Introdução
A construção da psicologia analítica deu-se ao longo de várias décadas e em interação com diversificadas áreas do conhecimento, caracterizando-a pela abertura para o debate interdisciplinar. São inúmeras as contribuições de outras disciplinas para a elaboração dos conceitos de energia psíquica, arquétipo, símbolo, sincronicidade, amplificação etc. Jung estabeleceu diálogos com pesquisadores de distintos campos do saber, dentre os quais podemos destacar Eugen Bleuler, Sigmund Freud, Théodore Flournoy, William James, Hans Schmid-Guisan, Henrich Zimmer, Karl Kerényi, Victor White, Rudolf Otto, Richard Wilhelm e Wolfgang Pauli1. A amplitude apresentada pela psicologia analítica pode ser evidenciada, também, nos encontros interdisciplinares dos quais Jung participou em Eranos (QUAGLINO; ROMANO; BERNARDINI, 2007).
Podemos perguntar se a inserção da psicologia analítica no Brasil reflete essa diversidade. Em seu início, sem dúvida alguma. A obra de Jung começou a ser estudada de maneira sistemática a partir do trabalho desenvolvido por Nise da Silveira no campo da saúde mental (MELO, 2001, 2005; SILVEIRA, 1981, 1992). No entanto, devemos elencar também a calatonia, trabalho corporal elaborado por Pethö Sándor (SPACCAQUERCHE, 2012), e a ênfase que Léon Bonaventure conferiu à realidade da alma, abordada nos livros “Psicologia e vida mística” (BONAVENTURE, 1975) e “Miscellanea” (BONAVENTURE, BONAVENTURE, 2021). Esses três pioneiros da psicologia analítica no Brasil (MOTA, 2010) criaram marcas distintas e merecem ser estudados em suas especificidades.
Quando elaboramos uma pesquisa acerca da memória e da história da psicologia analítica, no início de 2021, levamos em consideração que Léon Bonaventure era o único desses pioneiros ainda vivo2. Então propusemos a ele realizar uma série de entrevistas; talvez por pressentir que estava no fim da vida, ele aceitou o convite e, além do depoimento, forneceu-nos informações complementares. Os escritos de Léon Bonaventure (1975, 2021a, 2021b) referentes à realidade da alma serviram de base para a elaboração deste artigo, sendo cotejados com as seis entrevistas gravadas3 que foram filmadas e, delas, foi produzido um vídeo. Esse importante material histórico surge após ele ter se mantido reservado por 36 anos, quando deu um depoimento a respeito da sua vida profissional4 (BONAVENTURE, 1985).
Em nossas entrevistas, Léon Bonaventure abordou diversos assuntos: a infância, os anos de estudo, a formação em psicologia analítica, as relações com seus terapeutas e com os mestres europeus - Heinrich Fierz, Marie-Louise von Franz e Carl Meier. A formação de analista aconteceu no Instituto C.G. Jung, de Zurique, Suíça, e foi finalizada em 1970. Na ocasião, Heinrich Fierz lembrou que Léon Bonaventure sempre se dedicou à jardinagem, caracterizando-o como um jardineiro da alma (BONAVENTURE, 2021d). Esses anos de estudos foram fundamentais e o marcaram de modo definitivo, especialmente os processos de análise e de supervisão, que não só definiram a sua vocação como o situaram no caminho da observação, reflexão e orientação prático-teórica da psicologia analítica.
Léon Bonaventure integra a segunda geração de junguianos. Já exercia a psicoterapia na Europa há alguns anos quando chegou ao Brasil, no dia 22 de março de 1967. Logo passou a atuar como analista, função que praticou até a morte. Trabalhou também como editor: por cinco décadas, coordenou a tradução e o lançamento das Collected Works de Jung no Brasil e, por 40 anos, coordenou5 a Coleção Amor e Psique, na qual publicou autores junguianos estrangeiros e brasileiros. O exercício dessas atividades teve como base a imagem pela qual, em nossas entrevistas, ele se definiu: “Sou um menino da guerra. Não fui um menino da guerra, continuo a ser um menino da guerra”. Essa percepção já estava presente anteriormente:
Dois momentos, entre outros, marcaram minha vida. O primeiro foi minha infância. A imagem quase cotidiana de prisioneiros deportados nos trens que iam para a Alemanha nazista. Eu morava na Bélgica, perto da fronteira alemã. Perguntava-me: por que isso? E não tinha resposta. Todos tinham a mesma pergunta na boca, mas não havia resposta. Ninguém soube me dar uma resposta válida. Mais tarde, meus estudos de psicologia e filosofia na Universidade de Louvain deram-me esboços de respostas filosóficas para minha pergunta diante do sofrimento humano. Mas nunca me satisfizeram (BONAVENTURE, 2021c, p. 69-70).
