Introdução
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that (NETO, 1982).
Esse texto é motivado por um processo pessoal de elaboração da paternidade atípica e pela constatação de que a psicologia junguiana ainda se dedicou pouco ao vasto campo de estudo em torno da neurodiversidade e das neuroatipias1.
Elaborar a desidealização da imagem de um filho é tarefa árdua; nem sempre transcorrerá com naturalidade e com frequência esbarrará em alguma barreira (por exemplo, a sustentação de um ideal ou uma moral) destinada a conter o que é indesejado pela consciência enquanto manifestação da vida. Tais impedimentos convocam a emergência de defesas contra a desidealização, a fim de negar a realidade que se apresenta.
Um desses fenômenos defensivos observados é o do anjo azul, difundido entre pais e mães de pessoas com autismo, no qual a expressão “anjo azul” é usada para designar uma pessoa autista. Não é conhecida sua origem, mas a expressão é amplamente disseminada em nomes de instituições, nas redes sociais, na fala de pais, mães e terapeutas. Abreu (2021) aponta que o termo se popularizou na internet principalmente a partir de 2010 e já é jargão comum para referir-se a uma pessoa autista. O uso dessa expressão denota uma forma de negação do patologizar, ao identificar de forma literal, concreta e fixa, a pessoa atípica com a imagem de um anjo, carregado de bondade, luminosidade, assexualidade e puerilidade, desumanizando-a.
Esse discurso, com variações em torno do mesmo tema, apresenta o filho autista como um enviado de Deus, que escolhe especialmente uma família para a missão de cuidar de um ser especial, puro, e que vem para ensinar a todos nós como sermos pessoas melhores. Esse fenômeno, inconscientemente capacitista, deposita uma carga injusta, unilateral e pesada demais para qualquer humano carregar.
Pais e mães de crianças recém-diagnosticadas entram desavisadamente nesse fenômeno coletivo. O momento pós-diagnóstico é assombrado por dúvidas, ignorância e medo, tornando-nos sedentos por narrativas que deem conta de explicar o passado (por que o meu filho é autista?), apreciar o presente (o que significa ter um filho autista?) e garantir o futuro (o que será dele e de nós?). Como pais e mães, nos é ofertado um discurso genérico que pretende assegurar essa ocasião desconhecida e assustadora.
O desenraizamento mítico (BARRETO apud CORAZZA, 2021) e a ausência de relação com o mundo interior, próprios de nosso tempo, favorecem que os pais extraiam da imagem idealizada de seus filhos o amparo e o sentido necessários para lidar com adversidades da paternidade e da vida. Devemos buscar, no reino das profundezas, a fonte desses potenciais, através das figuras imaginais que nos coabitam, nossos próprios anjos e daímones, e assim retirar de cima de nossos filhos o fardo de nos livrar do sofrimento e de nos prover algum sentido2.
Defesa contra a desidealização
A paternidade é permeada por expectativas fantasiosas do pai, sobre si mesmo e a respeito do filho, desde antes da concepção. De acordo com a regência arquetípica preponderante na psique paterna, essas fantasias podem ser de cunho mais heroico e protetor, moralista e repressor, espiritual e racionalista, normativo e mediocrizante etc.
A chegada de um filho autista provavelmente não corresponde a nenhuma dessas expectativas, ao contrário, as frustra profundamente. O pai terá que desconstruir tais idealizações, não só para se vincular amorosamente com seu filho, mas também para exercer de forma eficaz papéis básicos da paternidade: reconhecê-lo com acolhimento e legitimação de quem ele é. Desse modo, não só o filho precisa ser desidealizado, mas o próprio pai, pois um filho diverso também requer uma paternidade diversa (VILLAR, 2022).
Com abertura psíquica suficiente, percebe-se que “as psicopatologias são tão autênticas quanto a própria criança […] não são secundárias nem contingentes” (HILLMAN, 1997). Se a patologia é indissociável do filho, o pai protetor não poderá evitar o sofrimento, assim como o repressor não poderá endireitar sua forma desviante e tampouco o racionalista conseguirá lhe conferir absoluta coerência; a natureza patologizante da alma se revelará de acordo com o espírito dessa criança.
