
Fonte: https://www.jorgeamado.org.br/
“Exu” - desenho de Carybé para a Casa de Jorge Amado. Salvador, BA.
A encruzilhada é o umbigo do mundo (dito de terreiro)
Adakê Exu, Exu, ê Mojubá
Ê Bará ô, Elegbara
Lá na encruza, a esperança acendeu
Sou Grande Rio, Grande Rio sou eu
Adakê Exu, Exu, ê Mojubá Ê Bará ô, Elegbara
Lá na encruza, onde a flor nasceu raiz
Eu levo fé nesse povo que diz (trecho do samba-enredo da Acadêmicos do Grande Rio, escola campeã do carnaval 2022).
Abre caminho
Sincronicidade. Essa foi a minha chave de leitura para a vitória da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio no carnaval carioca de 2022. A agremiação de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, levou para o Sambódromo um enredo inédito sobre Exu1 e conquistou seu primeiro campeonato. O enredo buscou confrontar a visão cristã que assimilou Exu ao Diabo, atribuindo ao orixá características maléficas que são matéria-prima para a perseguição aos terreiros de religiões afro-brasileiras empreendida pelo fundamentalismo cristão. Com essa finalidade, trouxe para o desfile diversos aspectos de Exu, suas manifestações e seus domínios.
O enredo foi um grande manifesto de louvor à festa, à vida e às culturas afro-brasileiras, criticando o racismo, as desigualdades sociais, o ódio. Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que somente hoje atirou.
O aforismo iorubá faz todo sentido se pensarmos que essa epifania se deu no primeiro carnaval após a derrota eleitoral do antigo prefeito da cidade, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, e antagonista declarado dos festejos de Momo2. Uma afirmação de fé importante no carnaval que marca ainda o retorno do festejo popular após mais de 600 mil mortos pela pandemia de Covid-19 no Brasil, no país então governado pela extrema-direita negacionista da ciência, fundamentalista cristã, destruidora do meio ambiente e de direitos sociais e culturais.
Evento significativo em sincronia, o carnaval de Exu iluminou a escrita deste trabalho e ampliou meu repertório imaginal sobre as complexidades do orixá que guiou minha formação jun-guiana. Se, a princípio, minha ideia era ler Exu a partir de uma perspectiva junguiana, aos poucos a fome sem fim de Exu devorou Jung e me levou a inverter a lógica: Exu vem primeiro. Jung é a oferenda na encruzilhada. Essa pedra atirada nos acertou aqui.
Ler Jung a partir de Exu é fazer festa, é botar o psiquiatra suíço para dançar na rua e se comunicar com o tempo do agora3. É propor reflexões abertas, cruzos, ampliar possibilidades terapêuticas e de análises sócio-históricas. Como princípio descolonizador, Exu se incorpora em Jung, gargalha, cospe marafo e recusa certezas, ortodoxias e estagnações, desestabilizando euro-centricidades. Comunicação, movimento, dinamismo, criatividade, transformação: elementos comuns a Exu e à psicologia analítica.
O orixá já foi tema de importantes trabalhos no campo junguiano. Apresento aqui brevemente dois deles. A dissertação de mestrado de Sônia Lages (2003) e um artigo publicado por Carlos Augusto Serbena e Michelle Gabani (2015).
Sônia Lages (2003) apresenta Exu como arquétipo da sombra na sociedade brasileira e explica do seguinte modo a intenção da sua dissertação:
A pretensão é demonstrar que a entidade de Exu é a projeção da sombra do inconsciente coletivo brasileiro, mas que, nos terreiros desse campo religioso estudado, a problemática da sombra readquire uma nova conotação (p. 4).
A autora segue:
A presente dissertação é, pois, essencialmente uma análise psicológica da entidade de Exu e suas repercussões no campo religioso da Umbanda, no indivíduo e na sociedade (p. 5).
Com base em pesquisa de campo em que observou rituais e práticas religiosas, Sônia Lages interpreta o Exu na Umbanda, em seus diversos aspectos (malandros, pombas giras, catiços etc.), servindo-se de conceitos junguianos. Exu é compreendido como fenômeno psíquico coletivo e analisá-lo é, para a autora, caminho para desvendar aspectos importantes da sociedade brasileira.
