Introdução
Psique é natureza — essa ideia, que permeia toda a obra de Jung, sempre calou fundo em mim, de modo que caminham juntos, de forma orgânica, o trabalho, a vida pessoal e a compreensão de psique. É algo que conheço e que vivencio. Durante uma chuva forte, uma ventania ou uma tempestade, pego-me observando o movimento agitado das copas das árvores próximas, ao mesmo tempo que admiro a firmeza e a resistência dos troncos. Caminhando pela cidade, pequenas flores que brotam em fissuras do concreto, nas calçadas e nos muros me impressionam, lembrando-me da poesia de Drummond e de uma certa flor que furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Sei que não são apenas metáforas; talvez seja o símbolo vivo se manifestando em mim. Mas importa-me descrever, aqui, a experiência: um jeito de estar no mundo, em que as coisas vão revelando múltiplos significados. E a vida acontece e fortalece-se nesse momento, na trama tecida entre a percepção do vento nas árvores, da flor nas fissuras da calçada e o caminho das imagens mentais, dos pensamentos, das memórias e até, em momentos abençoados, da poesia. Não o poema, dor e delícia dos que se dedicam à arte de ser poeta, mas a vivência poética acessível a quem está vivo, penso eu. Colho o que brota espontaneamente e absorvo. Esperança, compaixão, fé na vida, energia vital ou tantas outras formas de nomear o que essas imagens me trazem. Com essa divagação, entramos no território da psique e nos processos simbólicos de resistência, de renovação e/ou de cura.
Nos últimos anos, manifesta-se o retorno à natureza em um campo maior da sociedade, seja devido à questão ambiental urgente, à pandemia, que disparou alarmes de emergência, ou à tomada de voz pela comunidade indígena, expondo uma cosmovisão própria. Enquanto ameaça global à saúde da população humana, a pandemia ressaltou a emergência da questão ambiental para a vida do planeta. Um mundo distópico, em destruição, ameaçado de várias formas, inclusive por um vírus, tornou-se evidência incômoda, pesadelo invadindo a vigília, tema recorrente na mídia, nas conversas, nas produções científicas e culturais. O assunto também marcou presença, em múltiplas tonalidades emocionais, na clínica e nos grupos de supervisão e aprimoramento de profissionais.
Neste texto, parto de devaneios sobre a vida vegetal e perambulo por lugares, recortes subjetivos e objetivos, descobertas, costuras de ideias, entre realidade e sonho. Uma circum-ambulação desde as meditações cotidianas que mobilizaram a exploração do tema na psicologia analítica rumo a outros saberes e à questão climática. Assim, seguindo o texto, apresento alguns dados objetivos da situação ambiental, especificamente em relação à saúde mental e à psicologia. Retomo ideias de Jung sobre a psique como natureza e a árvore enquanto símbolo de individuação. Em seguida retorno ao momento atual, pós pandêmico, encontrando afinidades e possibilidades de diálogo com pensadores contemporâneos e com o pensamento indígena brasileiro que, em outro contexto coletivo, social e político, resgata o sonho como via de resistência e de construção do futuro, de forma análoga às ideias de Jung sobre o sonho na psique individual.
Caos climático e saúde mental
“Apesar de nosso domínio orgulhoso da natureza, ainda somos vítimas dela tanto quanto sempre o fomos, e não aprendemos a controlar nossa própria natureza, que devagar, mas inevitavelmente, contribui para a catástrofe.”
A afirmação de Jung citada acima soa visionária no Antropoceno, o período geológico vigente marcado pelo impacto das atuações humanas no clima. Na 28ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP28), que ocorreu em Dubai nos Emirados Árabes, de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023, o secretário-geral da ONU, António Guterres, classificou o momento como colapso ambiental no planeta, com recordes de temperaturas, de tempestades, de enchentes e de incêndios florestais devastadores. Novas denominações são utilizadas, como caos climático, catástrofe ou colapso climático, sugerindo um ponto de não retorno respaldado por dados sobre a emergência climática divulgados durante o evento, tais como: aumento do número de mortes prematuras provocadas pela poluição do ar; aumento de mortes por ondas de calor extremo; aumento dos deslocamentos de pessoas vítimas de desastres relacionados a eventos climáticos. Os índices são devastadores (Talamone, 2023).
