Eu não sou eu nem sou outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro
(MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 7, Lisboa, 1914).
(MORRISEY, Viva Hate, Londres, 1988).
O tédio é humano, demasiadamente humano.
A procura pelas raízes arquetípicas dessa expressão anímica se embaralha inexoravelmente com a história da melancolia. Sabe-se que a prática médica grega se apoiava na noção de que as variações do temperamento humano eram decorrentes das intermitências dos fluidos corpóreos: a fleuma, a bile amarela, o sangue e a bile negra. O excesso desta última, cujas palavras em grego são melaina chole, conduzia à melancolia, a qual tinha como uma das mais evidentes manifestações o “desânimo”: a alma consumida por seus aspectos dolorosos e aparentemente inapetentes. Em busca de um reequilíbrio dos humores, Hipócrates, no final do século V a.C., já propunha o consumo de ervas eméticas e catárticas como a mandrágora para o tratamento da melancolia. Uma “bulimia” para a melancolia! Indicava também o consumo “terapêutico” da experiência amorosa, quando recomendou um casamento ao melancólico rei Perdicas II, como uma solução para o seu sofrimento (SOLOMON, 2002).
As primeiras descrições do que é hoje denominado tédio derivam da Antiguidade até o Renascimento recebendo o nome de “acídia”, termo que carregava consigo sentidos psicológicos e moralizantes. Tendo como origem a palavra grega akedia, a qual aludia a um descaso em relação ao mundo, o termo ganha progressivamente um significado de “falta súbita de interesse”, uma espécie de ruptura com a ordem vigente, que tinha como desdobramento uma experiência de fragmentação (SVENDSEN, 2006).
Compreendida pela perspectiva moral da escolástica medieval como preguiça, a acídia era considerada um pecado, o qual assolava os monges com tal intensidade que eles se tornavam apáticos e se afastavam progressivamente do caminho ascético ao qual a escolha monástica se destinava. Ao propor um distanciamento da tristitia, que invariavelmente reconduzia o homem a Deus pelo arrependimento, o demônio da acídia subitamente assombrava o caminho do monge. Este passava, então, a experimentar uma total ausência de sentido para a vida e a fantasia de um provável encontro com Deus, que se constituía na esperança e justificativa para tal enclausuramento, dissipava-se em devaneios de uma vida repleta de prazeres, nostalgia de um paraíso que talvez ele tivesse vislumbrado em época anterior ao claustro (SVENDSEN, 2006).
No Renascimento, a depressão, que tinha a anedonia (ou o tédio) entre seus componentes, passa a ser idealizada, tendo em Marsílio Ficino seu maior filósofo, o qual considerava que o pensador profundo e o artista necessitam da melancolia como perspectiva, pois anseiam pela grandeza e pela eternidade do mundo. Ficino foi quem descreveu Saturno como o planeta que regia esse estado da alma. Em torno de Ficino, reuniam-se intelectuais de outros países da Europa, que viajavam a Florença fascinados por aquela imagem aristocrática de um homem taciturno, descabelado e de olhos sombrios (SOLOMON, 2002).
Todavia, é principalmente no movimento romântico alemão do século XVIII que o tema do tédio ocupa um lugar de destaque, numa acepção que faz intersecção com a comumente utilizada na atualidade. Nesse momento, ao que parece, a realidade objetiva passa a ser menos legitimada como forma de apreensão das “verdades do mundo” e a experiência subjetiva ganha gradualmente respeitabilidade epistemológica, sendo entendida como uma forma de conhecimento.
O homem entediado romântico não sabe o que procura. Apenas sente fome. Fome de um significado grandioso, infinito, na verdade talvez sem muito significado. Pois o sentido maior da existência estaria no “eu” e, como escreveu Hegel, se “tudo que é só existe graças ao ‘eu’, tudo que existe graças ao ‘eu’ pode igualmente ser destruído pelo ‘eu’” (apud SVENDSEN, 2006, p. 65).
Eis uma inquietante definição do tédio, que o considera produto de uma arrogância, uma vez que fomentada por um eu grandioso que o tempo e a totalidade desconsideram, posto que imaginados por um ego inflado. Esse hipersubjetivismo destitui de valor próprio os objetos do mundo, cabendo ao ego deliberar sobre todas as coisas. Esse ego, senhor do mundo, qualifica-se como realidade única e última, tornando o restante, dessa maneira, tão interessante como desinteressante, logo entediante.
