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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.42  São Paulo  2024  Epub 27-Jan-2025

https://doi.org/10.70435/junguiana.v42.101 

Artigo Original

Curar o queijo, curar a psique: uma metáfora

Curar el queso, curar la psique: una metáfora

Alex Borges Roch* 

*Psicólogo, trainee da XIV Turma da SBPA SP; psicoalex.rocha@gmail.com


Resumo

Observando o processo de fabricação artesanal de queijos, podemos perceber uma possível correspondência entre as fases dessa operação culinária e o processo de análise da psique. Ambos começam com uma desestabilização que pode ser propícia para a construção de algo mais próximo à sua essência ou azedar e se tornar insuportável. Tanto na culinária quanto na psicologia profunda esse processo pode receber o mesmo nome: cura, por vezes também chamado de maturação. Assim, podemos imaginar que, mais do que encerrar o sintoma, a cura poderia significar um amadurecimento da psique. Para este trabalho, traçaremos comparações entre três saberes: o processo de produção queijeira (através de depoimentos de mestres queijeiros da região de Minas Gerais registrados no filme O mineiro e o queijo, dirigido por Helvécio Ratton, em 2011), o processo de psicoterapia na abordagem analítica e, na terceira cadeira desta mesa de prosa, a tradição da alquimia.

Palavras-chave queijo; cura; maturação; alquimia; psicoterapia

Resumen

Observando el proceso de elaboración artesanal del queso, podemos ver una posible correspondencia entre las fases de esta operación culinaria y el proceso de análisis de la psique. Ambos comienzan con una desestabilización que puede favorecer la construcción de algo más cercano a su esencia o volverse amargo e insoportable. Tanto en la cocina como en la psicología profunda a este proceso se le puede dar el mismo nombre: curación. A veces también se llama maduración. Así, podemos imaginar que, más que acabar con el síntoma, la cura podría significar una maduración de la psique. Para este trabajo, realizaremos comparaciones entre tres saberes: el proceso de producción del queso (a través de testimonios de maestros queseros de la región de Minas Gerais registrados en la película O mineiro e o queijo, dirigida por Helvécio Ratton, en 2011), el proceso de psicoterapia en enfoque analítico y, en la tercera silla de esta mesa de conversación, la tradición de la alquimia.

Palabras clave queso; curación; maduración; alquimia; psicoterapia

Abstract

Observing the artisanal cheese manufacturing process, we can see a possible correspondence between the phases of this culinary operation and the process of analyzing the psyche. Both begin with a destabilization that can be conducive to building something closer to its essence or turn sour and become unbearable. Both in cooking and in depth psychology, this process can be given the same name: healing. Sometimes, it is also called maturation. Thus, we can imagine that more than ending the symptom the cure could mean a maturation of the psyche. For this work, we will draw comparisons between three pieces of knowledge: the cheese production process (through testimonies from master cheesemakers from the Minas Gerais region recorded in the film O mineiro e o queijo, directed by Helvécio Ratton, in 2011), the psychotherapy process in analytical approach and, on the third seat at the table for this conversation, the tradition of alchemy.

Keywords: cheese; cure; maturation; alchemy; psychotherapy

Suíça: queijos e terapeutas

Dois assuntos poderiam vir facilmente à memória ao fazer referência à Suíça: queijos e saúde mental. Talvez os dois tenham alguma ligação, pelo menos se fizermos uso das metáforas poéticas e culinárias, assim como podem sustentar as metáforas da alquimia: tanto o queijo quanto o processo psicoterapêutico giram em volta de algo que pode ser considerado um incômodo, um “azedamento”, um tipo de crise, que, se administrado, pode trazer sabor ao paladar e à alma.

Se a Suíça produziu seus mundialmente conhecidos queijos emmenthal, gruyère, raclete, tête de moine, também foi vanguarda em pesquisas sobre saúde mental, no hospital psiquiátrico de Burghölzli, especialmente no século XIX. A partir de 1879 uma equipe comandada por Wilhelm Wundt iniciou pesquisas sobre associações de palavras. Um pesquisador emitia uma palavra-estímulo e o participante da pesquisa lhe dizia a primeira palavra que lhe viesse à cabeça. Anteriormente, em uma pesquisa parecida, respostas que fugiam ao padrão ou que tinham muito tempo de reação eram desprezadas, como algo dado errado, azedado; o objetivo era medir a velocidade de raciocínio.

No Burghölzli eram justamente essas respostas desprezadas, coalhadas, entendidas como erradas, que eram motivo de interesse de pesquisa dos jovens Franz Riklin e Carl Jung, apoiados pelo seu diretor, Eugen Bleuler. A pergunta que lhes instigava na pesquisa do teste de associação de palavras era algo como: o que acontece na psique que faz a pessoa dizer expressões que conscientemente não lhe fazem sentido?

A invenção do queijo pode ter sido algo parecido. É estimado que isso tenha acontecido por volta do período em que o homem fazia a transição de caçador para criador de animais. Com a domesticação de bovinos, ovinos e caprinos surgiu o consumo de leite e a necessidade de conservá-lo como reserva alimentar (Nogueira, 2024).

