O conceito de narcisismo foi introduzido por Freud em 1914. Texto rico de novas intuições, difícil, denso, escrito no cenário das divergências com Jung e que o próprio Freud reconheceu ter tido um parto difícil. Ao levar a libido para o eu, Freud abre a possibilidade de desenvolvimento da Psicologia do Eu. Lança as bases do conceito de superego e, embora exista no texto a ideia de um narcisismo normal, necessário ao desenvolvimento, parece predominar em suas reflexões a patologia, amplamente desenvolvida na literatura psicanalítica posterior (FREUD, 1974).
Jung, aparentemente, não se dedicou ao tema do narcisismo. Em toda a sua vasta obra encontramos poucas referências ao conceito e sempre no sentido patológico usado por Freud. Trouxe, entretanto, para a psicologia dois conceitos fundamentais que constituem a viga mestra de seu pensamento e que nos permitem buscar uma compreensão da psique no seu desenvolvimento normal e na sua criatividade: arquétipo e individuação (JUNG, 1966a).
Ao conceituar a individuação como um processo coordenado pelos arquétipos que organizam o Self, Jung faz um contraponto importante ao conceito de narcisismo. No processo de individuação, Jung desloca o centro de desenvolvimento, do eu, do ego e superego, para o Self, através da noção de Self e de arquétipo central. Até hoje, essa diferença não foi bem compreendida na psicologia pois existem muitos que têm dificuldade de diferenciar individuação de individualismo. Esse contraponto de Freud e Jung foi pouco percebido devido ao fato de Jung ter descrito o processo de individuação como a diferenciação que ocorre na segunda metade da vida e Freud ter descrito o desenvolvimento da primeira metade.
Coube aos seguidores de Jung, entre eles, Michael Fordham, Erich Neumann e, entre nós, Carlos Byington, articular a relação entre os arquétipos e a formação do eu desde o início da vida (BYINGTON, 1987a). Segundo Jung, é a função transcendente que liga o arquétipo central à consciência (JUNG, 1969). Portanto, a função transcendente é a grande função intermediadora entre o arquétipo central e a estruturação simbólica do Eu, desde o início até o fim da vida. Assim, podemos, hoje, compreender o embasamento arquetípico do narcisismo, ou seja, da estruturação arquetípica do eu a partir do arquétipo central situado no id.
Carlos Byington assinalou a importância de articular, na estruturação do eu, as estruturas criativas descritas por Jung e as estruturas defensivas descritas por Freud, que formam o inconsciente reprimido e que na Psicologia Simbólica correspondem ao importante conceito de sombra patológica. Desse modo, podemos perceber a função transcendente estruturando a formação normal do Eu através das funções estruturantes criativas e, ao mesmo tempo, perceber os desvios da normalidade expressos pelas funções estruturantes defensivas, que formam a sombra patológica (BYINGTON, 1987b).
Para Jung, todo fenômeno psíquico possui polos opostos. Todos os arquétipos incluem polaridades: a mãe boa e a bruxa, o pai bom e o pai terrível, e até mesmo a vida e a morte.
A partir desse enfoque, Byington descreve as polaridades entre as estruturas criativas e as defensivas, isto é, entre a essência da Psicologia Analítica e a Psicologia de Freud. Descreve ainda as polaridades dentro das próprias estruturas, o que nos permite correlacionar dentro do processo de desenvolvimento as importantes polaridades da introversão e da extroversão, introjeção e projeção, narcisismo e ecoísmo, na normalidade e na patologia. Podemos correlacionar narcisismo e ecoísmo patológicos com o sadomasoquismo.
Para compreendermos essas correlações nada melhor do que o mito, que é o grande sonho das culturas. De fato, no mito de Eco e Narciso, poeticamente descrito por Ovídio nas Metamorfoses, vamos encontrar o roteiro das funções estruturantes narcisistas e ecoístas até a sua vivência sadomasoquista, inicialmente neurótica e finalmente psicótica.
Eco e Narciso, dois lindos jovens no esplendor de sua adolescência, caminham pela floresta. Ele caça, ela o percebe de longe:
Ora, tendo visto Narciso a deambular por regiões isoladas,
Foi tomada de amores por ele e, furtivamente, segue-lhe os passos.
E quanto mais o segue, mais próxima está da chama em que arde,
exatamente como o inextinguível enxofre que reveste a extremidade
das tochas é incendiado pela proximidade da chama.
Oh! Quantas vezes desejou aproximar-se com palavras ternas
e usar de carinhosas súplicas! Impede-lho a natureza, e nem lhe
consente que tome a iniciativa. Mas está disponível, isso lhe permite,
para esperar os sons, aos quais devolve as próprias palavras (OVIDIO, 2017, p. 189 ).