A incompreensão perante o sofrimento humano - coletivo, intenso -, testemunhado precocemente, é um marco fundamental de sua vida psíquica e que o ajudou a desenhar seu caminho. Considera essa primeira pergunta, sem reposta, o “fermento” para a busca interior que se manteve por toda a vida. Aos 87 anos, o menino da guerra dizia que ainda era possível escutar os sons dos bombardeios de maneira nítida.
Nesse sentido Léon Bonaventure afirma que os quatro anos de intensa experiência religiosa entre os dominicanos se caracterizam como o outro marco de sua trajetória de vida: “Por certo tempo, uma resposta veio ao encontro da minha busca, ou melhor, uma orientação me foi indicada. Mas o caminho por eles seguido não era o meu. Foi a experiência analítica que abriu a porta para a minha interioridade” (BONAVENTURE, 2021c, p. 70). Ao contrário do excesso de intelectualismo dos dominicanos, o encontro com a psicologia analítica abriu caminho para o confronto com o sofrimento humano, que se inicia com o sofrimento de cada indivíduo. Para Léon Bonaventure, é de suma importância compreender o sentido da dor. A dor do menino foi o começo do terapeuta, o toque de Quiron (GROESBECK, 1983).
Neste artigo vamos apresentar o tema que ele considerava o mais importante para a função de terapeuta: a realidade da alma. Em seguida, como tema correlato, abordaremos o arquétipo do Si-mesmo. As ideias, concepções, modo de pensar e de sentir que serão expostos correspondem à maneira como ele abordou o assunto ao longo de sua vida. Ele afirma que “a alma é a interioridade de tudo o que é vivo” (BONAVENTURE, 2021a, p. 72), considerando-a como a descoberta mais importante de Jung e que “existe per se” (p. 77). A alma se apresenta em imagens e pode ser evocada, cultivada, cuidada, inclusive para que cure a si própria. A descoberta da alma abre as portas para o desenvolvimento da interioridade, porque ela é a própria vida interior.
Alma e imagem
Para Léon Bonaventure (2021c), a realidade da alma é distinta da matéria e da mente, pensamento que encontra respaldo nas concepções de Jung (2011a), para quem há a objetividade das coisas tangíveis (esse in re), há a fórmula ideal (esse in intelecto) e há o processo psicológico vivo (esse in anima), designado pelo termo fantasia. Levando em consideração essas proposições e os diálogos anímicos de Jung, registrados em “Os livros negros” (JUNG, 2020) e “O livro vermelho” (JUNG, 2009), importam, acima de tudo, a realidade e o sentido da alma. A hermenêutica de Jung (2011b) visa a comunicar esse tipo de experiência com as imagens e tentar compreendê-las em seu significado, por meio de procedimentos metodológicos (redutivo-causal e sintético-construtivo), viabilizando a diferenciação dos conteúdos psíquicos (JUNG, 2011c). Em 1914, Jung (2015) escreveu sobre a experiência de viver um intenso fluxo da imaginação, iniciada um ano antes, e que mudou o rumo de sua obra:
Naquele tempo estava ainda totalmente preso ao espírito dessa época e pensava de outro modo sobre a alma humana. Eu pensava e falava muita coisa da alma, sabia muitas palavras eruditas sobre ela, eu a analisei e fiz dela um objeto da ciência. Não tomei em consideração que minha alma não pode ser objeto de meu juízo e saber; antes, meu juízo e saber são objetos de minha alma.