O ideal de perfeição é um fenômeno arquetípico potente e resistente, que renasce a cada nova imagem coagulada, portanto, essa abertura psíquica nos é benéfica para lidar com defesas e resistências, possibilitando o desvio de idealizações através de caminhos diversos de desconstrução. No entanto, tal processo de desconstrução e recriação pode permanecer paralisado a meio caminho, em uma situação na qual o filho previamente idealizado não mais existe, porém o filho real não foi admitido (VILLAR, 2022).
Proponho uma breve investigação sobre como se constelam tais resistências à desidealização, suas motivações e eventuais consequências.
A negação mais frequente na paternidade atípica é a recusa absoluta da própria paternidade, ou seja, o abandono do filho atípico; dados de uma pesquisa divulgados pelo Instituto Baresi (VARGAS, 2022) apontam que 78% dos pais abandonaram os filhos com deficiências ou doenças raras antes de completarem 5 anos de vida, relegando-os ao cuidado exclusivo das mães. Mães solo sofrem, junto a seus filhos, de abandono financeiro e emocional, com todas as consequências desse absurdo fenômeno sociocultural.
Outra forma de negação frequentemente observada é a da busca irrealista por uma cura, na qual o médico é colocado como figura salvadora, quando se espera a cura pela ciência, ou o sacerdote, quando se espera a cura pela religião. A saga da cura prometida é inevitavelmente trágica e expressa uma forma de negação do patologizar pelo nominalismo (HILLMAN, 2010).
Como apontado anteriormente, esse artigo tem como foco aprofundar o entendimento sobre a negação do patologizar pela transcendência, que se expressa como resistência à desidealização. A respeito dessa forma de negação, Hillman aponta que:
Numa tentativa de restaurar a dignidade ao homem, esta psicologia o idealiza, varrendo suas patologias para debaixo do tapete. Ao botar as patologias de lado, ou ao mantê-las fora de vista, este tipo de humanismo promove um enobrecido unilateralismo, um sentimentalismo que William James teria reconhecido como suavidade mental (2010).
Pelo fenômeno do “anjo azul”, observa-se que na paternidade atípica frequentemente compensa o desvalor capacitista, da condição divergente, através de uma redução da imagem do filho a alguma característica sua que permita uma nova idealização. Mesmo quando a expressão “anjo azul” está ausente, o fenômeno compensatório se apresenta. Projetamos imagens como a do “gênio”, quando as altas habilidades cognitivas estão presentes, ou imagens como a do “inocente iluminado”, quando a ingenuidade, concretude de pensamento e espontaneidade social permitem pintar o quadro de um filho puro, doador de amor, incapaz do mal; ou ainda como a do “herói superador”, quando a condição do filho impõe desafios mais visíveis e dramáticos aos olhares externos.
Essas reduções permitem a coagulação de uma imagem simples e coerente, de mais fácil assimilação pelos pais. Como resumiu um jovem paciente autista em processo terapêutico: “Os pais glorificam essa deficiência para não admitirem sua verdadeira natureza”3.
Se a natureza não pode ser admitida, há um preconceito subjacente a esse impedimento. Capacitismo é o nome desse preconceito, caracterizado por “um comportamento [...] que hierarquiza as pessoas em função da adequação de seus corpos a um ideal de perfeição e capacidade funcional”, a partir do qual “discriminam-se as pessoas com deficiência […] como incapazes (incapazes de amar, de sentir desejo, de ter relações sexuais etc.)” (MELLO, NUERNBERG, 2012).
Ao contrário do que supõe o olhar capacitista, uma pessoa autista não diverge em nada da alma e suas potências: amor, crueldade, altruísmo, covardia etc. Afinal, não se diverge de nada que é essencialmente humano. Tudo isso pode se manifestar de forma diferente; a empatia, por exemplo, pode ser intensificada em seu aspecto emocional (sentir como se fosse na própria pele o que ocorre com o outro) e dificultada em seu aspecto cognitivo (imaginar-se no lugar do outro sem o acionamento emocional).
