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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.41 no.2 São Paulo jul./dez. 2023  Epub 06-Dez-2024

https://doi.org/10.70435/junguiana.v41i2.45 

Artigo

A patologia da arte e da exclusão1

La patología del arte y de la exclusión

Claudia Morelli Gadotti* 

*Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica–International Association for Analytical Psychology (SBPA – IAAP). Mestre em Psicologia Profunda – Pacifica Graduate Institute – CA/USA. e-mail: clamgadotti@gmail.com


Resumo

Este trabalho propõe uma reflexão sobre os tênues limites que separam a patologia da criatividade, utilizando-se, para isso, da genialidade da escritora Clarice Lispector. Coloca a ideia da patologia como fenômeno associado à história da misoginia, buscando suas raízes arquetípicas no mito da criação e na figura feminina de Eva. Desenvolve também a relação entre essa misoginia no plano arquetípico e o sentimento de exclusão que vivenciamos nos mais diferentes níveis de relacionamentos.

Palavras-chave anima; psicologia analítica; misoginia; feminilidade psíquica; exclusão

Resumen

Este trabajo propone una reflexión sobre los tenues límites que separan la patología de la creatividad, utilizándose, para ello, del genio de la escritora Clarice Lispector. Coloca la idea de la patología como fenómeno asociado a la historia de la misoginia, buscando sus raíces arquetípicas en el mito de la creación y en la figura femenina de Eva. Desarrolla también la relación entre esa misoginia en el plano arquetípico y el sentimiento de exclusión que experimentamos en los más diferentes niveles de relaciones.

Palabras clave ánima; psicología analítica; misoginia; feminidad psíquica; exclusión

Abstract

This study aims to reflect upon the intricate boundaries that separate pathology from creativity, drawing upon the brilliance of writer Clarice Lispector. It explores the concept of pathology as a phenomenon intertwined with the history of misogyny, seeking its archetypal roots in the myth of creation and the feminine figure of Eve. Additionally, it delves into the connection between this archetypal misogyny and the experience of exclusion that we encounter in various levels of relationships.

Keywords: anima; analytical psychology; misogyny; psychic femininity; exclusion

O homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flânerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, â galeria dos iluminados. E são iluminados mais profanos. Para não falar da mais terrível de todas as drogas – nós mesmos – que tomamos quando estamos sós (BENJAMIN, 1994, p. 33).

A transcendência dentro de mim é o “it” vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Será que a ostra quando arrancada de sua raiz, sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem os olhos. Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo é o Deus. Vou parar um pouco porque sei que o Deus é o mundo. E o que existe. Eu rezo para o que existe? [...] Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Os fatos da vida são o limão na ostra? Será que a ostra dorme? Qual é o elemento primeiro? (LISPECTOR, 1998a, p. 28)

Horrorizados ou fascinados pela faísca de realidade difusa apresentada nesse relato tão descontínuo e perturbado, provavelmente não conseguiríamos conter o impulso de perguntar: afinal, quem é essa mulher que devaneia tão livremente? Arrisco dizer que, se questionássemos sua identidade, ela poderia nos responder ser simplesmente G.H ou a prostituta da avenida Copacabana ou, quem sabe, a pobre nordestina Macabéa. Mas, e se ouvíssemos esse delírio em nossos consultórios? Ficaríamos muito atentos e cuidadosos. Tenderíamos, provavelmente, a diagnosticá-la como alguém em estado preocupante. Psicótica, talvez?

No entanto, ficaríamos aliviados se descobríssemos que essas múltiplas identidades são apenas personagens do mundo fictício de uma artista em processo de criação e que seu relato é simplesmente o transbordamento de seu mundo imagético. E, se compreendêssemos suas palavras como uma genuína e criativa tentativa de romper com um padrão de literatura cartesiana e linear, ficaríamos ainda mais tranquilizados. Momentaneamente, apenas, pois logo saberíamos que a escritora era, ela mesma, intempestiva, inquieta, inadaptável às expectativas sociais, persistente na revelação do encoberto de todos nós. Como, então, entendê-la? Como tratá-la? E se ela nos contasse do acidente que deformou suas mãos, dos ímpetos antissociais, das loucas respostas a perguntas impertinentes? E se ela mesma nos revelasse sua solidão esmagadora, sua recusa ao enquadramento e sua busca obsessiva pela essência da qual somos constituídos? Perceberíamos claras coincidências entre o discurso e a autora e, novamente aflitos, nós nos perguntaríamos: de quem é afinal o grito que ouvimos nesse pequeno trecho? Quem é o narrador e quem é o personagem? O que é biografia e o que é ficção? Não saberíamos ao certo, pois teríamos penetrado o terreno pantanoso das ambiguidades, das múltiplas possibilidades, onde a arte e a loucura misturam-se e os limites de cada uma tornam-se invisíveis.

