Agradecimentos especiais a Johannes Heller, que plantou em mim as primeiras sementes deste trabalho com máscaras.
Este trabalho tem a ver com a fantasia. Aquela que em certas ocasiões a gente veste no corpo e permite a este ter seu merecido destaque e expressão, numa dança harmoniosa com a cabeça. Aquela que um dia a gente resolve rasgar, para poder sair de peito aberto pelo mundo. E aquela que nos acompanha sempre, mesmo que em algum momento decidamos que ela não é para ser levada em conta – a que permeia, alimenta e acaba se inserindo em nossa vida consciente, possibilitando-nos viver aquilo que Jung denominou processo de individuação.
E tem a ver também com a vivência e a palavra. Procuro aqui resgatar a palavra que expresse o vivido, que permita a elaboração do experienciado, que abra o canal para a intercomunicação de individualidades que possam se expressar o mais integralmente possível.
Isso tudo no campo pedagógico, na situação de ensino-aprendizagem. Entendo a Pedagogia como a ciência-arte que visa, mais do que a transmissão e aquisição de informações, sua integração à personalidade, possibilitada e vivida dentro do campo de interação do arquétipo do mestre-aprendiz.
O ponto de partida para estas reflexões é minha própria experiência nesse campo. Considero valiosa a oportunidade de ter podido viver, cotidianamente por quatro anos, os papéis de aluna e de professora, em instituições muito significativas para mim. No Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP), apresento a Psicologia Analítica aos alunos do curso de graduação. Na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA), como aluna do curso de formação de analistas, estive me aprofundando e especializando nesta abordagem. Quanto ao conteúdo, o arranjo não podia ser melhor: as questões estavam sempre presentes em mim. Os seminários da SBPA, as supervisões, orientações e leituras, além de irem garantindo minha especialização no assunto, favoreciam uma visão ampla, uma tomada em perspectiva, uma contextualização das questões específicas trazidas por meus alunos, que muito enriqueciam as aulas. Por outro lado, a preparação das aulas, e as próprias aulas, obrigavam-me a realizar sínteses, a descobrir uma linguagem didática e introdutória e a me ater aos conceitos básicos – isto tudo me ajudava a manter um eixo teórico central; por mais específico que fosse o tema discutido em um seminário da SBPA, eu estava sempre, ou pelo menos na mesma semana, referindo-o às questões básicas da Psicologia Analítica.
Por outro lado, poder vivenciar as duas polaridades do arquétipo do mestre-aprendiz de maneira tão literal foi muito rico. No mínimo, garantindo-me empatia com quem estava na outra polaridade num determinado momento. Quando o seminário ou a aula fluíam, parecia que não havia separação entre estes polos. Cada um contribuía com sua reflexão sobre a leitura ou sobre a questão colocada, compartilhando todos do processo de ensino-aprendizagem. O espaço das supervisões visava e favorecia a operacionalização dos conceitos. Minha prática clínica no consultório auxiliava a construção de exemplos em aula. Além disso, a preguiça do aluno, sua expectativa, em muitos momentos, de receber tudo mastigadinho, o esforço hercúleo do professor em manter a motivação, em despertar um interesse genuíno estavam sempre muito presentes em mim. Para não falar da preguiça do professor (esta, coitada, mais disfarçada, sem uma persona que a expresse abertamente) ou do esforço hercúleo do aluno em solicitar mais e mais o professor, em lhe mostrar em que ponto está, para que haja uma interação fluente e significativa.
Ora me encontrava no polo do que sabe, ora no do que não sabe. E esse movimento deu frutos, pois hoje me vejo como alguém que sabe que não sabe (quanta coisa há que saber!), como alguém que não sabe que sabe (quantas vezes um aluno me pega de surpresa com uma questão que nunca me ocorrera e, favorecida pela persona da professora, começo a refletir sobre ela e acabo descobrindo que sei!), como alguém que sabe que sabe (afinal, um pouco já percorri) e como alguém que não sabe que não sabe (...).
Na USP, uma das disciplinas pelas quais sou responsável é “Psicologia Analítica e Arte Educacional”. Seu objetivo é promover a vivência, a discussão e a elaboração teórica sobre os fundamentos da utilização de atividades expressivas na abordagem da Psicologia Analítica. Trata-se de uma disciplina optativa (isto é: faz quem quer), para no máximo 20 alunos de quarto ou quinto ano do curso de graduação, que tem como pré-requisito “Psicologia da Personalidade II”, esta obrigatória, em que lemos e discutimos a obra póstuma de Jung “Memórias, Sonhos e Reflexões” (1978) – livro que consegue ser autobiográfico e teórico ao mesmo tempo.
Em “Psicologia Analítica e Arte Educacional”, inicialmente discutimos leituras a respeito do desenvolvimento e estrutura da personalidade, da tipologia junguiana e da vivência simbólica. Como textos de apoio, são adotados “A Função Transcendente” de Jung (1984), “O Ego lnflado” de Edinger (1972), “Jung: a Gente se Vê em Olinda de Ratis” (1986), e os livros de Byington “Desenvolvimento da Personalidade” (1987), “Dimensões Simbólicas da Personalidade” (1988a) e “Estrutura da Personalidade - Persona e Sombra” (1988b).
A parte prática, desenvolvida no Laboratório de Psicologia do Movimento (PSA/IPUSP), consiste na participação em vivências que visam desenvolver, em cada um e no grupo, diferentes recursos expressivos e propiciar a reflexão sobre as possibilidades de utilização de tais atividades em diferentes contextos de atuação do psicólogo, ampliando a persona deste. Os temas que têm sido propostos na parte prática são: abertura; exploração do espaço e do grupo; tipos psicológicos; a dimensão do corpo; a dimensão social; a dimensão ideativo-emocional; a dimensão da natureza; persona e sombra; e fechamento. Trata-se de uma disciplina de um semestre de duração, com encontros semanais de três horas.
O referencial teórico que embasa esta temática é a noção de símbolo como elemento de ligação entre o inconsciente e a consciência, e a estruturação desta. Embora esta noção seja central e amplamente explorada pela literatura concernente à Psicologia Analítica, há pouca coisa escrita a respeito da utilização de recursos expressivos, sobretudo em um contexto grupal. Menos ainda sobre a situação de ensino-aprendizagem. Apoio-me em vivências a que me submeti em diferentes contextos (didáticas/terapêuticas, corporais/psicodramáticas/gestálticas/centradas na pessoa), a maioria delas estando eu em um grupo. Acho que um pouco é assim mesmo: vivência é vivência e faz sentido quando se passa pela experiência. Mas outro pouco consiste em falar dela, não só no contexto individual ou grupal, pedagógico ou terapêutico, em que se deu, mas também a nível das palavras, do que pode ser generalizado, abstraído, formulado, comunicado. As palavras permitem a elaboração do vivido, além disso, e não deixam de constituir, elas também!, uma vivência.
Em 1986, tive a oportunidade de participar de um workshop, de seis horas diárias de duração, durante uma semana, de trabalho com máscaras. Este workshop se deu no 12th Meeting of the lnternational Association of Jungian Trainees and Newly Qualified Analysts, em Mount Rigi, na Suíça, e consistia num trabalho expressivo, plástico e dramático, desenvolvido por uma americana que mora atualmente em Paris e que o fundamentou num livro. Estou referindo-me a Laura Sheleen e ao “Théâtre pour Devenir... Autre” (SHELEEN, 1983) Esta minha xará teve consistente formação em dança e teatro. Aos poucos foi se interessando pelo psicodrama, pelo universo junguiano e pelo lacaniano. Foi orientada por Pierre Solié. Em seu livro, ela conta como, ao trabalhar com grupos de expressão corporal e teatro, foi percebendo o alcance psicológico de jogos dramáticos em que os participantes usavam máscaras que eles mesmos tinham feito. A partir desta constatação, ela foi aprofundando seus estudos psicológicos e desenvolvendo o trabalho com grupos e máscaras, chegando à sistematização e fundamentação do que ela chama de “Teatro Arquetípico” ou “Mitodrama”.
Desde 1988, venho realizando com os alunos de “Psicologia Analítica e Arte Educacional” uma adaptação e desenvolvimento deste trabalho com máscaras. Afinal, minha experiência na Suíça fora muito significativa e eu me encontrava desejosa de explorar mais a técnica e seus recursos.
Mas, antes de adentrar pelo universo das máscaras e suas implicações, vou apresentar outra vertente de trabalho, que acabou trazendo importantes subsídios para a questão do campo interacional constelado pelo arquétipo do mestre-aprendiz.