Podemos imaginar que seu início se deu por experimentação de fenômenos culinários, talvez até mesmo acidentais, como nos narra no cinema o personagem Alecrim, interpretado pelo ator João Miguel, no filme brasileiro Estômago: “Aí o vaqueiro esqueceu o leite lá. No dia seguinte a mulher dele viu que estava tudo estragado. Mulher é curiosa, foi lá, pegou aquilo e transformou em queijo”. (Jorge, 2007).

Em uma rara citação sobre o assunto, em nota de rodapé, o suíço Jung chegou a fazer uma comparação entre humanos e queijos: “Leite gorduroso dá queijo bom, como alguns humanos; outros seriam humanos feitos com leite magro, queijo insossos, e ainda os queijos de leite amargo” (Jung, 2013, p. 118, § 770).

Aqui trataremos como queijo artesanal aquele passível de passar pelo processo de cura. Um queijo contém grandes reservas de energia de proteína, como também dizem os junguianos a respeito da instância psíquica denominada Self, geradora de energia vital. Como um queijo em processo de cura, o Self também é uma instância viva (Jung, 2000, p.173, § 291), o que também nos traz outra curiosidade: a maioria das representações gráficas do Self, na arte, nos sonhos e na mitologia, é circular, como um queijo.

Outra correspondência entre o queijo e o inconsciente é que em ambos adentramos no terreno do arquétipo materno, da nutrição e do aleitamento. Lembramos que no início de seus textos Jung bem associava o inconsciente a uma espécie mãe (Jung, 1999, p. 286, § 450s).

A fabricação do queijo

Jung descobriu as metáforas da alquimia como similares à jornada da alma em busca de individuação. Ele também sabia que cozinhar não era algo fora do dia a dia dos alquimistas. Talvez assim o ato de curar queijo não fosse tão estranho aos mestres alquimistas, conforme o antigo ditado alquímico, citado aqui pelo próprio Jung: “Assim pois estuda, medita, sua, trabalha, cozinha e abrir-se-á então para ti uma torrente salutar” (Jung, 1994, p. 286, § 390).

Com algumas variações, podemos sistematizar o processo de fabricação de queijo em sete etapas: ordenha, talhamento, pingo, coagem, prensa, salga e cura.

Sendo o queijo curado um produto artesanal, muitas vezes encontrado no comércio em sua fase ainda inicial, o queijo meia-cura, utilizaremos os conhecimentos de mestres queijeiros tradicionais, não atentando para os processos industrializados nem mesmo para o queijo mais vendido atualmente, o queijo fresco, também chamado de queijo minas ou queijo branco.

Se a perspectiva junguiana vê como meta a individuação, e a alquimia, o ouro ou a pedra filosofal, a meta do queijeiro artesanal é um queijo macio, com sabor marcante e rico em proteína.

Ao ouvir sobre o conceito junguiano de individuação, um mestre queijeiro talvez pudesse pensar: o leite quer ser queijo! Sua natureza é ir azedando; se for direcionado, sendo acelerado o processo natural, acontece a cura.

Para este texto utilizaremos a pesquisa de campo do autor, na região de São Sebastião da Grama (SP) e Alagoa (MG), e principalmente as citações de mestres queijeiros brasileiros captadas no longa-metragem O mineiro e o queijo, dirigido por Helvécio Ratton, em 2011.

Pastagem e ordenha

Antes mesmo da ordenha, podemos pensar que a origem do queijo se dá na pastagem. Como uma psique que se estrutura a partir da natureza, é a pastagem que dá a gordura proteica1 ao gado, influenciando significativamente a qualidade do leite e do queijo. Após a pastagem, especialmente a de teor gorduroso, a produção do queijo segue, agora com a ordenha do leite. Mas nesse ínterim não podemos deixar a citação de outra significativa transmutação, possivelmente com o objetivo de nutrição e continuidade da espécie, uma alquimia literalmente visceral, acontecida no interior animal: o capim vira leite.

Imaginemos que, enquanto um retireiro suíço ordenhava suas vacas à beira do lago de Zurique, Carl Jung escrevia semelhanças na outra margem desse lago. Seus textos nos apresentam a importância que reside na busca da cura, em que há um nível objetivo, com as informações a respeito da história do paciente, contadas pela consciência do paciente, mas também a coleta de um material vindo do inconsciente, transformado no formato de fantasias faladas ou desenhadas, sintomas, sonhos e sensações e sentimentos que o analista pode perceber em si próprio quando está na presença desse paciente em específico: a transferência. É nesse sentido que entendemos aqui a palavra “cura”. Se o queijo precisa do calor da luz, na medida certa, para perder seu excesso de água, a palavra cura também poderia estar associada a essa fase do processo psicoterapêutico, pois é na interação paciente e analista que poderiam surgir questões que anteriormente nunca ocorreram ao paciente, por se tratar de um ponto cego à consciência deste.

Curiosamente, o verbo “curar”2 tem a mesma etimologia latina da palavra “curiosidade”: c r æ. Neste sentido, o prosear terapêutico permitiria aprofundar e ver angulações inéditas quando o analista se utiliza de sua curiosidade — não no sentido de algo para sua especulação própria, mas com o intuito de compreender a individualidade daquele ser à sua frente.