Segundo levantamento feito pelo filósofo norueguês Lars Svendsen (2006), o tema do tédio interessou a muitos outros filósofos que registraram percepções distintas sobre o fenômeno. Por exemplo, para Pascal (1623–1662), a vida é um fenômeno que não traz uma satisfação sólida ou verdadeira, logo a diversão é a única saída que pode dar consolo ao homem. Dizia ele: “Ela [a diversão] nos impede de pensar sobre nós mesmos. Sem isso estaríamos no tédio, e esse tédio nos levaria a buscar uma maneira mais segura de escapar...” (apud SVENDSEN, 2006, p. 56).
Pascal disserta sobre um consumo dos prazeres que conduz ao divertimento como forma de encontrar alento para uma vida pouco criativa. Há nas entrelinhas dessa afirmativa uma sugestão de que o indivíduo que se deixa visitar pelo tédio pode viver de maneira mais segura. Ou, dito de outra maneira, há fagulhas nesse estado sombrio da alma que podem estar encobertas e, quando acesas, aquecem sobremaneira o processo de aquisição de si, ou o que Jung denominou processo de individuação.
Pascal acrescenta ainda que o homem sem deus é nada e o tédio se instala a partir dessa consciência. Logo, haveria no entediado uma proposta de reinvenção da realidade, talvez por propiciar a emergência de aspectos até então desconhecidos de si e, agora, passíveis de consideração (apud SVENDSEN, 2006). Kant é outro autor que se dedicou ao tema do tormento do vazio e compreendia suas especificidades de forma oposta a Pascal. Para ele, o deus do trabalho seria o salvador para a alma esvaziada: “Quanto maior é a nossa consciência do tempo, mais vazios nos sentimos... A única cura é o trabalho, não os prazeres... O homem é o único animal que deve trabalhar...” (apud SVENDSEN, 2006, p. 58).
Outro autor que produziu importantes reflexões sobre o tema foi Kierkegaard (1813–1855), para quem o tédio fazia parte de um panteísmo demoníaco, onde o demônio é o vazio que impregna a realidade. Entendia que o estado entediado da alma é próprio do mundo da elite, atributo do homem refinado, nobre (apud SVENDSEN, 2006, p. 61). Em consonância com Kant, ratificava a concepção de que aqueles que têm que lutar para sobreviver não sucumbem ao tédio, porque este seria uma arrogância da abundância. Talvez aqui ele se refira àquele estado inflacionado do ego, para o qual tudo em volta é imperativamente desinteressante.
Porém, é fundamentalmente o conceito de modernidade que vem legitimar o tédio como um fenômeno exuberante nos tempos atuais. Prova disso é a infinidade de autores que se debruçaram sobre o tema, dos quais destaco Baudelaire.
Dentre os muitos ensaios dedicados ao autor e suas releituras feitas por Walter Benjamin, destaca-se o da autora suíça Gagnebin (1997), a qual enfatiza que a palavra modernidade remete a uma oposição já existente desde a Antiguidade, quando “antigo” e “novo” se polarizavam temporalmente, sendo o primeiro representante do “outrora” e o segundo, do “atual”.
O moderno, então, se definiria como uma oposição ao passado, dentro da lógica iluminista, ou como um afastamento doloroso do outrora, de acordo com a concepção romântica, porém sempre implicando uma ruptura em busca do novo. Ora, essa luta com o tempo em busca do novo produz um grave efeito colateral: o advento do não novo, do obsoleto. Ou seja, o problema do moderno é que ele se torna rapidamente antigo (GAGNEBIN, 1997).
Eis a armadilha em que caiu o entediado: a busca voraz pelo novo que já está se tornando velho. A fronteira entre ambos velozmente se diluiu, e a obsessão do homem moderno pelo consumo dos vilões fugidios da novidade e do interessante lançam-no num atormentado abandono. E no tédio!
Baudelaire, em O pintor da vida moderna, citado por Gagnebin (1997), vaticina de maneira clara sobre a era do consumo. Pois, se modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, abre-se um espaço para que a alma, em tempos de intensa produção capitalista, busque consolo no fetiche da mercadoria, na novidade prestes a se tomar sucata. E se entedie!
Provavelmente, uma das primeiras tentativas de sistematização que busca integrar o tédio ao campo da psicologia é o texto de Freud (2006) intitulado Luto e melancolia. Nele, o luto é considerado como a reação da psique diante da perda, seja esta um ente querido ou alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido. O luto não é considerado patológico, pois nele o ego se rende à realidade, ainda que esta se apresente dolorosa. Em contrapartida ao luto anuncia-se o sofrimento melancólico, caracterizado por desânimo, perda de interesse e de iniciativa, acompanhado por intensa culpa e por uma expectativa desproporcional de punição. Porém, diferentemente de um processo de natureza predominantemente consciente do luto, na melancolia o sujeito sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém...
