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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.41 no.3 São Paulo  2023  Epub 02-Dez-2024

https://doi.org/10.70435/junguiana.v41i3.65 

Artigo

Correlações simbólicas entre o Bhagavad Gita e o processo de individuação

Correlaciones Simbólicas entre el Bhagavad Gita y el Proceso de Individuación

Maria Zelia de Alvarenga* 

*Médica (FMUSP-1966), psiquiatra (AMB), analista junguiana- Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e afiliada à International Association for Analytical Psychology (IAAP). Livros publicados: Mitologia Simbólica (em colaboração); O Graal: Arthur e seus Cavaleiros (em português e inglês - editora Karnac); Édipo, um herói sem proteção divina; Ulisseso herói da astucia (em colaboração com Sylvia Baptista); Por que os deuses castigam? (todos pela Casa do Psicólogo); Os deuses castigam? Anima/Animus de todos os tempos (em colaboração). e-mail: mza@boitata.org


Resumo

O artigo propõe uma correlação simbólica entre o texto do Bhagavad Gita e o processo de individuação proposto por Jung. Interpreta a guerra entre os guenos dos Pândavas e dos Káuravas como um processo simbólico, em função do qual, Arjuna (personagem líder dos Pândavas) poderá incorporar, em sua psique, os conteúdos, simbolicamente representados e depositados no grupo dos Káuravas, sejam as características sombrias, defensivas, bem como as criativas ou iluminadas.

Palavras-chave Bhagavad Gita; processo de individuação; imagos sombrias e iluminadas

Resumen

El artículo propone una correlación simbólica entre el texto del Bhagavad Gita y el proceso de individuación propuesto por Jung. Interpreta la guerra entre los guenos de los Pándavas y de los Káuravas como un proceso simbólico, en función del cual, Arjuna (personaje líder de los Pándavas) podrá incorporar en su psique los contenidos, simbólicamente representados y depositados en el grupo de los Káuravas, sean las características oscuras, defensivas, así como las creativas o iluminadas.

Palabras clave Bhagavad Gita; proceso de individuación; imagos sombríos e iluminados

Abstract

This paper proposes a symbolic correlation between the Bhagavad Gita text and the individuation process proposed by Jung. It interprets the war between the Pandavas’ guenos and the Káuravas as a symbolic process, as a result of which Arjuna (leader of the Pândavas) will be able to embody, in his psyche, the contents, symbolically represented and deposited in the group of the Káuravas, whether the characters dark, defensive, as well as creative or light ones.

Keywords: Bhagavad Gita; process of individuation; dark and illuminated images

Sobre o Bhagavad Gita

O texto Mahabharata, ou A Grande História dos Bharatas, é considerado o maior título épico da humanidade e, segundo a lenda, foi escrito pelo sábio Vyasa. Contendo em torno de 200 mil versos, retrata a história do desenvolvimento de uma família mítica que, ao longo dos tempos, se divide em dois guenos adversários: Pândavas e Káuravas que, apesar dos laços de parentesco muito próximos, lutam pela posse do reino da alma. A guerra, entre os dois grupos, acontece nos limites da cidade de Kurukshetra (norte da Índia), nome pelo qual a batalha ficou conhecida. Um dos volumes componentes do grande épico Mahabharata é o texto Bhagavad Gita, considerado um livro sagrado (KRIYANANDA, 2007).

O texto Bhagavad Gita, publicado e referido como de autoria de Krishna (VYASA, 2012) com tradução de Huberto Rohden, apresenta proposições singulares que me levaram a tecer correlações simbólicas com a temática do processo de individuação, proposto por C. G. Jung (1985a; 1985b; 1985c; 1985d).

No texto introdutório da tradução do Bhagavad Gita, Rohden (VYASA, 2012) propõe, em suas formulações sobre a concepção cósmica da filosofia oriental, a consideração de que toda atividade do homem profano é trágica, permeada por culpa, porquanto toda ação decorre de um ego povoado por ilusões negativas. Se assim se der, com toda e qualquer atividade humana, o dilema inevitável implicaria agir e onerar-se de culpas ou do não agir para assim preservar-se de mais karma. Continuando, Rhoden afirma que a maior parte da filosofia oriental teria optado pela alternativa do não agir, mantendo-se os indivíduos, como decorrência, em uma total inatividade, mergulhados em meditações passivas, com o fito de não aumentar o débito cármico.