Quando, ao achar que compreende, ou no julgamento moral, o terapeuta não investiga melhor a fala de um paciente com ele próprio, pode perder assim a oportunidade de auxiliá-lo a ampliar a consciência e entender melhor sua vivência. Em certo texto, Jung até faz chiste dizendo que os terapeutas “não são muito curiosos3” (Jung, 2008a, p. 2, § 3). Se, por exemplo, o paciente conta que tem depressão, e o analista parte do pressuposto que sabe o que significa a palavra depressão e não usa sua curiosidade investigativa, não compreenderá melhor o que aquela pessoa em específico entende e sente como depressão. Por outro lado, isso não significa que o analista deva fazer uma hipótese nova, diferente do relato do paciente, e se apegar a ela como uma verdade, o que também o distanciaria de uma melhor compreensão daquela pessoa em específico.

Assim começa a ordenha do inconsciente, aproveitando a energia contida na gordura do leite; para isso, é necessário discriminá-la da água, majoritária no leite, por isso a necessidade do próximo passo no processo.

Talhamento

Não seria muito difícil imaginar Jung, proveniente de uma região rural de um país conhecido por sua tradição queijeira, assim como um homem interessado nas metáforas das transformações alquímicas, ouvir por exemplo um brasileiro como o mestre queijeiro Sr. Zé4 Mário de Oliveira, da região da Serra da Canastra (MG), explicando o princípio da fabricação de um queijo que, posteriormente, viria a ser curado: “curado que nós considera é assim, por que o queijo ele começa... às veiz ele tem uma doencinha (riso), ele tem lá uma infecção, a bactéria; quando ele vai pra curar, ou ele cura ou ele estraga”. (Ratton, 2011). Talvez neste momento o mestre suíço poderia pensar algo como os riscos do processo de amadurecimento: “a formação da personalidade é sempre um risco” (Jung, 1986, p. 192, § 321).

Nesta perspectiva, Jung e queijeiros poderiam concordar que algo que inicialmente pode parecer ruim, sintomático, não é algo a ser evitado, ou extirpado, mas compreendido, cuidado, pois, sendo administrado de maneira devida, não apenas livraria o desconforto, característica comum à natureza dos sintomas, mas traria um ganho à psique e ao queijo.

Assim, entre um cigarro de palha e um cachimbo, Jung poderia ampliar a prosa quando diz que: “A sintomatologia de uma doença é, ao mesmo tempo, uma tentativa natural de cura” (Jung, 1998, p. 86, § 312), o que provoca a comum concepção atual de patologia, que também busca uma preferência pela pasteurização psíquica.

Deixar o leite azedar não é o mesmo que fazer um queijo. Também fazemos a ressalva que, em psicologia analítica, não se deve confundir esse processo com uma aceitação passiva do sintoma. Não significa que, ao invés de tentar eliminar o sintoma, cabe apenas desistir dessa empreitada e aceitá-lo.

A culinária queijeira antevê o que, posteriormente na história, tanto a prática da psicoterapia quanto os tratados alquímicos anunciam: que o momento de dor não é uma aceitação passiva do sofrimento, mas uma tentativa de resolução. “Não existe doença que não tenha sido também uma tentativa malograda de cura” (Jung, 1991, p. 41, § 68).

Na mesma prosa, continua Jung:

O resultado do tratamento deve ir além da simples solução da antiga atitude patológica [...] A parte doente não pode ser simplesmente eliminada, como se fosse um corpo estranho, sem o risco de destruir ao mesmo tempo algo de essencial que deveria continuar vivo. Nossa tarefa não é destruir, mas cercar de cuidados e alimentar o broto que quer crescer até tornar-se finalmente capaz de desempenhar o seu papel dentro da totalidade da alma (Jung, 1987, p. 10, § 293).

O diferencial entre o azedar e o curar está na administração do processo. Um leite azedo não vira naturalmente um queijo, a menos que haja um cuidado que propicie a transformação, como explica o queijeiro Sr. Jorge Simões, da região da Serra do Serro (MG): “O coalho era produzido na fazenda, com uma parte do estômago do boi” (Ratton, 2011). Sobre a origem desta enzima, a quimosina, que metabolizará os processos de produção do queijo, nos explica o produtor Joãozinho, da região da Canastra (MG): “Desde que há quatro mil anos descobriram que, lá nas arábias, se pegar um estômago de um animal e botar no leite, o leite lá coalhou, descobriu o queijo; o queijo é feito do mesmo modo”. (Ratton, 2011).

Não era incomum que nos processos de cura na Grécia antiga, nas incubações de sonhos nos templos, que o deus aparecesse em forma animal (Groesbeck, 1983, p. 75). Normalmente eram cobras, mas anedoticamente podemos imaginar Lactobacillus no processo queijeiro.

O azedamento do leite transmite cheiro forte, convida moscas e ratos, trazendo alguma repulsa às vísceras humanas. É fermento que vem das vísceras do animal e faz assim sua função. Esse coalho funciona como acelerador de fermentação; sobre o simbolismo disso, nos conta Rulandus no verbete “fermentação”:

O enaltecimento de uma Matéria à sua parte essencial por meio de um fermento que penetra toda a massa e nela opera de maneira peculiar, agindo imediatamente sobre a natureza espiritual. Assim, verifica-se que se trata de um agente de fermentações medicinais que tendo pouco valor simbólico produz a substância mais nobre que a natureza nos permite alcançar (Rulandus, 2012, p. 122, tradução nossa).