Todas as funções psíquicas estão enraizadas no corpo por meio do sistema nervoso, divergente em seu desenvolvimento, podendo, portanto, se expressar de maneira distinta na recepção e computação de dados sensoriais, na manipulação de informações cognitivas para a elaboração de metáforas, na regulação emocional após uma excitação intensa etc. Entretanto, mesmo em apresentação distinta, todas as funções anímicas estarão potencialmente presentes, com sua própria forma de expressão singular.
O capacitismo sustenta a ignorância que dificulta a assimilação sobre a realidade do filho, impedindo a germinação da paternidade atípica, seja por narcisismo, moralismo ou outras formas de ensimesmamento. Obviamente isso pode ocorrer não só na paternidade de crianças autistas ou com outras deficiências, mas sempre que nossos filhos tragam algum desvio da norma, frustrando as expectativas sobre nossa parentalidade. A defesa contra a desidealização impede que o processo de luto ocorra e que a imagem do filho idealizado se decomponha, fertilizando a psique para que outra imagem de filho renasça.
O fenômeno do “anjo azul” e a negação que ele representa são problemáticos, pois a redução do filho a um aspecto de sua personalidade é insustentável. Naturalmente, aquilo que está negado, aos poucos se impõe: o filho superdotado pode não ser emocionalmente inteligente, o filho ingênuo eventualmente aprende os benefícios da mentira e o filho heroico logo se cansa de provar que tem valor pela superação.
O pesado manto angelical: barreiras na individuação
Algumas consequências dessa projeção angelical sobre o filho podem ser entendidas como barreiras4 à sua individuação; define-se barreiras como “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos” (TORRES, 2022). A sustentação de uma ligação inabalável com o ideal cria uma prisão imagética, na qual a pessoa atípica é colocada e da qual terá que se livrar para viver sua individuação.
As tonalidades e gradações anímicas são apagadas pelo brilho monótono da imagem angelical. Priva-se o filho da validação de suas contradições humanas, sua incoerência radical e da conscientização de toda pluralidade arquetípica que conflite com a imagem que lhe foi imposta. Anjos não têm maldade, protagonismo, sexualidade, maturidade, portanto a pessoa aprisionada sob essa imagem poderá ter dificuldades em diversas áreas do seu desenvolvimento, como, por exemplo, no:
Desenvolvimento da ética: o mal, enquanto potencial legítimo de todo ser humano, será no máximo uma expressão do autismo, hipostasiado e visto de forma dissociada do filho como uma entidade por si mesma, que o invade e o corrompe tal qual um demônio; expressar e causar o mal são parte de nossa trajetória humana e o exercício ético depende da liberdade para o bem ou para o mal; a atitude ética requer de nós a mais ampla consciência na busca por melhores direcionamentos. Alguém que supostamente não pode fazer o mal, tampouco pode ser ético; suas opiniões e atitudes são assim deslegitimadas, sua cidadania, participação política e seu lugar de fala são relegados a uma vitrine exibicionista que se presta, no máximo, a angariar reações emotivas de pena ou admiração, quando bem-intencionadas, ou de desprezo e sadismos disfarçados de humor, quando assumidamente pejorativos.
Apropriação do protagonismo: o pai, ao mesmo tempo que idealiza o filho, obtém para si próprio uma ligação narcisista com o divino, como escolhido para ser guardião do anjo. Torna-se o herói encarregado da tarefa sobre-humana, recebendo a força que Deus lhe dá como o escolhido para a missão; enquanto isso o filho é desumanizado, transformado em entidade angelical, limitado pela imagem imposta sobre si. O pai, enquanto protetor do ser evoluído, rouba para si o protagonismo humano do enredo. Ele é a figura com quem o coletivo pode se identificar, pois também é gente; é a ele que o coletivo escuta, pois fala a língua humana, e não a dos anjos.
O protagonista é quem tem voz para reivindicar, denunciar e transmitir ao mundo a experiência de ser quem se é. A imagem infantilizada do anjo dificulta a conquista da emancipação e especialmente a adolescência, período em que os filhos colocam as asas de fora e começam a ensaiar seus primeiros voos autônomos, revelando-se quem são independentemente de quem os pais esperam que sejam, ao longo do processo de desidealização da imagem dos pais (GALIÁS, 2003). Esse movimento, a princípio exagerado, ganha equilíbrio e contornos mais interessantes conforme o amadurecimento, que só é possível pela experimentação.