Serbena e Gabani também analisam Exu na relação com o conceito junguiano de sombra. Para os autores, como sombra, Exu teria a capacidade de desvelar um processo psíquico, um potencial oculto que pode apontar para futuros alternativos conforme o símbolo deixa de ser identificado ao Diabo, ao Mal e passa a ser integrado à consciência, com seus conflitos e ambiguidades. Serbena e Gabani (2015) apontam para possibilidades de transformações psíquicas individuais e coletivas ao se trazer para a consciência seu simbolismo (p. 62).
Integrar o Exu sombra à consciência depende da confrontação com a religiosidade cristã, unilateral, que recusa o mal como parte da vida e, justamente por isso, é mais suscetível de ser dominada por ele. A conclusão dos autores contribui para entendimento da relevância do carnaval da Grande Rio nesse processo psíquico:
Tirar o Exu das projeções sombrias e trazê-lo à luz da consciência é o único modo de afastar o receio de uma possessão arquetípica provocada pelo desconhecimento do seu simbolismo verdadeiro. E aí, como aduz Jung (2011c), o que o arquétipo, no caso a figura do Exu, vai ser ou não de fato dependerá unicamente de uma atitude da consciência (SERBENA, GABANI, 2015, p. 67).
Em diálogo com esses trabalhos, posso afirmar que aqui o movimento é outro. A tentativa que proponho é ler Jung a partir de Exu, este compreendido como um princípio epistêmico que orienta a compreensão da dinâmica da psique. Não enfatizarei a observação de rituais religiosos. A análise se concentrará em itans, histórias de origem iorubana que compõem um acervo que permite aproximação com o princípio Exu. Não empreenderei aproximações com arquétipos como do trickster e similiares de natureza mercurial, o que poderia limitar o reconhecimento das especificidades e distinções do dono dos caminhos.
Meu ponto de partida e de chegada é a encruzilhada. Reivindico a encruzilhada como conceito para ler o mundo, a partir das potências de Exu. Cruzar Jung com Exu não objetiva corrigir ou purificar Jung, eliminar suas contradições, seu racismo e eurocentrismo, mas abrir questões, possibilidades, tentar caminhos (RUFINO, 2019, p. 18).
O percurso para essa conversa começará apresentando Exu como princípio para, em seguida, arriarmos Jung na encruzilhada trabalhando com itans encruzados com a psicologia analítica.
O princípio Exu
Bara, Elegbara, Legba, Yangí e tantos outros nomes nos candomblés, santerias, batuques. Tranca Ruas, Tiriri, Lalu, Caveira, Sete Encruzilhadas, Giramundo e outros tantos nomes nas umbandas e macumbas. Quantos são os Exus que vivem nas religiões brasileiras de matriz africana e/ou afro-ameríndias? Tantos nomes são também as tantas faces de Exu. Orixá mais próximo aos seres humanos, Exu faz o bem, faz o mal, ama, odeia, não tem posses, mas adora comida e dinheiro, cria confusões por diversão e as resolve por prazer. Dono da comunicação entre seres e mundos, media acordos e cria mal entendidos. Protege seus filhos, mas ai daquele que esquecer de louvá-lo e alimentá-lo: sua vida pode virar um verdadeiro inferno de insucessos, tropeços e mesmo doenças e mortes. Bem e Mal não se opõem para Exu. Tudo depende de contextos e situações e ele é capaz de fazer o mal para levar o bem a um filho seu. Exu é movimento, ação, é barulho de rua, é ambiguidade e graça. É astúcia do mais fraco, é roubar ou recompensar quem faz por merecer seu desprezo ou sua consideração. Os mercados são de Exu, lugares imemoriais de troca de mercadorias, palavras, saberes, informações. Exu adora intrigas, se diverte em jogar com seres humanos, sempre tão binários e literais em seu jeito de ver o mundo preto no branco. Geralmente, sair de uma enrascada criada por Exu exige da vítima negociação, jogo de cintura e sagacidade para enxergar caminhos inesperados. Exu mente como ninguém e, por isso, reconhece mentirosos e até lhes tem simpatia, desde que não mintam para ele. De vez em quando algum orixá lhe dá uma lição, porém nada adianta e ele continua a fazer das suas. E como come! Exu é faminto, tem pressa de comer, deixá-lo com fome é perigoso. Por isso, sempre come primeiro. Alimentar Exu é tentar garantir ordem na festa e no mundo. Uma ordem sempre instável e caprichosa, pois o senhor das encruzilhadas gosta do inesperado, do criativo, da inteligência, de tudo que move o mundo, ainda que gere caos e incertezas.
