Introdução
Costumamos brincar, dizendo que temos os pacientes que merecemos: mas será que o paciente tem o analista que merece? Um aspecto relevante para nos tornarmos o analista que desejamos ser e aquele que nossos pacientes merecem envolve examinar nossas próprias vulnerabilidades que se constelam durante a hora analítica e refletir sobre como elas afetam o relacionamento analítico.
Meu interesse na aliança terapêutica e na transferência e contratransferência surgiu de reflexões acerca dos meus próprios sentimentos em relação aos meus pacientes (um intenso desejo de resgatá-los, transformá-los) quanto de minhas percepções, como paciente, em relação a minha primeira terapeuta junguiana, muitos anos atrás. Hoje, entendo que ela tinha sentimentos contratransferenciais muito fortes em relação a mim e, talvez inconsciente de suas próprias vulnerabilidades narcisistas, ela, infelizmente, agiu de acordo com esses sentimentos, em detrimento do relacionamento terapêutico. Acredito que refletir sobre essa experiência e alcançar uma compreensão mais profunda da complexidade, riqueza e profundidade do campo intersubjetivo, o qual ganha vida, no relacionamento terapêutico, me ajudou a tomar mais consciência dos aspectos sombrios de ser uma analista e das minhas próprias vulnerabilidades.
Neste artigo, espero desvendar o tema complexo da vulnerabilidade narcísica do analista. Essa vulnerabilidade está inevitavelmente ligada aos sentimentos de contratransferência que cada relacionamento terapêutico constela. O reconhecimento dessas vulnerabilidades requer que o analista olhe para sua própria sombra e seu material vergonhoso e reconheça a sua presença, muitas vezes na forma de experiências de contratransferência que inundam o campo terapêutico, interrompem o fluxo da comunicação entre analista e paciente e impedem uma compreensão mais profunda, se não forem compreendidos.
Aliança transferenciai e vulnerabilidade narcísica
Jung (1993a), em Problemas da Psicoterapia Moderna, nos lembra de que o analista “[...] está em análise, tanto quanto o paciente” (par. 166), reiterando isso, em As Questões Fundamentais da Psicoterapia (par. 239), ele afirma que “[o] psicoterapeuta compreensivo já percebeu há muito tempo que cada tratamento complicado representa um processo dialético individual, do qual o médico participa tanto quanto o paciente”. Jung enfatiza a importância crucial do analista refletir sobre suas reações de contratransferência e seu próprio sofrimento e necessidade de autocrítica, ou seja, ele vê a necessidade de os analistas reconhecerem sua própria vulnerabilidade narcísica, pois “[... ] ele só vai curar na medida do seu próprio ferimento” (par. 239).
O texto de Jung sobre “A Psicologia da Transferência” (1993b) nos oferece uma ampliação simbólica dos fenômenos da transferência, em que encontramos, de forma consistente, diretrizes sobre a dinâmica do campo intersubjetivo entre analista e paciente. Conforme destaca Sedgwick (2016, p. 6, tradução nossa), nesse texto, “ele [Jung] observa a centralidade da psique do analista [...], comenta sobre infecção psíquica, cura de feridas, e influência e transformação mútuas entre analista e paciente”.
O reconhecimento, por Jung, do impacto da personalidade do analista e de seu envolvimento emocional na aliança terapêutica e na contratransferência foi explorado ainda mais por junguianos posteriores, a citar: Schwartz-Salant (1984); Guggenbuhl-Craig (2021). Hubback (1989) destaca claramente essa preocupação, ao asseverar:
Era importante que eu tentasse entender quais perdas ou falhas pessoais eu ainda não havia enfrentado, lamentado ou aceitado. Seria uma idealização defensiva ver a mim mesma como totalmente individuada, ou tão livre de ser perturbada por emoções pessoais que nenhum afeto fosse transmitido de mim para meu paciente (p. 35, tradução nossa).
Nos anos subsequentes, muitos analistas deixaram de se concentrar, principalmente, nas interpretações de transferência, para desenvolver um maior envolvimento emocional e uma ênfase na relação terapêutica.