A assexualização decorre do mesmo processo, tirando da pessoa autista a legitimidade do jorro libidinal e a possibilidade do desfrute da sexualidade do encontro com um outro desejante, para lambuzarem-se de amor, impudor, calor, e tudo aquilo que dois amantes criam no encontro inebriante das pequenas mortes orgásticas. Isso tudo é obviamente inadequado aos anjos.
A insustentabilidade da negação: a ausência voraz
Aqui tô eu pra te proteger
Dos perigos da noite e do dia
Sou fogo, sou terra, sou água, sou gente
Eu também sou filho de Santa Maria
Se Dona Maria soubesse que o filho
Pecava e pecava tão lindo
Pegava o pecado deixava de lado
E fazia da terra uma estrela sorrindo
Hoje eu saí lá fora
Como se tudo já tivesse havido
Já tivesse havido a guerra
A festa já tivesse havido
E eu fosse puro espírito (LEMINSKI, 2013).
Além das barreiras à individuação, outras consequências decorrem dessa cena de resistência ao luto em sustentação do ideal, como a depressão e o esgotamento físico e psíquico da família e do indivíduo autista.
Na passagem “O Corvo se torna voraz” (HYDE, 2017) do ciclo mítico sobre o Corvo, dos povos ameríndios Haida e Tsimshian, conta-se o seguinte: o chefe da aldeia primordial e sua esposa tinham um único filho, a quem amavam muito e protegiam ao extremo, tendo construído para ele uma cama acima da cama dos pais, onde o banhavam e protegiam sob seus olhares. Ainda muito jovem ele adoeceu gravemente e logo morreu. O chefe mandou que lhe retirassem os intestinos e os queimassem, antes de levar seu corpo para casa. A comunidade todos os dias vinha velar o corpo do filho e dar suporte a dor dos pais; porém, o chefe e sua esposa entraram em tamanho sofrimento que, alguns dias após estarem chorando sob o cadáver do filho eviscerado, tiveram uma surpresa: certa manhã a mãe se deparou com um ser de luz, brilhante como fogo, sentado no leito do filho; alegres os pais comemoram a sua volta; no entanto, o filho não sente fome e nem come. A comunidade toda comemora a volta do filho, mas estranham seu retorno e sua falta de apetite.
Os chefes tinham um casal de escravos, chamados “Boca de cada lado”, nome que nos remete ao próprio intestino queimado. Eles têm feridas nas canelas das quais comem as cascas, e isso é o que lhes confere muito apetite para comer gordura de baleia. Na tentativa de recuperar seu apetite, o filho do chefe prova da casca da ferida da canela do escravo, o que lhe abre um apetite descomunal, transformando o rapaz de luz em um ser voraz, que devora todos os provimentos da vila; o pai, enquanto chefe da tribo, reúne o conselho e reconhece que precisa expulsar seu próprio filho, pois sua permanência na vila é insustentável. O pai lhe presenteia com o manto do corvo, uma pedra que se transforma em terra para pouso, além de sementes e ovas de peixes, para que o filho crie o mundo em que os humanos depois surgiriam, distribuindo plantas e animais para que sempre tenha com o que saciar sua fome.
Percebemos que o jovem luminoso não é de fato o filho, mas “uma espécie de emissário do céu, enviado para ocupar o lugar do jovem como um antídoto para a dor” (HYDE, 2017), e o próprio jovem nos conta que “o céu ficou muito aborrecido com o seu pranto constante (dos pais), então me mandou para trazer conforto às suas mentes”. O filho que foi morto não teve a chance de renascer organicamente, entregando-se ao ciclo da matéria. Quando tem seus intestinos retirados e queimados, sua imagem é fixada no campo do ideal, seu intercâmbio com a matéria do mundo é inviabilizado; os pais o perdem de vista e, em seu lugar, enxergam um ser luminoso, etéreo como fogo. Aquilo que foi negado, excluído, tende a retornar sintomaticamente; assim, o filho luminoso come a casca da ferida dos escravos “boca de cada lado”, ou seja, como a ferida de seu próprio intestino extirpado e, ao fazê-lo, abre o imenso vazio devorador que torna insustentável a sua permanência na vila.