Suas ambiguidades, seu falo, sua origem africana contribuíram para uma leitura cristã que assimila Exu ao Diabo. Para além do racismo etnocêntrico evidente desta assimilação, ela denota a dificuldade da matriz histórica judaico-cristã em lidar com potências que não podem ser contidas em dicotomias e binarismos (PRANDI, 2001a). É preciso lembrar ainda que Jung diz que o Diabo é variante do arquétipo da sombra, o que nos ajuda a entender o esforço dessa religiosidade cristã em tornar sombrio, fora do alcance da consciência, as contradições e incertezas que Exu suscita (JUNG, 1985). Exu é o que quiser, recusando qualquer normatividade que tentem lhe impor (RUFINO, 2019, p. 45).
O espaço físico que materializa essa multiplicidade de Exu é a encruzilhada. Um itan nos conta que Exu recebeu a encruzilhada de Oxalá, por ter sido fiel assistente do grande orixá enquanto este criava os seres humanos. A encruzilhada é o lugar do entre, das escolhas, das possibilidades. Portanto, da impermanência. É para onde sempre se pode voltar quando um caminho é interrompido ou frustrado.
Fator primordial, mantenedor e produtor das potências criativas, Exu é o princípio do princípio:
Ifá, testemunho do destino e senhor da sabedoria, nos ensina que Exu precede toda e qualquer criação. Assim, ele participa e integra tudo o que é criado, da mesma maneira que também está implicado em tudo aquilo que virá a ser destruído e o que ainda está por vir. É ele o princípio dinâmico que cruza todos os acontecimentos e coisas, uma vez que sem ele não há movimento. Exu é compulsório a todos os seres e forças cósmicas. É ele a divindade mais próxima daqueles classificados como humanos, é o dono do nosso corpo e de suas potências, é o princípio comunicativo entre os seres, as divindades e os ancestres. Exu é a substância que fundamenta as existências; é a linguagem como um todo. É o pulsar dos mundos, senhor de todas as possibilidades, uma esfera incontrolável, inapreensível e inacabada (RUFINO, 2019, p. 23).
Exu opera na simultaneidade das temporalidades entrecruzadas. Passado, presente e futuro não existem. Essa temporalidade de Exu é, como veremos mais adiante, similar a do inconsciente, tal como Jung a apresenta. Princípio espiralado do tempo e das existências, como diria Leda Maria Martins (2021). Por isso ele nasce antes dos pais, ele acerta um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje, é o orixá mais novo e mais velho ao mesmo tempo. Exu sequer foi criado, porque ele criou a criação, que mantém e destrói em permanente movimento (RUFINO, 2019, p. 33).
Jung na encruzilhada
Um caminho para estabelecer o diálogo entre o que estamos denominando princípio Exu e a psicologia junguiana é analisar os itans, narrativas sagradas da cosmogonia iorubá. Tal acervo permite aproximação com as complexidades de Exu e, de acordo com a hipótese que desenvolvo aqui, ilumina proposições de Jung acerca da dinâmica da psique. Segundo Edmilson Pereira, os itans permitem compreender a atuação de Exu no mundo e, com isso, sua presença na vida de cada indivíduo e também nas coletividades humanas (PEREIRA, 2017, p. 105-6).
A manifestação das alteridades por meio desse orixá tem especial importância para a psicologia junguiana. Segundo Jung, a problemática dos opostos é o que a psique tem de mais profundamente próprio: “A estrutura da psique é, de fato, tão contraditória ou contrapontística, que não deve existir constatação psicológica ou proposição genérica alguma, que não nos obrigue imediatamente a fazer também a afirmação do seu oposto” (1985, p. 74).
A questão é que o que podemos chamar de modo muito genérico de modernidade ocidental se ergueu sobre princípios racionais que tendem a eliminar contradições, compreendidas como problemas ou mesmo falhas lógicas. Binarismos e oposições irredutíveis organizam visões de mundo, modos de governar, relações sociais e subjetividades. A razão colonial, ao instituir uma humanidade separada e hierarquizada a partir de critérios raciais, é um exemplo disso. Para Jung, esse processo histórico, no qual o cristianismo tem um papel fundamental, produz uma tendência à unilateralidade da consciência, jogando para a sombra aspectos não valorizados da personalidade. A ideia cristã, baseada em Santo Agostinho, do mal como privatio bono menospreza a força psíquica do mal e é mais um elemento que contribui para a unilateralidade da consciência. O problema, para Jung, é que essa disposição histórico-cultural cinde os sujeitos contemporâneos, desconectando consciência e inconsciente e dificultando o processo de individuação.