Sobre esta fase da fermentação, Hillman já havia feito paralelo entre a alma e uma vaca. Ao explicar circulações e re-circulações de ideias, ele nos lembra da origem primordial do queijo e da cura: “Informações e influências nutrem somente depois de terem sido um pouco fermentadas e cozidas. Pense na alma como uma vaca com vários estômagos” (Hillman, 2011, p. 69). Em outro momento da mesma obra, ele confirma a importância do coalhar: “a fermentação encoraja a coisa a enriquecer-se, a partir de sua própria obscuridade interna” (Hillman, 2011, p. 75).

Pode não nos cheirar muito bem os momentos em que a análise psicológica exala confusões ao ego, escuridão de consciência, onde as verdades fixas vão se tornando relativas e por vezes mentirosas — o que alquimistas chamariam de fase nigredo. É neste momento de desconstrução da matéria que se propicia o nascimento de outra versão dessa mesma matéria, agora “mais essencial”, nas palavras de Rulandus: “depois da fermentação devemos nos calar, por período de quarentena”. (Rulandus, 2012, p. 121, tradução nossa).

Pingo

O chamado “pingo” é uma quantidade de alguns mililitros do soro5 coletados da fabricação do queijo da produção anterior, armazenada e passada à produção atual. Nessa pequena quantidade de líquido estão contidas as fermentações características daquele tipo de queijo, transmitidas em características de paladar pela continuidade do processo linear. Assim, é necessário que o queijo consumido hoje tenha recebido o pingo do queijo feito na semana passada, que, por sua vez, recebeu o pingo do queijo de um mês, um ano ou até mesmo de uma época em que uma família emigrou de outro país.

É esse sabor característico que vai diferenciar os queijos de cada região de um país e até mesmo de uma família produtora para outra, como se fosse um complexo cultural psicológico. Em linguagem culinária, é o chamado terroir6, termo francês que especifica um conjunto de fatores geográficos: topografia, pluviosidade, geologia, características do clima, entre outros.

Nas palavras da pesquisadora Célia Lúcia Ferreira, da Universidade Federal de Viçosa: “Essas bactérias que estão no pingo vão direcionar a próxima fermentação, então elas é que mantêm a uniformidade do produto” (Ratton, 2011).

Sabemos, assim, que queijos e humanos, ou qualquer outra matéria, não são algo à parte de seu meio, mas constituídos a partir de todo seu entorno. Em significativa coincidência, é ainda no início de suas pesquisas que o jovem Jung constata e consegue até mesmo medir o compartilhamento dos complexos psicológicos entre membros da mesma família. Em sua série de palestras no Tavistock Institut, ele faz gráficos de palavras que extrapolavam em tempo elevado de reação entre pessoas de uma mesma família. As mesmas palavras faziam irmãos e pais demorarem para responder. Ali um complexo inconsciente atrasava o processamento do ego (Jung, 2008b, p. 88, § 155).

Como no queijo, junguianos dirão que no processo de cura da psique os motivos ancestrais, tanto da família de origem quanto dos arcaicos da espécie humana, são observáveis em uma pessoa, mesmo que a análise seja individual:

Exatamente como o corpo humano representa um verdadeiro museu de órgãos, cada qual com sua longa evolução histórica, da mesma forma deveríamos esperar encontrar também, na mente, uma organização análoga. Nossa mente jamais poderia ser um produto sem história, em situação oposta ao corpo, no qual a história existe. (Jung, 2008c, p. 67).

Queijeira de profissão, dona Waldete Aparecida Alves da Silva, da região da Canastra (MG), explica o que pode acontecer se não se utilizar essa antiga técnica: “O pingo significa o fermento do queijo, faz o queijo ficar mais saboroso. Se não pôr o pingo, ele fica aquele queijo meio borrachento” (Ratton, 2011).

Coagem e prensa

Talvez Heráclito estivesse colocando na prensa um queijo do tipo feta, de ovelhas, tradicional na Grécia, enquanto dizia que “É morte para a alma tornar-se úmida” (Heráclito, 2012, p.143). Em sua pesquisa sobre alquimia, James Hillman constatou a função do fogo, em especial a natureza do carvão, que “dá um fogo mais puro, onde tudo o que é supérfluo já foi queimado” (Hillman, 2011, p. 49). É dessa maneira que se busca a eliminação suficiente de água para a formação de um queijo não ressecado, pois a gordura proteica continua trazendo maciez. Diferente do leite, disponível na natureza sem a intervenção humana, o queijo é opus, obra construída e cuidada, como nos diz o antigo linguajar alquímico: “o alquimista trabalha com essências; essa natureza tratada, cozinhada, conquistada, não com a natureza crua” (Hillman, 2011, p. 41).

Manusear um queijo é muito mais fácil do que transportar leite, com seus riscos de azedamentos. Assim, não nos é muito difícil comparar isso ao processo descrito pela psicologia arquetípica ao tomar como exemplo a alquimia:

Somente quando a substância foi inteiramente cozida, e foi verdadeiramente separada de seu modo de ser histórico e habitual, pode-se dizer que uma alteração foi alcançada. Então a substância, que a psicologia poderia chamar de um complexo, torna-se menos autônoma e mais maleável e fundível, tendo perdido sua independência como um objeto intratável que objeciona e resiste (Hillman, 2011, p. 58).