Trata-se da dissertação de mestrado “A psicoterapia como um rito de iniciação – Estudo sobre o Campo Simbólico através de Sonhos Relatados no Self Terapêutico” (FREITAS, 1987), que defendi no IPUSP em 1987. Minha primeira ideia para o mestrado havia sido pesquisar a questão dos sonhos iniciais, focalizando seu potencial diagnóstico e prognóstico na psicoterapia. Pus-me a anotá-los e reuni mais de 300 sonhos. Eu pretendia trabalhar apenas com os primeiros sonhos, mas essa definição de “primeiros” de início já se mostrou problemática: até onde vão os “primeiros” e quando começamos “outros”? Por via das dúvidas, anotava todos os sonhos que os clientes me relatavam. Foi muito rico, porque eles iam ficando muito presentes no trabalho terapêutico. E fui descobrindo algumas outras coisas, como, por exemplo, que há vários inícios numa psicoterapia, isto é, várias fases que se sucedem, e se justapõem em alguns momentos, e que elas podem ser acompanhadas por sonhos. Estes anunciam a fase e fornecem um referencial para o trabalho. Fui levantando outras questões, por exemplo, relativas às pessoas que não relatam sonhos, às que trazem outros dados muito mais significativos para o trabalho simbólico, ou relativas à situação transferencial.
Mas o grande marco no mestrado foi o “pulo” que, em determinado momento, dei: da questão dos sonhos iniciais, me pus a investigar qual seria a especificidade do início da psicoterapia e, então, comecei a me interessar pela questão da iniciação.
Foi um pulo, que resultou num mergulho. Lá me vi estudando ritos de iniciação e de passagem, totalmente mergulhada em alguns aspectos da Antropologia e da História das Religiões. Foi um mergulho interessante, inspirador, motivador, mobilizador. Em alguns momentos, eu até me esquecia que estava fazendo um mestrado, tão absorta ficava com todo aquele material.
Comecei a experimentar a iniciação em mim, nas coisas com que eu estava envolvida. A nível pessoal, foi uma descoberta muito importante. Eu não estava mais fazendo um curso de formação de analistas, eu estava me iniciando na análise. Eu não estava mais fazendo análise, estava me iniciando em mim mesma. Eu não estava mais preparando aulas e apresentando as ideias da Psicologia Analítica aos alunos, eu os estava iniciando nessa abordagem. Eu não estava mais atendendo meus clientes, estava colaborando com sua iniciação neles mesmos. E por aí afora...
Pode até parecer uma simples troca ou jogo de palavras. Mas não foi. A perspectiva da iniciação me proporcionou um referencial que relacionava e integrava as partes de mim envolvidas nas atividades, que dava suporte à minha consciência para viver momentos de grande indiscriminação e desorientação. Afinal, o neófito, durante os rituais que eu havia pesquisado, passava por momentos em que vivenciava seu desmembramento, sua morte, sua perda de consciência. Iniciação implica participação da personalidade total, garantindo que a experiência vivida seja integradora e que as palavras para a expressar sejam também vivências.
Minha dissertação de mestrado acabou sendo também uma tentativa de contribuir para que a universidade, com sua linguagem objetivante, teórica, conceitual e descritiva, possa se reconectar com a dimensão do todo, do conhecimento vivido numa perspectiva simbólica, do saber iniciático não desvinculado do científico.
E fiz uma descoberta importante: é preciso ter a experiência e é preciso ser capaz de falar sobre ela. Não somente para haver o reconhecimento da comunidade, mas também para poder se dar o meu próprio reconhecimento, isto é, para a elaboração da vivência e sua integração à consciência.
O subtítulo da dissertação de mestrado é: “Estudo sobre o Campo Simbólico através de Sonhos Relatados no Self Terapêutico”. Foi a melhor forma que me ocorreu na época de nomear o trabalho. A meu ver, a iniciação é garantida por um campo, uma constelação, um conjunto de interações. Na dissertação de mestrado focalizo o contexto terapêutico, aqui o pedagógico. Os dois campos se aproximam através da perspectiva da iniciação. Mas são também contextos diferentes, cada qual com seus objetivos.
Considero que pertence ao campo simbólico qualquer situação em que a psique esteja presente. É o jogo de interação da consciência com o que está ao seu redor, com aquilo com que ela está envolvida, que dá a qualidade de simbólico da situação. Tal campo consiste, então, no conjunto de interações, impressões subjetivas, fatos e dados objetivos, fantasias, expectativas, intuições, emoções, avaliações, discriminações e indiscriminações que nele ocorrem. E, quando se trata de um contexto com mais de uma pessoa, a relação entre elas também entra em jogo.
Está me parecendo que é impossível definir o campo simbólico em todos os seus elementos constitutivos, pois são muitos e todos interagindo entre si, a cada momento um em maior destaque ou em figura, os outros passando para o fundo. É muito dinâmico. A não ser que eu o tenha acabado de definir...
Apesar de toda essa dificuldade na apreensão e definição, a formulação do campo simbólico me parece útil, uma vez que enfatiza o interacional, que pode, de alguma maneira, ser detectado e considerado.
Andei fazendo algumas incursões no universo lacaniano, que utiliza com frequência a palavra campo. Foi interessante, pois encontrei a relação com a noção de delimitação, através da analogia com o campo cirúrgico: é preciso isolar a área a ser trabalhada, com todos os cuidados de assepsia, para então iniciar a intervenção. A psicanálise lacaniana define-se a partir de um recorte da realidade, de uma área delimitada, que é a da linguagem, procurando ali as descontinuidades que abrem as fendas para a expressão do inconsciente e operando a partir de três dimensões encontradas nesse campo: a do imaginário (que se refere aos conteúdos expressos no discurso), a do simbólico (que estabelece relações de significante-significado entre o que é dito e o que é latente) e a do real (que abrange a expressão do sujeito do inconsciente, identificado no discurso especialmente em suas descontinuidades).
E eu, que costumava considerar o campo como se referindo a um jogo de forças, fazendo analogias com o campo magnético e o campo elétrico, isto é, ressaltando o aspecto dinâmico ali presente, passei também a considerar a característica de delimitação. As duas coisas passaram a fazer sentido: dentro de um campo delimitado, como participa o inconsciente, são ilimitadas as possibilidades de interação. Delimitamos o campo por razões pedagógicas, para a nossa consciência, limitada, poder operar. Mas nesse campo o que ocorre são interações que envolvem também o inconsciente, o que lhe confere possibilidades ilimitadas.
Ficou caracterizado o campo simbólico? Sei não. Ele me parece vivo, presente e uma noção útil. Mas vejo nele também um risco: o de ser colocado como objetivo último, o de ser divinizado. O negócio é vivê-lo: ensinar, transmitir, envolver, despertar a reflexão, dialogar. O campo de interação é o meio e uma consequência. Da interação do conteúdo programático com as expectativas e a dedicação de todas as pessoas envolvidas com o curso, surge o próprio curso.
A disciplina “Psicologia Analítica e Arte Educacional” apresenta uma característica interessante. Os alunos que a escolhem estão no último ou penúltimo ano. Entram numa crise para valer. Oscilam entre se acharem psicólogos prontos e nulidades como psicólogos. Numa aula, competem comigo o tempo todo, mostrando como já sabem tudo. Na semana seguinte, assumem a posição de que não sabem nada, que os quatro ou cinco (para alguns, seis ou sete) anos na universidade não serviram para nada; pedem que eu lhes ensine tudo naquela aula, antes que seja tarde demais. Voltam na aula que se segue pedindo indicações de cursos de extensão, de especialização, de aperfeiçoamento, de grupos de estudo, de supervisões. Depois deixam de acompanhar as leituras e só querem vivências e mais vivências, argumentando que estão cansados de ler e estudar e querem se preparar para o trabalho prático. Em outros momentos, opõem-se às vivências, com medo de se exporem de mais, sentindo-se fragilizados como psicólogos, perseguidos.
Considero que eles, em todos esses momentos, estão certos e têm muito a dizer a quem se disponha a repensar o currículo do curso de graduação em psicologia. Mas não é fácil aguentar tudo isso no contexto de uma (mais uma!) disciplina, que tem um tema e um programa específicos.
E lá vou eu, nadando conforme a correnteza, cobrando leituras, dando “holding”, aceitando disputas, compartilhando a ebulição de sentimentos, procurando, pelos corredores, colegas que trabalham com os mesmos alunos, para compartilhar os sentimentos em relação a eles.
Corro o risco de infantilizá-los. E o de “adultizá-los”. Tento lidar com tudo isso, o que nem sempre é fácil ou bem-sucedido. Confesso que muitas vezes não sei se teria sido melhor ter interagido de outra forma, ou mesmo da maneira oposta à que adotei. Mas os cursos têm se dado. O campo constelado é por mim vivido ora como um árido campo de batalha, ora como um campo de semeadura e colheita...
As quatro ou cinco últimas aulas da disciplina “Psicologia Analítica e Arte Educacional”, cujo tema para a parte prática é persona e sombra, têm sido dedicadas ao trabalho com máscaras.