Os intestinos, enquanto as entranhas de uma pessoa, são uma imagem valiosa de sua interioridade. No inglês, as entranhas são chamadas de guts, e to have the guts significa ter coragem para. Podemos imaginar que ao arrancar o intestino do filho, retira-se dele a coragem para bancar-se em sua natureza, necessária para libertar-se do aprisionamento sob a imagem idealizada pelos pais. O intestino também é o órgão responsável pela separação dos elementos entre aquilo que será assimilado e o que será excretado, como uma barreira que filtra com permeabilidade seletiva aquilo que deve ou não ser incorporado. A retirada dos intestinos nega ao filho a capacidade de exercer tal filtro com respeito às projeções parentais, sujeitando-o a corresponder em absoluto a tudo que dele se espera.
Os escravos comem suas cascas de ferida num movimento circular, que remete ao ciclo do alimento, ou da interdependência ecológica, onde a vida se alimenta da vida, nu movimento urobórico de metamorfose. Os intestinos nos remetem ao destino da vida e do que ela depende. Muita vida se metamorfoseia em nós através dos intestinos e o mesmo ocorrerá com nossa carne a ser comida por outros seres um dia (COCCIA, 2020). Sem os intestinos, retiramos do filho a capacidade de digerir e transformar o mundo, dele se alimentar e por ele ser devorado, para transformar- se através da desconstrução e reconstrução psíquica. No caso do jovem Corvo, sua organicidade foi negada, como percebemos quando sua mãe “olhou para cima e viu um jovem, brilhante como o fogo, deitado onde o corpo do filho estivera” (HYDE, 2017); mas, após tornar-se um ser voraz, sua mãe reconhece, ainda no leito, o corpo do filho morto, distinto do ser luminoso que caminha.
Podemos entender esse mitologema como uma referência mítica à negação do patologizar depressivo; uma defesa melancolizante, resistente ao luto, que age através do processo de re-idealização. O aspecto indesejado do filho, representado pelos intestinos, retorna, sintomática e compulsivamente, através da voracidade, tornando insustentável a permanência dessa figura na vila.
Essa figura, não é mais o filho, mas o resultado de defesas primitivas dos pais: cisão, idealização, projeção e identificação projetiva. Esta última é particularmente importante, pois exerce forte poder sobre o objeto da projeção, sendo “um mecanismo de defesa primitivo, que invade a mente do receptor e que não respeita ou considera a existência do outro em suas particularidades” (CAVALLARI, 2007). A identificação projetiva é como um processo de “colonização interpsíquica”, na qual uma psique invade e instaura sua mentalidade sobre outra.
O vazio impreenchível do mito remete-nos ao estado depressivo, como buraco negro que engole a criatividade e da qual nenhuma energia escapa (VILLAR, 2022). A depressão do filho decorre da identificação projetiva, que impõe sobre o filho um enquadramento incompatível com sua natureza, impedindo o fluxo criativo da energia psíquica, culminando no represamento da libido. Já a depressão dos pais pode ser associada diretamente ao impedimento do luto por via da defesa melancolizante que resiste à desidealização. Sem os recursos psíquicos suficientes, tolhidos pelo estado depressivo, pais e filhos estão mais vulneráveis, sujeitos ao esgotamento que é canalizado pela busca inalcançável do ideal.
No caso da pessoa atípica idealizada sob o manto angelical, essa identidade trará de dificuldades para o desenvolvimento da autonomia da pessoa autista, favorecendo que ocorra o que Ceres Araújo aponta como “um uso abusivo do papel de filho, muitas vezes ao longo da vida inteira, o que retira toda a possibilidade de autonomia da pessoa” (ARAÚJO, s.d.).
