Sou caipira, pira-pora, Nossa Senhora de Aparecida...
mas, como eu não sei rezar, trouxe aqui meu olhar, meu olhar, meu olhar...
(Renato Teixeira)
Sou uma caipira, nascida nas terras que antes fizeram parte da fazenda São José do Buquira do escritor Monteiro Lobato, hoje denominada cidade de Monteiro Lobato, que fica na Serra da Mantiqueira, entre São José dos Campos e Campos do Jordão, vizinha ainda de São Francisco Xavier, e outros sítios rurais. Sou psicóloga e me tornei analista no campo da Psicologia Analítica, que privilegia um olhar para os símbolos da cultura, especialmente aqueles que dão significado para uma síntese entre o pessoal e o coletivo.
Ao pensar na analista e na caipira que vivem em mim, fui me dando conta que quanto “mais melhor” analista fui me tornando mais caipira eu fui ficando. Esta revelação da minha própria singularidade tem me feito usufruir de renovadas energias de trabalho e me despertado muitas reflexões a respeito.
Minhas conclusões atuais me dizem que todo analista tem de ser caipira. E não se trata só de uma restauração ou inflação da minha equação pessoal. Penso que todo analista, querendo ou não, precisa de uma parceria com o caipira para melhor executar seu trabalho de análise. São muitas as possibilidades criativas do encontro analista-caipira. Novos significados ganham forma quando tentamos compor umas “toadas” juntos, pois descobrimos que temos uns “causos” comuns.
Antonio Candido, em seu texto Caipiradas (1989, p. 36), define o caipira como “um homem rústico de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão intensa da cultura portuguesa e aborígene”. E ressalta ainda que o caipira “é o produto desta fusão de origem e ao mesmo tempo agente muito ativo de um grande processo de diferenciação cultural própria”.
Numa perspectiva da Psicologia Analítica, podemos compreender o caipira e sua cultura como um arquétipo do antropos, do homem natural, uma vez que sendo expressão de fusões originais guarda a revelação e potência deste antropos contida no homem natural.
Encontramos este arquétipo em sua manifestação original nas vivências do homem do campo, quando os estímulos da natureza são altamente significativos para a compreensão e manutenção da vida, gerando uma cultura de troca com a própria natureza e seus mistérios. Enquanto arquétipo está presente também no homem da cidade, embora em geral este se relacione mais com os estereótipos de uma cultura caipira, rejeitando-a como atrasada, usando-a como parâmetro para mostrar sua superioridade ou caricaturando-a em espetáculos pitorescos.
Sua potência anímica original tende a ficar perdida em meio aos apelos de adaptação a uma cultura pretensamente mais evoluída das cidades. Isto é válido também para muitos caipiras que renegam sua origem, perdem-se no desejo coletivo urbano, dissociando-se das suas raízes e acabam presos às expressões negativas e marginais do homem da cidade, por não encontrar também aí um eixo de adequação a sua expressão.
Voltando para o caipira e sua manifestação arquetípica na natureza da psique, podemos considerá-la como uma energia instintiva original, ou que contém um impulso para a fusão de forças do coletivo que pretende uma diferenciação cultural própria. Neste sentido, penso que o caipira pode ser em nós o próprio impulso para realizar nossa individuação. Se nossa individualidade singular ainda estiver presa às forças do coletivo e mal conseguimos nos discriminar dela, nos tornamos apenas um ensaio de nós mesmos, ainda uma caricatura, uma persona social mal-adaptada e, então, a tendência é mostrarmos esse arremedo ainda mal articulado de nós mesmos. E aí sim, nos tornarmos uns caipiras ridículos, uma paródia. Ao contrário, quanto mais perto estivermos da nossa particular e genuína expressão teremos assumido a nossa pitoresca singularidade. Ela nos fará peculiar, autêntico, com nossa caipirice original. Seremos o nosso próprio folclore.