O ego melancólico é pobre e vazio, o que justificaria o crime e o castigo. Possuído pelo deus (ou pelo complexo) da inferioridade e por seus súditos – a mesquinhez, a dependência e a inércia –, o melancólico julga-se incapaz de qualquer elaboração, como se parte de si tivesse sido perdida. Então, enfatiza Freud (2006, p. 254): “Há uma identificação do ego com o objeto abandonado... a sombra do objeto caiu sobre o ego e este pode, daí por diante, ser julgado... como se fosse o objeto abandonado”.
O oposto da melancolia, na qual a alma em culpa e ressentimento se consome, é a mania, em que a alma a tudo indiscriminada e urgentemente consome. Em ambos os casos, o diálogo se estabelece com o mesmo deus, porém, na melancolia, o ego se rende ao complexo. Na mania, o deus da inferioridade ou da incompetência é dominado e negado.
A dificuldade, muitas vezes, é compreender o que rememora a comemoração maníaca. Fato é que ela fomenta muito da voracidade humana consumista que se apresenta como impulsividade, quer os objetos de adoração sejam as substâncias químicas, quer sejam os jogos, o sexo aleatório, os produtos que brilham na tela da internet, comida, roupas, perfumes, carros, livros, psicoterapia e a alma do outro.
Em suma, Freud (2006) entende que na melancolia há perda de um objeto querido e o ego é cindido por essa falta, porém o indivíduo melancólico é paradoxalmente esperançoso. Inversamente, na alma entediada é justamente o alento da esperança que falta. Contudo, não há na obra de Freud um texto específico sobre o tédio, assim como não há na obra de Jung.
Um rastreamento na Obra Completa junguiana revela que a palavra “tédio” (boredom) aparece apenas em três situações. A mais significativa delas consiste na utilização que Jung faz do termo no texto sobre a função transcendente, ao enfatizar que o analista deve estar atento aos aspectos prospectivos dos símbolos constelados na transferência, em oposição aos seus determinantes histórico-reducionistas, que podem produzir resistências no paciente. Diz Jung (2000, p. 7, § 146): “O tédio que surge, então, no decorrer do tratamento, nada mais é do que a expressão da monotonia e da pobreza de ideias – não do inconsciente..., mas do analista...”.
Nessa perspectiva, o tédio é filho da angústia arqueológica do analista que tenta, de forma contumaz, consumir os aspectos biográficos dos símbolos constelados no encontro terapêutico, em detrimento de suas possíveis amplificações. Entendo que o convite-antídoto que Jung faz contra o tédio na psicoterapia fundamenta-se em se deixar impregnar (ou consumir) pelas imagens – ou símbolos – que eventualmente apareçam e, principalmente, na procura das variantes a essas realidades conscientes.
Jung (1988) também utiliza o termo tédio em oposição a interesse, quando relata as experiências de Rhine, no livro sobre a sincronicidade. Porém, no texto Um mito moderno sobre coisas vistas no céu (JUNG, 1978, p. 27, par. 648), ele faz uma breve alusão a um diálogo entre tédio e consumo quando aponta que “o habitante das cidades procura sensações artificiais para fugir da sua banalidade; o solitário, ao contrário, não as procura, mas sem querer é assolado por elas”.
Para esse indivíduo condenado à solidão, ao eremitismo ou à busca ascética, sugere Jung (1978, p. 27, par. 649):
[...] surgem sintomas psíquicos espontâneos para compensar as necessidades biológicas [...] como quadros numinosos de fantasias, visões e alucinações, que surgem da esfera espiritual [...]. Outros [sintomas advêm] do bem conhecido mundo dos instintos, onde pratos, taças cheias e fartas refeições saciam a fome; onde seres sedutores e voluptuosos se oferecem ao desejo sexual contido [...] onde a assuada, o barulho e a música querem dar vida ao silêncio e à solidão insuportáveis.
A nosologia psiquiátrica não considera o tédio como um transtorno mental isolado, mas um sintoma de algumas categorias. Disfarçadamente, aparece como “falta de interesse” no transtorno depressivo maior e na distimia e explicitamente como “sentimentos crônicos de vazio”, na descrição do transtorno borderline de personalidade, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5ª edição (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
Nesta última condição, o tédio fomentaria o consumo e a impulsividade em áreas prejudiciais ao indivíduo, como gastos financeiros excessivos, sexo, abuso de substâncias, direção imprudente e alimentação compulsiva.