Tive de reconhecer que aquilo que anteriormente eu designei como minha alma não foi na verdade minha alma, mas um sistema doutrinário morto. Por isso tive de falar à minha alma como a algo distante e desconhecido, que não tem existência através de mim, mas através da qual eu existo (p. 117).
No início de sua carreira profissional, Jung se acreditava possuidor de uma alma, o que equivalia a se ver como seu dono e senhor. Até que respondeu a um chamado interno: diante de uma situação de crise pessoal, incerteza interior e desorientação, em que a carga emocional se intensificou, ele decidiu atentar cuidadosamente ao que sentia e às suas fantasias, na busca de fazer o aprendizado de si mesmo. Tinha poucas certezas no campo psíquico: reconhecia a existência de uma atividade psíquica autônoma, involuntária, não consciente, a quem decidiu ouvir e ver, sem nenhuma concepção a priori (JUNG, 2009; 2020).
Durante os intervalos de trabalho começou a brincar com as pedras do lago, fazendo pequenas construções e, aos poucos, passou a registrar as fantasias que lhe ocorriam e que se desencadearam de maneira contínua. Quando obteve uma resposta interna, percebeu que havia uma instância viva, maior e muito mais ampla que ele, à qual estava ligado, com quem podia dialogar e por meio da qual ele se encantou com a existência. Ele se deu conta de que não a tinha, apenas começava a explorar um caminho de conexão com a alma, que se expressava por imagens (JUNG, 2009; 2020). Nesse longo percurso percebeu em si o que havia aprendido com Pierre Janet - a possibilidade de um indivíduo apresentar mais de uma personalidade - e sentiu a necessidade de especificar os conceitos:
No decorrer de minhas investigações sobre a estrutura do inconsciente fui obrigado a fazer uma distinção conceitual entre alma e psique. Por psique entendo a totalidade dos processos psíquicos, tanto conscientes quanto inconscientes. Por alma, porém, entendo um complexo determinado e limitado de funções que poderíamos caracterizar como “personalidade” (JUNG, 2011a, p. 424).
Esse ponto de inflexão teórica ocorreu a partir da expressão e confronto com as imagens do inconsciente. Posteriormente, essa experiência serviu de base para a elaboração teórica (HILLMAN, SHAMDASANI, 2015), ou seja, o confronto com o inconsciente se caracteriza como o fundamento da obra madura de Jung. Essa afirmação é corroborada por Léon Bonaventure (2011c):
A descoberta do Si-mesmo (...) se impôs a ele depois de ter dado livre espaço à vivência caótica do processo inconsciente, sem saber aonde isso o levaria. Depois dessa experiência, Jung consagra quarenta anos de vida à elaboração do que tinha vivido (p. 184-185).
Com a intenção de refletir a respeito da alma e das maneiras como podemos conhecê-la, Léon Bonaventure (2021a, 2021b) argumenta que esse tipo de abordagem só pode ocorrer através dela própria. Nas palavras de Jung (2011d): “A alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela” (p. 71). Dessa maneira, ela é, a um só tempo, objeto e sujeito da psicologia e nisso reside a grande dificuldade de elaboração desse tipo de ciência (JUNG, 2011e). Toda produção do pesquisador da alma sempre será uma confissão de sua própria atitude psicológica (extrovertida ou introvertida) e de seu tipo funcional (pensamento, sentimento, sensação, intuição). O sujeito do conhecimento imprime, inevitavelmente, sua perspectiva no que procura conhecer. Com isso, a neutralidade fica descartada: “Nosso modo de ser condiciona nosso modo de ver. Outras pessoas tendo outra psicologia veem e exprimem outras coisas e de outro modo” (JUNG, 2011f, p. 330).
Essas concepções de Jung não apontam, no entanto, para um sujeito ensimesmado, pois a alma somente pode ser gerada por meio das relações pessoais, familiares, de amizades e, inclusive, psicoterápicas. A psicoterapia teria como finalidade, portanto, cultivar a alma. Mas, a despeito da descoberta da realidade empírica da alma, grande parte das pessoas vive sem prestar atenção aos conteúdos do mundo interno (BONAVENTURE, 2021d). A atitude de Teresa de Ávila em relação aos estados da alma é completamente diversa, pois dedicou a vida ao seu reconhecimento, referindo-se ao seu centro por meio de diversos símbolos, dentre os quais ganha destaque o castelo interior. O movimento ao redor dessas imagens cria um eixo imagético que forma um percurso espiralado, favorecendo a reflexão em níveis cada vez mais diferenciados, denominado pelo termo lógica da alma (BONAVENTURE, 1975).