A análise Junguiana tem como proposta o resgate da peculiaridade individual, a conquista do homem original presente nos caminhos de uma cultura coletiva. O ritual de análise é um meio de contatar este antropos, ou a criança divina, a “criatura inicial e terminal” de Jung (1956, par. 289). O que se pretende é colocar ou recolocar o homem no caminho da sua individuação, o que implica lhe oferecer significados para sua trajetória pessoal, resgatar seus símbolos imersos numa cultura psíquica coletiva, numa herança da espécie ou em sua reprodução. A busca pela criatura singular que somos nos devolve para nossa condição humana arquetípica e nos põe de novo no aprendizado instintivo da espécie. Encontramos, pois necessariamente com o antropos ou o arquétipo do homem natural, ou com nossas expressões caipiras coletivas e individuais.
Entretanto, encontrar o homem genuíno em nós requer abandonarmos um desejo evolutivo idealizado nas personas do progresso científico e tecnológico que nossa sociedade patrocina. Requer descentrarmos nosso ego das políticas de poder e controle de uma dada normalidade, com avaliações de desvios patológicos ou a correção de desenvolvimentos ausentes. Implica num saber desvinculado de verdades absolutas e mais num saber que reconhece o seu constante não saber e a autonomia da psique. Tem a ver com um saber que se faz no fascínio da alma por um Eros que pretende realizar com a criatura a sua melhor estética.
Graças a Jung parece que estamos no caminho. Como analistas, não se trata de escolher por quais caminhos teóricos, mas de uma adequada atitude diante das revelações que a psique fará por si mesma. Não importa sermos bons tradutores das verdades psicanalíticas, junguianas ou neojunguianas. É necessário o abandono das personas construídas se quisermos participar dos mistérios da transformação. Por isso penso que o caipira pode ser para nós analistas um bom parceiro.
Refletindo sobre isso e as possibilidades do caipira como parceiro analítico, cabe aqui uma piada de caipira que é assim:
O caipira tava lá de “coca” em frente da sua casa, pitando seu cigarrinho de “paia”, quando veio um carro levantando poeira na estrada e parou na sua frente:
– O senhor podia me dizer se aquela estrada ali em cima vai dar em São Paulo? E o caipira:
– Num sei, não sinhô.
– O senhor mora aqui?
– Moro.
– Bom, e aquela outra estrada mais embaixo, se eu seguir nela será que eu saio em São Paulo ou é a do Rio de Janeiro?
– Ah, num sei não sinhô.
– O senhor mora aqui há muito tempo?
– Moro, sim sinhô.
– Então me diga uma coisa, se eu pegar aquele atalho do outro lado, será que vai dar na estrada principal mais na frente?
– Num sei não sinhô.
– Mais caramba, o senhor mora aqui e não sabe me dizer se essas estradas vão dar aonde eu quero?
E o caipira:
– É... Só que eu não tô perdido.
Ficamos às vezes afobados e perdidos atrás dos vários caminhos da teoria, da técnica, enquanto a interação terapêutica parece repousar sobre uma base mais irracional, mais emocional, que se liga às espontâneas e criativas manifestações da psique. É preciso acreditar, como Jung, que a psique objetiva sabe o caminho. Trata-se, pois, de encontrar a “atitude propícia”, e ela parece estar mais numa genuína disposição ética do que em qualquer técnica.
Buscamos a cada dia no nosso consultório pelo homem original e assistimos à dança ritual das almas fazendo, refazendo e desfazendo mitos. Querendo ou não, estamos assim como o caipira numa vivência mítica devocional. Buscamos estéticas singulares e novas e isso é também um jogo de criança, que precisa de uma disponibilidade ingênua, de uma leveza lúdica quase tola que acredita na espontaneidade como moeda de troca para encontrar a sabedoria no desconhecido. Parece que a atitude psicológica propícia tem a ver com um ato de fé que só a nossa inteireza ética é capaz de ativar.