Um dos itans protagonizados por Exu que escolhemos analisar aqui alerta para os perigos da unilateralidade na compreensão do mundo e das relações humanos. Eis a narrativa:
Exu leva dois amigos a uma luta de morte
Dois camponeses amigos puseram-se bem cedo
a trabalhar em suas roças,
mas um e outro deixaram de louvar Exu.
Exu, que sempre lhes havia dado chuva e boas colheitas!
Exu ficou furioso.
Usando um boné pontudo,
de um lado branco e do outro vermelho,
Exu caminhou na divisa das roças,
tendo um à sua direita
e o outro à sua esquerda.
Passou entre os dois amigos
e os cumprimentou enfaticamente.
Os camponeses entreolharam-se. Quem
era o desconhecido?
“Quem é o estrangeiro de barrete branco?”, perguntou um.
“Quem é o desconhecido de barrete vermelho?”, questionou o outro.
“O barrete era branco, branco”, frisou um.
“Não, o barrete era vermelho”, garantiu o outro.
Branco. Vermelho. Branco. Vermelho.
Para um, o desconhecido usava um boné branco, para o outro, um boné vermelho.
Começaram a discutir sobre a cor do barrete.
Branco.
Vermelho.
Branco.
Vermelho.
Terminaram brigando a golpes de enxada,
mataram-se mutuamente.
Exu cantava e dançava.
Exu estava vingado (PRANDI, 2001b, p. 48-9).
A vingança de Exu contra os amigos que esqueceram de louvá-lo não é concretizada por meio de recursos sobrenaturais. Os amigos são punidos pela sua própria incapacidade de ver a realidade para além de uma parcialidade binária. Para eles, o barrete só poderia ser branco OU vermelho e não branco E vermelho. Ambos se aferram a suas verdades parciais e, enquanto tais, falsas e travam uma luta de morte. Podemos ler, a partir de Jung, essa narrativa como uma metáfora para o embate entre a unilateralidade da consciência e o inconsciente que a desafia. O psiquiatra suíço argumenta que consciência e inconsciente possuem uma relação compensatória. Assim, quanto mais unilateral a consciência, mais o inconsciente caminha na direção contrária, criando uma cisão que pode propiciar a emergência de forças psíquicas incontroláveis e destrutivas.
Assim como o inconsciente para Jung, Exu é princípio incontrolável. Integrar consciência e inconsciente requer um trabalho psíquico que se inicia pelo reconhecimento que essa força desconhecida existe na psique. O equivalente a alimentar Exu em primeiro lugar é, no processo de individuação, olhar para a sombra e entender que ela faz parte de nós, que somos seres contraditórios, imperfeitos, inacabados e múltiplos. Compreender isso em Nós é também permitir uma visão mais compreensiva das contradições do Outro. Como consequência, adotamos uma perspectiva mais complexa sobre o mundo, em particular sobre as relações humanas. Exu, assim como o inconsciente tal como Jung o caracteriza,
é aquele que, para ensinar os homens, prega peças, desautoriza todos aqueles que se acomodam sobre a presunção de uma verdade limitadamente acabada. É ele o princípio da imprevisibilidade que utiliza da astúcia da aparência, o correlacionando ao sentido de realidade. É ele que pune qualquer forma de obsessão pela certeza, instaurando a dúvida (RUFINO, 2019, p. 53).
Superar esse estado de coisas requer que a separação dicotômica entre a consciência e o inconsciente seja suprimida. Para isso não se pode condenar unilateralmente os conteúdos do inconsciente, mas sim reconhecendo a sua importância compensatória para a consciência. Por meio da função transcendente, tonar-se possível uma transformação da atitude consciente sem a desconsideração do inconsciente. Os conteúdos inconscientes precisam complementar os da consciência. Os indivíduos que menos conhecem seu lado inconsciente são os que mais recebem sua influência, sem se aperceberem disso. Para evitar tais intromissões secretas e indesejáveis dos conteúdos inconscientes em nossas ações, procuram-se maneiras de tornar conscientes tais conteúdos. Em suma, quanto menor a dissociação entre a vida consciente e a vida inconsciente, mais os indivíduos conseguem realizar os propósitos do Self, do aspecto mais profundo de sua psique (JUNG, 2013).