Segwick (1994) enfatiza que estamos familiarizados com a ideia de que a contratransferência é um subtópico das questões do “curador ferido”, e tem havido uma relutância em abordar as feridas específicas do curador, examinar e refletir sobre como elas podem afetar o processo analítico. Mais recentemente, os analistas concentraram-se na necessidade de observar as emoções e os sentimentos presentes no campo, o que os incentivou a examinar sua própria subjetividade, no relacionamento, como se sentem em relação a cada paciente, assim como a identificar quaisquer experiências compartilhadas capazes de constelar sentimentos de contratransferência e vulnerabilidade narcisista. Isso trouxe muitas mudanças para a aliança terapêutica, incluindo maior ênfase no envolvimento pessoal do analista. Coleman (2018, p. 133) chama a atenção para a necessidade de “um analista autorreflexivo”, afirmando que não há neutralidade na relação e enfatizando a importância de o analista pensar sobre o significado de tudo o que diz e faz, e de tudo o que não faz e não diz, de sorte que ocorra uma mudança terapêutica real.
Por que nos tornamos analistas?
Talvez analistas autorreflexivos devam se perguntar como e por que se tornaram analistas. A importância de considerar nossas motivações iniciais para nos tornarmos analistas foi retomada mais recentemente, por vários analistas junguianos e inter-relacionais. West (2014, p. 145, tradução nossa) enfatiza a importância de o analista vir a reconhecer “[...] a maneira como seus próprios traumas iniciais operam nos modos direto e reverso e, portanto, que ele pode sutil e inconscientemente reencenar o que lhe foi feito”.
Isso é retomado por Maroda (2022), que nos incentiva a olhar para nossas necessidades narcisistas e sentimentos de culpa, e a ter em vista e reconhecer como precisamos de nossos pacientes, o que estamos procurando e o que nos gratifica. Ela enfatiza que “[...] revivemos nosso passado ao tratarmos nossos pacientes, obtendo tanto prazer quanto dor ao revisitarmos um terreno emocional que pode ser dolorosamente familiar” (p. 5). Examinar e identificar nossas próprias motivações e necessidades, bem como nossas feridas narcísicas e suas raízes, em nossas experiências de infância, fazem parte da jornada de desenvolvimento de nossas identidades profissionais e de nossa necessidade de nos tornarmos mais conscientes dos aspectos sombrios, uma vez que nossa história pessoal está muito presente na maneira como conduzimos a análise. Jung (1993a) nos deixa cientes disso, quando afirma:
O médico sabe, ou pelo menos deveria sabê-lo, que não se lançou nesta carreira por acaso e o psicoterapeuta, de modo especial, deve compreender que as infecções psíquicas [...] no fundo são fenómenos fatalmente associados ao seu trabalho, correspondendo, por conseguinte, à disposição instintiva de sua vida. [...] Assim sendo, o paciente passa a dizer-lhe respeito, pessoalmente, e isso constitui a base mais propícia ao tratamento (Par. 365).
Narcisismo saudável e feridas narcísicas
Dougherty e West (2007) explicam que o narcisismo, como etapa do desenvolvimento, é vivenciado entre os 18 e 30 meses de idade e pressupõe o surgimento das dinâmicas de grandiosidade, exibicionismo e onipotência. O narcisismo saudável desenvolve-se quando a criança vivencia um espelhamento eficaz e a possibilidade de idealizar uma figura parental, permitindo que ela surja como coerente e resiliente, sendo capaz de desenvolver um diálogo criativo entre o ego e o Self.
Entretanto, se não houver uma pessoa disponível para a criança idealizar ou se ela não receber o espelhamento adequado, ela começará a empregar essas dinâmicas narcisistas, de forma defensiva, para se proteger de vergonha e ferimentos intoleráveis e para evitar a regressão ao nível de desenvolvimento anterior, mais primitivo. A criança, então, desenvolve seu próprio padrão relacional específico, juntamente com diferentes expressões de vulnerabilidade narcísica, as quais são reencenadas, ao longo da vida, inclusive no relacionamento diádico terapêutico, tanto pelo paciente quanto pelo analista. As feridas narcísicas existem, não apenas para o paciente, mas também para o analista, permanecendo vivas na relação terapêutica. Vergonha, medo e humilhação são respostas poderosas a essas feridas, emoções que, muitas vezes, são renegadas e enterradas no inconsciente, por ambas as partes.