Segundo Laura Sheleen (1983), este trabalho deve ser desenvolvido paralelamente a um trabalho analítico. Mas ela o realiza também com pessoas que já terminaram uma análise pessoal e, por outro lado, com pessoas que encontram no Teatro Arquetípico uma porta de entrada ao caminho analítico. Sua natureza, ainda segundo a autora, é educativa, terapêutica e iniciática, na medida em que favorece o contato e confronto com o inconsciente e uma transformação na personalidade, a partir da integração à consciência de aspectos até então desconhecidos por ela.
O Mitodrama é dividido em três etapas: o trabalho artesanal, de confecção da máscara e outros objetos; o trabalho dramático propriamente dito, de representação no palco com as máscaras; e o trabalho verbal, de nominação.
O que tenho feito na USP é uma adaptação, por um lado, e um desenvolvimento, por outro, do Teatro Arquetípico. Uma diferença fundamental é que se trata de um campo pedagógico. Antes de mais nada, há um trabalho grupal anterior. Lemos e discutimos textos. Realizamos algumas vivências anteriores ao trabalho com máscaras, que visam a melhor assimilação das leituras e a construção de um grupo em que cada um sinta ter seu espaço para opinar, pensar alto, pensar junto, sentir, discordar, dar exemplos pessoais ligados aos temas discutidos, expressar dúvidas, descobertas pessoais, conclusões, questionamentos. Assim, a confecção da máscara, os trabalhos dramáticos e verbais se dão a partir e dentro de um contexto grupal definido e familiar ao grupo. Isto permite que cada um, até certo ponto, escolha o que quer, e pode, expressar ali. Por outro lado, faz com que os temas sejam extraídos do próprio grupo ou pelo menos assegura que sua elaboração verbal se dará em meio ao que já foi constelado. Não se trata de fazer um planejamento de temas, personagens e situações a serem dramatizadas. Naturalmente, o imaginário do grupo vai delimitando um conjunto de conteúdos mais prováveis de serem trabalhados. As discussões de aspectos teóricos, prévias ao trabalho com máscaras, os componentes do grupo e os temas delineados nas vivências anteriores fornecem os elementos significativos.
Há também diferenças entre o Mitodrama e o trabalho que venho realizando na USP no tocante aos recursos materiais. Nada de palco italiano ou de focos de luz permitindo enfatizar o jogo de luz e sombra, na USP! Dispomos de uma sala de aula, que transformamos em teatro: cortinas fechadas, carteiras deslocadas, um cartaz na porta dizendo: “Proibido Interromper”, os espaços delimitados com giz, no chão, a luz no “palco” permanentemente acesa e no restante, apaga da. E de uma sala, no Laboratório de Psicologia do Movimento, para os trabalhos artesanais: vazia, com alguns colchonetes e banquinhos.
Além destas, introduzi algumas outras modificações, a nível da técnica e da compreensão do trabalho, que comento a seguir, entremeadas à apresentação do trabalho com máscaras propriamente dito.
O trabalho artesanal
O primeiro passo é fazer um molde, em argila, para a máscara. Todos se sentam em círculo no chão. Cada um recebe um pedaço de argila, de uns três quilos, que deve ser tocado, experimentado e preparado para modelagem (às vezes é necessário adicionar-lhe um pouco de água). Depois, de olhos fechados, de preferência vendados, passa a modelar ali um rosto, que será o molde para a máscara, em silêncio, por cerca de meia hora. Aos participantes é lembrado apenas, ao fecharem os olhos, que estarão fazendo uma máscara e que é importante que esta seja confortável para o uso, possua aberturas suficientes para a respiração e a visão.
Esta primeira etapa do trabalho põe cada um em contato com a matéria e suas características. Máscaras podem ser feitas a partir de outros materiais como isopor, papelão, resinas. A opção pela argila se dá em função de sua natureza. Há dois modos possíveis de confronto com a matéria: o modo mais sensorial, ligado ao contato carnal com a matéria bruta, e o modo mais intelectual, que parte de um projeto e se vale da manipulação de instrumentos. A argila remonta à terra, ao barro de que, segundo o mito, Adão foi feito, e nos remete à criação e ao criador. Favorece o modo mais sensorial, permite um trabalho fluente valendo-se apenas das mãos e dispensando quaisquer instrumentos. O segundo modo solicita mais da consciência. A ideia é, a meu ver, favorecer uma verdadeira imaginação ativa, em moldes diferentes dos concebidos por Jung.
Dá-se uma regressão nesta primeira etapa do trabalho, que pode ser, e é esta a proposta, criativa. Erich Neumann (1976), em seu livro “The Child”, discrimina duas maneiras diferentes de se vivenciarem os polos oral e anal e a relação entre eles. Numa primeira fase, a do self corporal inserido na relação primal, todos os produtos do corpo são carregados de mana, de um poder mágico. Há uma conexão entre o ora o anal, vivenciados como um campo vivo de ingestão e excreção, em que os dois polos são interdependentes e de igual valor. A partir dessa relação arquetípica, observase que em muitos mitos o excremento, ligado à terra, é o ponto de partida para uma vida criativa. Numa relação primal criativa, essa unidade é preservada: a defecação é tanto uma aquisição positiva quanto uma dádiva da relação mãecriança.
A partir do momento em que a criança se senta, o polo anal começa a representar a parte inferior do corpo e, pouco a pouco, a se relacionar com o que é feio, pecado, rejeitado. É a introdução do mundo patriarcal, que valoriza o que é superior, espiritual e não sensorial.
A psicanálise descobriu as relações entre o polo anal e as artes plásticas. No entanto, as interpretou redutivamente. Neumann comenta que, em condições normais, a criação artística não é uma sublimação de elementos anais reprimidos, mas, pelo contrário, uma entre muitas continuações criativas de um estágio anal que tenha sido preservado e integrado com o desenvolvimento individual como um todo. O prazer natural com substâncias plásticas, que a criança experimenta com fezes, e mais tarde com barro e argila, é um pré-requisito para a expressão plástica e para a utilização de materiais plásticos na vida adulta.
Na passagem do matriarcado ao patriarcado, o defecar, até então associado a um processo criativo e aprovado, gradualmente passa a ser assimilado ao princípio de adaptação e ordem. A defecação transforma-se num ritual dedicado à rejeição do elemento negativo, do mal. A função de expulsão das fezes entra em conflito com o significado matriarca! original das fezes como algo criado. A avaliação positiva inicial do polo anal é superada pela nova avaliação do polo da cabeça. Se isto ocorre em harmonia com o desenvolvimento motor da criança, relacionado à postura ereta, à deambulação e ao exercício da vontade, inserido numa relação primai criativa, as polarizações (acima-abaixo, limpo-sujo, cabeçaânus) ocorrem normalmente e a criança não desenvolve um desprezo exagerado, neurótico, por seu corpo e suas funções naturais.
O contato com a argila, do adulto que participa do trabalho com máscaras, permite e favorece uma revivência dessa fase do desenvolvimento. Algumas pessoas, ao receberem o bloco de argila, têm uma atitude de repugnância, chegando a perguntar quando é que vão poder lavar as mãos. A confecção do molde da máscara possibilita um movimento criativo, na medida em que se cria a partir da argila, em grande medida graças à argila, e em que o ego adulto é capaz de reconsiderar as polarizações e relativizar o valor atribuído a cada polo, num processo criativo de elaboração da sombra. É possível o reencontro com o prazer, o lúdico, a criação, e também com os bloqueios, as inibições e as frustrações.
Estando pronto o molde, a proposta seguinte é não abrir ainda os olhos, deixar de tocar na argila e tentar formar uma imagem do rosto construído. A seguir, abrir os olhos, ou tirar a venda, e conhecer sua criação.
Este momento é bonito. O impacto do primeiro encontro com o molde em argila costuma ser grande. Tira-se a venda e tem-se uma surpresa! Olhos nos olhos, olhos nos não olhos, olhos na face modelada. As expressões faciais de quem vê, e fez, o molde dizem muito. Seu movimento de aproximação ou rejeição revela o quanto a consciência está disponível para contatar o aspecto ali representado ou o quanto ele está cercado de defesas.
Depois cada um tem a oportunidade de apresentar seu molde ao restante do grupo e compartilhar suas impressões sobre ele e sobre o processo de confeccioná-lo. Observo que a maioria dos participantes permanece, nessa etapa, bastante presa ao molde, falando mais com ele do que com o grupo. Lá na Suíça foi um momento em que não havia tradução e eu não entendia o que algumas pessoas diziam. Mas foi muito emocionante ver o que elas diziam, parecia que naquele momento as palavras não eram o mais importante. O processo de elaboração do símbolo da máscara encontrava-se em seus estágios préverbais para muitos, lidando com sensações e emoções ainda não muito definidas ou discriminadas.