É o fascínio próprio dos arquétipos da anima e do animus que se manifesta na diferenciação do eu para lhe propiciar a capacidade de encontro com o outro. A travessia da floresta representa na vida humana o processo de individuação. Nessa viagem, o eu será progressivamente estruturado no desenvolvimento normal, fixado e estagnado na neurose ou até mesmo gravemente desestruturado na psicose. Os caminhos de Eco e Narciso, ou seja, seu processo de individuação e as funções estruturantes de dominância narcisista e de dominância ecoísta que cada um representa estão seriamente comprometidos por vivências relacionadas com o casal parental (BYINGTON, 1988).
Para melhor compreendermos o desenvolvimento patológico expresso no mito de Narciso, temos que percebê-lo dentro do desenvolvimento do panteão mitológico da Grécia antiga. Depois de uma era de felicidade, na qual Zeus e Hera expressam a comemoração da organização patriarcal da cultura através do domínio da pujança matriarcal, frequentemente desorganizada e caótica dos Titãs, entram na busca do padrão pós-patriarcal de alteridade. É a fase em que o indivíduo e a cultura necessitam desapegar-se da dominância matriarcal e patriarcal para buscar o padrão democrático de relacionamento e, assim, diferenciar as funções psíquicas que Jung descreveu através dos arquétipos da anima e do animus. A principal tarefa dessa fase é o confronto com a sombra e a diferenciação criativa do potencial arquetípico.
O relato do mito é inequívoco. Ao interagirem como casal, Zeus e Hera não conseguem elaborar criativamente a inveja e o ciúme. A competição não permite diferenciar criativamente sua identidade de homem e mulher. Tirésias, o sábio vidente, que tão bem expressa a função transcendente da elaboração simbólica, tem sua personalidade dissociada como expressão do casal parental. Tirésias se tornará cego por vingança de Hera e adquirirá a função criativa da profecia pela graça de Zeus. É aqui que a relação de Zeus e Hera afetará patologicamente a personalidade de Eco. É aqui também que o estupro da bela e sardenta Liríope, mãe de Narciso, por seu pai, o rio Céfizos, mutilará a personalidade de Narciso, formando a terrível sombra patológica que eclodirá na sua adolescência. Narciso nasceu da violência.
Eco expressará na sua patologia a fixação inicialmente neurótica da função ecoísta. Ela é capaz de se expressar somente através do outro. A disfunção do ecoísmo é tão importante na patologia quanto a do narcisismo. Eco, porém, ficou esquecida. A psicologia parece ter se identificado com o Eu e delegado ao outro a condição de objeto. Não há dúvida, no entanto, de que os distúrbios da função ecoísta estão em nossos consultórios tanto quanto os distúrbios da função narcisista. São pessoas fixadas na sua relação de dependência com o outro e que repetem a maldição de Hera sobre Eco. Presas na compulsão de repetição, são incapazes de exercer o ecoísmo de modo criativo e seletivo e até mesmo “narcisar” quando necessário. O ecoar é uma função criativa e necessária, como tão bem nos mostrou Patrícia Berry em seu artigo Echo and Beauty (BERRY, 1980). As pessoas com fixação ecoísta associam-se geralmente, seja no casamento ou na profissão, a pessoas com fixação oposta, isto é, narcisista, que as complementam em simbioses patológicas de difícil terapia. No mito, Eco desprezada, não suportando a vergonha e a dor da repulsa, ultrapassa a compulsão neurótica de sua relação com Narciso. Configurando uma conduta masoquista que se exacerba progressivamente, ela passa da dimensão neurótica à psicose: seu corpo definha até ficar pele e osso. O sangue evapora no ar, saindo de todas as suas veias. Eco vai se dissolvendo até a morte.
Narciso, por outros caminhos, seguirá também a patologização progressiva. O símbolo-chave na compreensão arquetípica da desestruturação da função estruturante narcisista, representada no mito, é a imagem vista por Narciso em seu reflexo no lago. A dominância da perspectiva egoica na tradição psicológica tem levado os pesquisadores a identificarem nessa imagem refletida a expressão literal da identidade de Narciso. Todavia, a perspectiva arquetípica nos permite interpretar simbolicamente a imagem que Narciso vê e o que o fascina, atrai e escraviza, como a imagem não do seu eu, e sim do seu Self. Aquele conceito que Jung descreveu para expressar a totalidade da personalidade que engloba ao mesmo tempo o eu e todas as demais funções psicológicas e mais o aqui e agora, o passado e o futuro. O Self conceituado por Jung inclui a trajetória do nosso desenvolvimento, com as vicissitudes históricas que nos marcaram, nos feriram e formam hoje nossa sombra normal e patológica, junto com o que temos de melhor e mais criativo. O Self expressa também o futuro, não de forma profética, mas sim de forma prospectiva através do potencial arquetípico com o qual nascemos e que matizará nosso destino.