Jacoby (1989) entende que um sentimento saudável de autoestima deriva de uma empatia materna adequada; a pessoa não fica obcecada com a ambição, nem inibida, envergonhada ou atormentada pela culpa de ser “vista”, de ser exposta. Todavia, ele enfatiza que,
[... ] quando alguém é muito dependente de aprovação e admiração contínuas, quando se torna viciado em suprimentos narcisistas incessantes, então não podemos mais falar de narcisismo saudável. Isso indica que seu senso de autoestima é instável ou perturbado e que predomina uma tendência à vulnerabilidade narcísica; nessas condições, o senso de coerência do self (ou equilíbrio narcísico) pode, de tempos em tempos, ser ameaçado (p. 143, tradução nossa).
Ainda baseado nos extensos estudos de Jacoby (1989, 2002, 2004), para além da compreensão imediata sobre o conceito de narcisismo positivo ou negativo, entendemos narcisismo bom ou saudável como significando que uma pessoa tem uma boa autoestima baseada em sentimentos amorosos predominantemente saudáveis em relação à sua própria autoimagem. Por outro lado, uma pessoa que exibe um narcisismo negativo ou patológico é alguém que é excessivamente egocêntrica ou parece ter uma percepção muito inflada de si mesma e usa isso para se defender de sentimentos de humilhação, insegurança ou vergonha. Jacoby (1989, p. 83, tradução nossa) conclui: “Isso também pode ser acompanhado pela tão chamada ‘vulnerabilidade narcísica’, uma tendência a registrar com antenas hipersensíveis o menor sinal de ameaça à auto-estima e a reagir com angústia”.
Assim, a vulnerabilidade narcísica surge das experiências de não encontro de eco ou espelhamento que confirmam que somos valorizados e amados; quando as necessidades de uma criança são constantemente negligenciadas, o sentimento geral é de estar emocionalmente abandonada. Consequentemente, perceber-se como vulnerável cria sentimentos de vergonha e, quando “esse tipo de ansiedade-vergonha [...] se estende por um período de tempo [ela] contribui para a vulnerabilidade narcísica” (Jacoby, 2002, p. 50).
Enactment1 mútua e vulnerabilidade narcisista
Durante a análise, o paciente é confrontado com seu próprio conteúdo sombrio. Às vezes, conteúdos insuportáveis se tornam mais conscientes, e o paciente se defende, projetando esses conteúdos no analista. O paciente separa essas partes desprezíveis e as projeta no analista, que então se torna desprezível. O conteúdo cindido ou o conteúdo dissociado torna-se, por conseguinte, interpessoalizado. Se os complexos do analista forem ativados pelas projeções do paciente, ele pode se dissociar de sua própria vulnerabilidade e ativar suas defesas contra qualquer sentimento de vergonha e humilhação.
A enactment é, assim, mútua, pois ambos no relacionamento são dominados por seus próprios complexos e se defendem contra o conteúdo inconsciente que invade o espaço terapêutico, tanto o terapeuta quanto o paciente ficam imersos na comunicação inconsciente e desconectados de outras partes mais conscientes de si mesmos e de seu relacionamento compartilhado. Vale ressaltar que, no momento dessa enactment, nenhuma das partes está ciente do que está sendo encenado. Podemos entender essa enactment como o cliente acionando os complexos inconscientes do terapeuta, acessando, inconscientemente, a vulnerabilidade do terapeuta e, como resultado, o terapeuta se dissocia dessa vulnerabilidade.
Essa enactment mútua resulta na estagnação do relacionamento terapêutico; os complexos entram em conflito e não deixam espaço para a criatividade ou a interpretação/compreensão simbólica. Nas palavras de DeYoung (2015, p. 156, tradução nossa): “[...] o espaço de transição da imaginação e da criatividade entra em colapso; a experiência, o pensamento e o sentimento não podem mais ser conectados metaforicamente”.