Apesar desse terrível desconforto, estaríamos sintonizados com as incertezas e a descontinuidade que caracterizam nosso século e nos definem como seres humanos, já que, uma vez mobilizados pelo reflexio, nosso instinto de reflexão, estamos constantemente sendo convidados a nos aprofundar em nossa psique, múltipla e incoerente por excelência. Mas, apenas para elucidar (e não aliviar) aqueles que ainda não a reconheceram, a citação anterior encontra-se em Água viva, um dos últimos livros de Clarice Lispector (1998a, p. 28), aquela, segundo Paulo Francis, “mulher insolúvel” (apud GOTLIB, 1995, p. 53).

Quando falamos em diagnósticos adequados a uma patologia, entramos no ardiloso território dos deuses, dos titãs que se digladiam, na esperança de conquistar soberania. No politeísmo das doenças, todos reivindicam seu reino. Sob a perspectiva da patologia, Clarice poderia ser enquadrada em diversas categorias. Sua histeria lírica, sua subjetividade narcísica ou mesmo sua descontinuidade psicótica poderiam levá-la, facilmente, às fogueiras das patologias. Mas, se assim fosse, perderíamos aquilo que a caracteriza como uma das mais importantes escritoras brasileiras: o talento para transformar o caos da experiência psíquica em imagem criativa e desenhar um cenário onde somos convidados, como leitores, a projetar nossa pluralidade anímica.

Para o psicanalista Marco A. Coutinho Jorge, o discurso feminino é a ponte entre o primeiro momento pré-edípico, quando ainda não há a ordem do pai, e o período edipiano, que traria organização e sentido para aquilo que é inicialmente apenas vivência. A linguagem feminina pretende trazer, para o campo do simbólico, aquelas experiências que pertencem ao campo dos sentidos, do real, das vivências. Para Jorge (2014, p.76), “o texto de Clarice tangencia a borda do ininteligível, mas não cede à tentação delirante”. Ao se desamarrar do discurso lógico e racional, sua linguagem mostra-se habilidosa para traduzir, em palavras, a experiência não relatável, tornando-se extremamente anímica, feminina por natureza. Essa linguagem elástica e cheia de malabarismos literários expressa uma tentativa desesperada de não perder a “coisa”, essa essência da qual somos constituídos, potencial arquetípico que nos dá a vida, a anima. Entendo aqui o arquétipo do feminino em seu sentido mais amplo e, como Jung (2000) posteriormente desenvolveu, como arquétipo da vida.

As mulheres de Clarice são instigadas a sair da fantasia narcísica do equilíbrio e da estabilidade que a visão linear e cristã da vida nos imprime. Ao romper com o conforto da postura maniqueísta, ela confronta a “doce ilusão” de que o bem e o mal, o belo e o feio, o louco e o normal podem encontrar um lugar específico dentro de nós, em uma assepsia desvinculada do real. A literatura de Clarice traz uma nova concepção de sujeito, descentralizada do controle egoico, aberto às imagens simbólicas do inconsciente, ao imprevisível da alma. Sua literatura percorre com espontaneidade as trilhas da imaginação, expondo desavergonhadamente sua familiaridade com o mundo das fantasias. A narrativa predominantemente imagética aproxima-se, assim, do que entendemos por “loucura”. Seu discurso transcorre como um relato em um divã, sem a limitação do outro real, em um brainstorming de percepções desconexas. Clarice jamais revia seus manuscritos e disse, certa vez, que os reler seria como comer o próprio vômito.

As doenças mentais ou a psicopatologia não podem ser compreendidas desvinculadas da história do feminino, pois as mulheres foram, no início do século passado, as precursoras da psicanálise, da revolucionária concepção de inconsciente, eminência parda na questão da loucura. Mesmo quando, em seus primórdios, a psicanálise corajosamente deu voz ao desejo camuflado nos sintomas histéricos, ao nomear tantas “Clarices” apenas como histéricas ou psicóticas, estava repetindo séculos de misoginia, reeditando um antigo padrão que já se observava muito antes da era cristã e encontrou forte ressonância no período da Inquisição, quando milhares de bruxas (personagens claricianas?) foram oportunamente associadas à devassa figura de prostitutas do diabo e cruelmente queimadas e sacrificadas. Conforme desenvolvi em trabalho anterior, “o processo de Inquisição com as condenações da Igreja projetou, na mulher, sua dificuldade de incluir o desejo nos interesses político-religiosos da nova instituição católica” (GADOTTI, 2006, p. 69).