O texto do Bhagavad Gita, todavia, segundo a fala de Krishna, propõe um terceiro caminho, o do agir sem culpa, pela atitude do reto-agir, equidistante do falso-agir e do não agir (VYASA, 2012).

Segundo Krishna (VYASA, 2012), o agir que onera o ser humano com culpas implica realizar ações pelas demandas do ego, ou seja, agir movido pela vaidade, pelo ganho secundário, pelo aplauso ou pelo reconhecimento público. De outra parte, o agir sem se onerar de culpa implica a ação do chamado reto-agir, ou seja, agir pelas demandas e por amor ao Eu maior, ou Self, embora o fazer se realize sempre pela ação do ego. Dessa forma, e somente assim, a atividade não redundaria em culpa.

O reto-agir, por amor ao Eu verdadeiro, ou Self, na referência de Rhoden (2012), não cria culpabilidade, seja no presente seja no futuro, mas neutraliza o karma do falso-agir do passado, libertando o homem de seus débitos. Decorre daí a suprema sabedoria do Bhagavad Gita. Entretanto, para o homem poder agir por amor às demandas do Eu verdadeiro, deverá antever sua realidade e, fundamentalmente, conhecer a verdade sobre sua própria natureza.

Este é, portanto, o propósito de Krishna: convencer Arjuna sobre a necessidade de ele participar do combate que o conduzirá ao autoconhecimento, viabilizando assim suas ações pelo reto-agir. Para Rhoden, (VYASA, 2012) entendendo as proposições de Krishna, a quintessência do Gita é a viabilidade do reto-agir. A alma do Bhagavad Gita é o canto da redenção que decorre da autorrealização advinda do autoconhecimento.

Proposição para entender, simbolicamente, o Bhagavad Gita

No meu entender, o autoconhecimento decorrente do estudo do Bhagavad Gita implica, certamente, uma leitura simbólica sobre em que consiste a batalha travada entre os guenos componentes da luta ensejada.

O fato desse texto, o Bhagavad Gita, considerado sagrado, ter inspirado tantos espíritos humanos, ao longo dos séculos, advém, com certeza de, em sua proposição maior, traduzir como o caminho da revelação do encontro de si consigo mesmo se faz, ou seja, a compreensão do sentido da própria Vida, a compreensão da razão do porquê da existência!

Quer me parecer que a leitura simbólica do Bhagavad Gita seja um manual de instruções de como alcançar o processo de individuação, proposto por Jung!

Assim, partindo dessas considerações, tentarei explicar como as ideias me ocorreram para formular esse entendimento!

O pressuposto que me move, suponho, já tem sido entendido por muitos outros. Ele decorre da compreensão de que as demandas da guerra entre Arjuna e seu guenos dos Pândavas contra o guenos dos Káuravas é, em última instância, uma luta interior, subjetiva, entre as realidades sombrias de uma psique movida pelo desejo de superar suas amarguras, frustrações, conflitos, dores de alma, superações essas tão necessárias. De outra parte, configura também demandas movidas por se alcançar o sucesso, ter o reconhecimento de seus méritos, ser o vencedor em tantas competições, conquistar medalhas, alcançar o poder, fazer descobertas espetaculares, amealhar destaques, obter fortunas, ser distinguido entre os demais, tornar-se um vencedor!

Conforme entendimento e proposição de Rhoden (2012), sempre que o agir decorre de demandas da vaidade, da vingança, do medo, da concupiscência, do orgulho, da avareza etc., esse agir configura ações mobilizadas por amor ao ego. São, portanto, demandas que precisam do reconhecimento ou do aplauso do outro ou dependem da condição do agir causar sofrimento, desprezo, humilhação, inveja ao outro ou pelo outro.

