNG, 2013c), que, por se expressarem de forma típica – “a mãe”, “a criança”, “o espírito”, “o velho sábio” etc., recebem o nome de imagens arquetípicas.

Dito de outro modo, “o arquétipo é uma tendência a criar representações [imagens] muito variáveis [a depender do tempo histórico, do contexto cultural e da história de cada indivíduo], mas sem perder seu modelo primitivo [...]” (JUNG, 2013c, p. 247). Mas como lembra Kast (2019), os arquétipos não são apenas impressões emocionais e imagéticas de experiências repetidas pela humanidade, eles comportam-se empiricamente como forças, tendências à repetição, a uma atuação de um certo tipo, eles nos (co)movem através das formas-(imagin)ação.

O inconsciente coletivo é o pressuposto e a matriz de todos os fatos psíquicos e por isso exerce também uma influência que compromete altamente a liberdade da consciência, visto que tende a recolocar todos os processos conscientes em seus antigos trilhos (JUNG, 2013ª, p. 58).

Mas não são apenas os arquétipos enquanto imagens e padrões de comportamento repetitivos- criativos que comprometem nossa liberdade. Também os complexos do inconsciente pessoal!

O que podemos dizer sobre os complexos?

  • O complexo é uma imagem (ou grupo de imagens relacionadas entre si) de uma determinada situação (ou situações psíquicas) de forte carga emocional, daí Jung (2013ª) usar algumas vezes “complexo afetivo”. A palavra complexo tem a ver com o fato de que Jung observou que, do ponto de vista da vida psíquica, não há processos psíquicos isolados.

  • Os complexos são constelados por situações exteriores evocadoras daqueles conteúdos e imagens a eles relacionadas. O termo constelar exprime o fato de que a situação desencadeou um processo de aglutinação e atualização de imagens carregadas de histórias psicoativas (HOLLIS, 2017).

  • Os complexos gozam de elevada autonomia psíquica, de tal sorte que, estando ativos, constelados, podem nos colocar por um tempo num estado de perda de liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas (JUNG, 2013ª, p. 43-).

  • Os complexos são formados em torno de um núcleo central de significado, em essência arquetípico, visto que “no âmago de todo e qualquer complexo está um arquétipo” (HALL, 2021, p. 21).

  • Os complexos são aspectos parciais da psique que foram dissociados em função de um trauma (individual ou coletivo), um choque emocional, ou um conflito moral. Há uma inconsciência pronunciada em relação aos complexos, motivo pelo qual temos tanta dificuldade de interromper seus efeitos. Quando eles nos tomam, nossa personalidade parece modificada momentaneamente, chamamos a isso de “identificação com o complexo” (JUNG, 2013b, p. 45).

  • A integração consciente dos conteúdos dos complexos tem o efeito de ampliação da esfera de atividade do ego e de liberação da energia que mantinha a dissociação (HALL, 2021). Os complexos não são bons nem maus. Eles são formas de adaptação a uma realidade que não controlamos. O seu maior problema é sua capacidade de remover qualquer julgamento discriminatório, crítico em relação à situação, e de nos impor uma história anterior (HOLLIS, 2017).

  • Os complexos personificam, ou seja, quando reprimidos por uma consciência inibidora, mostram-se, na psicologia onírica, de forma personificada. Jung observou isso também em quadros de psicose nos quais “[...] os complexos “falam alto” e aparecem como “vozes” que representam características de pessoas” (JUNG, 2013ª, p. 45), algumas vezes, como veremos, de ancestrais. Jung tendeu a reduzir a crença nos espíritos e ancestrais e os fenômenos de “possessão” que acompanham toda a história da humanidade e que eram muito comuns entre povos e comunidades tradicionais de seu tempo e no espiritismo nascente, aos complexos autônomos. Outras vezes, porém, afirmou que os complexos se comportam como espíritos e fantasmas, e não que estes últimos são complexos, o que faz toda a diferença. Essa última forma de elaboração é dialógica, baseada num vaivém de analogias entre duas formas de pensar ou imagens, a primeira é reducionista.

  • Existem complexos de vários tipos: complexo de poder, complexo de inferioridade, complexo de abandono, complexo materno, complexo paterno, complexo ancestral etc.