Algumas pessoas gostam de seu molde, outras detestam-no. Algumas ficam querendo fazer correções, acertar a simetria da face, tirar certas rebarbas. Algumas veem no molde uma semelhança com alguém conhecido, identificam ali algum animal ou figura mitológica. Algumas querem jogá-lo fora e recomeçar tudo. Outras já estão motivadas para começar a confecção da máscara propriamente dita. Quanto ao processo de modelar a argila, algumas pessoas o relatam como tendo fluído e outras como tendo tido, o tempo todo, de lidar com tentativas de fazer algo simétrico ou intencional; outras, ainda, sentem terem “viajado” em suas fantasias, paralelamente ao trabalho com as mãos.
A sessão seguinte é dedicada à confecção da máscara. O rosto em argila serve de molde e camadas de pequenos pedaços de jornal vão sendo sobrepostas, uma a uma, com cola, até se obter uma consistência razoável. A máscara é então retirada da argila e é pintada.
Esta segunda sessão é bastante artesanal e braçal. A colagem do jornal até a consistência adequada chega a ser cansativa para a maioria dos participantes, pondo a consciência em contato com a natureza e a resistência e colaboração da matéria. Ainda nesta etapa, a tentação de “corrigir” a máscara é grande e é preciso lidar com ela.
A pintura é um momento em que a consciência pode entrar com tudo, sobretudo dependendo do número de cores utilizadas. É possível pintar a máscara com uma única cor, a fim de neutralizar o embaralhamento do jornal e homogeneizá-la. Na USP, ofereci inicialmente branco e preto aos alunos. E, com o último grupo, quis introduzir mais uma cor. Depois de ter lido alguns mitos de criação no candomblé, incluí o vermelho.
Acredito que fui sentindo a necessidade de introduzir mais cores no trabalho com os alunos devido à natureza de nosso trabalho. O foco ali é o pedagógico, não é uma situação em que se vise trabalhar com o material inconsciente mais bruto de cada um. Poder dedicar-se a pintar a máscara por certo tempo, escolhendo cores e traços, já adianta, para quem o necessite, a participação da consciência. Não se vai ao palco tão cru.
Tive recentemente a oportunidade de entrar em contato com alguns aspectos do sistema Nagô e surpreender-me e encantar-me com algumas relações que fui estabelecendo entre esse sistema, o trabalho com máscaras e o campo constelado pelo arquétipo do mestre-aprendiz.
A primeira delas diz respeito ao caráter iniciático. Juana Elbein dos Santos (1986), em seu livro “Os Nagô e a Morte”, define o universo Nagô como uma experiência iniciática, em que os conhecimentos são apreendidos através de uma vivência em nível bipessoal e grupal, mediante um desenvolvimento paulatino pela transmissão e absorção de uma força e um conhecimento simbólico e complexo a todos os níveis da pessoa, e que representa a incorporação vivida dos elementos coletivos e individuais do sistema. Tal força e conhecimento são os integrantes do “axé”, que relaciono ao conhecimento adquirido e à integração na/da personalidade. E a forma, iniciática, de desenvolvimento é a mesma, envolvendo toda a personalidade e se dando dentro de um campo de interação pessoal, presente na psicoterapia, como a apresento em minha dissertação de mestrado, e na situação de ensino-aprendizagem, como a formulo aqui, guardadas as características de cada contexto.
A segunda relação que estabeleço diz respeito ao “fazer” a cabeça. Segundo o mito de criação do candomblé, o Orixá, ao criar os seres humanos, pega uma porção de palmeira para criar alguém. As pessoas dessa espécie, quando nascem, devem venerar Ifá. O Orixá pega um fragmento de pedra para criar outra espécie de pessoas. Estas, quando nascem, devem venerar Ogum. E assim por diante. O Orixá pode ainda pegar uma porção de lama, para criar outra espécie de pessoas, uma porção de água ou uma porção de brisa.
Mas a criação não para aí. Há ainda Oxalá, Orixá antigo, que é o fazedor de cabeças. Ele modela Ori (as cabeças) todos os dias e o põe no solo. Aquele que vai nascer deve chegar até ele e se ajoelhar para escolher sua cabeça. São 17 os Odu que trabalham todos os dias na modelagem do Ori. A porção retirada na qual cada Ori é modelado é a matéria ancestral. Cada pessoa deve venerar sua matéria ancestral para prosperar no mundo e para que ela venha a ser sua guardiã. Segundo a tradição, cada ser criado, no momento de escolher seu Ori, escolhe também seu Odu, o signo que regerá seu devir. Há uma relação entre o Ori e o destino individual.
O participante do trabalho com máscaras, ao modelar a argila e ali criar uma cabeça, que servirá de molde, assemelha-se a Oxalá e aos 17, Odu. Os olhos vendados em muito contribuem para um rebaixamento da crítica e da preocupação estética. A argila, como material bruto e de textura que permite às mãos grande fluência, favorece o trabalho de criação da cabeça com grande participação do fluxo inconsciente, isto é, do trabalho de criação em cada um.
Depois de prontas as máscaras, é possível, e a meu ver desejável, dedicar uma parcela de tempo à confecção da indumentária e de objetos a serem utilizados nos jogos dramáticos. Laura Sheleen (1983) comenta esta possibilidade, mas não lhe dá nenhum destaque. Lá na Suíça, os coordenadores se encarregaram de fornecer ao grupo panos, roupas e acessórios. Na USP, por limite de tempo, tampouco dediquei com os primeiros grupos ao menos uma sessão para a confecção da indumentária. Intuitivamente, resolvi pedir aos alunos que trouxessem de casa panos, fantasias, chapéus, lenços, ornamentos, bonecos, guarda-chuvas – enfim, o que desejassem para completar os personagens sugeridos pelas máscaras. Esse material ficava à disposição do grupo todo durante os jogos dramáticos. Com isso, o trabalho continuava para eles durante a semana. Nas sessões destinadas às dramatizações, eles chegavam com sacolas e mais sacolas, passavam a mostrar aos outros o que haviam trazido, a experimentar algumas roupas e acessórios. Isto é, já começava a inspiração em relação ao que seria dramatizado no palco. Eram momentos de empolgação, troca e criação.
No universo Nagô, existe o culto dos Egun. Há terreiros especiais para tal e o objetivo ali é experimentar a presença dos espíritos dos ancestrais, manipular seu poder e funcionar como veículo de comunicação entre os vivos e os mortos. Refiro-me a esse culto pela ênfase dada à roupa, sobretudo. Os Egun aparecem de maneira característica, inteiramente recobertos de tiras de panos coloridos, que permitem aos espectadores perceber apenas vagamente formas humanas. Acreditase que, sob tal indumentária, se encontra o espírito de um morto ou qualquer aspecto associado à morte. Os Egun são os guardiães de valores morais, de costumes e tradições. Mantêm, assim, a imortalidade da vida da comunidade. Eles trazem para seus descendentes e fiéis o benefício de sua bênção e seus conselhos, mas não podem ser tocados ou contrariados. Seus sacerdotes controlam rigorosamente, por meio de regras e procedimentos ritualísticos, a comunicação entre eles e os vivos.
No culto dos Egun, expressa-se todo o mistério da transformação através da morte, de um ser deste mundo (ayé) em um ser do além (orun), e a possibilidade de sua convocação e sua presença no ayé. Da morte só vemos as roupas exteriores, as tiras de pano, e o mistério da transformação não pode ser conhecido. Não se deve procurar ver o que se oculta sob as tiras de pano.
Cada Egun possui roupas características e um ké que o identifica. O ké corresponde ao seu som ou exclamação, marca de sua individualidade. Além disso, carrega emblemas específicos e possui cantigas e formas de invocação e saudação que lhe são peculiares.
Há dois grandes grupos de Egun. O primeiro é caracterizado pelo abala, conjunto de tiras de pano coloridas, que caem como uma cortina, presas a uma parte sólida, quadrada ou redonda, que forma o topo do abala. Sua indumentária é acrescida ainda por espelhos, cauris, guizos e contas, e pelo awon, uma espécie de rede com aparência de rosto inserido num tipo de macacão que aparece vagamente sob o abala. Enquanto estes Egun representam os ancestrais de famílias importantes, os do segundo grupo, os aparaka, correspondem a espíritos novos que não puderam completar seus ritos de iniciação. Os primeiros falam com voz inumana, às vezes rouca e cavernosa, às vezes baixa e aguda. Os do segundo grupo são mudos. Abrir a fala do Egun é uma fase fundamental nos ritos de preparação e invocação dele. E sua palavra tem força de lei.
Assim como no culto dos Orixás, o mecanismo básico que rege o culto dos Eguns é a transmissão e redistribuição do axé, sobretudo através de rituais de oferendas e sacrifícios.