Nessa busca pela essência do leite, o momento de talha de um laticínio dá início à coagulação, o que não é coincidência ao pensarmos na operação coagulatio, da antiga alquimia. Partículas vão se aglutinando e solidificando, começando a formar uma massa branca que se tornará o queijo, ou uma nova consciência, na metáfora humana. Imaginemos aqui os possíveis paralelos de uma transformação de mente, a metanoia alquímica, uma pessoa que, ao amadurecer, se torne mais segura, não rígida, mais consciente de quem se é — não por determinação do ego, mas pela conversa interior entre ego e Self.

Um mestre queijeiro passando por análise poderia traçar paralelos entre sua arte ancestral e essa nova arte: aos poucos, durante a conversa com alguém que traz ideias novas, não percebidas, sugestões de observações através de outros pontos de vista, que vão se juntando a outras percepções, que promove uma imagem que abre novas conexões mentais, a psique começa a ter maior percepção de quem ela é mais próxima de seu todo, na sua circularidade, muito maior do que um ego, mas sem a inflação deste.

É na fase da prensagem que o queijo passa pela coagem, discriminando-se em uma separatio alquímica o líquido, já quase sem proteínas, e a massa sólida e branca que irá para a prensa, uma forma cilíndrica com fundo falso e furos7, para ainda acontecer o escoamento de mais água, o que deixa o queijo cada vez mais próximo de sua essência proteica. Os analistas também sabem que, sem a pressão, a prensa dos dois polos de opostos, não acontece a chamada função transcendente, abertura para o nascimento do símbolo (Jung, 1987, p. 157, § 503). Quando o ego desiste de ele próprio resolver a problemática, suas defesas diminuem e então surge o símbolo, vindo do inconsciente, a fim de representar simbolicamente a integração dos opostos.

Jung conhecia o processo psicológico de formação de símbolos provindos do inconsciente e o identifica com os procedimentos alquímicos ao mencionar a elaboração da ideia até seu menor denominador, buscando “a eliminação de tudo o que é supérfluo e adesão a todos os produtos meramente naturais” (Jung, 1987, p. 142, § 486).

Psicologicamente falando, trata-se das ideias que vão se tornando cada vez mais perceptíveis e concretas à consciência, de uma discriminação para melhor apreciação. Assim como se diferencia a quantidade de litros de leite que se transformará em um pedaço de queijo, podemos também pensar o sofrimento da alma: “não podemos manejar todo o sofrimento [...], somente aquela parte que foi separada e tomou uma forma reconhecível” (Hillman, 2011, p. 60).

Ideias que estava diluidamente vagas, reprimidas no inconsciente pessoal, ou ainda potenciais coletivos não imaginados por determinado indivíduo, que vão aos poucos tomando forma mental e passam a um estado mais firme, manejável pelo ego e menos efêmero, mais duradouro. Certo paciente disse: “Eu falo uma ideia maluca aqui e você me escuta, aí eu não posso fazer de conta que eu nunca pensei isso, porque você já me escutou e guardou na sua memória”.

Mas a prensagem não é nada suave, como também não o é o amadurecimento psíquico. Normalmente a pressão aplicada ao queijo é até 40 vezes o seu peso (Cavalcante, 2004, p. 29).

É com a coagulação e a prensagem que o queijo chega à forma que conhecemos, embora sua massa ainda não esteja madura, necessitando ainda, por isso, do processo de cura para tal instância.

A alquimia trata pelo nome de coagulatio a solidificação, a consubstanciação, a encarnação. Não por acaso, um dos ditados mais repetidos nos antigos tratados alquímicos é “dissolva e coagule”8.

Edinger nos deixa entender que, ao conversar com alguém sobre um complexo, isso vai fazendo com que aconteça uma passagem de uma ideia solta, uma fantasia que a consciência logo abandona, para um assunto que ganha densidade, visto que agora há uma testemunha e se torna mais audível, um pouco mais concreto:

A Coagulatio é um processo de secagem. Um importante componente da psicoterapia envolve a secagem de complexos inconscientes que vivem na água. O fogo ou intensidade emocional necessária para esta operação parece residir no próprio complexo tornando-se atuante tão logo o paciente tenta tornar o complexo consciente mediante o compartilhamento com outra pessoa (Edinger, 1990, p. 61).

Nas palavras de Hillman, o processo é constante e multifacetado, pois “somos o cozinheiro e também aquilo que é cozido” (Hillman, 2011, p. 66).

Outra coincidência laticínia significativa se encontra, por exemplo, na mitologia hindu, em que o mundo como o conhecemos hoje se inicia com uma espécie de queijo ou manteiga. A origem do mundo acontece com a divindade Matsya se transformando em um peixe, que se debate em um oceano de leite até que este ganhe consistência.

Na Bíblia, o primeiro capítulo de Gênesis também poderia lembrar o processo de prensagem e forma da fabricação de queijo coagulado, quando o deus Iawe faz a separação entre terra e água.

De forma semelhante podemos trazer à prosa a fala de Jung (Jung, 1987, p. 47, § 366) quando este nos apresenta, como uma comparação, que a construção do ego seria parecida com a construção de uma ilha, que aos poucos vai recebendo sedimentos, solidificando-se em coagulações de grãos de areia, conchas, terra, madeira, em um elevado de terra que já principiava no fundo do oceano.