O centro e a lógica da alma
Léon Bonaventure (2021b) considerava o Si-mesmo como a segunda grande descoberta de Jung. Na pesquisa de doutorado (BONAVENTURE, 1975), orientada por Roger Bastide, desenvolveu significativamente a compreensão dessa noção que apresenta as qualidades paradoxais do arquétipo, assim descrita por Jung (2011g): “suficientemente determinado para dar uma ideia da totalidade humana e insuficientemente determinado para exprimir o caráter indescritível e indefinível da totalidade” (p. 30). A tarefa é de se relacionar com os conteúdos interiores sem, no entanto, se identificar com eles (JUNG, 2011c). A atitude de ultrapassar as polaridades, dentre as quais a clivagem entre a abordagem positivista que prevalece na psicologia e a projeção metafísica da religião, encontra-se presente nas variadas imagens do Si-mesmo: centralização, quaternidade, mandala, Anthropos. O arquétipo central é o que temos de mais íntimo e pessoal, sendo, também, de ordem coletiva e transpessoal: “O importante é que, com o tempo, a descoberta da psique e do Si-mesmo se torne realidade viva no cotidiano dos homens e, como montanha seja uma montanha, e como rio, um rio” (BONAVENTURE, 2021c, p. 187).
A imagem arquetípica do Anthropos, por exemplo, pode ser representada como uma figura cósmica, como o grande homem presente no I Ching ou as imagens adâmicas e do filho do homem da tradição judaico-cristã etc. Os nomes são secundários, podendo assumir muitas formas, dependendo da cultura e da época. Importantes são a expressão e o reconhecimento de algo maior que o indivíduo. Diante de situações de desorientação pessoal ou coletiva, essas imagens podem simbolizar a unidade que indica a possibilidade de reconhecimento mútuo e a vida ter como base um novo humanismo. A imagem ou a referência ao Anthropos instaura um espaço para a expressão, relação e habitação do Si-mesmo (BONAVENTURE, 2021a, 2021e).
A experiência dos opostos pode acontecer de maneira dilacerante ou a partir da conciliação criada na relação com o Si-mesmo, sendo a possibilidade de inaugurar um tempo de superação da dualidade entre espírito e instinto, corpo e alma, consciente e inconsciente. Dessa maneira, é questionada e, talvez, destronada a hegemonia do ego, pautada no cogito cartesiano, abrindo espaço para a vivência democrática dos aspectos da totalidade do Si-mesmo (BONAVENTURE, 2021a). Ao abordar a realidade da alma, Jung (2011a) descreve o Si-mesmo da seguinte maneira:
Enquanto o eu for apenas o centro do meu campo consciente, não é idêntico ao todo de minha psique, mas apenas um complexo entre outros complexos. Por isso, distingo entre eu e si-mesmo. O eu é o sujeito apenas de minha consciência, mas o si-mesmo é o sujeito do meu todo, também da psique inconsciente. Neste sentido o si-mesmo seria uma grandeza (ideal) que encerraria dentro dele o eu. O si-mesmo gosta de aparecer na fantasia inconsciente como personalidade superior ou ideal, assim como, por exemplo, o Fausto, de Goethe, e o Zaratustra, de Nietzsche (p. 444-445).
A relação entre a Terra e o Sol pode ser comparada, segundo Jung (2011c), com o vínculo entre o eu e o Si-mesmo. De acordo com Léon Bonaventure (2021f), a noção de Si-mesmo promove uma mudança radical na concepção da psicologia moderna, que se encontrava identificada com a psicologia do eu e com os aspectos inerentes à consciência. A totalidade da psique abarca a consciência e o campo inconsciente, tendo como centro o Si-mesmo, que não pode ser conhecido de maneira direta, mas, apenas, experimentado e sentido pela consciência por meio de símbolos que surgem em sonhos e devaneios (JUNG, 2011a). A capacidade que a consciência possui de reconhecer os conteúdos psíquicos inconscientes possibilita, mas não garante, o confronto com essas imagens. Esse confronto exige uma atitude simbólica, em que os pares de opostos de um determinado fenômeno são levados em consideração, promovendo dinamismo e uma tentativa de união, indicando um fluxo em direção à consciência e a apreensão de seu significado (JUNG, 2011c).