Antonio Candido (1989, p. 37) fala do caipira como “um irmão mais lerdo para quem o tempo correu tão devagar que frequentemente não entra como critério de conhecimento”. Nesta perspectiva, podemos considerar o caipira como a nossa função inferior, esse irmão mais lerdo em nós, ainda imerso num inconsciente original, mas que é a nossa pedra de toque, contém a potência da nossa própria filosofia. Assim, junto ao arquétipo do caipira, vamos encontrar o arquétipo da criança divina e o do tolo, que são arquétipos que carregam a expressão da função inferior na nossa cultura. A criança tem uma sabedoria instintiva, carrega a potencialidade vital da energia arquetípica e, portanto, de acordo com Jung, “possui poderes muito maiores do que aqueles da humanidade comum... É menor que o pequeno e, ainda assim, maior que o grande” (1956, p. 289). Também o arquétipo do tolo sabe se guiar no mundo dos instintos. Para ele, assim como para o caipira, cada situação apenas existe, cada estágio de sua jornada tem seu próprio valor.
Parece-me que tanto o caipira quanto a criança e o tolo possuem uma instintiva crença no destino o que lhes dá um ancoramento psíquico apropriado para suportar os limites e as adversidades sombrias e lhes dá, ao mesmo tempo, a liberdade necessária para se nutrir das alegrias da consciência. Talvez aí esteja a sabedoria dos mínimos, na cultura pelo que é essencial.
O contato com este caipira arquetípico, que contém a naturalidade e a ingenuidade da criança e do tolo, pode ser estabelecido na análise através do inconsciente, tanto no material simbólico quanto na relação de transferência-contratransferência. Implica que o analista tenha uma prontidão receptiva para tocar o homem simples em si e em seu analisando, numa troca de energia que recupera aspectos originais perdidos em meio à totalidade psíquica. Pressupõe desconstruir pactos sombrios de persona, mas o mais importante é que haja uma crença aberta e quase ingênua de que tudo é possível e de que os elementos irracionais desempenham um papel essencial. É nesta empatia “caipira” do analista que parece residir a construção de um eixo criativo na relação com o analisando, numa equação clínica de contrato que inclui a esperança.
Vejamos agora alguns esquemas caipiras que podemos ressignificar e que já utilizamos na nossa prática de análise.
O caipira apresenta várias dessas qualidades simbólicas importantes como a generosidade, a obediência, a reciprocidade, a submissão, a intuição, o sentimento, o humor, a espontaneidade, a paciência, a teimosia, a preguiça, a piedade, a compaixão, que se encontram na condição de função inferior na nossa sociedade. Por função inferior quero me referir à condição de estarem no inconsciente social e, portanto, de se encontrarem em correspondência oposta a funções consideradas superiores na nossa consciência coletiva. Embora sejam também consideradas funções inferiores por um preconceito social, que as vê como pouco adequadas, primitivas ou arcaicas. Elas pertencem ao caipira em nós, ou a nossa função inferior.
Que pontes simbólicas o caipira usa na sua intermediação com a natureza que o faz vivenciar de forma tão equilibrada e generosa essas qualidades “inferiores” que nos serviriam de ponte para tocar a função transcendente?
A empatia do analista com o caipira já começa na questão da temporalidade. O tempo da clínica analítica tem uma qualidade circular e transpessoal, assim como o tempo caipira, as coisas acontecem num espaço psíquico que não tem a ver com o tempo linear e racional ou com o tempo luz da consciência (E aí a gente vê o caipira no fim da tarde lá bestando sem dá fé, pitando seu cigarrinho de paia, olhando pro tempo e até imagina: meu Deus, lá em São Paulo já deve ser meia-noite! Aliás, do mesmo jeito que, às vezes, a gente fica envolto no tempo clínico do cliente).