Nesta perspectiva, é aos poucos que se dá a ampliação de consciência durante o processo de análise: uma ideia que surge como aparente desconforto ao já estabelecido ego e, fazendo sentido, vai aos poucos se tornando familiar e fazendo discriminação entre uma instância anteriormente confusa e indiscriminada.

Se pensarmos o queijo como sendo uma espécie de essência do leite, do qual foi tirado aquilo que anteriormente era água, podemos ter uma alegoria do conceito junguiano de individuação:

A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual (Jung, 2021, p. 467, § 853).

Salga

Um queijo sem sal é chamado na culinária de insosso; curiosamente, essa mesma palavra é usada para se referir a uma pessoa ou evento que seja desinteressante, monótono ou sem graça. É o sal um produto amplamente citado em receitas, tanto culinárias quanto alquímicas9. Normalmente sua prescrição aparece como uma deliberação subjetiva: “colocar sal a gosto”. Em matéria de queijo, “o sal acentua o sabor e ajuda a garantir as boas condições do pingo” (Ratton, 2011).

Nos tratados alquímicos, o sal filosófico é o corpo não volátil, o que traz fixidez. Não pega mais fogo, mas é capaz de absorver a umidade10.

Se na expressão alquímica há concentração de luz dentro de um grão de sal, na cozinha poderíamos popularmente dizer que há no sal vulgar uma concentração de sabor. Aqui precisamos diferenciar que, em si, o sal não é saboroso. Não vemos alguém em sã consciência dizer: “que vontade de comer sal”. Por outro lado, não é usual vermos alguém com vontade de comer alguma refeição “sem sal”, a menos que seja determinação médica.

A função do sal é ressaltar o sabor que já existe no alimento: “O sal torna a parte salgada de um alimento ainda mais potente que as outras, mais fácil de ser percebida pelo paladar”, explica a bioquímica Maria Inés (Genovese, 2024). Um queijo sem sal poderia ser tão nutritivo quanto um queijo com sal. Isso não faria diferença ao aspecto nutricional. A grande diferença parece ter relação com o paladar, o sabor, o gostar de comer aquilo em específico. Algo como uma busca pela vida, não pela sobrevivência apenas mecânica, insossa; semelhante à busca mencionada pela poetiza mineira Adélia Prado, que sabe que há algo maior que o queijo: “Eu não quero a faca / Eu não quero o queijo / Quero a fome” (Prado, 1978, p. 73).

No Novo Testamento, o sal também aparece como de grande importância na metáfora sobre como fazer a vontade de Deus: “Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal perde o sabor, com que lhe será restituído o sabor?”. (Bíblia, 2002, Mateus 5:13-14).

Na tradição alquímica, sal é qualquer produto que reste após uma calcinação. É aquilo que não pega mais fogo, os chamados “restos incombustíveis da calcinação”. Na expressão de um paciente de oito anos brincando durante sua sessão de análise após ter queimado seus desenhos de monstros: “olha, sobrou esse negócio cinza e esse outro que é carvão. O carvão a gente vai guardar pra queimar de novo semana que vem. Esse pó cinza a gente guarda porque ele é antifogo”.

Em linguagem alquímica, Hillman nos explica que o sal “torna possível aquilo que a psicologia chama de ‘experiência sentida’” (Hillman, 2011, p. 93). O sal alquímico está correlacionado à possibilidade de se familiarizar com o sofrimento impossível de ser solucionado objetivamente, “a alma lambe suas próprias feridas para retirar delas seu sustento. Fabricamos sal em nosso sofrimento e, ao mantermos fé neles, ganhamos sal, curando a alma de sua carência de sal” (Hillman, 2011, p. 93). Nos tratados alquímicos, o enxofre faz uma penetração rápida na matéria, mas não necessariamente duradoura; muito diferente do sal. “Aquilo que resulta da cura do sal é um novo sentido do que aconteceu, uma nova apreciação de seu valor para a alma” (Hillman, 2011, p. 94). A função do sal é “fixar, corrigir, cristalizar e purificar” (Hillman, 2011, p.112). Certo paciente lamentava consideravelmente seu azar nos negócios durante a pandemia de covid, falando com mágoa e uma raiva velada, sendo assombrado por uma depressão. Em certa sessão, com ego mais relaxado, disse: “eu só volto a trabalhar se for para ter a vida boa que eu tinha antes”. Suas sessões eram lamentos, luto, até que aos poucos foi percebendo que isso funcionava como uma espécie de protesto, mas que isso não servia para a mudança da situação. Constatava agora seus erros administrativos, além do azar que aplacava não só a ele, mas a toda a humanidade. Essas novas reflexões não resolviam seu problema profissional, mas lhe permitiam achar um sentido, visto que muitas outras pessoas no mundo todo passavam por uma dor semelhante. Também começava a localizar nele próprio uma responsabilidade por ter deixado os negócios de maneira vulnerável. Nas palavras de Hillman:

[...] a questão aqui é a capacidade de internalizar, de admitir e receber um problema em nossa natureza mais íntima como nossa natureza íntima. Isso seria salgá-lo. Um problema encontra sua solução somente quando ele é adequadamente salgado, pois aí ele nos toca pessoalmente, penetrando naquele ponto em que podemos dizer: “Tudo bem, eu admito, rendo me; é realmente um problema meu; tem que ser”. O gosto dessa experiência é amargo, humilha e dura — uma solução durável (Hillman, 2011, p. 104).