Segundo Léon Bonaventure (2021f), o caminho para o Si-mesmo envolve aspectos da consciência, do inconsciente - pessoal e coletivo -, físicos e fisiológicos, que podem ser percebidos e confrontados, configurando um processo de cultivo e conexão com a alma. A tomada de consciência de si é o primeiro passo para o desenvolvimento da interioridade, que conduz ao processo de individuação ou já é o próprio processo. Trata-se de um movimento em torno de um eixo, que caracteriza o trabalho de aprofundamento em relação aos fenômenos do mundo interior. Cada experiência produz um estado de alma que nos é dado conhecer e é gerador de vida. O centro é um estado variável e único de combinação das funções e faculdades envolvidas em cada situação psíquica, já que, enquanto processo, está sempre se modificando em sua experiência vital.
Dessa relação com o arquétipo central há a compreensão da unidade de si e da unidade do mundo, simultaneamente individual e cósmica, em que não há mais interior ou exterior, pois “a alma que atingiu seu centro transcende categorias de percepção” (BONAVENTURE, 1975, p. 229). Na ultrapassagem dos limites do eu, de sua existência pessoal, o indivíduo se encaminha na direção do centro que é uma realidade individual e universal. As raízes do eu encontram-se no próprio centro do homem e, se forem cortadas, ele estaria encerrado no interior dos limites do seu eu. O Si-mesmo, por sua vez, favorece um movimento de expansão. De acordo com Gerhard Adler (1979), o Si-mesmo caracteriza-se como um sujeito de cognição transcendental. Seria, portanto, como um centro inconsciente de entendimento, um estado de quase-consciência que se encontra no campo inconsciente e dele emerge. Dessa maneira, Jung (2011d) descreve o eu como uma “luminosidade” cercada por múltiplas “luminosidades”, ou seja, pelo inconsciente como consciência múltipla.
Essa espécie de órgão de cognição inconsciente ou essa consciência do inconsciente funciona como um centro de entendimento e compreensão, podendo ser observado em conteúdos que emergem em sonhos, fantasias ou em registros históricos a serem compreendidos simbolicamente. Adler (1979) denomina essa qualidade cognitiva de logos do inconsciente. O Si-mesmo, como arquétipo central, pode ser compreendido como a meta da vida, princípio e base para o desenvolvimento da personalidade. Léon Bonaventure (2021b) diz que, pela riqueza de significados, sempre é possível desenvolver muitas ideias a respeito do arquétipo do Si-mesmo, indicando que as principais referências que encontrou em sua vida “foram, de um lado, a obra de Teresa de Ávila e, do outro, o testemunho da interioridade do homem moderno, em suas ricas imagens que surgem no silêncio da noite” (p. 196).
Encontro com o arquétipo
A pesquisa de Léon Bonaventure (1975) sobre Teresa de Ávila se delineia a partir de analogias entre as experiências da realidade da alma, do centro da alma e da linguagem simbólica por ela utilizada, com determinados sonhos de seus analisandos. Com base na sólida formação católica que desenvolveu junto aos dominicanos, ele encontrou importantes aproximações entre a psicologia mística e a psicologia junguiana. Para ele, a obra da santa, ao menos em Castelo Interior ou Moradas (ÁVILA, 2014), falava profundamente à sua própria alma, sentindo-se alimentado: “Uma coisa nos parece certa: o centro, na psicologia mística, é analogicamente a mesma realidade que o ‘Si-mesmo’ em psicologia analítica” (p. 234). Assim, equipara o centro da alma narrado por Teresa de Ávila e a noção junguiana de totalidade da psique (Si-mesmo).