Esta não é uma realização fácil, mas objeto de um trabalho permanente no processo de individuação. A função transcendente exige a compreensão/elaboração das mensagens cifradas do inconsciente e confrontação entre o ego, centro da consciência, e o inconsciente. A aproximação desses opostos possibilita o surgimento do terceiro elemento, o mais um, que é a função transcendente (JUNG, 2013). Sua materialização por meio de símbolos capazes de integrar contradições sem reduzi-las a um termo e sem reinstaurar novas dicotomias permite assumir tal conflito como parte da dinâmica psíquica.
A evitação do confronto com o inconsciente favorece a constelação de complexos, modificando de modo momentâneo a personalidade do sujeito, produzindo um fenômeno similar à possessão. Jung compara os complexos a diabretes ou duendes que se apossam dos indivíduos com tanto mais força quanto menos conscientes forem (2013, p. 44-5).
Essas reinações que Jung atribui ao inconsciente são também típicas de Exu, quando ele interfere na vida das pessoas, exigindo reconhecimento e alimento. De nada adianta temer e evitar Exu, assim como temer os complexos apenas afasta a consciência do inconsciente, dificultando a produção da função transcendente. Por mais assustadores que pareçam os complexos para a consciência, Jung afirma que eles são manifestações normais da vida. Para ele,
O temor do complexo é um preconceito fortíssimo, pois o medo supersticioso do que é desfavorável sobreviveu intocado pelo nosso decantado Iluminismo. Este medo provoca violenta resistência quando investigamos os complexos, e é necessária alguma decisão para vencê-lo. O temor e a resistência são os marcos indicadores que balizam a via régia em direção do inconsciente (JUNG, 2013, p. 49).
Para continuar a trazer Jung para as encruzilhadas de Exu, gostaria de comentar outro itan. Eis a narrativa:
O galo preto
Exu andava pelo mundo em busca de novidades. Vivia entediado e a falta de criatividade dos seres vivos o deixava profundamente irritado.
Tudo sempre igual... - pensava com seus botões. - ... Ninguém inventa ou modifica nada. Que tédio!
Assim, observou que a noite se aproximava e, junto dela, a ameaça de uma tempestade. Resolveu, então, buscar abrigo numa casa à beira da estrada.
Batendo à porta, foi recebido por um animal peludo ao qual perguntou:
- Como te chamas?
- Macaco!
- E teu pai, como é chamado?
- Macaco!
- Tua mãe?
- Macaca!
- Teus irmãos?
- Todos, Macacos!
Exu virou as costas e afastou-se sem dizer mais nada. Não iria passar a noite numa casa onde todos os habitantes tinham o mesmíssimo nome, o que, para ele, representava a mais absoluta prova de falta de imaginação. E Exu jamais gostou de gente ou animal obtuso.
Logo adiante encontrou outra casa e, batendo à porta, foi recebido por outro animal.
- Boa tarde! Ando em busca de abrigo para proteger-me da tempestade que se aproxima, mas antes preciso saber o teu nome - disse Exu cheio de autoridade.
- Eu me chamo Elefante - respondeu o morador.
- E teu pai? - perguntou o visitante.
- Elefante, como eu!
- Tua mãe?
- Elefante também!
- Teus irmãos?
- São em número de três e chamam-se Elefante, Elefante e Elefante.
- Ora, bolas! - resmungou Exu enquanto se afastava sem se despedir.
Mais alguns passos e Exu encontrou outra casa, onde foi recebido por uma pequena ave de plumagem inteiramente negra.
- Olá! Sou Exu e ando em busca de abrigo, mas, antes de tudo, preciso saber teu nome.
- Me chamam Galo Preto! - respondeu o morador.
- E tua mulher?
- Galinha.
- Teus filhos?
- Isto depende de suas idades - explicou o dono da casa.
- Os mais velhos são frangos e frangas, os mais novos são pintos e os menores são chamados pintinhos!
Encantado com a resposta, Exu resolveu pernoitar naquela casa e graças a este fato adquiriu grande admiração pelo galo preto, que, ainda hoje, considera o seu animal favorito (MARTINS, 2011, p. 31-3).