Jung relembra que “a dosagem do sal é uma arte: deve ser tomada com grano salis, não com uma ironia amarga e corrosiva, sarcasmo picante ou dogmas fixos imortais, mas o toque habilidoso que dá o sabor” (Jung, 1985, p. 236, § 320). O sal como remédio “na diluição correta acelera a cura” (Hillman, 2011, p. 124).

Cura

Como já dito anteriormente, a invenção do queijo parece ter origem na necessidade de armazenar o leite, que, no formato líquido, estragaria mais fácil que sua compactação sólida. É dessa necessidade que nasce o processo de cura. Mais curado, mais maturado, o queijo fica mais resistente e mais saboroso.

Assim que um queijo acaba de ficar pronto, prensado e enformado, ainda contém bastante água. Sua cor é branca; é o chamado “queijo fresco”. Ele só vai se tornar amarelado à medida que passar pelo processo de cura, o que pode nos lembrar a fase chamada pelos alquimistas de citrinus. Um amarelamento que começa a partir do branco, chamado de “albedo”. Quando se acha que tudo está claro e objetivamente resolvido, a cor branca adquire um tom de gelo, creme, e aparece o amarelo (Jung, 1994, p. 497, § 558).

Na cura, o queijo perde o excesso de água, mantendo sua gordura, o que não o deixa ressecado. Poderíamos dizer que ele fica mais próximo do que ele é de verdade, uma espécie de essência, mas sem perder sua materialidade.

A preferência do queijo branco ao queijo curado é recente, como explica Luciano, produtor de queijo da região da Canastra (MG): “Já tem uns trinta anos que começou a se trabalhar com queijo fresco, por que antes não saía queijo fresco daqui, só saía queijo maturado” (Ratton, 2011). Essas mudanças comportamentais no consumo do queijo se devem também às tecnologias elétricas. É com o advento da geladeira que se torna cada vez mais comum o consumo de queijo branco, mais recomendado pelos nutricionistas, por conter menos gordura e ser menos calórico, além de mais barato: “Com a facilidade do transporte, não era mais no lombo de mula ou do carro de boi, o queijo chegar fresco no local de venda, isso foi mudando o hábito alimentar; foi aí que nós começamos a rejeitar o queijo maturado”, diz o queijeiro. (Ratton, 2011).

Em matéria de queijo (assim como também algumas carnes11), o processo de curar também pode ser chamado de maturar. É a ação enzimática que, administrada por uma ação humana, permite, em vez do natural “estragar”, conseguir maior maciez e ressaltar o sabor do alimento, como também faz o sal. Também se usa o termo “curar” na construção civil, em que esse termo significa “cuidar”, no sentido de evitar a evaporação prematura da água na estrutura concretada, o que poderia provocar trincas, fissuras.

Sobre cura como sinônimo de amadurecimento, trazemos a explicação pelo produtor Zé Mário Oliveira, da Serra da Canastra: “Uns fala curado, outros fala maturado. Nóis fala é curado”. (Ratton, 2011). Nesta perspectiva, curar é amadurecer.

Talvez estivesse comendo um queijo suíço, em 1932, quando Jung colocou a maturidade como um dos tripés para o que chama de “personalidade”: “a personalidade já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade” (Jung, 1986, p. 177, § 288).

Sugerimos aqui pensarmos o processo psicoterapêutico no qual buscar a cura é buscar o amadurecimento, não necessariamente a remissão de sintomas.

O médico alquimista Paracelso também devia se inspirar em queijos ao imaginar que o amadurecimento da alma traz estabilidade, autenticidade, sendo dinâmico, mas não algo de uma escolha que o ego possa fazer e se arrepender. Sobre isso Jung cita Paracelso: “O queijo não volta a ser leite, a coisa gerada também nunca tornará a aparecer em sua primeira matéria” (Jung, 1994, p. 333, § 430).

Se curar fosse apenas a eliminação do sintoma para que o sujeito melhore e volte ao seu estado anterior à crise (como costumam dizer os pacientes sofrentes: “Ah, como eu queria que tudo voltasse a ser como era antes”), voltaríamos ao mesmo estado emocional causador da crise e do sintoma. Assim teríamos um looping de melhora e retorno à situação anterior, por sua vez propiciadora de uma nova e semelhante crise.

O cotidiano do processo de curar o queijo poderia nos lembrar o cotidiano de um processo de análise, em que a sombra vem a receber luz. Nesses processos, tanto no queijo quanto na psique, a entrada de luz é fundamental, mas deve acontecer gradualmente, sessão por sessão, tomando luz de ambos os lados, como nos explica aqui o mestre queijeiro Ismar Pimenta:

Às vezes se planta uma árvore ao lado da queijaria, pra não pegar o sol da tarde, e você consegue mudar a qualidade do queijo. A queijaria não pode tomar o sol da tarde porque o queijo artesanal ele é tudo natural, vocês não têm nenhuma câmara, nenhuma geladeira, você tem que ter uma temperatura ambiente própria para a produção do queijo (Ratton, 2011).