O ego heroico que deveria lutar contra o dragão, esse caos incompreensível trazido pelas pulsões do id, ocupou um enorme espaço nas preocupações das mentes psicanalíticas. O que, no início da era cristã, era punido como heresia, passou a ser diagnosticado pelos médicos no início do século XX como sintoma que deveria ser tratado com o fortalecimento do ego e, se possível, com o devido controle da capacidade imaginativa. Dentro de uma perspectiva monoteísta e de supervalorização egoica, a imaginação e toda gama de emoções diversificadas e incoerentes tornaram-se sintomas destrutivos e perderam, assim, seu potencial de transformação anímica.

A anima, como interioridade psíquica, por representar uma figura bipolar (JUNG, 2000, par. 356) era o verdadeiro alvo dessa discriminação. “A psique está longe de ter uma unidade; pelo contrário: é uma mistura borbulhante de impulsos, bloqueios e afetos contraditórios e seu estado conflitivo, para muitas pessoas, é tão insuportável, que elas desejam a salvação apregoada pela teologia” (JUNG, 2000, par. 190).

Portanto, bruxas e histéricas poderiam ser todas aquelas mulheres que, na intensidade do mundo anímico e na incapacidade de se comunicar com a objetividade do ego, contribuíram para a incompreensão de uma psicanálise que, ainda identificada com o positivismo da época, não pôde dialogar com aquelas bizarrices em forma de sintomas. O feminino arquetípico como personificação desse mundo imagético não compreendido e, consequentemente, assustador sofre essa repressão por carregar a sombra da desestruturação.

A interpretação unilateral do mito cristão da criação pode ser entendida como uma das mais bem-sucedidas campanhas de misoginia que vem influenciando não apenas as mulheres, mas toda uma forma de internalização do feminino arquetípico e consequentemente dos desencontros no campo das relações humanas, uma vez que a anima é o arquétipo dos relacionamentos. Vivemos respingos dessa misoginia não apenas no âmbito pessoal, mas principalmente no espaço coletivo, nas tensões entre classes, nas divergências entre povos com predominâncias arquetípicas diferentes (por exemplo, nos conflitos entre fundamentalistas e secularistas), enfim, em qualquer contexto relacional em que a exclusão se faz presente.

Para Elaine Pagels (1992), as atitudes sexuais e os valores básicos da cultura ocidental estão associados à forma como a tradição cristã responsabilizou a figura feminina pela queda do homem, associando-a ao mal e ressaltando o papel de Eva como figura que desestabilizou e transgrediu a ordem e, por isso, deve, a qualquer custo, ser expulsa do cenário social e psíquico. Na tradição cristã, a raiz da relação que se estabelece com o feminino é por meio da sombra, inicialmente projetada na imagem da mulher-bruxa e, posteriormente, nas palavras da psicanálise, na figura da mulher-histérica. O movimento fóbico observado a partir desse momento histórico reedita, em diferentes contextos, o terrível sentimento humano da exclusão. Ao ser atualizado como algo que desestrutura e responsável por todos os sofrimentos humanos, a anima, como o arquétipo dos relacionamentos, deixa de constelar na consciência coletiva sua maior riqueza; nossa capacidade humana de incorporar o outro em nossa intimidade, de incluir as diversas polaridades por mais estrangeiras que possam parecer. O desafio da contemporaneidade é justamente a aceitação desse estrangeiro dentro e fora de nós, nesse momento em que a globalização nos impele à intimidade, nem que seja virtual, com esse diferente.

Clarice, nômade que foi, traduziu, com muita sensibilidade, esse sentimento de exclusão de quem é estrangeiro em sua própria terra, o que provavelmente a impulsionou busca, em sua obra, desse feminino arquetípico que inclui e incorpora os mais diversos antagonismos. Sua criatividade emerge justamente desse trânsito livre entre as mais diversas polaridades anímicas, incluindo as diferenças sociais, culturais e estéticas, tanto no plano concreto objetivo quanto no nível simbólico subjetivo. A bela e a fera, a madame e o mendigo são personagens de sua obra que mostram a busca dessa inclusão e desse intercâmbio dinâmico dos opostos dentro de nós. O mergulho nessas infinitas possibilidades caracteriza a ambiguidade, a difusão e a descontinuidade de sua escrita.

Na arte, como função transcendente, a ambiguidade é a única possibilidade de comunicação, pois as múltiplas interpretações nos levam a atingir verdadeiramente as camadas mais profundas do inconsciente coletivo, múltiplo a priori. Na questão da patologia, essa mesma ambiguidade é vilã: é julgada e condenada pela desestruturação da personalidade, pela dificuldade de concentração e pela “fragilidade egoica” do paciente. A tarefa do ego heroico é suplantar justamente essa desorganização que as imagens inconscientes, ambivalentes por natureza, provocam na consciência e que, na arte, cumprem maravilhosamente sua função simbólica.

Mas não nos devemos enganar, pois até mesmo Clarice (1998b), na voz de G.H., reconhece a importância de haver mão que nos segure nesse aprofundamento que, aos menos avisados, pode ser visto como psicótico. Essa mão que resgata é a melhor imagem dessa tão necessária estabilidade egoica. No romance citado, a protagonista G.H., diante do iminente momento de ingerir ritualisticamente a massa amorfa da qual é feita uma barata, recorre ao leitor: “Segura minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua” (LISPECTOR, 1998b, p. 60). E, finalmente, diante de tão tênue limiar, de tão instigante ambiguidade, perguntamo-nos: qual é, afinal, o limite entre a loucura e a criatividade? Qual o limite entre heresia e expressão da feminilidade? Qual o limite entre prazer e pecado?

A insinuação de uma possível resposta parece estar em cada jornal que lemos, em cada filme a que assistimos ou música que ouvimos. Nossa cultura traduz essa questão. Nunca se viveu um momento de tantas incertezas e de tantas indefinições, de tantas perguntas e de tantas respostas. Ao mesmo tempo em que oferece a liberdade, mesmo que angustiante, de refletir e de fazer escolhas mais íntimas e pessoais, a modernidade, ou melhor, a pós-modernidade também nos joga em um vazio de valores e definições. O início do século XXI é marcado por um festival de possibilidades na área da sexualidade, da saúde, da educação e, como tristemente testemunhamos, da política. Afinal, infelizmente algum ônus deve ser pago por essa riqueza de caminhos que nos é ofertada!

Mas devo admitir: o homem moderno corre o risco de se iludir com tanta diversidade e, como Ícaro, embriagado dessa suposta liberdade, distanciar-se do equilíbrio saudável e necessário. A patologia do século não é a multiplicidade e a pluralidade constantemente a nós apresentadas, mas a distorção que fazemos entre a vivência simbólica e intrapsíquica dessa pluralidade e sua concretização. Quando atualizamos as diversas polaridades inerentes à própria natureza do arquétipo, corremos o risco de, assim como Ícaro, ficar distantes do contato saudável com nossa realidade objetiva, garantida principalmente pelos nossos vínculos. Assim como Ícaro não pôde ouvir os chamados paternos, descompromissando-se dessa relação, nós também perdemos a noção de vínculo quando nos permitimos viver todas as possibilidades arquetípicas que são jorradas em nossa consciência.

O descompromisso que testemunhamos diariamente nas ruas, nos meios de comunicação e até mesmo em nossos consultórios, lembra a euforia adolescente da compulsão de lançar a todas as experiências a que nossa psique, voraz e complexa como é, instiga e vida. O mundo contemporâneo é caracterizado pela riqueza das diversidades, mas também pela patologia do individualismo e da transitoriedade que nos abandona na falta. O mundo da fartura é também o do vazio, o efêmero convive com a multiplicidade em um espaço em que a diversidade anímica, própria do feminino, deixa de estar a serviço do Self, para satisfazer somente às demandas de um ego envaidecido por seus vários talentos. Não é à toa que os super-heróis da modernidade não são apenas poderosos, mas, principalmente, portadores de múltiplos poderes.