Dessa maneira, o tédio se distancia do embotamento afetivo observado nos transtornos psicóticos e se aproxima claramente da sua cara-metade, isto é, do consumo, quando na descrição da personalidade borderline. Evidentemente, nem toda alma entediada é cooptada por essa descrição nosográfica. Mas, então, qual o sentido do tédio para a alma? Seria o tédio um fenômeno psicótico, em que a “identidade do eu” (de acordo com o postulado jasperiano) estaria em vias de desintegração? Ou uma espécie de vazio insuportável, distinto da experiência depressiva maior, uma vez que pautado numa inexistência de objeto para a esperança?
Certamente que o tédio se aproxima do que foi denominado pelo DSM-V como “distimia” ou “personalidade borderline” (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Entretanto, também se distancia, caso se considere o elemento nuclear da alma entediada: a nadificação do mundo. Um pesar sem volume ou forma assola o eu de forma indelével, consumindo a energia cinética da alma. Paradoxalmente, essa alma busca desesperadamente um movimento que traga alguma “novidade”, algum “veneno antimonotonia”, consumindo o mundo numa formação reativa ante a escuridão instalada pelo material advindo da sombra. O tédio consome a alma e a alma consome o mundo.
Há alívio ou criatividade? É possível à psique tolerar um egocídio, que é desdobramento inexorável do tédio, a serviço da emergência de material arquetípico desconhecido?
Tédio é vazio de si. Na melancolia há falta; no tédio há uma falta da falta, ou seja, não há desejo nem mesmo de si, logo é quase impossível o reconhecimento do outro. Deus parece realmente estar morto e a criatura procura estabelecer desesperadamente um diálogo com o criador, mas ele não responde! Logo, justifica-se a busca (o consumo) de imagens que possam dar sentido à existência (comida, sexo, química), ainda que essas se diluam em repetições infinitas e carentes de sentido, tal como foi condenado Sísifo.
Schwartz-Salant (1992, p. 69) lembra uma imagem arquetípica que talvez ilustre de forma inigualável essa dinâmica: o vampiro. Diz ele: “Em algumas lendas, quando o vampiro se olha no espelho não há imagem. O vampiro representa uma força psíquica que não tem nenhuma identidade. É, de certo modo, o lado sombrio perfeito de Narciso, a psique sem espelho”.
Portanto, se para Narciso há um desespero diante de um outro que é o desconhecido dele mesmo, para o entediado o desespero é que nem ele mesmo pode vir a ser um outro. Procura-se um deus desesperadamente. E esse desespero coagula o entediado em sua verdade única.
Dentre os processos psíquicos enunciados pelas operações alquímicas, a coagulatio representa o momento em que o material psíquico se liga a um ego. Fixatio é um dos seus sinônimos (EDINGER, 1985). Provavelmente, no tédio ocorreria uma paralisação no compasso da espera, como se o tempo fixasse o indivíduo dentro dos limites insuportáveis da literalidade. O tempo não mais faz zigue-zagues, não se descompassa e não possibilita um olhar para além do conhecido.
Os alquimistas representavam essa ausência de movimento por meio de basicamente duas imagens, explicitando que o elemento a ser coagulado seria o fugidio mercúrio. Numa primeira, representava-se uma serpente crucificada. Numa outra, havia uma tranfixação, numa árvore, de uma serpente e de um rei, numa clara alusão à paralisia imposta pela coagulatio (EDINGER, 1985).
Sabe-se que a coagulação se fazia por meio de três agentes: o magnésio, o enxofre e o chumbo. Também é sabido que o chumbo é um símbolo claramente associado à experiência melancólica e, por que não, a uma das suas variantes: o entediamento (EDINGER, 1985). A intoxicação pelo chumbo é denominada “saturnismo”, numa associação ao planeta Saturno. Sua tradução psicológica é apatia, inatividade, saudade sem esperança e desalento. É o tempo que para e açoita...
Saturno é a versão romana do titã grego Cronos, filho caçula de Geia e Urano, aquele pai castrador a quem Cronos mata com uma foice, libertando a si e aos outros irmãos do corpo materno, onde até então eram mantidos aprisionados pelo “pai”. Num segundo momento da narrativa mítica, Cronos é o senhor do mundo e, na iminência de perder o poder para um de seus filhos, engole-os (BRANDÃO, 1988).