Essas demandas, segundo o entender coletivo, estão presentes em todos os seres humanos, em maior ou menor intensidade, e são decorrentes de padrões relacionais sob os quais a humanidade se forjou. O agir decorrente de demandas da vaidade, vingança, medo, concupiscência, orgulho, avareza, configurando ações mobilizadas por amor ao ego, certamente, traduzem padrões de comportamento decorrentes de modelos veiculados pelos componentes humanos do entorno que cercam todos nós. São esses modelos que interagem com inerências constitucionais presentes, em maior ou menor intensidade, também na natureza de todos nós.

Durante meus anos de atividade profissional (seja como psiquiatra ou analista junguiana), deparei-me com a condição de que muitas são as psiques precocemente magoadas, não amadas, injuriadas, ofendidas, bem como as psiques desqualificadas, acusadas de incompetência, repudiadas e que, para sobreviver, tornaram-se submissas e obedientes, capachos simbólicos, pois pisados foram e o são, continuamente, pelos demais. De outra parte, muitas são as psiques que, diante de tantas agressões, tornaram-se explicitamente revoltadas, agressivas, beligerantes, que passam a vingar-se, objetivamente, das ofensas recebidas. Certamente que os capachos simbólicos, os submissos, também carregam as demandas de vingança, porém são temerosos em exercê-las. Há que se considerar, entre essas tantas criaturas, reconhecer a presença de psiques de pessoas com dotação hereditária psicopatologicamente comprometida!

Podemos concluir que, da interação dessas diferentes gamas de psiques, com seus atributos constitutivos, com seus progenitores, seus cuidadores, seus instrutores e as sincronicidades existenciais, somos todos decorrência desse grande mistério!

Meu entendimento é que essas demandas atribuídas ao ego são, na realidade, manifestações de atitudes de personagens pertencentes à psique de todos nós, personagens essas que previamente chamei de duplos sombrios bem como de duplos iluminados, como imagens de criaturas forjadas pela psique, portadoras de um caráter negativamente defensivo ou de um caráter positivamente criativo. Todavia, em função de um alerta a mim emitido por Galiás (CP, 2022), esses duplos sombrios ou iluminados, que assim qualifiquei, têm as mesmas características do conceito formulado por Jung e por ele denominados Imagos (JUNG, 1989, par. 296; v.9/1 par. 122).

E, com certeza, se não tivermos uma dinâmica psíquica suficientemente bem estruturada, com um caráter reflexivo estabelecido, a cada demanda sob a qual o ego se vir mobilizado, não conseguirá saber se essa demanda decorre realmente do próprio ego ou de algumas de suas imagos sombrias ou iluminadas. As demandas das imagos sombrias são, muitas vezes, justificadas como decorrentes da ação de inimigos, bem como as demandas de imagos iluminadas serão atribuídas às figuras benquistas que em nós habitam!

Essas estruturas imagéticas, das quais somos todos portadores e possuidores e sob as quais vivemos submetidos, são forjadas como redutos mnemônicos, imagos, decorrentes das interações sofridas entre nossas predisposições herdadas e vivências relacionais, que tivemos, com todos os seres reais ou imaginários, ocorridas ao longo de nossas vidas, desde nossa concepção.

Proposição sobre a imparidade arquetípica em todos nós

O desenvolvimento ou formação do ser humano, ao longo dos tempos, demandou a humanização dos contingentes arquetípicos inerentes e componentes das estruturas do ovo primordial decorrentes do encontro de um óvulo originário de um ovário de uma fêmea humana e de um espermatozoide originário de um testículo de um macho humano.