Em 2009, um artigo publicado no The Lancet apontava as mudanças climáticas como, potencialmente, a maior ameaça global à saúde do século XXI (Costello et. al, 2009) e, nos últimos anos, é crescente o número de pesquisas relacionando mudanças climáticas e saúde mental. Um artigo publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health faz uma revisão de pesquisas realizadas em diversas regiões do planeta e encontra evidências que apontam fortemente para uma associação negativa entre alterações climáticas e saúde mental, tais como piora do sofrimento psicológico e da saúde mental, aumento de hospitalizações psiquiátricas e aumento das taxas de suicídio (Charlson et. al, 2021). Os pesquisadores reconhecem que esse é um campo de pesquisa em crescimento exponencial, ainda com limitações, e reforçam a importância de maiores investigações e de evidências científicas mais consistentes sobre a ligação entre saúde mental e alterações climáticas, tendo a perspectiva do planejamento de ações e de políticas a serem implementadas para mitigar esse impacto.
Certamente o caos climático afeta a saúde mental em espectro amplo, demandando perspectivas diversas e ações psicossociais. Mais diretamente, observou-se o impacto emocional decorrente de eventos climáticos extremos, os efeitos emocionais decorrentes de rupturas, de perdas e de deslocamentos em populações afetadas, mas também a maior incidência de angústia e de ansiedade sobre o futuro (Fritze et al, 2008). A ansiedade climática e a insatisfação com as respostas dos governos são generalizadas em crianças e jovens em países de todo o mundo e têm impacto no funcionamento diário dessas pessoas (Hickman et al, 2021). Como profissionais de saúde mental, mesmo que não atuantes no setor público ou em movimentos ambientalistas, é necessário estarmos cientes dessa situação, da qual somos todos vítimas e pela qual somos todos responsáveis. O termo “ecoansiedade” é agora amplamente reconhecido no meio científico, sendo abordado em inúmeras pesquisas. Diante da gravidade da questão ambiental é parte de nosso trabalho reconhecer as defesas psíquicas presentes no enfrentamento dessa condição, espécie de sombra coletiva a ser transformada.
Psicologia e ecologia
No meio acadêmico dos EUA, o encontro entre ecologia e psicologia vinha ocorrendo desde a década de 1960, mas o termo “ecopsicologia” foi cunhado por Theodore Roszak, historiador, escritor e ensaísta estadunidense, em seu livro The Voice of the Earth (1992). Roszak já era um autor conhecido, e particularmente feliz na criação de novos termos. É dele o conceito de contracultura, tema do livro de 1969 A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil, publicado no Brasil pela Editora Vozes em 1972. Banhada no espírito da contracultura, em que a visão crítica permeia ideias e ações, surge a ecopsicologia, área que reúne e que articula psicologia e meio ambiente. Como campo de pesquisas e de práticas, a ecopsicologia busca promover uma compreensão mais profunda da relação entre a psique humana e o meio ambiente, considerando que essa compreensão pode influenciar atitudes e comportamentos futuros nessa relação. Ao mesmo tempo, a ecopsicologia critica a postura dissociada e destrutiva de grande parte da sociedade em relação à situação ambiental. No Brasil, um importante representante é Marco Aurélio Bilibio Carvalho, psicólogo atuante em Brasília, fundador e presidente do Instituto Brasileiro de ecopsicologia, que, com perspicácia, ressalta a importância da ecopsicologia:
Num misto entre ciência e engajamento político e assumindo a indissociabilidade entre ambos, a ecopsicologia assume um olhar ao mesmo tempo ingênuo e radical. Ingênuo quando foge do senso comum e do que é aceito como realidade, ousando fazer as perguntas viscerais que ficariam escondidas e, pelas quais, o senso comum pode ser questionado. E radical porque, ao fazer essas perguntas, não respeita nenhum acordo com a normalidade vigente, olhando para o núcleo das crenças disfuncionais da cultura e comprometendo-se apenas com a sua superação. Não fosse essa radicalidade, a ecopsicologia não seria necessária. Ocorre que, apesar de não ser encontrado na literatura ecopsicológica, o termo mais apropriado para definir seu ponto de vista sobre a normalidade vigente é normose — a normalidade que carrega uma neurose oculta e não assumida nem percebida. (Carvalho, 2013)
Todavia, a crise climática apresenta-se tão avassaladora que exige atenção de todos, engajados ou não na ecopsicologia. A psicologia analítica faz-se presente na área, com vários livros de autores junguianos sobre o tema, poucos traduzidos e publicados aqui no Brasil. O cientista climático e analista junguiano estadunidense Dr. Jeffrey Kiehl explora o tema em livros e artigos. No artigo Climate Chaos: A Complex Issue, ele discute os mecanismos de defesa psicológicos presentes diante da questão ambiental e considera como podemos trabalhar com estes complexos — pessoais e coletivos (Kiehl, 2023).1 O Journal of Analytical Psychology (JAP) dedicou uma edição especial ao tema, intitulada Special Issue: Our enviromental and climate crisis, em novembro de 2022. Robin B. Zeiger (2022), em seu artigo Dark feet and dark wings: penetrating the depths of the Earth, chama atenção para o quanto nós, analistas de consultório, precisamos estar atentos à questão para escutarmos seus sinais expressos na clínica.