O encanto de Exu pelo ser criativo se dá porque criatividade é movimento, é invenção de caminho, é possibilidade de arrancar alegria ao cotidiano, é o que sustenta a vida. Jung define o impulso criativo como algo que, além de terapêutico, é basal na psique humana, necessitando ser canalizado para realizações significativas para o indivíduo, condição para o processo de individuação. Realizar-se no mundo e para o mundo é dar passagem a esse impulso criativo, uma das manifestações de Eros em nossas vidas. Sobre a importância de usar o poder criativo, Von Franz (2020) afirma:
“(...) se alguém não vive sua possibilidade interior, se torna destrutivo. É por isso que Jung também diz que, igualmente, uma das forças destrutivas mais cruéis, psicologicamente falando, é o poder criativo não usado. (... ) Se alguém possui um dom criativo e, por preguiça, ou algum outra razão, não o utiliza, essa energia psíquica vira puro veneno” (p. 261).
O galo preto encanta Exu pela criatividade em nomear diferentes existências, substituindo a monótona nomeação que uniformiza os animais de uma mesma família pela exaltação da diferença entre eles. O poder criativo singulariza os indivíduos, é a nossa marca no mundo, nossa expressão única e intransferível. Ele transforma o que está dado, apontando para as possibilidades, para o inacabamento das coisas, para a mudança como algo permanente. Um dos sintomas que aparecem com frequência nos relatos dos pacientes de Jung é a sensação de estagnação. Criar, seja o que for que a alma solicite, é fundamental para superar esse estado de paralisia que gera sofrimento e incômodo.
O galo preto oferecido na encruzilhada agrada a Exu, o animal criativo é sua oferenda predileta, conectando os caminhos encruzilhados com a criatividade. O fluxo criativo liberto alivia as pressões do inconsciente sobre a consciência e permite maior integração de nossas forças psíquicas. Encruzilhar consciência e inconsciente é ler Jung a partir de Exu: “(...) a encruzilhada é o lugar onde se engole de um jeito para cuspir de maneira transformada” (RUFINO, 2019, p. 69).
A encruzilhada pode ser símbolo dessas possibilidades amplificadas do ser liberto da literalidade, da unilateralidade da consciência, dos binarismos e dicotomias, dos bloqueios criativos e do medo das potencialidades do inconsciente. Quando Luiz Rufino fala da arte do cruzo, compreendo como um modo de entender a arte de viver baseada no desenvolvimento da função transcendente, objetivo do processo de individuação (RUFINO, 2019, p. 86).
Encruzilhar não é definir, colocar ponto final, resolver, curar. É abrir chances de entendimento e ação. É ampliar, verbo de que Jung tanto gostava. Em A prática da psicoterapia,Jung (1985) ressaltava que a terapia, tal como ele a compreendia, não tinha a felicidade como objetivo. Às vezes ocorre até mesmo o contrário, pois a busca pela integralidade do ser é também um despertar para as dores coletivas do mundo. Mas a terapia pode ajudar-nos a conquistar uma existência com propósito e, portanto, mais plena. Se cura for compreendida como encerramento das dores ou fechamento das nossas feridas, ela nunca será completa.
Nessa encruzilhada, seguimos mais uma vez com Rufino, perguntando, afinal, se o que Jung chama de inconsciente não é um dos nomes de Exu:
Exu se configura como a divindade mais próxima de nós, encarnado em todos os momentos de nossas existências, desde o grito do recém-nascido ao último suspiro de morte. Já diria o sábio conhecedor do riscado: “Exu é o primeiro na vida e na morte.” Mesmo interpenetrado em todas as instâncias da existência dos homens e se aproximando ao máximo do caráter humano, ele ri de nossas limitações, anseios, zomba daqueles que enveredam pelas obsessões de grandeza e certeza. Exu nos faz sentar no vazio, esculhamba nossas pretensiosas verdades. Constrói ao destruir. No jogo sincopado o que nos espreita é a queda. Não à toa, é ele o princípio da imprevisibilidade. Assim, o que há de emergir no vazio sincopado? Exu nos sopra: reinvente-se, crie. Haverá sempre uma possibilidade (2019, p. 127-8).
Reconhecer as possibilidades na reinvenção de si não seria uma de nossas buscas, analistas, analisandas e analisandos, nas nossas relações terapêuticas?