Há de convir, lembrando apenas como citação, conforme descrição de Charon (1977, cap 7), os específicos processos que ocorrem durante a formação do óvulo humano: escolhas singulares acontecem, permeando a forja da estrutura hereditária do novo ser gestado, quando, então, diferentes seleções cromossômicas advindas dos avós maternos, bem como dos avós paternos, são eleitas para formar a célula óvulo que dará origem ao novo ser. Lembrando, também, que processo similar de escolhas singulares ocorrem na forja do espermatozoide fecundador. A par desse espetáculo de singularidades, a natureza, incansável em criatividade, delibera sobre qual espermatozoide, entre os milhares, senão milhões de candidatos, será eleito para fecundar o único óvulo e fazer um novo ser humano acontecer! E mais, quando da forja da célula óvulo tanto quanto da forja da célula espermatozoide, as futuras células geradoras do futuro ser humano terão em sua composição somente 23 cromossomas, e não os 46 que todas as demais células normalmente carregam. E cada óvulo carregará somente um cromossomo X e os espermatozoides carregarão somente um cromossomo X ou um Y.

Inegavelmente, a natureza não suporta cópias! E todo ser concebido se faz único, inédito! Somos, tão somente, seres ímpares!

A par das imparidades, somos também inéditos por congregarmos heranças de centenas de milhares, senão de milhões ou bilhões de ancestrais, bem como as imagens mnemônicas arcaicas que nos foram transmitidas ao longo desses incontáveis séculos, milênios ou bilhões de anos; entretanto, heranças comuns estarão presentes em todos nós, mesmo que todos nós sejamos decorrentes de combinações inéditas!

Essas heranças arcaicas que carregamos, de origem ancestral mineral, vegetal e animal, e da qual somos expressões humanas, são, certamente, por assim terem se forjado, fontes do que Jung chamou de nosso contingente arquetípico (JUNG, 1989, par. 954). Esse material primitivo, arcaico por natureza, decorre, no meu entender, de ancestrais oriundos de um tempo em que não havia linguagem, mas que, de alguma forma, arquivavam imagens e emoções. Segundo Teilhard de Chardin (1988), somos portadores de heranças de padrões de consciência mineral, vegetal e animal. Por sermos produto desses bilhões de anos, somos e carregamos a memória dos tempos da pré-história.

Os mitos, também como expressões de nossas heranças arquetípicas primordiais, retratam, possivelmente, nossas memórias, nossa história ancestral, que se atualizam nas incontáveis imagos que carregamos e que são decorrentes de vivências encastoadas em nosso inconsciente.

Que são imagos?

Segundo Jung (1989 par. 944), arquivamos, em nossa psique, a memória de todas as imagens decorrentes de vivências afetivas agradáveis ou desagradáveis, amorosas ou impactantes, singelas ou amedrontadoras, acalentadoras ou terrificantes e tantas outras representações e significados. Essas imagens, representações e significados emocionais se fazem arquivadas como realidades mnemônicas depositadas em nossos locus arquetípicos específicos, herdados ao longo dos bilhões de anos, e que se encontram enquistadas no nosso inconsciente. Esses locus e, no meu entender, também as referências da epigenética, são específicos para armazenar vivências específicas e exclusivas de mãe boa, mãe terrível, pai bom, pai terrível, irmão, amigo, amante, traidor, mestre, inimigo, ou seja, incontáveis locus condizentes com as incontáveis realidades sentidas, sofridas, experimentadas, com todos os seres e realidades com as quais tivemos contatos e interações (humanos e não humanos), com todos os fenômenos que vivemos (prazer, bem-estar, sofrimentos, dores, ameaças, doenças, sentimentos etc.) ao longo da Vida. Esses locus, expressões de instâncias arquetípicas, configuram fontes de prazer quando evocadas ou fonte de sofrimento, angústia, ameaça etc., mesmo quando desconheçamos suas origens.

Estas imagens mnemônicas, conscientes ou não, denominadas por Jung como imagos, se manifestam nos sonhos, nos desenhos espontâneos, nos atos falhos, nos textos literários, nos contos de fadas, nos embates relacionais e, explicitamente, nos mitos.

Atribuo a elas as características de duplos por assim se constituírem, pois, enquanto locus arquetípicos, quando evocados, apresentam-se à psique como perfis físicos da mãe, do amigo, do pai, do traidor, do abandonador, ou seja, um duplo arquivado das incontáveis vivências agradáveis ou desagradáveis sentidas, ao longo da existência. Há que frisar sempre que as imagos são duplos imagéticos de pessoas ou de situações sofridas, amadas ou odiadas, desejadas ou execradas, admiradas ou abominadas, divinas ou demoníacas, sombrias ou iluminadas!