Para Léon Bonaventure (1975), a alma é viva, uma realidade em transformação constante pois, ao ser parcialmente apreendida, se desloca e se modifica. Dessa maneira, o sujeito situa-se em diferentes pontos de vista, muitas vezes contraditórios. Essa concepção é extremamente dinâmica e mutante, pode se enriquecer ou se empobrecer, mas dificilmente se mantém estática. Para que esse dinamismo ocorra, é necessário que seja realizada uma verdadeira operação de circumambulatio (JUNG, 2011g) com determinada imagem no centro, e isso possibilita que a consciência não seja mais a mesma.
Para Teresa de Ávila (2014), “jamais nos acabaremos de conhecer” (p. 28). Essa proposição é, de acordo com Léon Bonaventure (1975), semelhante à postura de Jung de se manter sempre aberto para novos conhecimentos sobre si e sobre o mundo, ou seja, a psicologia mística e a psicologia junguiana possuem como característica “a riqueza de um pensamento sempre aberto e acolhedor” (p. 45). A mística da interioridade apresenta-se, para ele, como apropriada para que a alma possa “perceber as coisas da alma” (BONAVENTURE, 2021a, p. 202). Dessa maneira, compreende-se que a relação com o centro “é, por vezes, inapreensível, porque o centro é frequentemente conhecido unicamente como uma realidade hipotética e misteriosa, em virtude de ser à imagem de Deus” (BONAVENTURE, 1975, p. 103). O centro sempre aparece como uma realidade preciosa, de acesso dificílimo. Embora seja um dado a priori, permanece a maior parte do tempo desprezado, quase ou totalmente desconhecido e, por conseguinte, sem eficácia, inoperante.
Léon Bonaventure (1975) encontrou em Teresa de Ávila o caminho a ser percorrido pela alma. Descobrir as portas do castelo interior seria a grande graça para a santa carmelita (ÁVILA, 2014). Para atingir um sistema de relações verdadeiras, originais, em que possa reencontrar a unidade de seu centro, Teresa de Ávila parte de um sistema de relações falsas, dominado pela externalidade, simbolizado pelos animais do mundo ctônico: “a imaginação vagueia pelos arrabaldes do castelo, padecendo, às voltas com mil répteis malignos e peçonhentos” (p. 74). Pouco a pouco, porém, do fluxo das relações que se formam, as realidades da alma se dão e o próprio centro se realiza, ou seja, se torna consciente de si.
Na psicologia analítica as diferentes partes da alma constituem o Si-mesmo e são por ele englobadas. Léon Bonaventure (1975) constatou que, ao reunir elementos da mística da interioridade, não deixava de trazer, também, elementos da visão junguiana sobre a alma. O tema da relação entre a psicologia mística e a psicologia junguiana foi estudado de modo paralelo à formação de analista. Essa dupla formação foi amalgamada e encontra ressonâncias no período que passou entre os dominicanos, além de conduzi-lo no processo de elaboração e de tentativa de resposta para a pergunta do período de infância. Quem se coloca nesse tipo de busca, com uma questão emocional tão premente e que evoca imagens quase sempre perfaz um movimento circular ou espiralado que se desdobra ao longo do tempo:
Difícil livrar-nos neste caso da impressão de que o processo inconsciente como que se move em espiral em torno de um centro, do qual (... ) se aproxima lentamente. Neste processo, as características do “centro” tornam-se cada vez mais nítidas. Poderíamos talvez dizer inversamente que o centro - em si mesmo incognoscível - age como um ímã sobre o material e os processos disparatados do inconsciente, capturando-os pouco a pouco em sua teia de cristal (JUNG, 2011g, p. 234).
Léon Bonaventure (1975) enfatiza o movimento em espiral ao redor de um centro, em um processo de circumambulação e de relação entre o eu e o Si-mesmo, revelando um estado de alma, ou seja, “a pluralidade de um sentido inerente” (BONAVENTURE, 2021c, p. 180). Em Teresa de Ávila (2014), esse movimento equivale ao percurso das sete moradas do castelo interior.