Corre gira: possibilidades para uma terapia exusíaca
Nesse cruzo ExuJung, podemos perguntar: como trazer Exu para o setting terapêutico? Não me refiro aqui a uma perspectiva religiosa, mas, sim, como discutido acima, um princípio, epistemológico e existencial, que oriente práticas terapêuticas. Não se trata de uma tarefa fácil, pois nossa psique é formada e conformada a uma matriz cultural cristã hegemônica e muito poderosa. Nossa psique é cindida e tem dificuldades em lidar com ambiguidades e paradoxos (SANFORD, 1988, p. 145).
Uma das possibilidades que se apresentam e com a qual tenho trabalhado, é a leitura de itans de Exu. Essas leituras ajudam a desenvolver outros modos de encarar situações que se apresentam como sem saída. O desconcerto, a criatividade, o inusitado que aparecem nessas histórias deslocam modos de ver a realidade, desequilibram certezas, suscitam reflexões do tipo “mas e se....”, construindo alternativas.
Essas leituras podem ser desdobradas em imagens ou na produção de outras narrativas em que a protagonista é a própria analisanda. Assim, o símbolo da encruzilhada como multiplicidade de caminhos pode ser trazido para a psicoterapia.
Vencer demandas é reinventar a vida, pois “A encruzilhada é onde se destroem as certezas, é, por excelência, o lugar das frestas e das possibilidades” (RUFINO, 2019, p. 108). Estimular a fantasia criativa é permitir que conteúdos psíquicos da esfera do inconsciente penetrem no consciente, multiplicando caminhos para expressões de si (JUNG, 1985, p. 32). Movimento que Jung via como libertador: “O poder da imaginação, com sua atividade criativa, liberta o homem da prisão da sua pequenez, do ser ‘só isso’, e o eleva ao estado lúdico. O homem, como diz SCHILLER, ‘só é totalmente homem, quando brinca’”. (p. 43)
Essa dimensão lúdica a que Jung se refere, inspirada na educação estética tal como proposta por Friedrich Schiller no século XVIII, é profundamente desestabilizadora para uma racionalidade iluminista. No setting terapêutico, o ato de contar histórias para pessoas adultas por si só já produz um interessante efeito de estranhamento. Quando essas histórias bagunçam, ou esculhambam, como prefere Rufino, a moral cristã, a razão iluminista, a lógica cartesiana, trazendo gingas, dribles, traquinagens, síncopes, esse efeito é ainda mais intenso. É no estranhamento, e muitas vezes no riso, que a brecha se instaura e possibilidades criativas se apresentam. Não nos referimos aqui ao encontro de uma solução para um problema, mas sim ao ato de colocar esse problema sob novas perspectivas, que podem resultar em ressignificações importantes para o processo de individuação, sempre aberto e inacabado, como os caminhos de Exu:
A célebre expressão “Exu dá caminho”, comumente circulada nos terreiros, revela o caráter dinâmico, criativo e inacabado do signo. Assim, dar caminho não é necessariamente apontar o trajeto, mas potencializar/praticar as possibilidades. A noção de caminho é ambivalente como Exu (RUFINO, 2019, p. 109).
Essa ambivalência não permite apontar o “caminho certo”, mas sim pensar que toda trajetória pode ganhar novos significados. É possível ler e reler as histórias de vida de cada um a partir de novos sentidos construídos no presente, através do trabalho terapêutico, e com isso reinventar futuros. As possibilidades (re) significativas da/na ambivalência podem ser ilustradas pela relação cruz/encruzilhada analisada por Rufino: “O projeto colonial fez da cruz a sua égide, o cotidiano colonial fez da encruzilhada o campo de possibilidades e mandingas, a reinvenção da vida, a morada primordial de Exu” (2019, p. 39).
Lidar com essas ambivalências da psique, e da vida, pressupõe reconhecer que há forças operando em nós que não controlamos, ainda que elas sejam parte de nós. Esse reconhecimento é início da superação da cisão consciência/inconsciente. Zacharias (2019) o compara ao cuidado observado nos rituais religiosos de matriz afro-brasileira em dar de comer a Exu antes de qualquer outra ação (p. 25). Podemos desdobrar esse argumento com o auxílio de Marie-Louise Von Franz (2020):
Se o ego pudesse se relacionar diretamente com o Self ou com um símbolo unificador, o conflito se resolveria e o ego funcionaria outra vez em sua totalidade. Este é o modo normal dos opostos funcionarem, e o impulso principal é mais uma vez o fluxo da vida, sendo que o ego acompanha ou serve a esse fluxo proveniente da totalidade. Na verdade, o conflito nunca é realmente resolvido, mas a emoção investida nele diminui; é superado pelo sofrimento e absorvido por uma nova forma de vida, quando então pode ser encarado novamente sem paixão, de um ângulo diferente. (... ) uma relação renovada e saudável com as dualidades do inconsciente faz com que os processos vitais possam novamente fluir (p. 55, 70).