O estado agudo de perturbações climáticas que vivemos exige cuidado, conscientização e atenção à nossa relação patológica com o planeta e com as questões ambientais. Embora possa não alterar a realidade terrível de encarar, isso pode nos curar de nossas dissociações e de nossos negacionismos, abrindo novos caminhos. E de que natureza e de que cultura falamos, pois são muitas? Como Ailton Krenak afirma: "Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consiga pensar é natureza" (Krenak & Batalha, 2019). Aqui podemos recuperar a linguagem simbólica, circular entre o pensamento lógico e o simbólico, entre a sustentabilidade emocional, individual e coletiva, em uma dança em que ambos podem transitar, não só no consultório como no mundo.
Psicologia analítica e cosmovisão
“A natureza é um contínuo, e muito provavelmente a nossa psique também o é.”
“[...] o sonho é uma coisa vivente, de modo algum uma coisa morta que ressoa como papel seco. É uma situação viva, como um animal com tentáculos, ou com muitos cordões umbilicais. Nós não percebemos que, enquanto estamos falando dele, ele está produzindo.”
Jung nutriu-se da cosmovisão alquímica para pensar o ser humano e a psique não isolados do cosmo. O termo unus mundus, concepção medieval do alquimista Gerhard Dorn, significa literalmente mundo unitário ou unificado, e propõe uma concepção de mundo em que psique e matéria, ser humano e mundo existem e interagem em continuidade. Jung apoiou-se nessa concepção para formular posteriormente o conceito de sincronicidade. Paralelamente, Jung também foi influenciado por pensadores românticos, como Schiller e Schelling, que denunciavam e lamentavam a unidade perdida:
Por causa da mentalidade científica, nosso mundo se desumanizou. O homem está isolado no cosmos. Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para ele. O trovão já não é a voz de Deus nem o raio seu projétil vingador. Nenhum rio contém qualquer espírito, nenhuma árvore significa uma vida humana, nenhuma cobra incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demônio. Também as coisas já não falam conosco, nem nós com elas, como as pedras, fontes, plantas e animais. Já não temos uma alma da selva que nos identifica com algum animal selvagem. Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente, junto com a fantástica energia emocional a ela ligada.
Esta perda enorme é compensada pelos símbolos em nossos sonhos. Eles trazem novamente à tona nossa natureza primitiva com seus instintos e modos próprios de pensar. (Jung, 2013a, par. 585-586)
Nos limites do contexto histórico, porém representando um grande avanço para a psiquiatria e para a psicologia de então, Jung colocava o cerne de toda a visão de sanidade e de doença na dissociação entre consciente e inconsciente, entre natureza e cultura. E no que ele chamou de o excessivo racionalismo científico da sociedade ocidental que, de acordo com ele, nos privou de um contato mais equilibrado e mais saudável com a nossa natureza interior e selvagem, a psique inconsciente. Todo o método terapêutico visa a busca e a restauração de uma conexão maior com a nossa natureza — o inconsciente coletivo —, ressaltando a ideia de uma natureza não só exteriorizada e materializada — a natureza da psique.