Essas imagos que povoam a todos nós são duplos e não pessoas que amamos ou odiamos; são imagens arquivadas, componentes de nossas vivências e memórias! São criações da própria psique e de heranças arquetípicas, decorrentes de vivências e embates de si mesmo com o mundo!

Os duplos ou imagos míticas!

Os duplos ou imagos míticas representam, no meu entender, realidades simbólicas profundamente interessantes, por conta de retratarem fenômenos sempre povoados pela demanda de que essas imagos sejam incorporadas, ou melhor, sejam reconhecidas como partes ou instâncias pertencentes à natureza da própria criatura que os carregam e os expressam. E mais, em sendo reconhecidas como duplos ou imagos de si mesmo, demandam por serem incorporados para o campo da consciência, como manifestações da própria identidade. O momento mítico se fecha quando a incorporação do duplo (ou da imago) se faz.

Na mítica grega, uma das expressões mais significativas de entidade divina, demandando pela integração de seu duplo ou de sua imago, vamos encontrar no relato sobre a deusa Atená quando da instituição do primeiro tribunal de Juri (ALVARENGA, 2012). Esta temática mítica foi magistralmente descrita na trilogia Oréstia, de Ésquilo (1991), mais explicitamente na terceira peça As Eumênides. Este é um momento solene, pois retrata a deusa Atená servindo-se de sua grande dotação persuasiva para convencer as Erínias a permanecerem na cidade, ou seja, simbolicamente no campo da consciência (ALVARENGA, 2012), sem o que a Justiça não conseguiria ser exercida a contento. Certamente que o maior símbolo mítico da Justiça, Atená, somente se faria atualizada por completo se estivesse incorporada de seus duplos, ou de suas imagos, Erínias, no campo da consciência.

De outra parte, também Atená, como deusa protetora dos heróis, depende da intercessão de Perseu para incorporar-se de seu duplo Medusa. Segundo o mito (BRANDÃO, 1987), Medusa fora sacerdotisa do templo da deusa, ou seja, simbolicamente uma hipóstase de Atená. Medusa teria sido assediada amorosamente por Posídon e, cedendo aos encantos do divino, deitou-se com ele, no templo da deusa. Diante disso, Atená, tomada pela fúria, transformou os cabelos de sua sacerdotisa em serpentes e seu rosto num horrível semblante com um olhar capaz de transformar em pedra a todos quantos fitassem seus olhos. Simbolicamente, Medusa representa um dos duplos ou imagos de Atená, expressão da raiva ou rancor da deusa, expresso em vários outros de seus mitemas.

A demanda para que as imagos se façam integradas decorre da condição de sentirmos por essas personagens, imagos da nossa psique, sentimentos de amor como de ódio, de raiva como de continência, de acolhimento como de vingança, de admiração como de repúdio. E, em sendo incorporadas, deixarão de ser instâncias da sombra, bem como reduto de memórias de personagens, que chamei de iluminados, para serem e integrarem consciência como expressão assumida da totalidade que cada um de nós precisa ser. E assim, e tão somente assim, quando todos os duplos deixarem de ser imagos e se tornarem incorporados como atributos da criatura, o Eu maior, o processo de individuação se realizará.

As nossas piores e as nossas melhores imagos

É meu entender que os piores, ou os mais danosos de nossas imagos, são decorrências de vivências afetivas traumáticas, enquanto nossas melhores imago são decorrências de vivências afetivas criativas, agradáveis, carinhosas que tivermos com todas as pessoas e situações que permearam nossas vidas.

  • a. Com a mãe ruim e/ou com todas as pessoas e situações que foram sentidas como fontes de vivências de desamparo, de solidão, de tristeza, de carência, de dificuldades de expressarmos afeto, de sermos continente, acolhedoras, forjamos imagos sombrias.