A terapia analítica é um encontro emocional profundo e, às vezes, pode ser um relacionamento intenso e difícil, no qual nos vemos fazendo coisas que nem percebemos ou entendemos. Às vezes, lidamos com a pressão da enactment relacional de um cliente com uma enactment própria. Portanto, é evidente que os analistas também são vulneráveis à dissociação e à enactment. A tarefa do terapeuta é a disposição de trabalhar com essa vulnerabilidade e examinar os complexos inconscientes. Uma solução criativa só pode ser encontrada, quando o analista se torna mais consciente de suas próprias vulnerabilidades e reconhece a presença delas.
A cada encontro terapêutico, trazemos inconscientemente nossas necessidades e desejos pessoais para o “campo”, juntamente com nossos desejos e anseios pessoais para o paciente sentado à nossa frente, os quais podem ter pouco a ver com a jornada terapêutica/individuação do próprio paciente. Nossa responsabilidade é ganhar autoconsciência desse conteúdo sombrio para minimizar seu impacto em nossos pacientes.
Persona e sombra no campo intersubjetivo
Jung (1993a), em Problemas da Psicoterapia Moderna, alerta-nos sobre a importância do analista tomar consciência de suas qualidades inferiores e reconhecer sua “[...] falibilidade humana. Se não o fizerem, um muro intransponível segregá-los-á, impedindo-os de se sentirem vivos, de se sentirem homens no meio de outros homens” (OC16, par. 132). Ele continua: “[...] como posso ter substancialidade se projetar sombra? O lado sombrio também pertence à minha totalidade, a ao tomar consciência de minha sombra, consigo lembrar-me de novo de que sou um ser humano como os demais” (OC16, par. 134).
Apesar das percepções significativas obtidas com o exame da onipresença da contratransferência e da falibilidade do analista, nossas personas profissionais continuam a ser sustentadas pelos aspectos perfeccionistas derivados da atitude analítica clássica do passado. Nos últimos anos, nossa maior consciência do campo relacional e intersubjetivo que está vivo no relacionamento terapêutico parece nos ter seduzido a nos tornarmos, como sugere Maroda (2022, p. 26, tradução nossa), “[...] a boa mãe com paciência infinita e a capacidade de ‘acolher a experiência do paciente”. Ela então levanta uma questão importante para reflexão: “Será que abandonamos a imagem do analista autoritário e que sabe tudo pela boa mãe totalmente acolhedora?”.
West (2014) sugere que, quando tranquilizamos continuamente o paciente e evitamos confrontar seus aspectos sombrios que surgem durante a terapia, preferindo permanecer no papel de bom terapeuta, estamos sendo inúteis para o relacionamento terapêutico. Parece que a proposta de Winnicott (1987) de “mãe suficientemente boa” foi adotada e incentiva uma atitude contínua de nutrição e até mesmo de autossacrifício, por parte do terapeuta, em detrimento do crescimento e da transformação psíquica, uma vez que grande parte das emoções negativas de transferência/contratransferência permanecerá na sombra. Nossas personas profissionais foram desenvolvidas com base em nosso desejo de fazer o bem para os outros e de parecer bons para os outros, o que nos torna relutantes em reconhecer nossas próprias falhas e desejos.
De acordo com Dougherty e West (2007, p. 16, tradução nossa), uma maior consciência da dinâmica da sombra e das tendências regressivas “[...] permite que o terapeuta aumente sua sintonia não apenas com o processo do paciente, mas também, e essencialmente, com o campo intersubjetivo entre ele e o paciente”. Isso envolve examinar o próprio conteúdo de sombra, já que aqueles que não são examinados pelo terapeuta podem produzir uma variedade de respostas de contratransferência.
West (2014, p. 140) entende que os analistas podem ser seduzidos a se identificar com o “bom” curador e, consequentemente, investir na tentativa de provar aos seus pacientes que são prestativos e bons, “[...] nos tipos de maneiras que Fordham descreve: ser especialmente caloroso e gentil, fazer revelações pessoais, oferecer sessões extras ou telefonemas frequentes e, em geral, relaxar os limites”. Isso pode resultar em uma persona analítica baseada na aceitação incondicional e na empatia, acompanhada de certa passividade diante da psicodinâmica complexa e contínua que caracteriza o relacionamento terapêutico.