Em seus seminários sobre análise de sonhos realizados entre 1928 e 1930, ao analisar um sonho de um paciente, Jung faz comentários sobre o banho de natureza como reconexão e como purificação da “civilização em demasia”. E, talvez devido ao entusiasmo presente e contagiante nesses seminários, exagerava, alinhado ao modelo crítico romântico, a oposição entre mundo civilizado e selvagem, além da combinação de, por um lado, selvagem e natureza com pureza e, por outro, civilização com sujeira. Compondo com a noção de inconsciente coletivo, comenta as raízes ancestrais dessas práticas. E, bem importante na compreensão da potência regenerativa da imagem psíquica, afirma como e o quanto essa potência pode ocorrer também a partir de dentro, pela conexão com os sonhos:
Onde quer que toquemos a natureza, ficamos limpos. Os selvagens não são sujos — somente nós o somos. Os animais domesticados são sujos, mas nunca os animais selvagens. Matéria no lugar errado é sujeira. Pessoas que ficaram sujas através de civilização em demasia dão um passeio pela floresta, ou tomam um banho no mar. Elas podem racionalizar deste ou daquele modo, mas derrubam os grilhões e permitem à natureza tocá-las. Isso pode ser feito de dentro ou de fora. Andar nos bosques, deitar na grama, tomar um banho de mar, são a partir de fora; entrar no inconsciente, entrar em você mesmo através dos sonhos, é tocar a natureza a partir de dentro e dá no mesmo, as coisas são endireitadas mais uma vez. Todas estas coisas foram usadas em iniciações em épocas passadas. Estão todas nos velhos mistérios, na solidão da natureza, na contemplação das estrelas, no sono de incubação no templo. (Jung, 2014 p. 148)
Deparo-me com novas proposições para os conceitos de natureza e de cultura, para além da divisão entre humanos e não humanos, em que desconstruções e hibridismos vão ressignificando conceitos tão hegemônicos, convocando à transdisciplinaridade. São proposições inovadoras, que nos tiram do lugar comum, nos colocam para pensar e nos convocam a mudar nossa visão de mundo, como acredito que possa ter ocorrido com as ideias de Jung no tempo dele, considerando a ousadia em misturar temas fora dos compartimentos do pensamento acadêmico ocidental da época. Encontro afinidades entre o pensamento junguiano e o pensamento de filósofos, de antropólogos e de intelectuais indígenas contemporâneos, especialmente em relação ao sonho e à vida como uma única trama. O retorno às raízes ancestrais vem acontecendo em várias áreas do conhecimento contemporâneo, quer se comungue ou não do conceito junguiano de inconsciente coletivo.
No âmago do pensamento junguiano temos a concepção de um unus mundus, em que mundo, ser humano e psique formam um todo indissociável. É uma visão transcendente de psique, em que a consciência nasce do inconsciente coletivo, que se estende para além de nós, da natureza e do cosmo. Nós fazemos parte desse todo, e a ideia de desenvolvimento e de saúde implica em manter viva e ativa a conexão com a totalidade. Nos Seminários das visões, Jung fala da vida como continuidade e colaboração entre espécies. Valendo-se de um exemplo de árvores em coexistência com formigas considera:
(....) devemos assumir que a vida é uma espécie de unidade... é realmente um continuum e destinada a ser como é, ou seja, toda uma tessitura na qual as coisas vivem através ou por meio umas das outras. Assim, as árvores não podem existir sem animais, nem os animais sem plantas, e talvez os animais não possam existir sem o homem, e o homem não possa existir sem animais e plantas — e assim por diante. E sendo a coisa toda uma tessitura, não é de admirar que todas as partes funcionem juntas, como as células de nossos corpos funcionam juntas, porque são partes do mesmo continuum vivo. (Jung, 1997, p. 754, tradução livre nossa)
Tal concepção de psique e de ser humano no mundo é essencial na compreensão da teoria e da proposta terapêutica junguianas. O inconsciente coletivo em sua totalidade contém um conhecimento ancestral que se manifesta de forma mítica e simbólica em sonhos, em devaneios e em outras expressões espontâneas da psique. Manter a conexão entre mundo consciente e inconsciente via trabalho psíquico é o fundamento de um estado mais equilibrado de saúde mental e do caminho de individuação, que, para Jung, significava algo dinâmico, um eterno jogo de forças. Em uma conferência realizada em 1927, Jung apontava que a psicologia não era uma cosmovisão, mas uma ciência que poderia nos proporcionar instrumentos para “construir, demolir ou mesmo reconstruir nossa cosmovisão” (Jung, 2000, par. 730). No mesmo texto, ele conclui:
E isto já coloca o problema de uma cosmovisão — de uma cosmovisão que nos ajude a entrar em harmonia com o homem histórico que há em nós, de tal modo que seus acordes profundos não sejam abafados pelos sons estridentes da consciência racional, ou a luz preciosa da consciência individual não se apague sob o peso das trevas espessas e infinitas da psique natural. (Jung, 2000, par. 740).
Meu trabalho como analista coloca-me cotidianamente em contato com a história e a intimidade de muitas pessoas, permitindo que eu circule por mundos diversos ao longo do dia. Jung é mais que uma referência profissional. Estar por inteiro diante de uma pessoa, afinando minha alma para escutar outra alma ao longo de anos transformou não só meu modo de trabalhar, como também o meu jeito de estar no mundo, de sentir e de pensar a vida ao meu redor. Campo profissional e pessoal, estudos e interesses mundanos, meu canto no mundo e o mundão ao redor comunicam-se, fazendo sua alquimia em mim. Meditando sobre a vida, mediada por certa afinidade com as plantas, habituei-me a escutar sussurros e a reconhecer sinais, uma sabedoria que árvores e plantas podem emitir nesse mundo de luzes e sombras. Aprendo, em um conhecimento que vem da “experiência por inteiro”, como diria Jung, alertando para a tendência a privilegiar o pensamento racional diante da apreensão sensorial, da intuição, dos sentimentos.