O trabalho terapêutico com o rico acervo dos itans de Exu pode auxiliar, portanto, a construir modos mais complexos de ver o mundo e de se ver no mundo, capazes de desestabilizar certezas, relativizar princípios morais rígidos, questionar regras e padrões socialmente estabelecidos, desconstruir verdades absolutas. E isso tanto para analisandas quanto para terapeutas, pois escutar o outro, recebê-lo em alma, exige duvidar de nossas certezas e uma postura de humildade (nos termos de Jung) diante do desconhecido. É no encantamento da dúvida que Exu ensina.
Sem esse trabalho psíquico, não é possível suprimir a desunião com o inconsciente por meio do estabelecimento da função transcendente. E, para Jung, este deveria ser o objetivo de todo processo de individuação (JUNG, 2014b, p. 128).
Nas leituras brincantes que Exu proporciona no setting terapêutico, está o convite à liberdade da experimentação:
(... ) aprender com Exu é não restringir a experiência de construção de sentido a esta ou àquela possibilidade, mas a muitas possibilidades, inclusive aquelas que o sonar de nossa linguagem ainda não detectou. Exu é, simultaneamente, o que está feito e o devir de todos os afazeres. Por isso, cientes de sua dinâmica, precisamos nos esforçar para apreendermos o que há de significativo nas poéticas estabelecidas (e, diríamos de certo modo, catalogadas pelo nosso esquema de expectativas) e o que sequer imaginamos constituir-se como uma poética em potencial (e, podemos acrescentar, uma poética da liberdade de experimentação) (PEREIRA, 2017, p. 148-9).
Para encerrar esta parte, um último comentário sobre a questão do riso e da alegria suscitados pelas histórias de Exu. É comum que a contação desses itans envolva tanto desconcerto quanto risos, ou mesmo gargalhadas, em quem as escuta. As traquinagens de Exu, ainda que acabem em morte, trazem um humor relativizador, similar ao que Mikhail Bakhtin identifica no riso carnavalesco. Para Bakhtin, esse riso é subversivo, pois inverte hierarquias sociais, desacredita discursos oficiais e traz o corpo, sobretudo o baixo corporal, para o centro da praça pública e da cosmovisão popular (BAKHTIN, 1993). O riso suscitado por Exu me parece ser da mesma natureza, um impulso vital, uma pulsão de vida que Nise da Silveira (1995) associa ao poder de agir. Em sua IV carta a Espinoza, a psiquiatra rebelde afirma:
A alegria, você afirma, é a passagem do homem de uma perfeição menor a uma perfeição maior e, inversamente, a tristeza é a passagem de uma maior a uma menor perfeição. A alegria aumenta o poder de agir, enquanto a tristeza o diminui (p. 68).
Retorno ao centro da encruzilhada
No espírito exusíaco, o que fizemos aqui foi um ensaio, uma tentativa de aproximação com aspectos do pensamento junguiano a partir do princípio Exu. Um dito de terreiro diz que o senhor do corpo faz o erro virar acerto e o acerto virar erro. Que esse erro-acerto nos livre de certezas absolutas e preguiçosas para que a aventura de desvendar almas, a nossa e as de outros, sempre seja encantada, inquieta, criativa, em movimento. No contexto de um país erguido por sangue e também por criatividades afro-diaspóricas e indígenas, Exu, assim como caboclos, encantados, pretos velhos, entidades, seres da floresta são referências para pensarmos a formação da psique (que é sempre um processo histórico), sua dinâmica, e, por consequência, o trabalho terapêutico. Caminhos abertos, e múltiplos, sempre!
Retorno ao centro da encruzilhada para partir em direção a caminhos que permitam embrenhar-me na floresta da psicologia analítica, bem como no meu processo de individuação. E encerro essas provisórias palavras com um trecho do poema Padê de Exu Libertador, de Abdias Nascimento:
Ofereço-te Exu
o ebó das minhas palavras
neste padê que te consagra
não eu
porém os meus e teus
irmãos e irmãs em
Olorum
nosso Pai
que está
no Orum
Laroiê!