Os analistas geralmente toleram ser mantidos nessa posição de boa mãe, porque o contrário, estar em papéis mais problemáticos e confrontar o paciente, pode significar que temos de enfrentar nossos próprios medos de abandono e de não sermos amados. Frustrar o paciente pode significar ter de lidar com a rejeição, o desdém e a nossa própria vulnerabilidade narcisista. A raiva e o desdém de nossos pacientes podem provocar sentimentos negativos em nós, como raiva, inveja ou competitividade. Como gerenciamos esses conteúdos desconfortáveis que surgem na sessão? Nós nos retraímos defensivamente na presença de afeto intenso e nos desconectamos desses conteúdos?
Reconhecendo a vulnerabilidade narcísica
Fordham (1989) nos lembra da falibilidade do analista, em seu conceito de ilusão contratransferencial, a qual ocorre quando há uma reativação inconsciente de uma situação passada que substitui completamente o relacionamento do analista com o paciente e impede a realização de qualquer análise. Essa falibilidade fica evidente, quando os limites não são claros.
É importante que o analista reconheça quando certos sentimentos e dinâmicas difíceis estão sendo constelados dentro de si mesmo e aceite que certos sentimentos, como incompetência, raiva, frustração e tédio, não são incomuns. Reconhecer e trabalhar com esses sentimentos requer tempo e experiência; sentir-se confortável no papel de antagonista pode exigir um exame cuidadoso das próprias reações contrárias, a fim de evitar tornar-se reativo ou punitivo, em relação ao paciente.
Quando não reconhecemos nossa vulnerabilidade, projetamos nossos sentimentos de vergonha e humilhação e nos tornamos mais defensivos e presos em nossos complexos. Segundo frisa Kravis (2013, p. 95, tradução nossa),
[n]a medida em que o trabalho analítico clínico apresenta possibilidades quase ilimitadas do analista ser narcisicamente ferido, deve-se esperar encontrar a mobilização de toda a gama de defesas narcísicas entre os analistas, tanto individual quanto coletivamente como uma comunidade profissional.
Obviamente, dentro da complexa aliança terapêutica, o analista não apenas experimenta atitudes de bondade e empatia, mas também é suscetível a manifestações de inveja defensiva, ao desejo de poder e à necessidade de se sentir especial e de ser afirmado por seus pacientes. Compreender essa complexidade e explorar nosso próprio narcisismo e vulnerabilidade é fundamental para nossa autoconsciência e para entender como isso afeta o campo terapêutico. Ir além do ideal analítico de ser um analista perfeito e permitir sentimentos humanos, como vergonha e culpa, pode aliviar o analista da necessidade de negar esses sentimentos. Nessa perspectiva, Chused (2012, p. 900, tradução nossa) ressalta:
Na medida em que estivermos comprometidos em uma análise, estaremos narcisicamente vulneráveis, e devemos estar assim comprometidos para que a análise seja genuinamente transformadora para o paciente. As dificuldades se desenvolvem não quando estamos narcisicamente feridos ou eufóricos, mas quando a ferida ou a grandiosidade não são reconhecidas ou toleradas.
Reflexões sobre determinadas atitudes, como dar o número de telefone residencial, atender a ligações até tarde da noite, responder/realizar “terapia” por meio de mensagens de texto, responder a mensagens/ligações durante as férias, são importantes, pois esse comportamento é muitas vezes justificado pelo analista como sendo relevante para o paciente; mas essas atitudes são parte integrante do ser analista ou expressões de vulnerabilidade narcisista? Que necessidades nossas estão sendo atendidas por nossos pacientes, quando adotamos esse tipo de atitude?
Quando essas questões permanecem no complexo de sombra, a forma como lidamos com elas pode resultar em decisões tomadas com base no medo, na culpa e na vergonha. Como podemos discernir quando nossas necessidades estão sendo atendidas no interesse do paciente ou às custas dele? Quando evitamos reconhecer nossas próprias necessidades e considerar como elas podem ser atendidas, de maneira construtiva, isso nos impede de reconhecer quando estamos fazendo isso em detrimento do paciente. Examinar nossa própria carência é essencial, se quisermos compreender o impacto total de nossas intervenções. Nossos problemas narcisistas não resolvidos ficam evidentes, quando sentimos a necessidade de estar sempre certos, não conseguimos admitir nossos erros, quando manipulamos o encontro terapêutico para satisfazer nossa curiosidade. Em outras ocasiões, somos vítimas da grandiosidade ou do exibicionismo, para aumentar nossa autoestima e sentimos a necessidade de demonstrar nossa vasta sabedoria e talentos, ou nossas experiências de vida, a fim de provar nossa superioridade em relação ao paciente.