  • Ao aparecer nos sonhos sob a forma de uma imagem, o ancestral, como outras personificações do inconsciente, atua no sentido de regular o funcionamento psíquico. Afinal, o sonho pode ser visto como tentativa de alterar a estrutura dos complexos (HALL, 2021).

A ideia de um inconsciente constituído por elementos ancestrais percorre toda a obra junguiana, mas é em Seminários sobre psicologia analítica (1925) (JUNG, 2014b) que Jung expõe, de forma mais sistematizada, embora ainda preliminarmente, o tema da presença ancestral no inconsciente, afirmando que suas hipóteses em torno do assunto eram “experimentais e não definitivas”, como podemos perceber na resposta que dá à pergunta de Sra. Keller: “[...] eu gostaria de saber um pouco mais sobre a imagem ancestral e a maneira como ela afeta o indivíduo”. Responde Jung: “Receio não ter experiência suficiente para elucidar essa pergunta. Minhas ideias a respeito do tema, afinal, são um tanto experimentais e não definitivas [...]” (JUNG, 2014b, p. 122, grifo da autora), mas dá-lhe um exemplo a fim de lhe explicar como imagina que a coisa funciona. “Suponhamos que um homem teve um desenvolvimento normal por cerca de quarenta anos e então chega a uma situação que desperta um complexo ancestral”.

Segundo Jung, a imagem ou o complexo5 – ancestral – seria ativado pelo fato de a situação vivida pela pessoa em questão constituir uma circunstância na qual ela se adapta melhor através da atitude própria dessa “figura ancestral”. Ou seja, a situação constelou aqueles conteúdos e imagens relacionadas ao complexo, ativou histórias. Nessa mesma obra, Jung afirma existir um eu no consciente e outro formado por “elementos ancestrais inconscientes”, advertindo para o fato de que uma pessoa pode ser “ela mesma” durante um longo período de sua vida e repentinamente cair “sob o domínio de um ancestral” (JUNG, 2014b, p. 76).

Para o autor, muitos dos casos descritos na literatura mostram essas repentinas mudanças de personalidade, mas observa que elas não são normalmente explicadas como “possessão por um ancestral”, isto porque “esta última ideia continua sendo uma hipótese para a qual ainda não existe nenhuma prova científica” (JUNG, 2014b, p. 76) Buscando compreender esse fenômeno, que ele considera ser um “fato psíquico” (JUNG, 2013ª, p. 598), desprezado pela ciência de seu tempo, Jung elabora a seguinte hipótese sobre sua etiologia.

Talvez certos traços pertencentes aos ancestrais tenham sido escondidos na mente como complexos com vida própria que nunca foram assimilados na vida do indivíduo e, depois, por alguma razão desconhecida, estes complexos são ativados, saem da obscuridade nas dobras do inconsciente e começam a dominar a mente inteira (JUNG, 2014b, p. 77, grifo da autora).

Do ponto de vista psíquico, a “imagem” ou “complexo ancestral” (JUNG, 2013ª, 2014b) tem importante relevo. Segundo Jung, a imagem ou complexo ancestral, que como todo complexo tem em seu âmago um arquétipo, pode tomar o lugar de uma adaptação perdida ou substituir uma atitude inadequada, seja de um indivíduo, seja de todo um povo ou nação (JUNG, 2013ª, 2014b). Quando, porém, essa “presença ancestral” – termo que gostaríamos de propor considerando que é como “presença” que o fato psíquico da ancestralidade se configura, como atuação temporária (qual ocorre quando um complexo constela), mas também constante, basilar na dinâmica da psique – manifesta-se de forma nociva, pode ocorrer que o indivíduo experimente perda de libido, depressão e outras enfermidades. Diz Jung (2014b, p. 76): “prosseguindo um pouco mais nestas ideias, é um fato interessante que entre os [povos ditos] primitivos não existe nenhuma doença que não possa ser causada por espíritos que evidentemente são figuras ancestrais”.