Árvore — Símbolo vivo
“Uma árvore diz: eu trago em mim uma luz, um pensamento, um âmago, pois eu sou a vida da vida eterna”
“Árvore nenhuma, sabemos, cresce em direção ao céu, se suas raízes também não se estenderem até o inferno.”
O processo de individuação é concebido como caminho ou meta do trabalho analítico, liberando ou revelando potências do vir a ser presentes no inconsciente coletivo, que são desconhecidas ou reprimidas pela consciência. O Self enquanto parte do inconsciente coletivo traz a potência a ser desenvolvida ao longo da existência. Nesse sentido, o desenvolvimento da personalidade é trabalho da vida inteira e não de uma época específica. Uma ilustração feita por Jung, presente em O Livro Vermelho, expressa essa ideia e reúne visualmente dois símbolos importantes para o desenvolvimento teórico dele, que irão se manter presentes em toda a sua obra. Um ovo cosmogônico e, dentro do ovo, uma árvore cujas raízes conectam-se ao mundo subterrâneo com seus animais assustadores. A árvore cresce em direção ao céu e o centro de sua copa irradia uma luz azulada e branca, formando um halo. (Jung, 2010, p. 135)
Observando essa pintura de Jung, ou mesmo outras ilustrações dele para O Livro Vermelho, podemos apressadamente deduzir que tais imagens — árvore, animais, ovo cosmogônico — são metáforas, analogias, figuras de linguagem utilizadas por ele para expor suas ideias. Mas a perspectiva junguiana é mais complexa, de forma que metáfora e ilustrações são mais do que figura de linguagem e representação pictórica; são símbolos vivos.
Um dado que considero importante em Jung desde os textos iniciais é a busca de uma linguagem simbólica que expresse de forma viva a dinâmica da psique. Nesse sentido, a definição de imagem arquetípica aproxima-se de uma visão animista da psique e as imagens oníricas transmitem uma sabedoria ancestral, como em muitas tradições indígenas. Mediante a dinâmica psíquica, imagens inconscientes chegam à consciência carregadas de energia e movimentam a alma, de forma viva, pulsante, alcançando a dimensão simbólica. É um processo criativo inerente à vida psíquica; assim nos constituímos, psicologicamente, simbolicamente, nessa alquimia criativa de comunicação e de transformação contínua entre mundo interno e mundo externo, consciente e inconsciente.
Imagens de paisagens naturais, e mais especificamente de plantas e de árvores, parecem ter o potencial de evocar em muitos de nós, talvez por afinidade psíquica, nossa própria natureza e nossas representações vitais. E do ato de evocar, importa-me do ponto de vista psicológico, o processo, a movimentação de imagens, a energia psíquica ativada, a vida interior buscando caminhos de expressão e direção. Além do acesso à consciência, a vivência simbólica propicia uma experiência e uma compreensão dos conteúdos inconscientes que não se limita ao conhecimento intelectual, é a experiência por inteiro que se incorpora à nossa existência e ao nosso modo de ser e estar no mundo. Esse processo vital de desenvolvimento e direção também é “árvore”, nosso caminho de individuação, penso eu.
Em A Árvore filosófica, Jung (2013b) faz um percurso de grande amplificação do tema da árvore em tratados alquímicos medievais na filosofia hermética, segundo ele, já que muitos dos alquimistas eram médicos, uma filosofia feita em grande parte por médicos. O ensaio foi originalmente realizado em homenagem ao aniversário de setenta anos de Gustav Senn, amigo de Jung e professor de Botânica na Universidade de Basileia, em 1945 e ampliado e publicado em 1954. Nele, Jung compara e discute representações da árvore na alquimia, em tradições religiosas ocidentais e orientais, em representações e mitos xamânicos e em representações espontâneas de pacientes.