Refiro-me aqui ao culto dos Egun por duas razões. A primeira é que esse aspecto ligado à morte está também presente no trabalho com máscaras. No palco, algo agoniza, dá-se uma expiração, e o trabalho, completado na etapa verbal, com esse aspecto de morte pareceme fundamental. Um personagem é criado, dramatizado, apresentado, compartilhado. Ao mesmo tempo, praticamente as mesmas condições que permitem seu nascimento permitem também sua morte. Isto é, sua tomada de consciência, a assimilação pelo ego de seu axé, a sua morte enquanto complexo sombrio, capaz de possuir a personalidade em algumas circunstâncias. O trabalho com máscaras remete aos mitos de criação e também aos mitos de morte e transformação. Resgata a continuidade entre vida e morte.
A segunda razão pela qual introduzo aqui o culto dos Egun é relativa à indumentária. Há em tal culto toda uma ênfase na vestimenta e uma não-ênfase na cabeça O corpo ganha realce. No Mitodrama, o destaque especial é dado à cabeça, à máscara. A autora pouco se refere à indumentária, aludindo a ela como apêndice à máscara, necessário para a dramatização no palco. Não é bem isso que observo. A mesma máscara, apresentada com trajes diferentes, ganha expressões muito distintas. Isso pode ser observado no jogo dramático de apresentação da máscara a seu criador, por exemplo. As roupas e acessórios não apenas complementam o personagem, como, em alguns casos, o transfiguram. O processo de criação, iniciado na confecção do molde, continua na confecção da máscara e também na etapa do se vestir. Valorizar apenas a cabeça, ou sobretudo a cabeça com tanto destaque, consiste em permanecer apenas no dinamismo patriarcal de consciência, que separa as polaridades e passa a atribuir valor positivo a apenas uma delas, e negativo à outra. É desconsiderar o potencial criativo da etapa em que, segundo Neumann, os polos oral e anal são estreitamente ligados e igualmente valorizados, cabeça e corpo não são ainda tão separados, e isso possibilita uma criatividade especial. O trabalho com máscaras, através do contato com a argila na confecção do molde e do resgate do corpo pela indumentária e pela dramatização, em muito favorece uma vivência criativa do dinamismo matriarcal.
Com o último grupo com que trabalhei, experimentei maiores modificações na proposta de Laura Sheleen. Em vez de solicitar a modelagem de um rosto na argila, solicitei a de um personagem. Este, depois de visto e apresentado ao grupo, foi interlocutor-inspirador num trabalho de desenho, escrita livre e movimentos corporais. A sessão seguinte foi dedicada à confecção do que fosse necessário para a dramatização do personagem: fantasias (de papel crepom), máscaras e acessórios. Grande parcela do tempo foi dedicada, espontaneamente pelos participantes, à confecção da indumentária. As dramatizações e a elaboração verbal, nesse grupo, foram mais ricas.
Em seu livro, a autora pouco ou nada diz sobre a indumentária. Ela, ao falar da delimitação do espaço teatral, sugere que as roupas e objetos fiquem atrás da plateia e, no mais, comenta que há a possibilidade de confecção de objetos simbólicos. Toda a ênfase é dada à máscara, à cabeça, ao polo oral a que Neumann se refere. Há textos extensos sobre a história das máscaras e sobre o significado psicológico da máscara. Acredito que nesse aspecto, o da formulação do Teatro Arquetípico, ela permanece presa à mentalidade patriarcal predominante na Europa, não chegando a elaborar, pelas palavras, também a questão da indumentária, do corpo, do polo anal.
O trabalho que se segue à confecção da máscara, de dramatização e nominação, tem como objetivo principal justamente o ego, como componente que dá a marca individual à personalidade. A ideia de Laura Sheleen, em poucas palavras, é que o Mitodrama oferece ao ego personas para aspectos da sombra, favorecendo, ao final, a integração da personalidade através da assimilação pela consciência de aspectos até então desconhecidos. O processo de confecção do molde propicia sobretudo o surgimento de conteúdos da sombra. Os jogos dramáticos permitem o exercício de personas não habituais aos participantes. E o foco, o tempo todo, é o ego, que, ao final, é convidado a, através do uso de palavras, elaborar o que vivenciou.
O trabalho dramático
Laura Sheleen desenvolveu uma forma específica de conduzir os jogos dramáticos, a partir de sua experiência com dança e teatro, de seus estudos psicológicos e da orientação de Pierre Solié, que integra conceitos da Psicologia Analítica e da Psicanálise de Lacan.
A função do Teatro Arquetípico é propiciar uma transformação na personalidade, mobilizando a sombra e a persona. É permitido e esperado que se ponha em cena aquilo que não pode ser diretamente vivido no cotidiano.
O espaço teatral é todo delimitado. A entrada e a saída do palco seguem direção análoga à do movimento do sol. O palco e a plateia são bem separados, constituindo aquele o lugar de representação, com todas as possibilidades do imaginário, e esta o local de recepção e reflexão das mensagens apresentadas no palco. Entre eles há o local que a autora denomina de quiasma, isto é, da conjunção de opostos, o qual abrange também o lugar da nominação, em que se dá o trabalho verbal de elaboração simbólica através do uso de palavras pelo ego. Nessa zona intermediária há também o local para as máscaras que não estiverem sendo utilizadas no dado momento. Atrás da plateia há o lugar da indumentária, de modo que quem desejar ir ao palco possa ir se aprontando enquanto continua a assistir o que está se desenrolando no palco.
A pessoa que estiver aquecida para ir ao palco se levanta da plateia, apanha uma máscara e vai se trajar. No momento oportuno, entra no palco e realiza sua dramatização. Dali segue para o local da indumentária, para retirá-la. Em breve, será convidado ao lugar da nominação, onde participará do trabalho verbal. Findo este, deixa a máscara que utilizou no local das máscaras e volta à plateia.
Depois de delimitar o espaço, a autora sugere explicitar ao grupo as regras dos jogos dramáticos, que resumo assim: é proibida qualquer gratificação oral (comidas, bebidas, cigarros), exceto a palavra. É proibido qualquer ato que escape ao controle consciente ou que possa ferir alguém ou algo, envolvendo-o no jogo dramático sem sua cumplicidade ou consentimento consciente. Não se deve interpretar os jogos dramáticos ou as verbalizações; falar em primeira pessoa, explicar o que em si foi mobilizado, dar feedback. A primeira pessoa a utilizar uma máscara é seu criador. Só se pode ir à cena mascarado. As ações são sugeridas, representadas por mímica e não executadas de fato. Qualquer infração deverá ser trabalhada verbalmente depois; às vezes justifica que o coordenador interrompa a dramatização.
Estas regras são consideradas castrações simbólicas no referencial lacaniano. Atendo-me à linguagem junguiana, eu diria que são delimitações patriarcais e sacrifícios, necessários ao processo de elaboração simbólica.
Há um paradoxo no que diz respeito à diretividade ou não diretividade. Junto com uma estruturação rígida do tempo, do espaço e do ritual, há total liberdade na criação das máscaras e dos jogos dramáticos. Diferentemente do Psicodrama, não há explicitação verbal prévia à entrada no palco de situação problemática, de projeto de encenação ou de característica do personagem a ser representado. O coordenador é responsável pela criação de um vazio, uma espera, de cuja vivência resultará a ida espontânea ao palco.
O primeiro jogo dramático consiste em “dar o sopro de vida à máscara” e apresentá-la ao grupo no palco. Em francês, a autora usa a expressão “souffler dans son masque”. Em muitos mitos, a criação se dá a partir dos movimentos respiratórios do criador. Ao inspirar, expirar, inspirar, expirar..., ele povoa o universo. A analogia com a respiração é muito pertinente neste trabalho com máscaras. Há uma inspiração, que leva à busca no âmago do indivíduo de algo a ser expirado, isto é, apresentado no palco, num ato criativo. A inspiração remete ao movimento de busca da totalidade, através da qual qualquer componente psíquico pode se expressar, daquilo que mobiliza e permite uma diferenciação individual. A expiração corresponde à expressão, e também à morte: algo expira ao ser expresso, fica sujeito ao encontro com o outro e sua possível inspiração, é enformado, apreendido, assimilado à consciência que com isso também se reestrutura, e perde sua autonomia anterior.
Inspirado em sua criação (sua máscara), seu criador aspira a levá-la à cena. Imagina um personagem, vai ao lugar da indumentária aprontar-se e, então, sobe ao palco para a dramatização, sem palavras. Ao entrar em cena ele passa a ser o protagonista, isto é, o proto-agonista, o primeiro a agonizar, a expirar. Nesse processo há muita transpiração: é preciso lidar com o medo de não saber o que, ou como, se apresentar. Muitas vezes o coração se acelera, as pernas tremem, há tropeços a caminho do palco, dá-se uma transpiração no sentido literal, a respiração se altera toda. E depois, na etapa verbal, alguns participantes comentam: “Foi tudo uma piração!”, uma trans-“piração”.