Assim como o caipira, precisamos de uma atenção flutuante, que contenha o aqui objetivo e o lá subjetivo, numa sintonia com o circundante no qual um ritual simbólico ensaia novas formas. Uma intuição aberta ao mistério e uma ideia capaz de compreender a imagem e dar-lhe uma expressão de consciência (O caipira escuta todos os sons do mato, sabe se vai chover pelo canto de certos pássaros etc. O analista também fica ouvindo um relato e escutando outros: imagens, sons e recados simbólicos do inconsciente).
Penso no caipira-pescador, que fica na beira do rio horas esperando os peixes. Podemos fazer aí um paralelo com o analista pescador, mas para pescar os peixes do rio do inconsciente precisa da paciência do caipira. E precisa do silêncio, para não espantar os peixes. Um silêncio analítico que sai da ansiedade de uma sacada rápida, e faz uma reverência a experiência, numa passividade iniciática pelo inesperado e novo. Tem que ter fé na pescaria analítica, no acerto da sua isca e paciência para pescar o peixe que vai nutrir a elaboração simbólica do paciente, até que ele aprenda a pescar sozinho (Conversando com o João Samué, camarada na fazenda do meu tio e exímio pescador, ele me conta:
Pescá é da maior ciênça. Cada tipo de peixe tem de tê um anzór e uma isca e pra pescá peixe bão mesmo, dos grandi tem qui i cevano ele divagá. Os bão são peixe qui fica no profundo do iscuro e o cê tem ele só argumas hora. Às veis é mió deixá a vara lá com a isca e i fazê outras coisa. Às veis ele come muita isca sua e o cê fica sem nada. Mas tem di tê pacença, porque ele vai custumano comê alí, ocê vai dano trato, deixano ele querê sua comida. No fim ele memo se engancha no seu anzór. Isto é o mió, porque ocê foi domano ele divagá, qui o bicho no começo é bravo, servagi, mas ocê amansô qui nem cavalo [sic]).
Estar atento para o canto do galo ou para a hora de dormir das galinhas, que são sinais caipiras que pontuam simbólicas psíquicas. O canto do galo pode estar sinalizando que o sol de uma nova consciência está por nascer e é bom estarmos despertos para acolhê-la. Ao mesmo tempo que, quando as galinhas vão dormir ou quando um bocejo de sono nos atinge na análise, pode significar que o tempo do inconsciente já entrou numa lógica de recolhimento e que naquele momento só nos resta respeitar.
Precisamos recuperar essa sabedoria anímica, da alma animal, instintiva, capaz de relacionar-se com a alma no mundo. O caipira dá alma ao animal e por isso os cavalos e as vacas reconhecem seu assobio e seu chamado, diferente do fazendeiro que atribui aos animais outros símbolos como o da posse, do poder, da mercadoria comercial. Da mesma forma com o leite: o caipira precisa do leite interativo, o mesmo leite que alimenta o bezerro alimenta o filho do caipira. A energia de troca se dá numa interatividade instintiva, numa troca generosa dos dons. Aliás, procuramos reeditar no ritual da análise a possibilidade desta alteridade criativa, inclusive como exercício iniciático para a conquista de uma nova consciência.
Não sei se vocês sabem, mas os animais têm “bardas” ou “baldas” que são vícios de comportamento. O cavalo de um amigo, por exemplo, sai pela fazenda e depois de um determinado morrinho ele empaca encostado numa depressão do barranco em frente de uma casinha. Não sai mais dali enquanto o cavaleiro não apeia um pouco. Ele ficou acostumado a dar aquela paradinha de visita dos compadres. Ficou nessa energia viciada. E tem também animais que são amadrinhados um com o outro. Eles se acostumaram a ficar juntos e é difícil “apartá”. Então, a gente pode dizer que nós trabalhamos também com as “bardas” dos nossos clientes, com os vícios e desvios de energia ao longo da vida, com os complexos, ou os amadrinhamentos que acabam nos tirando da rota da individuação.