Há trinta e duas ilustrações, entre desenhos e pinturas, a maioria realizadas por pacientes de Jung durante o processo terapêutico com ele e outras produzidas por pessoas externas ao processo terapêutico. Vale ressaltar que grande parte dessas produções pictóricas ocorreram em um período anterior à publicação de Psicologia e alquimia, primeiro livro de Jung sobre alquimia, em 1944. Todos os desenhos trazem a diversidade e a complexidade do tema da árvore: a árvore com flores, com frutos; a árvore crescendo em um globo, na água; a árvore rompendo a terra ou a árvore nascendo de uma figura feminina; a árvore com velas, chamas ou esferas iluminadas; a árvore cercada por repteis, dragões ou serpentes; a árvore que esconde uma pedra preciosa (safira) em suas raízes; a árvore seca caída; árvores com formas humanas nascendo do tronco ou árvores de formas humanas, geralmente femininas, plenas; a árvore com a copa em forma de flor única, da qual brota uma figura feminina. São imagens que provocam ainda hoje um forte impacto, seja pela beleza ou pela potência expressiva da psique.
O tema arquetípico da árvore é presente ao longo da história em períodos e culturas diversas: a árvore da vida; a árvore do conhecimento; na mítica cristã, a imagem de Cristo como fruto ou como a própria árvore redentora; a árvore de Natal com a estrela na ponta e os globos representando os corpos celestes e anunciando um tempo de redenção; a árvore da vida e do destino nomeada Yggdrasil na mitologia nórdica; os ritos de fertilidade e celebração da primavera, em torno de árvores ou plantas míticas. A árvore dos sonhos do povo Yanomami, Mari Hi, está plantada nos confins da terra e envia sonhos aos Yanomami pelo desabrochar de suas flores (Limulja, 2022). São muitos exemplos e muitas associações de árvores míticas, o que expressa a fertilidade do tema. O analista junguiano Erich Neumann, em seu livro A grande mãe um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente (1996), destaca a íntima relação entre os processos de transformação e de renovação psíquica e o simbolismo do mundo vegetal e do mundo do feminino. Para Mircea Eliade (2019), é a visão religiosa da Vida que permite “decifrar” outros significados no ritmo da vegetação, principalmente as ideias de regeneração, de eterna juventude, de saúde, de imortalidade. Assim, a imagem da árvore não foi escolhida unicamente para simbolizar o Cosmos, mas também para exprimir a Vida, a juventude, a imortalidade, a sapiência.
A partir do estudo comparativo dos símbolos da árvore em A Árvore Filosófica, Jung comenta textos e ideias arcaicas, que falam de homens que surgiram de árvores e de árvores que surgiram do homem primordial em uma metamorfose. São ideias que tiveram maior ou menor força em determinadas épocas e culturas. Interessa-me aqui destacar esse fio histórico no imaginário humano, possibilitando a observação da dimensão arquetípica e da potência dessas imagens. A diversidade de formas, manifestações e significados do tema mítico da árvore expressa a vitalidade e a riqueza do símbolo. Árvore e humano em continuidade, um contendo o outro, revelam o simbolismo dos processos de renovação e transformação como um sistema vital de grande amplitude, reverberando aspectos físicos e psíquicos.
Neste momento, no contexto contemporâneo, a busca por salvação para todos nós, viventes, humanos e não humanos, na Terra remete à busca pela cura milagrosa para um planeta doente. O tema da cura milagrosa surge em diversos mitos e na alquimia medieval como substância ou como elixir criado a partir de um fruto ou de uma seiva milagrosa produzidos por uma árvore, geralmente localizada em um jardim ou em um lugar de difícil acesso (Jung, 2013b). De acordo com a visão Yanomami, relatada no precioso livro A queda do céu, elaborado por Davi Kopenawa (2015) em parceria com o antropólogo Bruce Albert, precisamos da floresta inteira para impedir que o céu desabe sobre nós. E, para o povo Yanomami, a dimensão onírica é via fundamental de conhecimento, de manifestação e de construção do mundo.
Da vida entre ruínas
“Uma flor nasceu na rua!”
(“A flor e a náusea”, Carlos Drummond de Andrade, 2012)
“O fundo da psique é natureza e natureza é vida criadora. É verdade que a própria natureza derruba o que construiu, mas vai reconstruir de novo”
Se a psique é um continuum, como pensar a saúde mental especialmente em grandes cidades? Além do ar poluído e de tantas outras questões ambientais, vive-se também sob uma atmosfera contaminada pela pressa, pelo trânsito, pela insegurança, pelas exigências profissionais e financeiras e por outros ingredientes tóxicos da sociedade contemporânea. Imagens de terra arrasada e desesperançada povoam os consultórios psicológicos. Há uma aridez de mundo interior, vivenciada como deserto, como esvaziamento da alma, como perda de vitalidade e de sentido da vida. Sabemos, por experiência clínica, que são imagens típicas de estados depressivos, independentemente de tais estados serem agudos ou crônicos, leves ou graves.
Desânimo, fadiga crônica, esgotamento (burnout) também são sintomas relacionados a um modo de vida e de organização social que privilegia trabalho, produtividade e desempenho, segundo a tese defendida pelo filósofo Byung-Chul Han (2015). Afora os sintomas relatados acima, constato na clínica dificuldade na internalização de experiências, desatenção, esquecimentos, redução da capacidade de simbolizar — uma forma anestesiada, provavelmente defensiva, de estar em ação, uma literalização da vida, que automaticamente poda ou inibe a potencialidade criativa e autorregenerativa da psique. É uma espécie de robotização do humano, de devastação da natureza interior, como tenho observado. Penso: se somos árvores em nosso processo de individuação, somos, em uma sociedade desconectada, desenraizada, árvores desconectadas das raízes.
Curiosamente, Byung-Chul Han, que tanto estudou e questionou as condições de adoecimento psíquico na sociedade atual, permeada pela tecnologia e pela violência da exigência de desempenho, publicou em 2020 um livro mais pessoal. Em Louvor à Terra: uma viagem ao jardim (2022), o autor sul coreano radicado na Alemanha faz uma pausa no tom crítico e pessimista em relação à “sociedade do cansaço” e ocupa-se de encontrar a felicidade que o contato com e o respeito à natureza podem proporcionar. Na obra, ele relata a experiência com os cuidados do jardim como o cultivo da própria humanidade, o que envolve tempo e paciência, espaço para meditação e para contemplação. O jardim, meio de reconexão com a Terra, lugar de redenção e transcendência, permite ao autor ser e estar no tempo. Em um tom lírico, Byung-Chul Han demonstra que contemplação e poesia são irmãs, podendo ser encontradas na arte de cuidar de um jardim. Nossa humanidade também — a palavra humano, aliás, vem do latim humus, que significa terra. E ambos, Terra e humanidade, corremos risco de extinção.
Outro filósofo contemporâneo vem fazendo novas e instigantes proposições a partir da perspectiva da vida vegetal, o que denomina provocativamente “ponto de vida”, e não ponto de vista, no que entende como “virada vegetal” da Filosofia. Emanuele Coccia é professor titular de filosofia na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, desde 2011. Entre outros, publicou A vida sensível (2010), A vida das plantas, uma metafísica da mistura (2018), livro premiado e traduzido para diversos idiomas, e Metamorfoses (2020. Inicialmente voltado ao estudo da Filosofia Medieval, dedicou-se posteriormente à pesquisa da teoria da imagem e da natureza da vida. Coccia pensa o mundo produzido literalmente pelas plantas, consideradas como forças cosmogônicas que tornam nosso mundo um lugar habitável, continente e conteúdo de vida.
Não se pode separar — nem fisicamente nem metafisicamente — a planta do mundo que a acolhe. Ela é a forma mais intensa, mais radical, mais paradigmática do estar no-mundo. Interrogar as plantas é compreender o que significa estar-no-mundo. A planta encarna o laço mais íntimo e mais elementar que a vida pode estabelecer com o mundo. O inverso também é verdadeiro: ela é o observatório mais puro para contemplar o mundo em sua totalidade. (Coccia, 2018, p. 13)
Em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), o pensador, ativista e liderança indígena brasileiro Ailton Krenak faz sábias reflexões sobre o meio ambiente e a contemporaneidade. A partir de contribuições advindas do conhecimento e da cultura indígena, propicia novas perspectivas, que implicam no resgate de conhecimentos ancestrais. Ailton Krenak, Emanuele Coccia e a antropóloga Hanna Limulja encontraram-se, em 2022, em “Meio ambiente e imagens na contemporaneidade”, um programa de investigação transdisciplinar promovido pelo Instituto Tomie Ohtake em uma parceria com a Embaixada da França no Brasil/ Consulado Geral da França em São Paulo com a intenção de debater o estatuto atual das relações entre cultura e natureza a partir de um mergulho em imagens.
Na mesa “A coexistência da vida”, Ailton Krenak apontou a necessidade de repensarmos o conceito de humanidade, além do sentido e da experiência de estar vivo, retomando temas desenvolvidos em Ideias para adiar o fim do mundo. Ele reafirmou a importância de estar desperto e atento para as imagens que brotam dos sonhos como resgate da confiança e da esperança da vida no planeta para todos os viventes. A antropóloga Hanna Limulja discorreu sobre a longa experiência com a vida onírica do povo Yanomami relatada no livro O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami. O mundo das imagens oníricas foi destaque nas palestras, e, em determinado momento, Emanuele Coccia resgatou uma contribuição junguiana para a compreensão do sonho como espaço de experiência viva da imagem e da potência dela, onde cada aspecto do sonho é manifestação do sonhador, para além do próprio eu onírico; somos a imagem, o cenário, os objetos e as personagens do sonho e, através do sonho, vivemos outra vida e experimentamos a continuidade com outras formas de vida, experiência análoga aos relatos oníricos do povo Yanomami.
Considerações finais: Árvore, floresta e sonho — um caminho circular
“Nós, Yanomami, quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las no sonho. Esse é o modo nosso de ganhar conhecimento. Foi, portanto, seguindo esse costume que também eu aprendi a ver.”
“Mesmo que nós não entendamos o sonho, ele está trabalhando e provocando mudanças. Se entendermos, no entanto, temos o privilégio de trabalhar com o espírito eterno em nós mesmos.”
A vivência de morte e de destruição mobiliza a psique, individual e coletiva, na constelação do oposto, a vida; é o que observo na clínica, em pequenas ou grandes doses. Onde está a doença, pode se revelar também a cura, o que permeia o método de trabalho com a psique. As vacinas virais surgem de princípio semelhante, produzidas por formas atenuadas, inativadas dos agentes infecciosos ou por subunidades deles. Em um momento de grandes transformações no mundo e de múltiplas expressões do conflito entre a vida e a morte do planeta, da humanidade e da psique, em tempos de tamanha ameaça à natureza, pergunto-me se ainda podemos evocar e resgatar essa potência regenerativa da imagem da árvore e das plantas.
No início da pandemia, diante da necessidade de adaptação rápida a mudanças necessárias frente à quarentena, criei um rito matinal diário: fazia uma postura de yoga, conhecida como postura da árvore, e durante a prática repetia um trabalho imaginativo: “Conecto-me com a seiva que emana da terra e que alimenta a castanheira ao meu lado na sala, as árvores das ruas e do parque ao fundo e todas as plantas e as árvores do planeta. A seiva sobe por meus pés e percorre todo meu corpo e minha alma, nutrindo-me e dando-me sustentação.” Conforme o tempo disponível ou a necessidade, segui essa prática diariamente. O momento urgente acionou uma busca de conexão com símbolos de vitalidade como via de equilíbrio psíquico. Foi algo que se impôs, não apenas por necessidade individual, como também por uma questão ética, sempre presente, que na pandemia ganhou caráter emergencial: estamos todos em perigo no mesmo barco — como cuidar de mim para ter condições de cuidar das pessoas que me pedem ajuda? A imagem da árvore como “fármaco” cotidiano brotou espontaneamente; sou testemunha ativa de sua potência e grata pelo benefício recebido. Aprendi com as árvores a sustentar-me diante de tempestades. Essa experiência impulsionou meu interesse pelo tema da árvore, da vida vegetal e do meio ambiente e foi semente para este texto e para seu compartilhamento.
Psique é natureza e o inconsciente coletivo é a natureza em nós. Nossa natureza humana contém em si um poder não apenas destruidor, mas também criador, autorregulador e auto regenerador. A alma humana é potencialmente criativa, seja para criar a doença, como para criar a cura, com potencial para fazer brotar vida em fissuras improváveis. Há que seguir a vida como um fio contínuo compartilhado com o meio e com outros viventes; há que escutar os sonhos, fonte de conhecimento, de autorregulação e de recriação da vida; há que afinar a sensibilidade para perceber a vida brotando em espaços cotidianos, mesmo quando entulhados, poluídos e desvitalizados; há que estimular essa potência vital da natureza que insistentemente busca um jeito de abrir novos caminhos.
É tempo de cultivar e de compartilhar sonhos, tempo de acolher perspectivas que possibilitem reciclar nosso modo de estar no mundo, promovendo um reencantamento da vida. O sonho é natureza criativa, todo ser humano é criativo por natureza, e a escuta sensível da alma é transformadora, renovando a qualidade e o sentido de nossa existência. É preciso estarmos atentos a essa função simbólica da psique mesmo que em movimentos imperceptíveis, aparentemente inapreensíveis.
Repensando a floresta como símbolo do inconsciente coletivo e a árvore como símbolo do caminho de individuação, estamos ligados à vida como totalidade cósmica e nos comunicamos com a totalidade, como as árvores se comunicam pelas raízes, em uma intrincada teia colaborativa entre espécies. Nosso caminho de vida é um percurso não só ascendente, mas cíclico, espiralado, propiciando um retorno ao inconsciente coletivo como fonte matriz originária, potência de energia vital, via de restauração e de equilíbrio a apontar e a alimentar a construção de caminhos futuros. Somos árvores em comunhão com a floresta. ■