Trata-se de uma imagem eloquente do tempo que devora, do contar/descontar que cronifica a alma e faz o homem perder-se de si mesmo na inércia e na solidificação. Nessa perspectiva, o tempo é o rei, mas um rei que governa e não ensina o que ainda não é sabido. Não transforma as velhas formas do viver. Gira em volta da consciência, sufocando-a ou abandonando-a à mesmice, para ainda sermos os mesmos e vivermos como os nossos pais.
Sabe-se que o que está coagulado e engolido são os filhos de um novo tempo da consciência. E, de acordo com a sabedoria alquímica, o que está petrificado deve ser dissolvido, desmembrado e transformado. Ou seja, um novo tempo é a apresentação de realidades outras até então desconhecidas pelo processo consciente, e a mediadora desse processo é a anima.
Talvez a possibilidade inexistente ao entediado seja justamente essa perspectiva hermética de enxergar através, como sugere Hillman (1975). Certamente porque o tédio seja uma imperativa expressão da literalidade, uma impossibilidade da experiência do “como se”. Hillman (1975, p. 140) descreve o psicologizar como um enxergar através, quando enfatiza:
É um mover-se através do aparente para o menos aparente... Quando a própria claridade torna-se óbvia e transparente, eis que parece cessar dentro dela uma nova escuridão, uma nova questão ou dúvida requerendo um novo ato de insight que penetre novamente no menos aparente.
Creio que ao entediado tal movimento, próprio da alma, parece estagnado. O mundo apresenta-se somente como aparência e toda a experiência do fora é dificultada. Ou desinteressante, porque esse mundo parece reprodutível na sua totalidade, e o que poderia configurar em singularidades à vida esbarra numa era pautada em sua reprodutibilidade técnica. Os códigos de barra colados em toda mercadoria passível de consumo denunciam um mundo desencantado, porque expõem ao consumo propostas idênticas, literalizadas e sem a novidade da qual a alma entediada tem fome.
Não liberta o homem de sua clausura porque a alma entediada tem fome de susto, sede de conversa, de verso e de prosa, de uma terceira margem da palavra que abra um caminho para o fora, ou muitas vezes para o dentro, mesmo que esse dentro se mostre aparentemente vazio.
Talvez o entediado encontre um alento quando humildemente se colocar a serviço da própria alma. É talvez reconhecendo sua responsabilidade na literalização da temporalidade que o entediado, aprisionado em si, possa encontrar metáforas para a literalização de seus conflitos, adotando uma perspectiva hermética.
Porque na angústia em preencher o tempo, ou encontrar um passatempo, o tédio consome vorazmente o mundo, como um vampiro que busca sua própria imagem. Na concretude. Na literalização das gôndolas, dos estandes, das grifes, do brilho da iluminação estroboscópica, na autoajuda ou na heteroajuda que muitas vezes busca a armadilha da autonomia de si como solução, desprezando a riqueza lúcida e criativa da perspectiva heteronômica.
Nesse sentido, o tédio é arrogante, como queria Pascal, porque traduz um aprisionamento do indivíduo num complexo superautônomo, o denominado complexo (ou deus) Ego.
Ou pode-se pensar que o entediado se fascine pela deusa Persona, filha do Pai, a serviço da normatização. A normopatia, que tem a persona como avatar, tem também como efeito colateral o tédio, uma vez que o normopata consome a normalidade. Ele revela o conflito universal existente na tensão inerente ao embate senex/puer, porém lança-se numa armadilha: o novo escolhido é desalmado, porque anseia pela adaptação e não pela legitimidade.
Falta ao entediado a paciência para consumir a si mesmo e conhecer as nuances de si que, entendo, o devagar depressa da alma expõe. Ao consumir o fora, tem medo do “vazio” do consumo do dentro. Ao engolir o novo, tem medo de se tornar velho.
Nesse sentido, o tédio seria essencial ao processo de individuação, um opus contra naturam, uma busca da singularidade a partir da multiplicidade. E, nessa multiplicidade, Hillman (1975, p. 160) enfatiza a inerência do aspecto errante, próprio da alma, como parte desse caminho:
Um equívoco é um opus contra naturam, um lugar onde a psique fala contra o fluxo natural das expectativas possíveis e razoáveis... Hermes, que engana seu pai Zeus assim que nasce, é o ilusionista congênito, trazendo o equívoco ao mundo com autoridade divina. Ele é o deus do equívoco ou o guia das almas...
O embuste hermético talvez conduza a alma a algum lugar de leveza, onde o consumo de si possa se dar enxergando através do riso, do choro, da experiência lúdica, do excesso e do vazio. Talvez o homo ludens possa lembrar ao entediado (homo consumericus) que, a despeito da aparência, é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar!