O psicoterapeuta pouco ou nada aprende com os sucessos, principalmente porque o fortalecem nos seus enganos. Os fracassos, ao invés, são experiências preciosíssimas, não só porque através deles se faz a abertura para uma verdade maior, mas também porque nos obrigam a repensar nossas concepções e métodos (JUNG, 1988a, par. 73, p. 36).
Apresentação
A morte, como tema arquetípico, pode ser constelada no setting de diferentes maneiras, das mais concretas às mais metafóricas, uma vez que recorrentes processos de luto e transformação inerentes à vida e à psicoterapia deixam suas marcas nesse rito iniciático contemporâneo. O par analista-paciente é colocado, então, diante de desafios que demandam certa elaboração ao longo do processo terapêutico. Um desses desafios é justamente lidar com o possível fracasso do esforço empreendido a dois em busca de transformações, situação para a qual múltiplas variáveis contribuem à sua maneira. Refletir sobre morte e fracasso na análise implica rever, entre outras coisas, a noção de cura que norteia a prática do analista e, para isso, certos elementos ideológicos e epistemológicos precisam ser discriminados, de modo que se possa perceber de que lugar ele ouve o paciente e de onde se coloca como terapeuta.
A díade fracasso-sucesso no campo analítico
James Hillman (1981) aponta que a psicologia profunda se deparou com o fenômeno do fracasso desde suas origens, de modo que a psicoterapia se encontra historicamente atravessada por uma espécie de “complexo de fracasso”. Começando pelo fracasso da abordagem dos médicos do final do século XIX, que não conseguiam explicar o sofrimento das histéricas com base em suas teorias biológicas, tampouco conseguiam lidar com seus sintomas em termos mais efetivos. De modo semelhante, os psiquiatras da época não conseguiam entender a importância do conteúdo delirante dos pacientes psicóticos, limitando-se a classificar e categorizar doenças. Hillman conclui que Freud, Bleuler e Jung (acompanhados de seus colaboradores) criaram teorias psicológicas justamente quando as teorias médicas fracassavam em relação às patologias dominantes naquele período.
Rafael López-Pedraza (1997) também discute a questão do fracasso e do sucesso, relacionando-a com a ansiedade cultural contemporânea. Ele identifica certa ideologia presente na consciência coletiva ocidental, que associa a noção de sucesso à competência e obtenção de resultados positivos, e que muitas vezes pode impregnar, ainda que subliminarmente, o ambiente terapêutico. O autor aponta a necessidade de desenvolver o que chama de uma “consciência de fracasso” no mundo atual, pois a busca obstinada do sucesso, incentivada pela consciência coletiva, que se encontra fortemente marcada por traços narcísicos, compulsivos e maníacos, impede um diálogo com as necessidades da alma consteladas pelo fracasso.
Há, ainda, que considerar as preocupações de Freud sobre as dificuldades de conduzir uma psicanálise com algum sucesso. Para isso, ele esclarece quais seriam os objetivos do tratamento: diminuir a inibição sobre os conteúdos inconscientes reprimidos, ao mesmo tempo em que se fortalecem as defesas egoicas do paciente, de maneira a relativizar a força dos instintos e dos sintomas (FREUD, 1996).
Freud, porém, enfatiza que fatores de natureza biológica e fisiológica seriam possivelmente insuscetíveis a influências psicológicas, como a “força constitucional dos instintos”, por exemplo. Aponta, também, a relativa “fraqueza do ego”, em função de causas fisiológicas como a puberdade, a menopausa e a doença física. Mas o mais poderoso fator impeditivo do sucesso da análise, segundo o autor, seria a pulsão de morte, a responsável não só pela resistência ao tratamento, mas a causa suprema dos conflitos psíquicos.
Hillman, por sua vez, lista alguns temas que poderiam ser de difícil abordagem terapêutica, como o alcoolismo e as depressões crônicas, e menciona situações adversas e, por assim dizer, externas ao setting, que poderiam levar ao naufrágio de uma análise – a ocorrência de uma doença fatal, um suicídio ou mesmo uma dificuldade contratransferencial maciça do analista. Eu acrescentaria os impedimentos financeiros, normalmente apresentados como motivo concreto para suspender o tratamento, embora muitas vezes representem outras dificuldades para o paciente permanecer em análise.
Partindo dessas definições básicas, algumas questões conceituais ganham contornos mais específicos. Como tecer reflexões sobre o fracasso sem nos remeter por oposição à ideia de sucesso? E, mais, como definir tais categorias em relação à psicoterapia?
Hillman (1981) discute no referido texto três interfaces dessa díade “fracasso-sucesso”. Em relação ao “fracasso na análise”, ele logo adverte que a oposição “fracasso-sucesso” esvazia uma reflexão sobre o fracasso como uma das imagens que pode ser constelada em análise com base em seus próprios limites arquetípicos. Pois a antinomia fracasso-sucesso engendra dificuldade ou armadilha, na medida em que leva a crer que o fracasso possa ser concebido exclusivamente em termos de uma privação do sucesso, entendido como a mais plena remissão possível de sintomas. Desse modo, o “fracasso na análise” acaba sendo avaliado com base em critérios normativos do sucesso, também definido em termos de “saúde ótima, ordem psíquica, integridade” (HILLMAN, 1981, p. 116).
Assim, Hillman relativiza a oposição fracasso-sucesso quando pensados como polaridades antagônicas de um continuum, sugerindo que sejam pensados como faces de uma mesma moeda, porém com identidades próprias, já que: “(...) cada elemento da análise é certo e errado, é condução e desorientação, crescimento construtivo e eliminação destrutiva - o que significa implicitamente que para uma análise ter êxito ela precisa fracassar” (HILLMAN, 1981, p. 116).
Sobre o “fracasso da análise”, o autor evoca suas raízes numa perspectiva mais geral, lembrando que “algum tipo de fracasso ocorre sempre na análise, e isso nos levaria a perguntar se não existiria algum componente genérico na análise, responsável pelo fracasso” (HILLMAN, 1981, p. 116). Ele segue problematizando essa questão, explicando que, assim como alguns estudos pesquisam o insucesso na análise de certos casos, outros versam sobre o fracasso da análise como um todo, pois não é possível defini-la como cura para todos os males. Especialmente porque é impossível equalizar o sentido de cura nas diferentes abordagens da psicoterapia, tampouco buscar validação em termos “científicos” e universais para estudos de casos clínicos, grupos de patologias etc.
Por fim, e como ponto de maior interesse na presente discussão, Hillman propõe o “fracasso como análise”: a psicoterapia poderia tomar o fracasso como fonte de sua práxis, como o campo de trabalho psicológico per se, já que os sentimentos que levam as pessoas a procurar uma análise – fragilidade, derrota, falência, decepção, além de sentimentos de falta ou incompletude – estão atravessados por alguma ideia de fracasso. O fracasso poderia, então, ser colocado não como um fantasma a ser evitado no curso da análise, mas como sua própria matriz arquetípica. Assim, seria tomado como uma imagem que inaugura a emergência de outras forças e atravessamentos arquetípicos, outros símbolos e deuses do mundo inferior, de modo que surgiriam situações clínicas que contaminariam o próprio analista, levando-o a atender alguns pacientes numa perspectiva “desistida e deprimida”.
Tânatos é então invocado por Hillman, pois essa divindade seria tão dignatária do território da análise quanto Eros:
Se a análise considerasse sua origem histórica (concebida como uma resposta para o fracasso) também como sendo sua base arquetípica, sua perspectiva se alteraria, vinculando-se mais a Tânatos. É do ponto de vista da mor te que a análise explora o fracasso, tendo sido criada como instrumento eletivo da psique na exploração do fracasso como soma de forças que se opõem à vida, isto é, para indagar de Tânatos e de seus dominantes arquetípicos correlatos, onde a vida está bloqueada, derrotada, falida e fracassada (1981, p. 120).
Hillman oferece com essa proposição elementos para considerar o fracasso como um dominante arquetípico próprio da análise, que permitiria uma postura analítica menos orientada pela busca erótica da integração e do sucesso. Pois quando o analista se identifica com a consciência ou atitude heroica da cura numa perspectiva de forças opostas à morte, numa busca desenfreada pela vida, ainda se encontra identificado com o modelo de pensamento da filosofia médica do século XIX. Haveria uma herança iluminista nessa abordagem heroica, a de que, se o inconsciente for “bem interpretado”, “bem trabalhado”, e seus conteúdos forem integrados à consciência, tanto o paciente como o analista estariam protegidos do fracasso. Em decorrência desse discurso, vemos a sombra do fracasso se constelar, por exemplo, quando o terapeuta inconscientemente atua fazendo uma espécie de chantagem embasada em argumentos técnicos que apontam possíveis consequências danosas caso o paciente interrompa a análise “naquele momento”, hipótese normalmente fundamentada em resistências ou complexos ainda não trabalhados do paciente.
Fracasso ou sucesso, portanto, tornam-se constatações referidas não a partir do lado de dentro da análise, mas de sua exterioridade, de quem observa de fora e reflete sobre o que teria se passado lá dentro, na relação terapêutica entre paciente e analista. Isso, por sua vez, ocorre sempre com base em referenciais teóricos e metodológicos orientados por discursos ideológicos que nem sempre são condizentes com a experiência vivida pelos parceiros analíticos e com o próprio caráter arquetipicamente orientado desse universo chamado psicoterapia.
O fracasso como análise, por seu turno, permite um resgate das forças psíquicas que trabalham na perspectiva alquímica da dissolução dos aspectos cronificados do ego – tão unilateralmente desenvolvido e estimulado na busca de sentidos preestabelecidos para a vida. Justamente porque a vida, em sua dança arquetípica com a morte, é marcada por movimentos incertos que enlaçam diferentes facetas de fracasso-sucesso.
Estudo de caso Cena 1: Preâmbulo
Julia abandonou a análise depois de um ano e dois meses do modo habitual aos pacientes que unilateralmente interrompem o tratamento: inicialmente faltando e justificando suas ausências por razões objetivas (outros compromissos, adoecimentos etc.), até simplesmente deixar de justificá-las e desaparecer. Um evento comum no percurso de qualquer terapeuta, assim como a frustração pelo investimento no trabalho que vinha sendo feito a dois.
Ela havia sido encaminhada por uma psiquiatra que eu não conhecia e, na ocasião em que me procurou, apresentava sintomas de uma depressão profunda. Sua aparência física lastimável confirmava facilmente tal estado de alma: nela se via uma mulher de aproximadamente 42 anos de idade que trazia os cabelos desgrenhados e oleosos, os ombros caídos, como se todo seu corpo não suportasse o peso excessivo (tísico e psíquico) que carregava; o olhar era como o de um peixe morto, a face distorcida com os lábios murchos, curvados para baixo. Permanecia em silêncio a maior parte do tempo e evitava olhar diretamente para mim. Enfim, tudo nela remetia à desesperança, cisão e dor. Relatou situações em que havia tentado “acabar com tudo” tomando remédios, pois tudo o que ela queria era “morrer em paz”, mas sobreviveu às tentativas de suicídio.
Depois de algumas sessões em que, segundo ela, “pouca coisa estava acontecendo”, disse que não acreditava que a análise pudesse ajudá-la, já que não tinha mais nada para fazer nesta vida, então seria uma perda de tempo, dela e meu. Levantou a hipótese de que a análise poderia até mesmo piorar sua depressão. Eu ouvia e considerava atentamente suas hipóteses, embora ainda não concordasse totalmente com ela. Meu ideal estava colocado na perspectiva de que alguma coisa poderia ser feita, até porque fosse lá como fosse ela havia chegado até mim e, apesar das fortes resistências – veladas ou declaradas –, continuava vindo às sessões.
Cena 2: O entorno familiar e social
Julia era casada e tinha dois filhos adolescentes; a família mudara-se de Minas Gerais para São Paulo havia alguns anos. O marido era engenheiro e ela, advogada. Ambos trabalhavam muitas horas por dia, tantas quantas fossem necessárias para se esquivar do contato conjugal e familiar que era carregado de conflitos a maior parte do tempo.
No trabalho, diferentemente de casa, Julia dizia que as pessoas gostavam dela e a buscavam como confidente, embora não conseguisse indicar qualquer pessoa com quem tivesse algum envolvimento mais pessoal, no trabalho ou fora dele. Justificava a falta de amizades utilizando-se de generalizações, dizendo, por exemplo, “o paulistano é muito fechado, ao contrário do mineiro”. Quando indagada sobre porque os colegas a tomavam como confidente, dizia que as pessoas deviam gostar de falar com ela porque sabiam que não seriam criticadas.
Tais comentários denunciavam aspectos projetivos de sua personalidade (provavelmente ela não conseguia admitir que era uma pessoa fechada), além de indicarem, também, sua suscetibilidade a questionamentos que vinham do outro, pois em geral ela os tomava como se fossem críticas. Mais tarde pude perceber que era comum Julia dizer que as pessoas eram “agressivas” com ela, mas, quando exemplificava tais situações, via-se que, na verdade, estava sendo questionada em alguma arbitrariedade, pois apresentava muitas, especialmente quando não se sentia compreendida em seus anseios narcísicos. Tais atitudes indicavam ganhos secundários e tentativas de manipular o ambiente, que nem sempre eram inconscientes, de modo que pudesse se esquivar de conflitos e evitar frustrações.
Cena 3: O diagnóstico
Depois de algumas sessões iniciais com a paciente, telefonei para a psiquiatra, que se referiu a Julia como “uma border 15 cruzes” e disse que estava preocupada com as “atuações de caráter suicida da paciente”. Com base no diagnóstico anunciado pela psiquiatra, tentei ir além do sentido fronteiriço ou limítrofe associado ao paciente borderline (SCHWARTZ-SALANT, 1997; HEGENBERG, 2000), pois queria evitar me apegar tão prontamente a esse dado – apesar de reconhecer sua importância –, e simplesmente ficar com a experiência vivida no encontro com aquela mulher. Queria ficar com a imagem daquele corpo-alma desvitalizado que vinha se apresentando em meu consultório havia algumas semanas, sem enquadrar o sofrimento da paciente em sentidos prévios.
De fato, Julia apresentava um histórico de relações em que havia abandonado o outro, indicando conflitos intensos em termos vinculares, o que podia justificar um diagnóstico borderline. Ela não tinha consciência disso e, atravessada por fortes projeções, acusava o outro de tê-la abandonado ou feito alguma coisa pontual que a tivesse motivado a ir embora.
Depois de falar com a psiquiatra, fiquei imaginando os limites que Julia erigia entre ela e o mundo, tanto objetivo como subjetivo. Pensei nas bordas, e rapidamente orientei meu método por uma imagem: a de “comer pelas bordas”, como um ditado sabiamente instrui. Se era difícil ir ao centro, eu ficaria ali, na periferia, à espera de oportunidades para adentrar o mundo de Julia. Isso às vezes acontecia: entre uma semana e outra, era possível avançar um pouquinho, ter um contato mais próximo com suas ideias e fantasias. Mas, subitamente, ela me repelia, faltava ou me atacava quando comparecia à sessão seguinte. Deixava claro que eu havia ido longe demais; em tais ocasiões era melhor “bater em retirada” e esperar mais um pouco por uma nova abertura.
Arrisquei convidá-la a fazer alguns desenhos que, em geral, mostravam poucos elementos, muito pequenos, localizados na parte inferior esquerda do papel. Aquele amplo espaço em branco que sobrava na folha oferecia-se ao olhar como um registro concreto do próprio mundo anímico de Julia. Vazio, muito vazio. Ou transparente, como ela desesperadamente tentava se colocar perante si mesma e o outro.
As faltas eram frequentes, intercaladas com algumas semanas em que ela conseguia comparecer com mais regularidade às sessões. Justificava essas faltas em geral com a piora de alguns sintomas físicos ou psíquicos. Nessas ocasiões, era como se a água do mar viesse e desmanchasse as pequenas fundações de um castelo na areia. Depois de alguns meses pensei em desistir: por que não? Todo analista tem o direito de desistir, mas algo em mim resistia a essa ideia. Numa supervisão marcante, ouvi uma frase que me salvou do desânimo que se abatia sobre mim: “Para atender essa paciente, você precisa ficar ‘desistida’ e deprimida”. Isso mudou minha postura e o rumo das coisas também. Sim, o melhor era eu também desistir de qualquer atitude esperançosa, era melhor assumir o estado lamentável em que ficava durante e depois das sessões. Estar na companhia de Julia era como estar na presença de uma grande e pesada sombra. O melhor era desistir, assumir o fracasso do meu método: nem pelas bordas, nem pelo centro, nem com recurso expressivo, a verdade era que nada parecia funcionar. Desistir de ansiar que as coisas se integrassem ou estabilizassem funcionou, e o tratamento seguiu adiante, marcado pelas faltas, ausências, desânimo, apatia. Nada de novo, só lamentação, choro, passividade, reatividade. Era uma escuridão só! Percebi que eu precisava ficar escurecida também. Um pouco mais opaca, menos esperançosa, menos, menos, menos... Pois assumir qualquer ideal ou mesmo expectativas médias era esperar demais desse processo.
Cena final: Análise inacabada
Ao final de um ano e dois meses, Julia mostrou alguns sinais diferentes, que indicavam uma leve melhora. Nas sessões, mostrava-se mais reflexiva e com capacidade de perceber que não era “uma paciente nada fácil” e, numa clara tentativa de checar os limites do vínculo terapêutico, admitia que “deve ser difícil alguém gostar de mim”, como se esperasse alguma declaração minha que desconstruísse tal ideia negativa a respeito de si própria. Assumiu, também, que trabalhava mais do que precisava em termos financeiros, e que isso tinha a ver com dificuldades de relacionamento com o marido e com os filhos. Mais de uma vez pensou em se separar do marido, mas, toda vez que chegava perto de qualquer decisão efetiva nesse sentido, desistia. Ela precisava dele muito mais do que imaginava. Ambos, em seu pacto inconsciente mortífero, precisavam muito um do outro. Julia tinha dificuldades com o tema “dependência” e mostrava-se bastante ambígua nessa questão: ela odiava depender do outro e, por tabela, odiava o outro por perceber que dependia tanto dele. É claro que isso se repetiria na relação transferencial. Foi assim com os analistas anteriores com quem havia tentado fazer psicoterapia. Em geral, não encerrava a análise pessoalmente, indicando que, depois de alguns sinais de transferência negativa, simplesmente “deixava de ir lá”.
Então, finalmente começou a encenar na relação transferencial comigo o mesmo roteiro que havia encenado com a analista anterior. Faltava por “razões de saúde”, embora estivesse se referindo a sintomas físicos que, na verdade, eram muito presentes em seu dia a dia. Eu comentava “parece que eles (os sintomas) te fazem companhia”, e apontava como ela falava das doenças com carinho, inclusive. Os sintomas eram os personagens com os quais ela encenava sua tragédia particular, que lhe garantiam alguns ganhos, tanto no âmbito familiar como no profissional, pois a ajudavam a justificar seu distanciamento das relações quando surgiam conflitos, sem de fato ter de lidar com sua própria agressividade. Orientada pela lógica racionalista de argumentos que eram coletados como evidências em inúmeras consultas médicas, Julia ficava levemente irritada e começava a repetir exaustivamente os detalhes científicos de suas doenças, como se estivesse numa audiência. E permanecia surda aos sentidos metafóricos dos sintomas que falavam das dores de sua alma materializadas no corpo.
Até que resolveu fazer uma viagem. Julia raramente viajava, pois ou tinha de trabalhar, ou estava doente! Ao voltar dessa breve viagem, passou a faltar sucessivamente às sessões, sempre justificando com os sintomas físicos. Um dia, finalmente deixou de vir. Eu havia ligado algumas vezes antes disso. Numa dessas ocasiões, Julia disse: “É assim mesmo, foi só viajar pra eu me castigar e ficar doente”. Ainda que eu não possa saber qual o grau de sua capacidade para integrar o que havia dito, pois nunca mais a vi, foi interessante ouvir da boca de Julia a confirmação de que as doenças lhe faziam companhia pela via da punição, eram como forças que lhe lembravam que ela “não podia ser feliz”, como se fossem carcereiros de sua fantasia.
Depois desses contatos telefônicos, resolvi não insistir, pois, em geral, quando um paciente anuncia direta ou indiretamente a intenção de encerrar a análise, acolho a decisão e proponho a ele um diálogo com esse impulso ou desejo. Considero com genuíno respeito o que ele tem a dizer sobre as razões para finalizar a análise: “Não está funcionando, você não resolveu o problema, estou cansado de vir aqui e falar, falar...”, e por aí afora.
No caso de Julia, tenho de admitir que a primeira ideia que me ocorreu foi a expressão “morrer na praia”. Naturalmente, sentimentos de incompetência e fracasso abateram-se sobre mim e suscitaram questionamentos que incorporei ao modus operandi de minha prática clínica. Confesso que senti também um grande alívio. Considerei, por exemplo, que talvez eu não fosse a terapeuta mais adequada para atendê-la. Tentei, também, me consolar, considerando que, afinal de contas, era um caso muito difícil, e também que, independentemente do breve tempo de duração do tratamento, algo podia ter sido construído em termos psíquicos naquele processo. Mas o quê? Como definir esses avanços? Considerando tantos recuos motivados pela resistência e pela falta de recursos egóicos da paciente, ou mesmo por questões contratransferenciais da terapeuta, a quem ou a que atribuir o abandono da terapia: ao analista, ao paciente ou à relação terapêutica?
Algumas considerações finais
O fracasso – em sua interface com a morte – já se insinuava nesse processo desde as entrevistas iniciais, pois, quanto mais ativamente buscava um referencial objetivo para lidar com as intempéries desse atendimento, mais me distanciava de qualquer resolução “positiva”. Pelo contrário, havia uma negatividade que precisava ser reconhecida e valorizada a todo instante. Nesse sentido, Jung (1988b) é bastante claro: a vida não tem cura, e a individuação segue caminhos tortuosos e misteriosos que, por vezes, passam ao largo do consultório e desabrocham em lugares pouco esperados. Portanto, o que deve ser curado é o ego: no caso do paciente, tanto em suas fragilidades, para se tomar capaz de lidar com a força dos instintos e a pressão das imagens do inconsciente, como em sua rigidez, para flexibilizar seus parâmetros de modo que o indivíduo se torne continente para acolher os sentidos metafóricos que estão subjacentes à força literal dos sentidos crônicos de seus sintomas. Afinal, um neurótico, por vezes, sofre do literatismo de concepções que o angustiam e o mantêm refém da repetição de sintomas tanto quanto um psicótico enredado nas distorções de suas fantasias e aprisionado nos limites de seu delírio.
Do mesmo modo, há que se rever os ideais egoicos também do analista, que pode ser tomado por sentimentos de desvalorização quando não pode alcançar os ideais de sucesso enaltecidos pelo discurso dominante das ciências que se refletem na psicologia. Uma psicologia que, por vezes, permanece distante das necessidades ou do logos como discurso imagético da psique.
O interessante foi que, por ter sido frequentemente visitada pelo fracasso nessa análise, fui levada a colocar o sucesso em questão, o que implicou percebê-lo em suas perspectivas mortíferas e mortificadoras. Provavelmente, o aspecto mais claramente enlutado de minha atitude analítica foi a morte dessa dicotomia tão polarizada entre fracasso ou sucesso. Algo de um ideal heroico, combatente e combativo para com as impossibilidades desse encontro, teve de ser sacrificado em prol de uma atitude mais plural, na medida em que houve uma abertura para diferentes nuances de fracasso e sucesso, em doses mais humanizadas, talvez microcelulares no dia a dia do processo terapêutico, uma vez que “seria mais justo para com os fracassos da e na análise se a considerássemos como um processo no fracasso”, conforme alerta Hillman (1981, p. 120-121).