Byington diferencia, nesse particular, a identidade ôntica e a ontológica. A identidade ôntica é a identidade do eu com todas as suas características do aqui e agora, idade, nacionalidade, profissão. A identidade ontológica é a identidade do processo de desenvolvimento do ser, que abrange o caminho que cada um de nós percorrerá na travessia da grande floresta da vida (BYINGTON, 1988).
Narciso é extraordinariamente belo. O fascínio que Narciso experiencia pela sua própria imagem que até então desconhecia é o impacto do Arquétipo da Anima, que como psicopompo o chama para a individuação, mas, como previra Tirésias, isso lhe seria fatal.
Sabemos que a adolescência é uma das fases mais perigosas da vida, pois a carga emocional que o eu deve suportar na separação da família e no encontro com o mundo pode desencadear quadros patológicos graves. As condutas de risco dos adolescentes, sua propensão às drogas, a delinquência, muitas vezes acompanhada de acidentes até mesmo fatais, podem ser vistas como um desequilíbrio do eu diante da sobrecarga heroica que lhe é imposta pela constelação arquetípica da anima e do animus.
A distância entre o ego de Narciso e a imagem de sua totalidade o leva à patologização progressiva. O principal sintoma nesse momento é querer tocar a imagem como se ela fosse real. Trata-se do distúrbio da literalização, que impregna a psicopatologia. Narciso literaliza aquilo que é simbólico, concretiza o que é metafórico, transforma em entidade aquilo que é processo.
Uma e outra vez Narciso tenta tocar sua imagem; aos poucos se exaure e se desespera. A compulsão de repetição da neurose é a maneira pela qual as funções estruturantes defensivas mantêm a expressividade simbólica através da sombra. A perspectiva arquetípica nos permite ver na compulsão de repetição não somente um mecanismo de defesa do ego, mas também uma defesa da totalidade do Self, através da qual o potencial arquetípico continua a expressar os símbolos indispensáveis ao funcionamento psíquico, se bem que de forma inadequada e prejudicial à produtividade existencial da personalidade. Desse modo, a neurose pode ser vista como uma estratégia do Self para delimitar a expressividade simbólica, sem, contudo, abandoná-la.
A tragédia de Narciso aumenta definitivamente no momento em que a compulsão de repetição se exaure e Narciso se desespera. A imagem vista na superfície do lago e que se apresenta como uma projeção defensiva da imagem da totalidade literalizada, ao se desfazer pelo próprio contato de Narciso, conduz ao desespero. O anseio pelo encontro impossível se torna delírio. É a passagem da dimensão neurótica para psicótica e o que se segue é o ataque a seu próprio corpo. Aquele mesmo corpo que ele impediu que Eco abraçasse.
E, entre lágrimas, rasga sua veste de cima a baixo e fere
o peito desnudado com as mãos cor de mármore.
Ferido, o peito adquire um rubor rosado, como acontece às maçãs
Que, estando claras de um lado, adquirem, do outro, uma rubra cor; Ou como acontece nos cachos às uvas em maturação,
Que apresentam uma cor púrpura.
Ao ver na água, novamente calma, esta situação,
não resistiu mais, mas, como costumam a dourada cera derreter em lume brando e o orvalho da manhã
ao calor do Sol, assim se funde ele, gasto pelo amor,
e lentamente é consumido por um fogo oculto.
Já nem existe cor, mistura de branco e rubro, nem ânimo,
nem forças, nem encantos que admirava há pouco.
Nem se mantém o corpo que Eco amara outrora. (OVIDIO, 2017, p. 195)
Conhecemos a desintegração da imagem corporal na psicose. Podemos compreender o autoespancamento suicida de Narciso como uma rearticulação da função narcísica com a ecoísta no nível extremamente defensivo do sadomasoquismo psicótico.
Assim como o mito apresenta o relacionamento de Eco e Narciso através da complementaridade, nós também não devemos separá-los. É imprescindível a complementaridade das funções estruturantes narcisistas e ecoístas para sua compreensão teórica, tanto no desenvolvimento normal quanto para seu tratamento na expressão neurótica, borderline ou psicótica.
Narciso e Eco estão em relação dialética de opostos complementares não só de masculino e feminino, mas como símbolos daquele que permanece em si mesmo e daquele que permanece no Outro. A flor amarela cuja corola é cercada de pétalas brancas, nascida no lugar da morte de Narciso, é, como bem indica a etimologia de Nárkissos, a expressão do estupor e da paralisação desse incrível processo de individuação de dois jovens adolescentes e da própria cultura grega, no seu caminho para a alteridade.
O final trágico do mito é o ponto de partida de outros grandes mitos que buscam elaborar e contornar as dificuldades enormes da travessia da floresta e do grande mistério do eu e do outro.
Como disse Jung: “O ser humano que não se relaciona com o outro não atinge a totalidade, pois esta só é alcançada pela alma, e a alma não pode existir sem o seu outro lado que sempre se encontra no tu” (1987, p. 454).