Gratificação mútua
Jung foi pioneiro no reconhecimento de que tanto o analista quanto o paciente são transformados, por meio da aliança terapêutica (OC16), que podemos entender como reflexo da gratificação mútua, a qual faz parte do relacionamento analítico. Embora escassa, a literatura mais recente sobre gratificação do analista confirma esse fato. Mitchell (1997, p. 35) sublinha: “Somente nos últimos anos, com a crescente abertura nos escritos sobre contratransferência, foi possível reconhecer o quanto a prática da psicanálise pode ser absorvente, pessoalmente tocante e potencialmente transformadora para o analista”.
O sentimento de gratificação do trabalho terapêutico é claro, mas a gratificação legítima de nossas necessidades é, muitas vezes, difícil de definir. Nós nos sentimos satisfeitos e gratificados, quando acompanhamos um paciente, durante seu processo analítico, e vemos transformações e resolução de conflitos; quando vemos o fortalecimento do ego e um maior diálogo com o conteúdo inconsciente; e quando os pacientes trazem sonhos e as interpretações ressoam. A gratificação mútua surge da profunda conexão entre analista e paciente, de experiências emocionais profundas compartilhadas, as quais são gratificantes e transformadoras, tanto para o paciente quanto para o analista.
No entanto, como podemos nos manter sintonizados e atentos, para evitar que a gratificação mútua se transforme apenas em autogratificação, às custas do paciente? Quando nossas atitudes satisfazem mais nossas necessidades narcisistas como analistas do que as de nossos pacientes? Todos nós temos motivações inconscientes, que serão consteladas em algum momento, no decorrer de um processo analítico. Portanto, quando não temos certeza se nossas intervenções são de fato uma resposta às necessidades do paciente ou se são motivadas por nossa própria curiosidade, preconceitos ou carência, precisamos examinar nossa própria vulnerabilidade e nos tornarmos mais conscientes de nossa própria sombra.
Jacoby (1989) demonstra como as projeções de gratificação e transferência do paciente podem ser sedutoras, especialmente quando o analista se sente obrigado a atender a essas expectativas idealizadas. O perigo surge quando o analista não reconhece sua própria necessidade narcisista de admiração idealizada e a gratificação e o prazer que ele obtém por ser visto como uma pessoa admirada e idealizada. O reconhecimento de Jacoby de sua própria vulnerabilidade fica explícito, quando ele se refere a uma paciente que idealizava seu lado espiritual e que acreditava que ela tinha de lhe fornecer sonhos importantes e assuntos interessantes: “Eu me sentia [...] cheio de ideias para possíveis interpretações. Ocasionalmente, porém, eu me via dando explicações longas e muito bem informadas” (p. 150, tradução nossa). Ele reconhece que “[... ] não é necessariamente fácil lidar com a admiração ilimitada que (um analista) recebe ao idealizar as transferências”. E continua: “Não se pode negar a importância de um analista aceitar suas próprias necessidades e fantasias narcisistas, para que elas não se tornem contraproducentes para seu paciente” (p. 153, tradução nossa).
O que nos torna vulneráveis?
Nossa persona profissional nos torna vulneráveis; somos treinados para estar disponíveis para nossos pacientes, para receber suas projeções - e eles projetam em nós qualidades de heróis e heroínas, com características idealizadas, de sorte que, muitas vezes, nos imaginamos como os “salvadores”, aqueles que os salvarão do caos que tomou conta de seus mundos interno e externo. Manter essas projeções sob controle é essencial, caso contrário, podemos começar a nos identificar com essas idealizações.
Se formos seduzidos por essas projeções, nossa persona será distorcida e passará a nos definir, criando um ideal analítico que nos seduz e nos faz acreditar que temos de ser perfeitos. Os egos se tornam inflados e o conteúdo sombrio se torna mais inconsciente. Podemos nos identificar demais com a “boa mãe” abnegada, vindo a nos transformarmos no analista parental que tolera tudo, que tem dificuldade em estabelecer limites, que está disponível o tempo todo e que vê seu papel principalmente como o de acalmar e amparar. Podemos nos tornar abnegados em uma tentativa de negar a consciência de nossa necessidade e vulnerabilidade.