No jogo de insuflar as máscaras, cada um entra em cena sozinho e só pode sair do palco simultaneamente à entrada de outro protagonista. Depois de três ou quatro apresentações, há o momento de compartilhar e elaborar verbalmente as dramatizações. Quem acabou de representar toma a palavra, seguindo a ordem que se deu no palco, e depois a plateia faz seus comentários. Seguem mais três ou quatro apresentações, até que todas as máscaras estejam insufladas. E nas sessões seguintes, abre-se a possibilidade do uso de outras máscaras e de outros jogos dramáticos, sempre de acordo com o mesmo ritual: indumentar-se, dramatizar, falar, correspondendo a diferentes etapas do trabalho de elaboração simbólica.
Outros jogos possíveis são: cada um escolher alguém para dar uma outra “sopradinha” em sua máscara. Irem quantos mascarados desejarem para o palco, desde que fique pelo menos um espectador na plateia, e apenas coexistirem, isto é, ocuparem o mesmo espaço do palco, mas sem nenhuma interação. Interagir no palco, à medida que a dramatização de alguém mobilize algo que se deseje expressar.
É tudo muito dinâmico e espontâneo. A apresentação da máscara a seu criador mexe com os afetos grupais. Escolher ou ser escolhido para apresentar a máscara de outra pessoa consiste em estabelecer laços especiais com ela. É interessante tomar consciência da escolha e é também muito rico ver a própria máscara no palco. Aquele que recebe a máscara tem total liberdade para a criação de um novo personagem. É frequente que esta segunda apresentação da máscara complete seu sentido para seu criador.
A coexistência justaposta tem a ver com certas situações do cotidiano, em que temos que simplesmente ocupar o espaço comum a outras pessoas, sem interagir com elas. Nesse jogo, aparecem dificuldades, devido à falta de maturidade, ao narcisismo defensivo, à necessidade compulsória de aprovação ou à necessidade compulsiva de interação.
Os jogos abertos, com participação e escolha da máscara espontâneas e em que a interação no palco é permitida, favorecem a apresentação e a elaboração de certas situações ou processos. Nesses jogos, pode surgir a necessidade da criação de novas máscaras ou acessórios.
Os jogos dramáticos permitem pesquisar diferentes meios de expressão. Consistem na criação de personas para que o ego possa expressar e integrar aspectos do self. O que tenho observado é que algumas pessoas se sentem protegidas e escondidas atrás da máscara, e outras se sentem demasiadamente expostas. Coisas da sombra. E da persona. E do ego... Coisas do ser humano, enfim.
Nos primeiros jogos, há participantes que são incapazes de ocupar o fundo do palco, permanecendo perto da plateia, como se assim sentissem que ficam menos visíveis. Há protagonistas que jogam o tempo todo com a plateia e não para a plateia, esperando assim fundir-se com os espectadores e seduzi-los a dramatizar também. São pessoas que não têm ainda os meios de aceitar a solidão da dramatização – e da vida –, pelo menos nos aspectos ali simbolizados, de definir-se, tornar-se distinto e único. Outros participantes entram e saem muito rapidamente do palco. Enfim, são situações, independentemente do conteúdo apresentado, a serem comentadas e elaboradas na etapa verbal do trabalho.
O trabalho verbal
Depois de um jogo dramático, os participantes deste são convidados a se sentarem entre o palco e a plateia, no local da nominação, e inicia-se o que a autora denomina “paroli”, isto é, o trabalho verbal. A proposta é que cada ator exprima, em palavras, o que o motivou a entrar em cena, o que vivenciou no palco, o que o satisfez e o que o frustrou. E a plateia é então convidada a dar seu feedback, expressando sua ressonância ou seu distanciamento em relação às dramatizações.
O trabalho verbal, que favorece o quiasma, isto é, a conjunção dos opostos, na linguagem de Pierre Solié (1985), permite que a consciência integre o que foi vivenciado. Algumas pessoas nem se lembram bem do que fizeram no palco. Em outras, constata-se uma distância muito grande entre o pretendido e o expresso – o feedback da plateia é elucidativo. Algumas querem continuar representando com sua máscara; para outras ela parece ter se esgotado. Minha xará comenta que, nesse momento, cabem interpretações. Eu, num contexto pedagógico, evito interpretações.
Depois do agir do jogo, passa-se ao dizer do jogo, que é, na linguagem psicodramática, o duplo do que foi dramatizado. E a palavra permite ir além do que foi representado no palco, participa da criação de um campo específico, consiste no enfatizar, reincidir sobre o encenado, e receber os comentários dos outros participantes. Aquilo que foi vivido no palco está em busca de sua nominação, da palavra adequada, que permitirá sua elaboração. O trabalho de nominação implica uma distância: a palavra nomeia e representa a coisa, colocando-a imaginariamente à disposição da consciência. A etapa verbal obriga a consciência a formular o vivido e assim integrar elementos até então inconscientes. É um trabalho necessário, pois é da natureza do inconsciente repetir sempre os mesmos motivos, produzir sintomas, até que a consciência lhe envie um sinal que prove que ela o compreendeu, assimilou e com isso se transformou. O trabalho verbal auxilia cada participante a se desculpabilizar e, ao mesmo tempo, se responsabilizar pelo que aconteceu. Nesta etapa observam-se dois tipos de movimento: uma ressonância com empatia ou um distanciamento coisificador. Não se trata de interpretar, mas permitir que cada um Depois do agir do jogo, passa-se ao dizer do jogo, que é, na linguagem psicodramática, o duplo do que foi dramatizado. E a palavra permite ir além do que foi representado no palco, participa da criação de um campo específico, consiste no enfatizar, reincidir sobre o encenado, e receber os comentários dos outros participantes. Aquilo que foi vivido no palco está em busca de sua nominação, da palavra adequada, que permitirá sua elaboração. O trabalho de nominação implica uma distância: a palavra nomeia e representa a coisa, colocando-a imaginariamente à disposição da consciência. A etapa verbal obriga a consciência a formular o vivido e assim integrar elementos até então inconscientes. É um trabalho necessário, pois é da natureza do inconsciente repetir sempre os mesmos motivos, produzir sintomas, até que a consciência lhe envie um sinal que prove que ela o compreendeu, assimilou e com isso se transformou. O trabalho verbal auxilia cada participante a se desculpabilizar e, ao mesmo tempo, se responsabilizar pelo que aconteceu. Nesta etapa observam-se dois tipos de movimento: uma ressonância com empatia ou um distancia mento coisificador. Não se trata de interpretar, mas permitir que cada um fale em primeira pessoa, assuma suas projeções, compartilhe suas reações e associações. Aquele que se expressa de uma maneira hipercrítica ou hipercomplacente, distanciado, numa postura de observador ou de quem tem todas as explicações intelectuais para o que foi vivido, costuma ser questionado e cobrado pelo grupo em sua participação.
No candomblé, a palavra também é investida de um sentido especial e é relacionada a Exu, princípio dinâmico e dinamizador, responsável pela existência individualizada. Exu, intérprete e linguista, intercomunica não só todos os elementos do ayé com os do orun, e todos os elementos entre si, como também, ao impulsionar o axé individual, relaciona o interior com o exterior, permitindo que o som e as palavras se deem. A palavra assim ultrapassa seu conteúdo semântico racional para ser um instrumento condutor de axé, isto é, um elemento que carrega poder de realização.
A palavra adquire poder de ação porque está impregnada de axé, é pronunciada com o hálito, a saliva, a temperatura; é palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere.
Cada palavra emitida é única. Nasce, preenche sua função e desaparece. O símbolo semântico renova-se, cada repetição é uma resultante única. A expressão oral está sempre renascendo, produto da interação a nível individual e social. A palavra, a nível social, transmite o axé concentrado dos antepassados às gerações do presente. A nível individual, a palavra expressa e exterioriza um processo de síntese, no qual intervêm todos os aspectos da personalidade.
A palavra é importante na medida em que é pronunciada, é som. O som implica sempre uma presença que se expressa, se apresenta, se faz conhecer e procura atingir um interlocutor.
No I Ching (WILHELM, 1983), no comentário à imagem do hexagrama 37 (Chia Jen/Vento sobre Fogo), encontramos:
as palavras precisam ter força, e só podem tê-la quando se baseiam em algo verdadeiro, assim como a chama depende do combustível. As palavras exercem influência somente quando são objetivas e claramente referentes a circunstâncias definidas. Discursos e advertências genéricas não têm qualquer efeito. As palavras devem ainda estar apoiadas em todo um modo de vida, assim como o efeito do vento deriva de sua continuidade. Só uma conduta firme e consequente terá impacto sobre outros, fazendo com que se adaptem e se orientem por ela. Se a palavra e a conduta não estão em harmonia e não são consequentes, não terão efeito.