De acordo com Léon Bonaventure (1975), Teresa de Ávila escreveu em estado de oração ou de êxtase, propício para o surgimento de imagens simbólicas, de base arquetípica. Para ele, a lógica inerente a essas imagens é a confirmação de que “Teresa sentira a necessidade de recorrer a uma tal pluralidade de símbolos para descrever a diversidade e a riqueza de uma só e única realidade - o centro” (p. 229). Teresa de Ávila habita esse mundo interior e é, ao mesmo tempo, habitada por ele, pelas realidades desse mundo. A parcela de sentido que pode ser apreendida no diálogo estabelecido com as imagens não se deve a esforço racional, mas é inerente ao próprio movimento estabelecido pelas imagens, cabendo à consciência compreender a sua linguagem. Os estados da alma que foram descritos por Teresa de Ávila (2014) são importantes em todos os níveis de relações: com o próximo, com o mundo, com o corpo, com as paixões e com o eu empírico.
A relação entre o castelo interior e suas moradas é correlata, em termos psicológicos, ao modo como o centro da alma estabelece conexões com as suas partes. Na obra de Teresa de Ávila (2014), um conjunto de símbolos designa o centro da alma: ouro, tesouro, pedra preciosa, pérola oriental, diamante, cristal, joia, esmeralda, cofre de ouro, reino, céu, fonte, árvore da vida, sétima morada, o mais íntimo de nós mesmos, imagem viva de nosso senhor, Templo de Deus, dentre outros. Cada imagem revela propriedades específicas do centro, daí sua pluralidade na unidade.
Como as diferentes moradas do castelo estão ligadas ao centro, os símbolos são ao mesmo tempo do castelo e do centro. A alma e o castelo são uma mesma coisa: o castelo celeste da alma é o próprio mundo interior, um mundo a ser habitado. Esse tipo de relação cria as condições necessárias para que a imagem do mundo exterior coincida com a do mundo interior, sendo que o ser humano é o tecido que estabelece os vínculos para lidar com os dois mundos. Léon Bonaventure (1975) observa que a psicologia mística de Teresa de Ávila, ao contrário de estar identificada com a parcela denominada consciência, caracteriza o homem total. Nesse sentido, a importância de se desenvolver a interioridade significa cuidar da alma, cultivá-la (BONAVENTURE, 2021a, 2021b).
O encontro de Léon Bonaventure com as concepções da santa fez com que percebesse que a atualização do centro da alma é um requisito necessário para se atingir a plenitude, aspecto bem diverso dos desejos e demandas do eu e dos instintos. Dessa maneira, assumiu para a sua vida a maior parte da visão de Teresa de Ávila a respeito da alma: “Com essa pesquisa, tornou-se evidente que o centro, autorregulador no microcosmo, que cada um de nós temos, não é o ego consciente (...) mas que o grande centro ordenador de nossa vida é o arquétipo do Centro” (BONAVENTURE, 2021b, p. 195).
O centro tem uma natureza completamente diferente daquela das paixões e demais realidades anímicas que podem ser percebidas a partir dele, o que significa que, em Teresa de Ávila, as manifestações da vida psíquica têm como núcleo o centro da alma, verdadeira instância superior e sagrada, tanto em sua vida quanto em sua obra. As sínteses que Léon Bonaventure (1975) elabora acerca da instância central possuem esse teor: “No meio da diversidade de todas as realidades da alma, o centro surge como a realidade absoluta, fundamento da estrutura psíquica e da vida espiritual” (p. 230).
Apesar de os símbolos das moradas e do castelo serem a base do pensamento de Teresa de Ávila, este duplo e importante simbolismo ocupa, no entanto, lugar secundário em relação ao do centro da alma, a morada sétima ou principal (BONAVENTURE, 1975). Nas elaborações da santa, o centro surgiu com múltipla função: como indicador do caminho, como uma luz em meio à ignorância, como compensação para os riscos de desintegração da personalidade e como maneira de sustentá-la em novos modos de vida.
Os símbolos mencionados por Teresa de Ávila (2014) permaneceram vivos e não foram superados, ao menos para Léon Bonaventure (1975), embora vários séculos separem os dois autores - uma mística do século XVI e um psicoterapeuta junguiano do século XX -, pois há uma predisposição natural na alma de criar símbolos, que dizem respeito à vida da psique em sua função simbólica, encarregada de manter juntos os opostos em uma síntese tensional.