  • b. Vivências com a mãe boa e/ou com todos as pessoas e situações que permearam nossas vidas como fontes de acolhimento, amorosidade, aconchego, continência, colo, abraço, carinho e que o Ego identifica como a mãe boa, forjamos imagos iluminadas.

  • c. O Eu maior (ou Self) demanda pela conscientização do quanto as predisposições arquetípicas mobilizadas por vivências terríveis ou agradáveis conseguiram se atualizar como imagos de si, passando a ocupar espaços e fazer com que o Ego se conduza pelos valores das próprias imagos incorporadas, imagos essas que não são o Self, mas sim imagos minhas agindo com autonomia. Tanto as imagos iluminadas ou boas como as desagradáveis, sombrias, precisarão ser avaliados e segundo um processo de elaboração reflexivo, transformados em eu sou (ou não sou) por escolha dessas imagos. Ou seja, deixar de ser produto de um pai/mãe bons ou de um pai/mãe terríveis para tornar-se indivíduo. Escolher-se assim implica assumir-se pelo reto-agir.

As incontáveis imagos (duplos) de cada um de nós!

As incontáveis imagos que carregamos decorrem de vivências nas quais estruturas primordiais arquetípicas foram acionadas por mobilizações emocionais agradáveis ou causadoras de sofrimentos. A criança no colo da mãe (ou substituta) acolhida num continente como se fora um útero reconfigurado (ALVARENGA, 2020) experimenta, certamente, sentimentos de proteção, acolhimento, embalo, bem-estar, ou seja, protegida. A reedição dessas vivências acrescidas de carinho, amamentação, massagens e outras tantas demonstrações de acolhimento amoroso devem concorrer para a forja de imagens mentais de mãe boa. De outra parte, quando a relação entre a mãe (ou substituta) for permeada por ameaças, agressão física de caráter doloroso e tantas outras demonstrações de repúdio, rejeição e/ou abandono, essas atitudes concorrem também para a forja de imago, ou duplos da mãe terrível na psique de quem viveu o sofrimento.

E, assim, a forja de imagos subjetivas, agradáveis ou desagradáveis, se faz: e todas as criaturas se povoam de imagos de pai, de mãe, de irmãos, amigos, professores, concorrentes, polícia, de intimidadores e agressivos, de abusadores, misericordiosos e infelizes, de sarcásticos e de tantas outras faces de duplos ou imagos que em nós habitam.

E, enquanto não nos conscientizarmos de que somos povoados pelas imagos ou duplos, agiremos como se fôssemos conduzidos por criaturas, sem nos darmos conta de agirmos dessa forma como decorrência de nossas próprias imagos, criaturas de nossa psique. Quando essas imagos permanecem, tão somente, como integrantes de nossa sombra, portanto, não conscientes de que são imagos, muitas são as vezes que projetamos para o outro, com quem nos defrontamos, a responsabilidade por desencadear em nós comportamentos insólitos. Fazer outro responsável pelo comportamento da própria sombra (imago que também é instância de si mesmo e da qual não se tem consciência) nos inocenta de responsabilidades. Mas, o mais íntimo de cada um sabe que é parte do si mesmo agindo. E, assim, as pessoas se fazem autoritárias ou submissas, agressivas ou ofendidas, miseráveis, culpadas, dependendo da conjunção forjada pela parceria com os outros concretos e os outros simbólicos, e que são nossas imagos.

Somente quando pudermos entender o quanto nossos outros simbólicos são realmente responsáveis por muitas de nossas atitudes e ações, somente quando pudermos atentar para o quanto nossas atitudes decorrem da interação de nossas imagos com os outros concretos, sem que nossos egos constatem estar sob as demandas dessas interações, poderemos compreender a magnitude da importância de nos dedicarmos ao processo reflexivo, explicitado no texto do Bhagavad Gita, que simbolicamente retrata a imperiosidade da realização do combate, qual seja, incorporarmo-nos de todos os nossos duplos, nossas imagos sombrias tanto quanto das iluminadas! Esta é a maior guerra que precisamos enfrentar!