Nesse ponto, vale a pena sublinhar que, embora seja em Seminários sobre psicologia analítica (1925) que Jung procura pensar sobre a questão ancestral do ponto de vista da prática clínica, é em A natureza da psique, sobretudo no texto intitulado Os fundamentos psicológicos da crença nos espíritos, que o autor deixa ver que em alguma medida esta sua hipótese deve algo ao pensamento tradicional africano. Neste volume de sua obra, Jung (2013ª) considera que, devido às repercussões psicológicas da influência dos pais serem por demais poderosas em relação aos filhos, muitos povos desenvolveram todo um sistema de culto aos mortos.

Em suas palavras, “o culto aos mortos é, antes de tudo, uma proteção contra a má vontade dos mortos” (JUNG, 2013ª, p. 575). Dito isto, retoma uma experiência vivida em sua viagem para o Monte Elgon, na África Oriental, entre os anos de 1925 e 1926. Sobre essa viagem, ele conta que uma das “aguadeiras”, palavras suas, uma jovem casada que vivia na vizinhança, adoeceu, ao que parece em decorrência de um aborto séptico acompanhado de febre alta. Os parentes da jovem mandaram chamar um “nganga”, segundo ele, “uma espécie de curandeiro”. O curandeiro chega à constatação de que a jovem estava sofrendo influência dos pais mortos ainda muito jovens, que agora moravam no alto da floresta de bambu.

Jung toma esse exemplo para ilustrar a força que os “mortos-mas-vivos” (WIREDU, 1984), do ponto de vista psíquico, podem ter sobre os vivos. Sendo capazes de provocar perda de libido, graças ao domínio que exercem na qualidade de complexos/imagens ancestrais, ou seja, graças a sua autonomia. Uma outra forma de exemplificar isso é quando Jung nos remete às imagos parentais (JUNG, 2013ª). Estas últimas, constituídas ao longo da história de vida do sujeito, possuem, no entanto, especialmente em sua formação primeira, uma relação estreita com os arquétipos maternos e paternos. Quando desmitologizamos nossos pais por efeito da psicoterapia ou da vida, eles perdem força em nosso psiquismo; quando estes morrem, porém, ganham em influência invisível. Assim, Kugler (2003) considera que “a imago pode ser comparada a um ‘espírito dos mortos’ que vive após a morte de seu referente material”, ela é um “fantasma”, “sinal de ausência”. Nas trilhas do pensamento tradicional africano, arriscaríamos dizer que a imago ancestral é, ao contrário, “sinal de uma presença” psíquica, que é experimentada como imagem.

A imagem – ancestral –, quando aparece nos sonhos, é, em geral, como observa Jung sobre outras imagens: expressão de um processo vivo, é uma “expressão concentrada da situação psíquica como um todo e não simplesmente e sobretudo dos conteúdos inconscientes” (JUNG, 2013b, p. 458), é também expressão de conteúdos inconscientes, mas somente daqueles que foram constelados.

No contexto da clínica, a interpretação a ser feita nesse caso é de ordem subjetiva, o que significaria tomar essas imagens como símbolos de conteúdos psíquicos pertencentes à pessoa que sonhou (VON FRANZ, 2021). De acordo com Jung (2013b, p. 450), dois movimentos interpretativos podem ser feitos a depender do caso, um causal e outro finalista. Desde o ponto de vista causal, a imagem é sintoma, ligado a um acontecimento anterior e com fins de autorregulação, desde o ponto de vista finalista, é símbolo que procura apontar para um desenvolvimento futuro relativo ao processo de individuação da pessoa.

Há ocasiões, entretanto, em que a interpretação no plano subjetivo não é a mais adequada, como sublinha Von Franz (2021) inspirada no próprio Jung. De acordo com a autora, há sonhos em que é a análise objetiva a mais adequada. Nesse caso deve-se analisar o sonho como se este se referisse à vida póstuma da pessoa falecida e não à vida de quem sonhou. Diz a autora sobre isso: “parece-me que se pode ‘sentir’ se a figura de uma pessoa já falecida num sonho está sendo usada como símbolo de alguma realidade interior ou se ‘realmente’ representa o morto” (VON FRANZ, 2021, p. 24). E completa: “mas é difícil estabelecer critérios universalmente válidos para esse ‘sentir’”. Como observa a autora, “esta é uma área ainda aberta para investigação, uma vez que atualmente questões desse tipo só podem ser respondidas de modo hipotético” (VON FRANZ, 2021, p. 24). O fato é que algumas vezes a emoção desencadeada por aquela imagem ancestral é tão forte que qualquer tentativa do psicoterapeuta de fazer uma análise subjetiva, em termos de processo de individuação, pode se constituir em uma grande violência.