A dramatização oferece uma persona à palavra enquanto produção apenas mental. A concepção inicial per-soa através da máscara, ganha forma e vida no palco, e há depois, na etapa verbal, a integração do vivido, através das palavras.
O Teatro Arquetípico pode ser considerado, na linguagem do candomblé, um processo de “abrir” a fala. A abertura da fala permite que os Orixás se comuniquem com os homens, transmitam suas mensagens e transfiram seu axé. Vários mitos testemunham a dramaticidade que envolve o nascimento do som e da palavra. O ké é uma síntese e uma afirmação da existência individualizada. No culto dos ancestrais, observa-se que os aparaka, representações não individualizadas, são mudos.
O trabalho com máscaras é proposto como um facilitador da individuação através da linguagem e de várias linguagens: jogar, confessar, nominar, interpretar, teorizar, reconhecer, comunicar. Liberadas pelos jogos, as imagens surgem para serem logo cercadas pelas palavras.
As imagens que surgem remetem aos mais diversos temas. Na USP, trabalho com alunos do penúltimo e último anos de graduação. Em um dos grupos, o imaginário girava sobretudo ao redor da formatura e do se tornar psicólogo. No trabalho com máscaras apareceram, isto é, per-soaram (per-sanaram), entre outros, uma bruxa, um padre, uma mendiga, uma mulher idosa e antiga, um cientista maluco. Estes personagens foram, no trabalho verbal, percebidos como aspectos do psicólogo, alguns mais presentes para alguns dos participantes, outros para outros, e todos constituindo em parte aquilo que o imaginário do grupo formulava como sendo esse profissional.
Em outro grupo, o trabalho com máscaras focalizou sobretudo o tema do grupo, de pertencer ou não a ele. Foi uma turma que sofreu duras penas até que se definisse o grupo com quem estávamos trabalhando. Um aluno abandonou a faculdade no segundo mês da disciplina, outra aluna chegou um mês atrasada, uma terceira recusou-se a participar das vivências expressivas. Com exceção desta última, que nos remete ao tema da resistência, são situações “de rotina” na USP, mas numa disciplina em que o grupo é trabalhado no sentido de ser operativo e continente para a participação mais integral dos alunos, houve algum prejuízo no andamento do trabalho. Prejuízo esse que acabou se transformando em vantagem, talvez, pois o grupo teve que lidar com os temas do desejar ou não, e assumir ou não, pertencer, do ser aceito ou rejeitado, das diferenças individuais. Ao final, cada participante estava assumindo muito explicitamente seus desejos, suas características individuais, seu grau de interesse e envolvimento com a disciplina, e o imaginário do grupo como um todo girava sobretudo ao redor da questão da tipologia e da possibilidade de constituição de um grupo operativo. Comentários espontâneos, durante o trabalho de confecção das máscaras, davam-se em relação às características astrológicas dos participantes, por exemplo. No final, durante o trabalho verbal, alguns alunos comentaram como estavam surpreendidos com o alto grau de exposição pessoal nesta disciplina e com a possibilidade de, através das vivências grupais e expressivas, conhecerem diferentes aspectos de colegas com quem vinham convivendo há quatro, ou mais, anos. Nesse momento, retomaram a questão da tipologia, que havíamos abordado no início do semestre.
Um terceiro grupo, ainda, focalizou espontaneamente o tema do masculino e do feminino, do ser mulher nos dias de hoje, em São Paulo. Era um grupo constituído apenas por mulheres, e cada uma trazia um aspecto da vivência da mulher.
Quanto ao papel dos coordenadores, que a autora sugere serem dois, são utilizados três diferentes termos: animadores, iniciadores e terapeutas, quer se refiram, respectivamente, ao esforço em insuflar animicamente o trabalho, ao auxílio na realização de potencialidades até então dormentes ou ao trabalho de dissolução de defesas. Suas funções são favorecer o itinerário associativo através do Mitodrama, restituindo os personagens vivenciados à realidade do aqui-agora.
Laura Sheleen sugere que um dos coordenadores se responsabilize pelo trabalho artesanal, desempenhando uma função mais maternal e mais feminina, na medida em que liga cada participante à matéria, à função sensorial e à função sentimento, acolhendo criações e recriações. E que o outro se responsabilize pelo trabalho dramático e verbal, desempenhando uma função mais masculina, de fixação de limites e regras, conduzindo cada participante a ligar-se, através da função pensamento, ao que foi vivenciado sensorial e afetivamente. Ambos os coordenadores devem estar preparados e familiarizados com o contato com o inconsciente, para não incorrerem no risco de inflação, depressão, identificação com o material arquetípico ou grupal.
Os resultados do trabalho dependem, em grande parte, da transferência constelada: somente o outro pode permitir o estabelecimento de uma relação que permita o reconhecimento próprio. O participante encontra-se triangulado entre os dois coordenadores, usufruindo da relação com um deles, com o outro, e com ambos.
Minha experiência na USP é de um trabalho de coordenação solitário. Considero a coanimação muito rica, para feedbacks e insights recíprocos e conjuntos, para a percepção de mais detalhes do campo interacional, para um trabalho mais acurado com a transferência. E tenho minhas dúvidas: será interessante manter dois papéis e tão rigidamente separados, como propõe a autora?
Os alunos com quem trabalhei na USP comentaram, ao final, que me sentiram ora como uma “mãezona” que lhes fornecia barro e tintas e os deixava brincar, ora como alguém que impunha rigidamente as regras do trabalho, ora como alguém que os inspirava na definição do que seria uma psicóloga, ora como alguém cujo feedback seria importante ouvir.
O fato de todas essas facetas e polaridades serem vivenciadas na relação com uma única coordenadora ajuda a integrar os diferentes aspectos presentes em cada um dos participantes. Havendo condições para tal, eu opto por dois coordenadores, mas sem uma delimitação rígida de papéis, e sim numa alternância criativa durante o desenrolar do trabalho.
Intuitivamente em grande medida, fui introduzindo algumas modificações no Teatro Arquetípico. Excluo um dos grupos, ao qual solicitei a modelagem de um personagem em vez de um rosto e em que introduzi outras etapas antes do trabalho dramático, pois ali escapei em grande medida aos moldes propostos por Laura Sheleen e porque é um grupo que ainda se encontra em andamento.
A uma das modificações já me referi: diz respeito à indumentária. Passei a sugerir que os alunos trouxessem de casa o que desejassem para constituir as fantasias, e o trabalho se enriqueceu. Melhor ainda é reservar um tempo para a confecção da indumentária durante o processo.
A outra também já aludi: diz respeito ao trabalho grupal anterior, que visa a construção de um grupo operativo e um contato preliminar com os temas mais significativos para os participantes. Em se tratando de um contexto pedagógico, considero estas etapas prévias fundamentais. O tema (ou temas) emergente do grupo acaba sendo sempre uma constatação a posteriori. No Mitodrama, estou sempre sendo surpreendida pelo que vai surgindo no trabalho criativo e vivencial. As dimensões individual e grupal estão sempre se entrelaçando, se envolvendo e se desenvolvendo, se enrolando e se desenrolando, de uma maneira absolutamente imprevista. Mas é importante dar espaço para os diferentes aspectos interagirem.
No início do semestre, ao apresentar a proposta da disciplina, costumo me colocar à disposição, caso algum aluno queira ter uma conversa individual comigo durante o curso, reservando-me também o direito recíproco. Até agora não fui procurada por nenhum deles. Acho que o mais importante é eu estar disponível. Houve o caso da aluna que não quis participar das vivências e com ela tive dois encontros individuais, propostos por mim e com o objetivo de avaliar o que estava acontecendo e combinar uma forma de reposição das aulas que perderia.
Este tema toca no da resistência às vivências. Em se tratando de um curso optativo, costumo esperar que os alunos venham dispostos a participar das atividades expressivas. As manifestações de resistência são então consideradas dentro do campo constelado, por mim e pelo grupo todo. Minha preocupação é avaliar se a resistência é criativa ou defensiva naquela dada situação. Procuro ouvir a expressão de resistência, respeitando-a e deixando-a intacta se a avaliar como criativa, isto é, preservadora de uma situação a não ser mais mobilizada, ou interferindo e deixando o grupo interferir se a avaliar como um pedido de ajuda. Às vezes, nada disso é necessário: a resistência fala por si e, ao ser-lhe permitida expressão, sozinha se resolve.
Percebo também que pode operar no campo de interação a resistência da professora. Embora eu tenha, por iniciativa própria, proposto uma disciplina em tais moldes, com ênfase nas vivências expressivas, de vez em quando algo me diz para dar uma “maneirada” numa proposta vivencial específica, ou na eventual cobrança de participação de algum aluno em especial. Adoto em relação a este “algo” a mesma atitude descrita acima: tento avaliar em função de que ele se constelou, e agir de acordo.