Considerações finais
Impulsionado pela tentativa de compreender o sofrimento humano e a realidade da alma, Léon Bonaventure encontrou em Teresa de Ávila e na formação de analista junguiano a base de compreensão inclusive da realidade do Si-mesmo. A atitude simbólica em relação à alma esteve presente em todo o seu percurso: ao escrever a tese, nos trabalhos de editor, como psicoterapeuta, nos artigos que escreveu. A alma é envolta em mistério, mergulha suas raízes no desconhecido, seu cerne está na camada mais profunda do inconsciente coletivo. Para ser percebida é preciso muita atenção e afinar o contato com os fenômenos internos. Quando se afia a escuta e a sensibilidade, percebe-se que esse trabalho não tem fim, pois se trata de um processo sem linha de chegada, só um contínuo aprofundamento interno.
A consciência e o campo inconsciente formam dois sistemas que funcionam de maneira compensatória; o exercício de integração entre eles cria um espaço intermediário e favorece o processo dialético. Por meio da atitude cuidadosa em relação aos fenômenos inconscientes pode-se chegar ao conhecimento da alma. O conceito de alma traz a relevância fundamental de atenção ao mundo interno contida no cerne da psicologia analítica.
A alma não é um objeto que pode ser capturado ou definido. Ela está sempre em processo que tende para o centro. A relação que se estabelece com o Si-mesmo, no entanto, é inapreensível, sempre necessitando de novos movimentos ao redor das imagens produzidas. Além disso, há o entendimento de que a psicologia analítica tem um fundamento histórico, dentre outros, na psicologia mística de Teresa de Ávila. O encontro com a obra da santa possibilitou que Léon Bonaventure se aproximasse da alma não como um constructo, mas como experiência e realidade, ou seja, pelo acendimento de um arquétipo vivo nele. Assim, concebeu que a psicologia analítica e a psicologia mística têm por meta a realização humana.
O encontro com a palavra de Teresa de Ávila abriu o caminho para que Léon Bonaventure realizasse diversos trabalhos de grande porte: se empenhou na preparação da primeira associação junguiana do Brasil, embora não tenha se mantido nela; como editor, cuidou da transmissão do conhecimento da obra de Jung no Brasil bem como de textos de autores junguianos; exerceu o ofício de psicoterapeuta; durante 50 anos mergulhou no estudo da tapeçaria renascentista A Dama e o Unicórnio. Era um jardineiro da alma, sempre em busca do que Teresa de Ávila denominava como a sétima morada. Radicalmente introvertido e intuitivo, não se encaixou em certas experiências institucionais, mas foi um dos responsáveis para que os livros de Jung tivessem uma ampla inserção entre os brasileiros e considerou que, em seu trabalho como editor, deu a sua contribuição. Além de editor, o menino da guerra esteve, também, inserido no ambiente dominicano, foi denominado como um jardineiro da alma, formou-se como analista e cumpriu esse exercício ao longo da vida, como pesquisador e terapeuta junguiano. A experiência da alma passa por todas essas etapas de vida, mas pressupõe, também, um árduo trabalho de desidentificação, resumido em suas palavras:
Em qualquer organismo vivo, quando se observa do interior, a vida e seus processos, sabemos que a vida começa no uno indiferenciado; uma única célula na qual tudo está contido. Seguindo um processo natural de multiplicação, diversificação, integração e diferenciação, o processo normal é uma realização dentro do próprio uno diferenciado, que se exprime, por exemplo, num belo ipê amarelo de cinquenta anos, florido no mês de setembro, no meio do campo (BONAVENTURE, 2021d, p. 200).
A partir da perspectiva do centro, os planos individual e universal, as vidas interior e exterior, não se separam. Este importante ponto em comum foi o que Léon Bonaventure encontrou entre a psicologia mística de Teresa de Ávila e a psicologia analítica de Jung. A compreensão acerca da realidade da alma e da relação entre o eu e o Si-mesmo possibilitou que Léon Bonaventure se tornasse um terapeuta tão vocacionado e tivesse interferido na vida de muitos que cruzaram o seu caminho, principalmente em sua prática como terapeuta. Esperamos que este artigo contribua para que o seu pensamento e a sua importância para a consolidação da psicologia analítica no Brasil sejam reconhecidos por tantos outros.