O analista e o caipira possuem em comum o treino de uma paciência e teimosia secular. Lavra a terra do campo psíquico, atira-lhe sementes e aguarda as revelações da natureza da psique incontáveis vezes. Grandes complexos psicológicos irrompem, às vezes de profundezas ctônicas, inundando o plantio ou secando as possibilidades de germinação das sementes. Assim como o caipira, o analista teima e tenta reconhecer novos símbolos nas sombrias atuações de uma psique-terra machucada, busca novas expressões de Eros e crê que um dia a alma de Demeter se acalme e nos dê novas colheitas. A mesma teimosia empática do caipira com sua lavoura de poucos recursos diante das forças do Bem e do Mal. A mesma teimosia do caipira que tem que fascinar a psique animal até que o bicho ameaçado perca o medo e venha comer o sal no seu cocho.
Há uma passagem no Evangelho Apócrifo de São Tomé, que um amigo me contou, que ele fala aos fariseus: “Vocês parecem cachorro no cocho que nem se alimenta e nem deixa os animais se alimentarem”. Quem conhece essa prática de colocar sal no cocho para alimentar o gado sabe. Se o cachorro ficar no cocho o animal não se aproxima. Podemos pensar aqui numa atitude de fariseu, permeada pelos falsos poderes e ilusões da cultura e até fazer um paralelo e pensar que uma das sombras do analista pode ser esta: de uma identificação às vezes exagerada com as normas patriarcais da cultura e de ficar numa persona arrogante de poder. Ao querer ter o poder e o controle egóico do sal do conhecimento, impede a função transcendente, a interação dos símbolos com o sagrado. Aí se torna o anticaipira, o que não permite a interação arquetípica dos símbolos.
Outra sombra pode ser a do fazendeiro que usa a persona do caipira, mas, na verdade, é um ego patrão-senhor feudal que tem uma relação espoliativa com a energia de trabalho e com a preciosa pureza do caipira. É o fazendeiro que pisa na cobra, que cai do cavalo, porque na verdade está completamente dessintonizado com a vivência simbólica presente, está atuando as suas próprias inadequações sombrias. Então podemos pensar que esta também pode ser uma das sombras do analista. Quando ele acaba profanando com interesses egóicos uma interação sagrada com símbolos vitais.
O caipira é um alquimista natural. O sabão de cinzas é uma das suas obras alquímicas. É feito da mistura das cinzas do fogão a lenha com a gordura animal. São dias e dias fervendo a mistura no tacho, que só a caipira que o iniciou pode mexer. Segundo a D. Nair, mulher do Sr. Zé Mira, ninguém de coração bravo ou de olho gordo pode se aproximar para não contaminar a pureza do caldo, “sinão o sabão disanda”. Só fica no ponto quando perde toda a gordura e depois serve para tirar a gordura das coisas, para lavar louça, lavar roupa, tomar banho. É o próprio processo alquímico da transformação da personalidade. O que era cinza, morte, o “mal”, se transforma no remédio, no próprio dom, no “bem”.
Também a feitura do azeite de mamona é uma obra alquímica caipira secular. É emocionante ouvir as mulheres que o fazem. Contém um conhecimento hermético, que faz com que só algumas mulheres que já foram iniciadas nos mistérios possam fazer. Segundo elas, o momento da transformação no azeite é sagrado. A D. Biana conta: “a gente fica orando, esperando que o espírito de Deus dê o ponto certo, porque é um remédio dos mais importantes para todos nós. Por muito tempo a gente só tinha o óleo de rícino para curar tudo, das pessoas aos animais” (MUSEU DO FOLCLORE,1998, p. 6).