Tenhamos ou não consciência disso, o fato é que o ancestral, enquanto imagem-presença psíquica carregada de afeto normalmente, “apoia o pé na frente, o presente, na gente”, seu efeito é prospectivo, atua elaborando o futuro. Ancestralidade é também utopia, é criação.

É “o novo com o ancestral”. Neste primeiro sentido, é possível afirmar que falar de ancestralidade no domínio da psique é tanto falar de história como de movência criativa e criadora. Ancestralidade é “lugar” de pertencimento ao qual sempre retornamos para criativamente dar seguimento ao viver, de modo que seja possível não apenas suportar “o doído processo de transformação do tecido” como “tear a nova pele”, afirma a poeta Ana Cruz (2020, p. 73) em Raízes, referindo-se ao sofrimento causado pelo racismo.

Mas, como apontamos, há casos em que a imagem ou complexo ancestral atua na sua contraparte negativa, retirando a vitalidade da pessoa por ele “possuída” psiquicamente. A sensação deste modo não é de movência criadora, é de ter ficado retido em algum lugar do passado, preso à ferida doída de seus ancestrais. Nesse modo de operação, a imagem ancestral funciona, tal como observou Kimbles (2014) e Hollis (2017), como um “fantasma”, “invisivelmente” nos assombrando. Mas como observam Abraham e Torok (1995, p. 393), quando falamos em fantasmas não estamos nos referindo exatamente aos falecidos que veem possuir a pessoa, referimo-nos, a uma formação inconsciente – o complexo ancestral – que tem a peculiaridade de resultar da passagem do inconsciente de um ancestral ou grupo de ancestrais ao inconsciente de um descendente ou grupo de descendentes. Esse complexo, que pode tomar a forma de uma imagem personificada na figura de um ancestral conhecido ou não, visto que os complexos personificam, indicaria os efeitos sobre os descendentes daquilo que para o ancestral tivera valor de ferida (ABRAHAM, TOROK, 1995). Para Jung (2014b), estes complexos, transmitidos de uma geração para outra, podem prolongar seus efeitos negativos nos descendentes, mas também podem não se manifestar num determinado indivíduo. Este último pode ainda integrar os conteúdos deste complexo de representações, quebrando a cadeia de transmissão, ou desenvolver recursos para lidar com eles.

A psicoterapia pode ser um bom apoio nesse caminho de construção, e é sempre bom lembrar, no trato com complexos desta ordem, que se no âmago de todo complexo há um arquétipo, o complexo ancestral carrega uma força repetitiva e uma força criativa, um impulso para fazer/ viver do mesmo jeito que nossos ancestrais e um impulso para criar algo a partir dessa herança. Pois como nota Jung (2013a, OC 8/2), os arquétipos são formas por meio das quais os instintos se expressam e a fonte viva de onde brota tudo que é criativo. Nesse sentido, o inconsciente não seria somente determinado historicamente, como também geraria impulso criador, confrontando o conservadorismo da psique humana com seus condicionamentos históricos e culturais, por meio de seus atos criadores.

Falar em arquétipos em Jung é, pois, guardadas as devidas diferenças, como falar em ancestralidade no pensamento tradicional africano. Pois, como vimos em Wiredu, ancestralidade em África é sinônimo de continuidade. Mas essa continuidade da ancestralidade, à semelhança dos arquétipos, não é exatamente sinônimo de repetição, como observou também Muniz Sodré (2017) ao nos apresentar o Pensar Nagô no Brasil. De acordo com o autor, aquilo “que a tradição viva dá e transmite é a ‘traição’ da igualdade das repetições” (SODRÉ, 2017, p. 110). É “na e pela repetição”, que acionamos os poderes da diferenciação na ancestralidade.

Significa dizer que quando falamos em ancestralidade não falamos em mesmidades, mas em outridades que emergem de “princípios inaugurais” (SODRÉ, 2017, p. 97), aos quais sempre retornamos, num movimento espiralar criativo. Princípios cosmológicos (deuses, orixás) e históricos (ancestrais) no pensamento tradicional africano, e princípios imagéticos-instintivos (os arquétipos e suas imagens arquetípicas) no pensamento junguiano.