O trabalho com a aluna que se recusou a participar das vivências, com exceção da primeira, foi elucidativo. Avaliamos juntas que sua recusa deveria ser respeitada e solicitei-lhe, no meio do semestre, que realizasse dois trabalhos escritos, um sobre a parte teórica e outro sobre a parte prática, a fim de decidirmos qual seria sua forma de reposição. Para minha surpresa, seu trabalho sobre a parte prática estava excelente! Sua vivência era a da recusa da vivência e ela a relacionava com grupos anteriores dos quais participara e com o grupo daquele semestre. Expressar e compartilhar com todos e comigo sua recusa da vivência, e tê-la aceitado, foi muito significativo para ela permitindo-lhe trabalhar a nível individual tal recusa. Precisei pedir-lhe que completasse apenas o trabalho teórico, a que ela pouco se dedicara...
Uma sugestão que introduzi no curso, e que pretendo manter, é a de que os alunos façam um diário durante o semestre. Em casa, após cada aula, escrevam o que vivenciaram, o que pensaram, o que sentiram, as fantasias e imagens que lhes ocorreram, livremente, sem nenhum compromisso de mostrar para ninguém, a não ser que o desejem. Durante o trabalho verbal, no trabalho com máscaras ou nas vivências anteriores, percebo que algumas pessoas estão em plena elaboração verbal, mas não há mais tempo ou continência grupal. Outras não desejam naquele momento dizer nada, mas se encontram sob o impacto do vivido, mobilizadas pelo que emergiu. Sugiro que cheguem em casa e escrevam. A ideia do diário me ocorreu intuitivamente. Percebi a importância de se garantir um espaço maior para o ego individual, no qual o contato com o material simbólico pudesse ter continuidade e a constelação de certas defesas fosse assim evitada.
O diário tem-se mostrado extremamente rico. Garante, ao menos, que o material emergente fique registrado e possa ser retomado posteriormente. Alguns alunos não chegam a recorrer a ele. Outros fazem uso dele somente após algumas vivências. Outros escrevem um diário sistemático, após cada aula. Alguns chegam a entregá-lo a mim no final do semestre, como apêndice ou como parte do corpo do trabalho escrito que solicito. No segundo grupo, uma aluna, em determinada aula, quis ler o que havia escrito após a vivência anterior. Ela o leu e o grupo o comentou, num trabalho a meu ver bastante criativo, de consolidação da continência grupal e de assimilação da dimensão simbólica do corpo, no caso.
Considerações finais
Percebo que é necessária alguma formação e sensibilidade terapêutica para se coordenar um trabalho como o proposto nessa disciplina. Vejo-me o tempo todo tentando discriminar o que está sendo elaborado criativamente ou defensivamente, e procurando canais para uma elaboração criativa (como a sugestão do diário, por exemplo). Como integrantes da persona do professor num curso como este, identifico: o colocar-se à disposição para uma relação aberta, fluente, empática, aceitadora; o freio aos impulsos predominantemente estéticos na criação das máscaras e da indumentária; o cuidar do clima do grupo, propiciando a continência grupal para movimentos regressivos, possíveis sobretudo na confecção dos moldes, para vivência do medo da dramatização e para a expressão durante o trabalho verbal; o manter o enquadre o tempo todo (em certos momentos, há o risco de tudo virar uma grande festa carnavalesca); o pontuar o material simbólico que surgir, favorecendo o contato da consciência com ele e sugerindo canais para a continuidade desse contato, quando for o caso; o colaborar com a ligação entre o vivido e os temas teóricos e grupais. Em suma, o professor é o encarregado das condições básicas da criação e manutenção de um campo de comunicação onde os símbolos do arquétipo do mestreaprendiz possam se configurar, manifestar e ser assimilados à consciência.
A experiência terapêutica é de grande valia nesse trabalho. Mas em nenhum momento me considero terapeuta dos alunos ou do grupo. O foco ali é o pedagógico, que entendo como o campo onde a aquisição do conhecimento é realizada pela personalidade inteira, fruto da elaboração teórica e da experiência vivida. A terapeuta em mim me ajuda justamente ao me mostrar onde estão os limites do trabalho, quando é o momento de sugerir outro canal de expressão e elaboração para algum aluno, quando é o momento de proteger alguém de uma iminente invasão por parte de outro participante ou do grupo.
Acredito que o ensino de graduação em Psicologia em muito se beneficia de trabalhos como esse. Vejo a necessidade de o professor ter alguma sensibilidade terapêutica. Mas o que mais se poderia esperar de um curso que, ao final, conferirá o diploma de Psicólogo aos alunos?
Meu ponto de partida neste trabalho foi minha experiência, minha vivência nos quatro papéis, que experimento dispor da forma como vemos nesta Figura.
A psicoterapia visa a transformação da personalidade, consonante à individuação. Trabalhar com as defesas que impedem o realizar autênti-co do si-mesmo.
A situação de ensino-aprendizagem visa, mais do que a transmissão de informações, a sua assimilação pela personalidade, que assim vai aprendendo a aprender e vai estruturando uma persona profissional – persona entendida no sentido amplo, como função paraegóica, expressiva, comunicadora e estruturante da personalidade.
Considero o campo terapêutico mais propício para se trabalhar a sombra, e o campo pedagógico, a persona. Mas ambos visam, em primeira instância, o ego.
A psicoterapia é uma situação protegida e instrumentada para o confronto/encontro com a sombra, especialmente a patológica. Tal confronto/encontro não é brinquedo, não, e precisa de um “vaso” seguro, de uma relação de confiança e alguma constância e continuidade. Dissolver defesas abala profundamente a consciência e ela precisa poder viver sua confusão e indiscriminação num contexto especial, que permita a vivência simbólica de morte e renascimento.
A situação pedagógica é muito favorável para a estruturação da persona profissional. Antes de mais nada, dá-se num contexto grupal e coletivo. O professor é às vezes um modelo, às vezes um referencial que permite ao aluno ir-se descobrindo e fazendo enquanto profissional, ao através da relação com ele assimilar conhecimento e ao ir se diferenciando dele. O campo que se constela favorece o experimentar, desenvolver, estrutu-rar e integrar novas personas.
Mas persona e sombra não são tão separadas assim. Junto com elas há o ego. O que me permite relacionar esses dois campos, o pedagógico e o terapêutico, é a concepção de iniciação. Iniciação implica a participação da personalidade inteira, numa transformação da consciência, que se vai ampliando e estruturando de forma mais abrangente.
Tal transformação se dá tomando como ponto de partida papéis bem codificados e separados: o aluno que não sabe e quer saber, o professor que sabe e está ali para ensinar; o cliente que busca ajuda, o terapeuta que tem os meios para ajudar. Mas a iniciação só se completa quando tudo isso é posto em movimento e interação, quando os quatro papéis deixam de ser rigidamente distribuídos e tomam-se intercambiáveis. Isto é, quando o terapeuta interno é despertado no cliente, graças, em parte, ao terapeuta estar em contato com o paciente em si próprio; quando o aluno passa, ele próprio, a poder ensinar e aplicar o que aprendeu, e quando o professor continua ligado ao que não sabe e pode aprender. São estas relações que estão indicadas no esquema acima.
É através do aspecto interacional que se dá a iniciação. Ela se constrói e se presentifica na relação entre iniciador e iniciado. Há um corpo de conhecimentos e técnicas, sim, mas este é sem vida, inerte, até que seja posto em movimento pela relação iniciática.
E o desenvolvimento da linguagem é fundamental. A palavra é o meio privilegiado de elaboração simbólica. Ela não pode ser dissociada da vivência, do experienciado num nível não verbal. Ela é, pelo menos, a etapa final. A fala integradora resgata o vivido e o relaciona à consciência, operando uma transformação nesta. Através da linguagem, há assimilação de axé pelo ego.
A palavra é elemento indispensável, necessário, na constituição do campo interacional do arquétipo do mestre-aprendiz. Atualmente, a situação acadêmico-universitária é tal que as palavras tendem a perder seu sentido, seu axé. Em todo o sistema de ensino, há excessiva ênfase na palavra, mas na palavra desvitalizada, desconectada de Eros, da personalidade total e da individualidade (SILVA, 1986). Ao chegar à universidade, o aluno – antes tarde do que nunca! – necessita e em muito se beneficia de um trabalho que recupere a palavra significativa, a palavra integradora do vivenciado, a palavra que permite à linguagem constituir-se num itinerário associativo e elaborador das situações experienciadas.
E a palavra assim vivenciada volta a ser o logos da psique, que consiste na raiz etimológica da própria Psicologia. É esta palavra que rasga a fantasia, ao expressá-la, pô-la em movimento e integrá-la à consciência.