Tem ainda as benzedeiras e as parteiras que são profundas conhecedoras dos mistérios da vida e da alma. E aqui a gente vê a grande expressão criativa de um matriarcado na cultura caipira. O reino do sagrado aqui é das mulheres, só elas também que são iniciadas no sabão de cinzas, azeites de mamona etc. E a mística é uma mistura ancestral, que nos remete a uma cultura pagã, das grandes Deusas. Elas representam os arquétipos “caipiras” do feminino. As benzedeiras são capazes de curar os “olhos gordos” da inveja, o “quebranto” das dores e amores não realizados, o “banzo” das tristezas e saudades, e os “buchos virados” dos desejos frustrados. Benzem criancinhas, adultos e velhos sentindo o espírito projetado na matéria, arrepiam-se, bocejam, travam uma luta com o espírito do Bem e do Mal no seu próprio corpo. São analistas natas. De acordo com Rudolf Otto (1992), em seu livro “O Sagrado”: “Nós reconhecemos o sagrado pelo arrepio na espinha, quando a pele fica arrepiada como pele de galinha, este é o contato com o numinoso, com o sagrado” (p. 185). A alquimia da função transcendente aí está em carne viva; as benzedeiras são, elas mesmas, o vaso hermético para a transformação. Tendo a reconhecer aqui semelhanças entre as analistas e benzedeiras e parteiras: ambas estão ligadas ao arquétipo do feminino caipira e a sua magia matriarcal.
O grande segredo iniciático que o caipira nos traz parece ser que em vez de tentar descobrir o mistério convive-se com ele.
Até a decantada preguiça do caipira parece fazer parte deste ritual devocional. Como se fosse um momento de assimilação e contemplação, de uma reorganização psíquica da energia para uma reconexão com a energia cósmica vital. É como se soubessem ser parceiros da vida e da morte, de uma realidade diária na qual a tragédia e o milagre são constantes e independentes de sua vontade. Há uma luta cotidiana entre o máximo e o mínimo, com necessidades de assimilação e compensação também constantes e naturais.
O sociólogo italiano Domenico De Masi tem atualmente desenvolvido teorias sobre o ócio criativo, como uma necessidade fundamental para o ser humano, que lhe permite criar belezas e alimentar o mundo de estética. Também o ócio para o caipira é sagrado, é um “sacerdócio”, que eles ritualizam como respeito aos dias santos de guarda. Diferente da nossa cultura citadina que se relaciona com o ócio como um “negócio”, ou a negação do ócio. Acho que no setting analítico temos exatamente a situação do ócio criativo. A gente fica exatamente como o caipira, sentado, às vezes até pitando um cigarrinho, ouvindo, conversando, tentando criar dentro de um tempo, que dá um tempo, para a rotina de atividades diárias. Enquadramos um tempo em que o “ócio” é criativo. E aí fazemos cultura psíquica.
Antonio Candido (1988, p. 86), pensando no lazer do caipira, nos diz que ele é o lócus de criação da sua cultura. Ela se faz na alegria do encontro com o outro, nos rituais de dança e cantoria, que incluem sempre a música, a viola, a sanfona, mas que são também ritos devocionais de rezas, promessas, novenas, procissões, congadas, catiras, moçambiques, arrasta-pés, jongos, calangos, folias de reis, Festa do Divino, ou de São Benedito ou São Gonçalo etc. Em cada uma delas aspectos de uma psique total são ritualizados, reenergizados e renovados. Uma pluralidade cultural sendo constantemente e ecologicamente ritualizada. Uma fé que aposta na parceria como proposta, e que, portanto, permite mergulhar na mistura, na miscigenação dos variados símbolos pagãos, cristãos, indígenas, negros, portugueses, espanhóis etc. presentes numa psique histórica, e que são ecologicamente renovados, num sincretismo religioso espontâneo.