Se uma pessoa está sendo impossibilitada de caminhar com suas próprias pernas, já que anjos não caminham, mas flutuam imaterialmente, alguém terá que carregar o corpo que sobra, negado e desvitalizado pela cisão projetiva que o acomete. Esse fardo é ostentado pelo discurso heroico de pais como parte da tarefa a qual foram incumbidos por Deus.
A idealização do filho está relacionada à projeção do arquétipo da criança divina, sendo que sua fixação sobre o filho dificulta ainda mais que pais e mães reconheçam suas próprias necessidades e limites, pois permanecem identificados exclusivamente com os papéis de provedores; estando os pais “fragilizados, eventos dramáticos e trágicos podem acontecer” (GALIÁS, 2003) pela ultrapassagem de seus limites humanos.
O suicídio de uma mãe, levando junto a vida de seu filho autista de 12 anos; um jovem autista de 19 anos que morreu queimado e preso sozinho no apartamento da família; uma menina autista de 3 anos morta por asfixia pela mãe: essas tragédias horrorosas chamaram a atenção de Cammie McGovern (apud LAURENT, 2014), ela mesma mãe de autista. O que intrigou a autora foi o quanto vizinhos e conhecidos defenderam os pais envolvidos nas tragédias, ressaltando “seu amor heroico pelos filhos doentes”. McGovern deu destaque a esses casos “para que outros pais não tivessem esperanças tão grandes que, em seguida, pudessem levá-los a esses extremos”; a exaustão desses pais é proporcional ao esforço desmedido, encorajado pelas condutas terapêuticas dominantes no campo do autismo que “propõem mobilizar os pais e as crianças num esforço intensivo e sem descanso, exigindo o investimento máximo de cada um – tanto financeiro quanto relacional, e em todos os momentos do dia”.
A esperança grandiosa pode ser expressão da negação do patologizar através da transcendência, que articula uma cena enobrecida na qual o final é sempre melhor, maior, mais evoluído, mais desejado. Porém os caminhos do processo vital não são nem constantes, nem retilíneos, nem ascendentes, mas sempre erráticos com respeito às expectativas normativas. A exaustão familiar decorre não só da árdua rotina de cuidados e da desestrutura socioeconômica, na qual maior parte das famílias está inserida, mas também do estilo de consciência com que os pais se engajam nessa tarefa. Quanto mais rígida, heroica, grandiosa em esperanças e idealizada, maior a exaustão, proporcional à intensidade neurótica.
A fantasia do crescimento ilimitado, pertinente a nossa arrogância cultural ocidental, tem seus fundamentos no desenraizamento mítico que inaugura os princípios do racionalismo moderno (ZOJA, 2000). Essa fantasia é motor propulsor do colonialismo cultural, que desconsidera a diversidade em seu valor intrínseco e permite a perversa aniquilação anímica do outro, como nos descreve Gambini com respeito à catequização das populações originárias do Brasil (GAMBINI, 2000).
O pai do corvo, enquanto chefe da tribo, ao se dar conta do que acontece, reconhece: “meu filho, não é possível sustentarmos você em nossa vila, você deve ir embora”. O pai não está falando com seu filho, que está morto, intocado e cristalizado em seu leito, mas com o ideal, que fora enviado pelos céus para cessar a lamentação dos pais. O processo de luto não foi suportado, mas sim interrompido por um mecanismo de defesa que pretende cessar a dor, mas que termina por engendrar uma tragédia ainda maior.
Quem vem socorrer os pais, perdidos em uma sombria angústia, é a imagem idealizada do filho, que ilumina o caminho e os ampara com sua presença. Quando a imagem idealizada do filho se presta a prover sentido e amparo aos pais, o filho corre risco de aprisionamento sob essa imagem. O filho real é convocado a sustentar a imagem ideal, pois os pais dependem da permanência dessa imagem em sua reorganização defensiva. Sua alternativa é abandonar os pais em seu desamparo, inaugurando seu próprio mundo. Isso não significa, necessariamente, abandonar literalmente os pais, mas aqueles pais que idealizam o filho; esses, devem ser traídos; quem sabe, em seu novo mundo, novos pais possam também renascer a partir da relação com o novo filho.