O Bhagavad Gita e a incorporação simbólica das imagos sombrias e das iluminadas

Quando Krishna, no texto Bhagavad Gita, insiste para Arjuna conduzir a guerra contra os Kauravas, que são seus parentes, bem como entre eles se encontram a própria mãe, tio, tia, primos, amigos, mestres a quem deve seus conhecimentos e técnicas de lutas, parece-me que a grandiosidade do texto se encontra fundamentalmente na leitura simbólica das tantas lutas que demandam por serem travadas com todas as imagos sombrias e com as iluminadas para que se tornem instâncias da própria individualidade, cujo desafio singular a ser elaborado é propósito maior do processo de análise.

A leitura simbólica do Bhagavad Gita como um processo de elaboração de realidades sombrias que nos habitam e confundem, levou-me a atentar também para o quanto as imagos ou duplos de todos os demais, amigos, mestres, exemplos de virtudes, presentes em todos nós, como se fossem outros, são, na realidade, instâncias nossas; para que realmente cada um de nós se faça individuado, sem cisões, sem projeções no outro, sem desmembramentos esquizoides, sem dissociações. É fundamental que sejam, simbolicamente, mortos para que renasçam em nós, transformando-se na totalidade de tudo quanto vivemos, sofremos, invejamos, repudiamos, desejamos, odiamos, amamos! Qual seja, a totalidade do EU SOU!

A incorporação das imagos sombrias bem como a incorporação das imagos iluminadas é uma guerra descomunal, um desafio ensandecedor, um trabalho de anos de análise, um confronto mítico, o desafio da Vida!

Krishna como manifestação da sabedoria intencional do inconsciente

Von Franz (2011), em seu texto Sonhos, diz: “Parece, haver em nós uma inteligência superior que poderíamos denominar guia interior ou centro divino que produz os sonhos, cujo objetivo parece tornar a vida do indivíduo a melhor possível” (p. 96). Servindo-me de suas palavras e com elas concordando, quer me parecer que a proposição de uma inteligência superior qualificada por Von Franz como guia interior ou centro divino, meu entendimento é a de que essa manifestação divina se faz explicitar em muitas outras realidades humanas, além de nos sonhos, quer as de caráter psíquico como as intuições, os insights, como também nos textos considerados sagrados, como a presença de Krishna no Bhagavad Gita.

No capítulo III, item 43 do texto do Bhagavad Gita (VYASA, 2012), encontramos a seguinte citação, seguida da observação de Rhoden:

43 - Uma vez que conheceste o Eu Supremo, supera os sentidos, a mente e as emoções, pelo poder do EU SOU. Derrota os teus inimigos, que, em formas várias, a ti se apresentam. (p. 28)

23. Nessas últimas palavras aparece nitidamente o sentido simbólico da luta que Arjuna enfrenta: os inimigos que usurparam o trono da alma são os sentidos, a mente e as emoções, que devem ser superados para que o príncipe Espírito (alma) possa ocupar o trono que lhe compete e proclamar o reino de Deus...

Inegavelmente, tanto a citação de Krishna: “Derrota os teus inimigos que, em formas várias, a ti se apresentam”, quanto as amplificações simbólicas propostas por Rhoden são explícitas em apresentar as imagos da psique como realidades sombrias que, imperiosamente, demandam por integrar-se à instância do Eu Superior. Todavia, em nenhum momento, explicitamente, se ocupa da necessidade de que as imagos iluminadas (e não somente as sombrias) também precisem sofrer o mesmo processo, sem o que não há como conseguir-se experimentar a individuação!

Krishna pode ser considerado como a manifestação do sagrado que encontramos relatada nas mais variadas expressões da realidade divina, conforme afirma Von Franz, e que eu entendo como a sabedoria do inconsciente presente no processo simbólico de individuação de Arjuna.

Referências

ALVARENGA, M. Z. O primeiro tribunal de júri. Junguiana, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 129-35, jul./dez. 2012. [ Links ]

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Recebido: 01 de Junho de 2023; Aceito: 14 de Novembro de 2023

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