Recriam o mundo incontáveis vezes, numa vivência ao mesmo tempo lúdica e sagrada com as imagens, e mantém acesa uma alma ancestral imersa numa mitologia “brasílica”. Vivem nesta totalidade psíquica que contém ao mesmo tempo forças destrutivas e nutridoras. Convivem com a solidão, o isolamento, a dor, o medo, a impotência, as doenças, as tragédias, as incertezas sem, no entanto, se identificar com elas. Há uma certeza de ancoramento na totalidade, num Deus, num Self e, portanto, uma atitude de submissão propícia às suas imanências instintivas. Vivem suas vidas na lógica do simples, natural, espontâneo e apesar de sentimentos de profundo desespero, algumas ações rotineiras, comuns e triviais parecem ajudar a manter o ego fora do reino das sombras. Ligam-se ao potencial de energia impresso em cada momento e com isso se reaproximam de uma situação em harmonia com a totalidade ou com o Self, que de novo os nutre. Vivem ao redor do eixo do arquétipo da totalidade. São agentes de manutenção de um equilíbrio com o divino. E, portanto, são naturalmente religiosos, simples e dignos.
Eles possuem um tato religioso aprimorado para lidar com o Enorme, com o outro, com o desconhecido. O tato analítico necessário que buscamos como ponte para ativar a transcendência. Nesta perspectiva, uma parceria caipira parece ser uma atitude propícia. Ela nos fará de fato, “pensar com o coração e raciocinar com a alma”, como nos diz Hillmann (1978). Treinará nossos ouvidos para ouvir melhor os “não ditos”, para dar voz a um mundo que não conhecemos. Aperfeiçoará nosso olhar para uma polissemia de imagens, que revigorará nossa crença no poder curativo do imaginário.
Colocará o analista em sintonia com o contador de “causos”, que mora dentro de si. Aquele analista que sabe traduzir para seu analisando com um bom causo, às vezes até uma boa piada, as coisas da mente, de um jeito tão fascinante quanto uma boa fofoca. Que sabe usar do mesmo poder imaginativo e humor do caipira para criar trilhas no mundo do inconsciente coletivo, estruturando novos tempos e nos conectando a um nível humano mais básico.
Por isso tudo não penso, como muitos, que a cultura caipira é a pobreza que temos, acho que ela é a riqueza que perdemos. Eles são uma poesia pelo avesso, nos mostra o que não temos. São uma herança original deixada pelo caminho, quando o desejo do progresso e dos pactos internacionais começaram a desviar a alma brasileira. Não são nossa alma subdesenvolvida, mas uma disposição viva e almada que ainda não foi envolvida no processo.
Continuam chão, terra, pedra, árvore. Mas como “o carvalho nos campos sabe que para crescer e frutificar precisa abrir-se à amplidão dos céus, e também deitar raízes na obscuridade da terra” (HEIDEGGER,1969, p. 41).
Eles são hoje uma essência humana de reserva, nossa ecologia de espécie. Mantêm sempre uma vela de devoção ao sagrado e com seus ritos salvam a todos nós. São uma chama viva nos oratórios das nossas cidades de interior, nos sítios, nas roças. Uma incandescência, uma fonte subliminar, que se ainda não se afirma como consciência, mantém-se como reserva ecológica da nossa psique.
Para entrarmos em conexão com essa energia pura é necessário que tenhamos a coragem e a ousadia de ser simples. E não é fácil ser simples, ser eu mesmo, o caipira, no mundo cultural em que vivemos. Precisamos estar convencidos de que vamos encontrar uma alma criativa numa terra que à primeira vista nos parece improdutiva. Precisamos achar atitudes propícias que nos abram passagem e nos protejam.
Jung foi um grande caipira. Manteve-se na conexão do homem simples até o fim da vida. Aos 85 anos usava água de poço, tirada com uma bomba, cortava lenha e cozinhava sua comida. E dizia: “Estes atos simples tornam o homem simples; e como é difícil ser simples” (JUNG, 1975). Dialogava com a alma contida na pedra.
Se pudermos hoje encontrar lirismo ético na vida do caipira, talvez possamos legitimá-lo com a imagem de uma pedra: rústica, alma domada, reprimida, mas com um sangue alquímico circulando por dentro. E então poetizá-la, como fez Jung:
Eis a pedra, de humilde aparência.
No que concerne ao valor, pouco vale –
Desprezam-no os tolos
E, por isso, mais a amam os que sabem (1975, p. 199).