É em contato com sua própria ferida que o filho idealizado rompe com a cristalização de sua imagem e escancara o vazio insaciável que o habita. É somente deixando seu mundo para trás e se dirigindo a um novo mundo, no movimento de desconstrução e recriação, que sua existência se torna sustentável; ou seja, naquele plano antigo permanece seu corpo enquanto passado, agora em decomposição, enquanto o novo ser dirige-se a um outro plano para inaugurá-lo e habitá-lo, com sua própria e legítima poética (PALOMO, 2022).
O anjo da guarda
Há séculos procuramos o termo certo para esse “chamado”. Os romanos chamavam isso de genius, os gregos, de daimon, os cristãos, de anjo da guarda (HILLMAN, 1997).
Assim como os pais do Corvo, nós podemos não suportar a dor da desidealização, nem mesmo com o suporte da comunidade exterior. Precisaremos, nesse caso, de amparo sobre-humano, proveniente da “comunidade interior”. Na mítica cristã essa força pode vir de Deus, da Virgem, de Cristo ou de um santo, mas todos parecem distantes demais. Para estar ao meu lado constantemente, acompanhando cada passo, a mítica cristã, nos oferece a figura do anjo. O anjo da guarda nos acompanha desde o nascimento, como figura leal ao nosso destino e ao nosso cerne. Podemos imaginar que essa figura, tão íntima e familiar, seja facilmente projetada em alguém de nosso convívio, como por vezes vemos ocorrer com as mães ou com as avós. No entanto, “Ninguém é e nem pode ser gênio, porque o gênio ou daimon ou anjo é um acompanhante invisível, não humano e não a pessoa em quem o gênio vive” (HILLMAN, 1997). O anjo que necessito e que busco não está em meu filho nem em ninguém ao meu redor, mas reside para além da mentalidade literal, na interioridade psíquica.
Certo dia, estava bastante angustiado com uma nova questão que havia surgido com respeito a meu filho: como seria seu desenvolvimento social, com respeito a amizades, namoros e relacionamentos afetivos como um todo? A angústia surgiu após a notícia de que uma criança autista havia sido agredida algumas vezes em nossa escola, além da notícia do suicídio de um autista pré-adolescente. No auge da angústia, entregue ao cansaço da insônia, ocorreu-me uma imaginação ativa como forma de elaboração do conflito daquele momento: vi um ser empoleirado na janela acima de minha cama. Esse ser estava todo nu, não era nem masculino, nem feminino, mas andrógeno. Ali, de onde estava empoleirado, me mirava fixamente nos olhos, com um olhar de doçura e dor imensas. Dividia minha dor consigo, ao mesmo tempo que a confirmava, e minha vontade era de nunca mais me perder daquele instante, porém, o despertador logo tocou. Levantei-me com a sensação de ter sido visitado por meu anjo, meu daimon, sentindo-me aliviado da angústia profunda, agora transformada em uma tristeza reflexiva.
Os vales da angústia podem ser extensos na paternidade atípica. Por vezes, é mais do que uma pessoa consegue suportar. Precisamos também de anjos e daímones que nos acolham, guiem e amparem, como esse visitante imaginal. Mas em nosso literalismo desanimado, projetamos a figura divinizada sobre a criança neurodivergente, transformando-a em anjo, gênio ou exemplo de superação. É nossa função, como pais, nos trabalharmo psiquicamente para retirar de cima de nossos filhos a projeção da figura salvadora. É preciso estar atento e aberto ao nosso próprio anjo, é ele quem pode nos sussurrar aquilo que está sendo requisitado pela realidade em assimilação
Assim como meu visitante inesperado, tais figuras “são metáforas para núcleos de fantasia da psique”, porém “numa cultura monoteísta como a nossa, essas metáforas vão perdendo sua força graças à repressão de suas imagens”. Apesar do desenraizamento mítico e desvalorização imaginal de nossos tempos, “essas mesmas imagens permanecem na lama profunda” (BARCELLOS, 2019) da psique e podem vir ao nosso encontro se formos capazes de um estilo de consciência que permita sua emergência.