Palavras finais

Finalizamos afirmando que toda e qualquer clínica se funda em alguma medida no princípio da ancestralidade, pois como diz o babalorixá Léo de Xangô6, “todo mundo tem ancestralidade” e não temos como fugir dela. Jung fala sobre isso quando nos remete às imagos parentais e à força de influência que elas têm em nós. Mas o autor não se limita a demonstrar a influência de pai e mãe no inconsciente, considera que outras forças/imagens ancestrais compõem a psique e atuam para regular a vida psíquica, chamou algumas dessas imagens de ancestrais, nos remetendo a pessoas que fizeram parte da história de nosso grupo familiar, cultural ou humano. Pessoas cuja força de influência vai sendo transmitida consciente ou inconscientemente de uma geração a outra e outra... Essa transmissão, assim como prolonga boas memórias (mesmo que esquecidas, inconscientes), prolonga sofrimentos, que sendo conscientizados pelos e pelas descendentes, podem ser transmutados ou fortalecidos, a depender do bem ou do mal que eles provoquem. Alguns desses sofrimentos exigem mais do que um trabalho no domínio pessoal, demandam toda uma luta coletiva para eliminar as causas que atingem certos grupos há gerações, como é o caso do sofrimento sociorracial no Brasil.

Uma clínica fundada neste princípio não nega as raízes do pensamento junguiano, ao contrário, reafirma-as através do aprofundamento de um aspecto da obra de seu inaugurador – a ideia de elementos ou imagens ancestrais no inconsciente – que àquela altura não pôde ser melhor desenvolvida, haja vista o olhar colonialista do mundo europeu para as culturas africanas e indígenas e as dificuldades da psicologia da época em lidar com o tema dos fenômenos anomalísticos. Dificuldades que Jung enfrentou, mas que lhe custaram algum descrédito no meio científico. Hoje, porém, a psicologia começa a se abrir para estas experiências psíquicas, através da ampliação do campo da chamada Psicologia Anomalística e da Religião e de outras abordagens que buscam aprofundar a compreensão acerca da dimensão genealógica e, por assim dizer, ancestral, do sofrimento psíquico e da saúde.

1Fazemos referência à Thiasos de número 95, intitulada “As fantasias de Jung sobre a África e a cura da psicologia analítica na África”, em cuja abertura, Marcus Quintaes, um de seus idealizadores, explica como nasce a Thiasos e, portanto, o que ela significa. Pode ser encontrado no endereço: https://www.youtube.com/@thiasos6881/videos.

2A expressão faz referência ao poema que abre o artigo “Avançando com os ancestrais”, e também a Jung, nosso ancestral no que diz respeito à Psicologia Analítica.

3Fazemos referência ao título do artigo: “África, o fio”, uma expressão do poema “Aporte”, de autoria de Juraci Tavares, professor, poeta, cantor e ativista negro - autor do poema que abre e guia toda a escrita desse artigo. Agradecemos a Juraci e aos professores Eduardo Oliveira, Rita Dias e Cláudio Orlando pela leitura afetuosa! Este artigo é o primeiro resultado de um pós-doutorado em curso, de mesmo título, na UFRJ, no qual eu tenho a alegria de ter o professor Muniz Sodré como supervisor, e de quatro anos de formação no Instituto de Psicologia Analítica da Bahia.

4Tradução livre da autora.

5Jung usa esses termos de forma mais ou menos intercambiável, provavelmente pelo fato de que os complexos são imagens e conteúdos relacionados entre si.

6Pai Léo é filho do terreiro Ilê Axé yá Omin há 17 anos. Foi iniciado pelas mãos da sua Ialorixá, a Sra. Edna Maria Santana (Mãe Edinha de Oxum), e pelos seus avós de santo, a Sra. Antônia Salles (Mãe Tonha de Oxumarê) e o Sr. Pedro Bispo (Pai Pedrinho de Oxóssi), na cidade de Santo Amaro da Purificação-Bahia, em 1° de março de 2014. Gratidão Pai Léo!

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Recebido: 23 de Fevereiro de 2023; Aceito: 24 de Junho de 2023

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