Esse cuidado, sinônimo de cura, é demonstrado na entrada gradual de luz nas várias áreas do queijo, preciosismo do processo maturacional. Assim ensina Waldete Aparecida, da região da Canastra (MG): “tem que virar os queijo todo os dia assim. Cedo e de tarde, pra eles amarelar por igual” (Ratton, 2011).

Nesta busca pela apuração do sabor, do se tornar mais íntegro, como mais próximo do que realmente se é, levantamos aqui a possibilidade de um conceito de cura que seja diferente do conceito de “ausência de sintomas”.

Jung apresenta seu método como ferramenta para auxiliar o sujeito a se descobrir, perceber em si um modo mais autêntico, mais genuíno, observando com sua consciência as demandas do inconsciente e negociando estes posicionamentos com as demandas dos que estão à sua volta. Não se trata de aumentar a adequação social. Diz ele sobre cura: “Para alguns pacientes é apenas necessária uma orientação [...] para outros cura significa transformação […] será um processo chamado individuação, tornar-se aquilo que de fato é” (Jung, 1998, p. 7, § 11). Aqui, cura é sinônimo de individuação. Nos parece que para Jung o verbo “amadurecer” pode ser usado como sinônimo de “individuação”. Ao comentar sobre como poderia ser a formação de um professor exemplar aos alunos, é esta sua orientação: “Ninguém pode educar para a personalidade se não tiver personalidade. Não é a criança, mas sim um adulto quem pode atingir a personalidade como o fruto amadurecido pelo esforço da vida orientada para este fim” (Jung, 1986, p. 177, § 289).

Na imaginação de um degustador de queijos, Hillman fala aqui sobre cura, tanto de queijo quanto de alma:

[...] somente quando a substância foi inteiramente cozinhada, e verdadeiramente separada de seu modo de ser histórico e habitual, pode-se dizer que uma alteração foi alcançada. Então a substância, que a psicologia poderia chamar de complexo, torna-se menos autônoma e mais maleável e fundível, tendo perdido sua independência como um objeto intratável que objeciona e resiste (Hillman, 2011, p. 58).

A descoberta do queijo é anterior à descoberta da psicologia profunda, mas muito antes desses dois já havia a psique. Portanto, não nos parece coincidência que esses dois tipos de cura sejam semelhantes. Em ambos os processos não há um fim, uma linha de chegada exata. Como a psique, o queijo artesanal é um organismo vivo, onde a fermentação acontece o tempo todo com as leveduras vivas agindo em seu metabolismo, alterando seu sabor.

1Atualmente, há um impasse na criação do gado leiteiro brasileiro, que consiste na escolha entre o moderno capim-braquiária (Brachiaria decumbens) e o capim-gordura (Melinis minutiflora), mais antigo, arrancado nos anos 1960 para ser trocado pelo braquiária. Essa nova pastagem, como prometido, é mais duradoura e produtiva, mas inferior na quantidade de gordura, necessária à produção queijeira. Esse novo capim ainda infiltra suas raízes na terra, dificultando consideravelmente sua arrancada para um possível replantio da pastagem do capim-gordura (Vitor et al., 2024). Como na saúde mental, temos outra vez a intervenção da consciência humana buscando uma maior produtividade, mas acabando por danificar a homeostase natural.

2Uma curiosidade é que na língua ancestral do Brasil, em tupi-guarani, há o termo “curare”, que, em um oposto complementar, significa “unguento para envenenar flechas”, conforme um dicionário de tupi-guarani/português (Yatra, 2024).

3Les savants ne sont pas curieux

4Manteremos a grafia informal de nomes e falas dos mestres queijeiros, conforme grafado no filme de Ratton, 2011.

5Meio litro para cada 100 litros de leite, segundo alguns livros de receita.

6Abrasileirado por alguns produtores como “trem-ruá”, na expressão do produtor Túlio Madureira (Portal do Queijo, 2024).

7Formas de queijo atualmente são feitas de PVC ou silicone, mas inicialmente eram produzidas com tronco de árvore cortado em lâminas e escavado por dentro.

8Solve et coagula, nos textos em latim.

9Cozinheiros sabem que a função do cloreto de sódio (NaCl), o sal de cozinha, é tanto temperar quanto prolongar a vida de um queijo, pois atua como conservante na atividade enzimática e na dessoragem, a eliminação de água. Consultores de fabricação de queijo alertam para o cuidado a se ter com o sal: “Sua utilização deve ser bem conduzida para um correto processo de maturação, pois pode prejudicar a atividade microbiológica e enzimática. Logo, sugere-se salgar os queijos apenas quando atingem fermentação adequada, com o intuito de não inibir a ação do fermento” (Milkpoint, 2024).

10Observando cinzas de plantas em experiências alquímicas, observamos dois tipos diferentes de sais. O primeiro, Sal Salis, solúvel, que pode virar tintura e unguentos, e o segundo é o chamado Sal Caput Mortuum, insolúvel em água, mais estável, mais fixo.

11As enzimas da própria carne agiriam no período de descanso, de cura, de maturação, por volta de 15 a 20 dias, deixando a carne mais macia e suculenta e realçando o aroma e o sabor. Também chamado dry-age (Vilasbôas, 2024).

Referências

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Recebido: 23 de Fevereiro de 2024; Aceito: 19 de Setembro de 2024

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