Considerações finais: diversidade, singularidade e destino
As fantasias sobre a medida da normalidade são arquetípicas e sempre nos ocorrerão, porém, definir pessoas concretamente a partir dessas fantasias é algo que podemos deixar em desuso. A superação da separação normal anormal nos oportuniza abordar as diferenças pela apreciação da diversidade e da singularidade.
Se, como pai, sinto que minha vocação envolve a chegada de um filho atípico, seja pela necessidade de livrar-me de um narcisismo, seja para desconstruir um moralismo e para abrir-me ao inusitado e livrar-me de preconceitos, devo acolher o sentido dessa experiência a partir de minha existência: “minha paternidade atípica me ensinou, me proporcionou, me abriu a tal e tal coisa”. Isso difere largamente de dizer que meu filho em pessoa veio ao mundo para me ensinar, me abrir ou me proporcionar qualquer coisa; meu filho veio ao mundo para existir en quanto ser, como protagonista de sua própria história, não como coadjuvante da minha. Alinhar a existência de sua pessoa a uma necessidade minha é vampirizar sua existência
A paternidade atípica é oportuna para transformações, pois nos convoca continuamente a uma abertura radical ao imprevisível, a nos despir de vaidades hipócritas, a adotar uma perspectiva de vida subversiva em comparação à nossa antiga moral. Entretanto, nada disso se deve pelo filho ter uma consciência superior ou a missão de nos iluminar. É verdadeiro que nossos filhos não são melhores por serem autistas, tanto quanto não são piores por sua neurodivergência, eles apenas são.
Ao nos apresentar a neurodivergência de um filho, a vida nos puxa o tapete, usando as mãos do trickster (VILLAR, 2022). O vazio que se forma a partir da quebra das idealizações que fizemos de nossos filhos torna-se insuportável; o vácuo decorrente da impossibilidade de acessarmos um sentido sintonizado com nosso próprio chamado, vocação e destino singulares, nos suga para dentro dessa mentalidade generalista e tipificada, sustentando uma nova idealização que disfarça nossa dor e desilusão com colorações angelicais e elevadas; buscamos conferir um sentido positivo ao drama mal digerido. Esse discurso é superficialmente reconfortante; porém seu benefício é fugaz, enquanto seu malefício é duradouro, pois é profundamente dissonante com o que a alma revela através dos inúmeros sintomas sistêmicos que se instalam pouco a pouco na família.
No mitologema o Corvo se torna voraz, o filho protegido morreu cedo demais; metaforicamente, podemos entender que a morte do filho protegido é a revelação de que o filho não mais corresponde a imagem que fazíamos dele; o filho não pode mais ser protegido, intocado, imaculado, eterno; alguma mudança nessa imagem ocorreu e os pais terão que lidar com essa morte. O instinto de conservação que nos atravessa enquanto protetores resiste à mudança que se impõe. Esse instinto de conservação deve ser alcançado e equilibrado pelo instinto de transformação, também pertinente à paternidade, que deseja ver o filho se tornando sua próxima própria versão.
Existem muitas batalhas e missões relacionadas ao autismo, mas a paternidade atípica não se resume a isso. É preciso deixar o herói morrer, para que seja superada a identificação com o mesmo e outras metáforas possam emergir politeisticamente; além de guerrearmos nas trincheiras da paternidade atípica, também amamos, brincamos, erramos e mais um sem fim de possibilidades anímicas que nos atravessam e devem ser bem-vindas.
O diálogo com o imaginal, em abertura ao que me sussurram anjos e daimones, possibilita vislumbrar novos caminhos a seguir. Para tanto, é necessário assimilar a perspectiva de que não estamos a sós, enquanto fenômeno consciente; psiquicamente, somos impulsionados, orientados ou desviados por forças arquetípicas, que estão para além de minha subjetividade.
A paternidade atípica convoca abertura aos mundos externo e interno, com toda nossa anormalidade autêntica e singular. As personificações vivas do inconsciente atravessam o presente rumo ao futuro; é nas entranhas profundas da psique que a vida, em sua criatividade intrínseca, rabisca nosso destino; estejamos atentos, para escapar das armadilhas de defesas enclausurantes, para encontrarmos a cada dia uma vida pulsante, criativa e almada, que valha a pena com toda sua complexa diversidade. ■