Nosso ideal analítico acaba sendo irrealista e, consequentemente, fica difícil reconhecer nossa própria parte vulnerável que deseja evitar conflito, oposição e separação, e ser experimentada apenas como “boa”. Podemos nos sentir vulneráveis, quando um paciente está sofrendo e com dor psíquica, talvez sejamos tomados pela necessidade de confortar e reviver seu sofrimento, podemos sentir a necessidade de dizer algo para aliviar/defender-se da dor, em vez de ficar com ela (a dor) e suportar sua dor por ele, e talvez sermos vistos como “responsáveis” por sua dor e, consequentemente, nos tornarmos a “mãe má”.
Ficamos narcisicamente vulneráveis, quando percebemos que deixamos passar algo que o paciente está tentando nos dizer e, então, nos sentimos culpados e obrigados a nos livrar da culpa e do constrangimento o mais rápido possível, por meio de justificativa ou “interpretação”, sem considerar como isso pode afetar o paciente. A identificação com esse analista ideal resulta tão irrealista, que ficamos propensos a nos sentirmos na defensiva, por estarmos na defensiva.
Pinsky (2011, p. 368, tradução nossa) enfatiza as consequências negativas de uma possível persona idealizada de analista altruísta e adverte que, quanto mais “[...] o analista se identificar com uma capacidade heroica de serviço altruísta ao paciente, e quanto mais ele for conceituado como sendo impecável, maior será a ameaça aos limites essenciais”.
A responsabilidade do analista é incentivar o paciente a ir além da dependência, a se tornar mais consciente e a desenvolver recursos internos que o sustentem, em seu sofrimento. Isso envolve o analista também ir além do papel de “boa mãe” e de cuidador e aceitar o possível desdém e a raiva, por ser visto de modo negativo. Isso exige maior consciência, não apenas do que fazemos e dizemos aos nossos pacientes, mas também de como nossos preconceitos e as circunstâncias atuais da vida afetam nossas percepções e complexo de sombra. Precisamos nos aprofundar e examinar o que nos faz vulneráveis e identificar nossos próprios padrões de resposta contratransferencial.
Considerações finais
A terapia eficaz implica envolvimento emocional mútuo e consistente, do analista e do paciente, e a consciência do analista de sua própria vulnerabilidade é um aspecto importante de qualquer relacionamento terapêutico eficaz. O que foi abordado neste artigo é a importância de os analistas identificarem suas próprias feridas narcísicas e as reações defensivas que essas feridas provocam. Precisamos rastrear nossos próprios padrões de respostas contratransferenciais a fim de obter insights sobre o conteúdo sombrio que cria pontos cegos e que nos tornam propensos a atuações decorrentes de nossos próprios complexos pessoais, familiares e culturais. Nas palavras de Jung (1993), “[...] só então você pode se tornar o homem através do qual deseja influenciar os outros” (OC16, par. 167).
Jacoby (2004) enfatiza a importância de os analistas questionarem continuamente a si mesmos e seus métodos, a fim de aprofundar e integrar seus próprios conteúdos inconscientes. “A análise pessoal deve possibilitar ao analista vivenciar seus complexos mais ou menos patológicos, bem como lidar com eles de forma mais consciente” (p.135, tradução nossa). Os analistas são responsáveis por examinar seu próprio conteúdo neurótico durante seu processo analítico e por aceitar suas próprias limitações, a fim de obter uma percepção clara de suas vulnerabilidades e manter um relacionamento profundo e significativo com seus pacientes. Os analistas devem ter em mente que as feridas narcísicas os tornam passíveis à sedução por meio de contratransferências ilusórias e equívocos, o que de fato afeta a eficácia do trabalho terapêutico. O processo contínuo de autoconhecimento, examinando as próprias motivações narcísicas, é a maneira mais eficaz de confrontar os conteúdos sombrios e aceitar nossa falibilidade humana para alcançar uma maior consciência de nossos próprios complexos, valores e preconceitos.