Adoecemos quando perdemos nossa “alma”, quando nos desconectamos desse feminino arquetípico, cuja principal característica está associada à função dos relacionamentos, de aproximar-nos do outro. A pluralidade anímica deixa de estar a serviço da aceitação de nossas diferenças dentro e fora de nosso mundo psíquico, ajudando-nos a nos aproximar do estrangeiro diferente de nós, para dobrar-se em favores a uma liberdade que nos faz negar nossos vínculos e compromissos éticos. Clarice é Clarice Lispector, a escritora, porque provavelmente sempre soube o que era seu e o que era dos deuses e humildemente sempre pediu a mão do leitor, sem o qual um escritor não pode existir.

Outra brilhante romancista. Rosa Montero alerta para a importância da palavra como possibilidade de comunicação, como símbolo dessa mão que nos resgata da loucura: “Os chamados loucos são os indivíduos que moram permanentemente no lado sombrio: não conseguem se encaixar na realidade e carecem de palavras para se expressar... A essência da loucura é a solidão” (2004, p. 133).

Talvez não percebamos, mas quando nos desconectamos de nossa feminilidade psíquica nos desconectamos, também, de nossos vínculos, de modo que o caminho da individuação deixa de ser solitário para ser apenas de solidão. Mais adiante, Montero (2004, p. 138) continua: “A escrita é um esqueleto exógeno que lhe permite continuar ortopedicamente em pé, sem ela, você seria uma gelatina derrotada, uma massa molenga esmagada no chão”.

Apesar de se construir por meio dessas olhadelas para o mundo informe que se encontra por trás das fronteiras da realidade concreta e objetiva, o escritor está eticamente compromissado com a palavra que, em um primeiro momento, pode parecer uma prisão, mas, no decorrer de sua vida, é a mão que sempre o resgata. De fato, no início do século passado, apesar de todos os esforços dos médicos dedicados ao estudo da alma, ainda não era possível olhar para essa diversidade anímica com toda a criatividade própria do arquétipo, chamando de bizarrice aquilo que poderia ser criativo, de sintoma o que talvez fosse a criação e de doente aquele que era o criador. No entanto, atualmente, observamos uma exclusão às avessas, uma vez que o enaltecimento descompromissado das pluralidades acaba diluindo nossos vínculos em espelhos refletores de nós mesmos e transformando-os em objetos a serviço de uma fantasia narcísica e onipotente.

Continuamos excluindo o outro com toda a sua diversidade do campo da nossa visão psíquica, vendo apenas um outro restrito e empobrecido, deformado pelo nosso olhar, simples extensão de nossa vaidade narcísica, que serve apenas ao nosso interesse de viver nossa própria complexidade. O outro verdadeiramente diferente deixa de existir. Em uma atitude antropofágica, nós o engolimos para servir ao nosso próprio apetite e não para verdadeiramente incorporar suas qualidades à nossa existência e nos transformar a partir desse alimento. As desigualdades que testemunhamos nas ruas, nas divergências sociais e culturais são o lamentável resultado de uma mentalidade que, fóbica diante da diversidade que a anima oferece, tende a excluir em vez de se relacionar.

A dicotomia entre bem e mal, entre loucura e criatividade forma o pano de fundo arquetípico desse mecanismo de exclusão que reeditamos em nossos relacionamentos pessoais e sociais. De alguma forma, a bruxa, a histérica e o mendigo das ruas são vítimas dessa mesma dinâmica de exclusão e expurgação do feminino. A imagem de um mundo unitário, onde cabem as diferenças, exige que a imagem entre o masculino e o feminino, Logos e Psique, estejam, de alguma forma, consteladas em nossa consciência, em conjunção, o que só é possível pela mudança de postura diante do que chamamos feminilidade ou interioridade psíquica.

A possibilidade de comunhão das mais diversas polaridades psíquicas em nossa consciência nos remete à imagem de Sofia, “o espírito amigo dos homens” (JUNG, 1986, par. 613), o aspecto feminino do divino, que ama e teme, pois reconhece e respeita a diferença. Justamente por representar esse aspecto relacional de compaixão do arquétipo, Sofia permite a transformação do intocável em nós. Sofia, cujo trono está no Céu, mas também na Terra, é capaz de dialogar com as polaridades divinas e humanas e de legitimar a diversidade, colocando, no palco da inclusão, como artistas de igual importância, a prostituta de Copacabana, a nordestina Macabéa, a histérica de Freud e os sem-teto da cidade de São Paulo, em um espetáculo dirigido por Eros e cujo tema é a própria vida.

Referências

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Recebido: 02 de Junho de 2023; Aceito: 19 de Agosto de 2023

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Este artigo foi publicado originalmente na Revista Junguiana nº 25, 2007, p.65-71.

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