Anima, animus, Eros e Psique: uma introdução
Jung (2015a, pp. 90-96, § 300-328) trouxe-nos o conceito de anima e animus como arquétipos que se constelam na relação com o outro (o homem se relaciona com sua anima projetada nas figuras femininas e a mulher se relaciona com o seu animus projetado nas figuras masculinas). Entretanto, ele próprio alargou sua visão para além dessa hipótese teórica ligada unicamente à contrassexualidade. Anima e animus foram sendo libertos, aos poucos, da literalidade genética sexual. Publicado em 1954 em Zurique, a partir de um primeiro escrito de 1936, o ensaio “O arquétipo com referência especial ao conceito de anima”, escrito por Jung (2014, p. 74, § 134), desafia-nos a incorporar anima e animus como uma síntese dos aspectos arquetípicos ligados à união entre ambos. Ele nos relata que a anima é encontrada em diversas sizígias divinas, ou pares divinos masculino-femininos, os quais tornam masculino e feminino interdependentes e simultâneos na estrutura arquetípica da sizígia (Jung, 2014, p. 68, § 120). Complementa com a ideia de que um arquétipo não projetado não possui forma determinável, mas reflete uma possibilidade em manifestar-se em diversos formatos. Jung conceitua anima como alma, e uma alma que precisa do mundo para realizar-se. Hillman (2020) segue uma direção coerente com tal reverberação da anima, a qual se revela como aspecto universal da realização da alma e da estrutura arquetípica da psique. Byington (1983) considera tal arquétipo anima-animus como arquétipo da alteridade. Alvarenga (2015) tece reflexões sobre os arquétipos anima e animus como existentes em cada indivíduo, e o desafio do encontro dar-se-á na dinâmica entre manifestações, projeções e integrações das polaridades consigo mesmo, a partir da vivência com o outro.
Sustentado por essa amplitude conceitual, na qual alma é a psique em individuação, e de que “fazer alma” é humanizar anima-animus, trago uma reflexão sobre o mito de Eros e Psique como imagem mítica do desenvolvimento relacional do ser consigo mesmo, com o outro, e com o mundo.
Não é minha intenção apresentar pormenores do mito de Eros e Psique. Muitos são os trabalhos e artigos que o analisam sabiamente (Kalsched, 2013; Von Franz, 2014; Brandão, 2015; Neumann, 2017). Ao invés disso, tentarei esboçar resumidamente momentos-chave desse escrito de Apuleio (2019), para que possamos reconhecer entrelaçamentos entre alguns aspectos da existência humana simultaneamente à descrição dos principais eventos do mito.
Mito é símbolo, e este tem a capacidade estruturante, aglutinando energia psíquica e redistribuindo-a de maneira a transformar os processos inconscientes em conscientes, e vice-versa (Byington, 1983). O próprio indivíduo (e toda a sua complexidade psíquica) configura em sua história um mito pessoal, desde a concepção ao seu desfecho final (Jung, 2015). Imerso inicialmente no campo ideativo parental e coletivo, o mito encarna e, ao longo da própria historicidade, toma forma diante do mundo (Alvarenga, 2009). Não há como nos separarmos desse mito pessoal. Não obstante, frequentemente, resistimos em abrir espaço para o contato entre o consciente e o inconsciente em nós. Eros e Psique também se encontram aí. Felizmente, assim como neste mito, o campo existencial vai sendo traçado de forma que ambos, inevitavelmente, experimentem-se, entre eles e neles mesmos. A vida proporciona-nos inúmeros desabrochares do inconsciente, dos aspectos arquetípicos e da potencialidade anímica, através dos mais corriqueiros eventos, nas mais simplórias caminhadas, e nos meros refúgios da própria totalidade que somos.
O nascimento de Eros
Existem algumas narrativas da mitologia grega que relatam o nascimento de Eros. Na cosmogonia órfica, Eros (Ou Fanes, deus-criador e andrógino) tem origem a partir do Ovo primordial, gerado no Éter através de Crono (Tempo) e Caos (Vazio primordial, vale incomensurável). Na cosmogonia de Hesíodo, Eros, a força do desejo, teria surgido com Geia (Terra) e Tártaro (habitação profunda), após o Caos. Chega a ser considerado filho de Mercúrio (Hermes) e Ártemis Ctônia, ou de Mercúrio e Afrodite Urânia. Platão relata, no Banquete, que Eros teria nascido da união entre Póros (Recurso) e Penía (Pobreza). Entretanto, durante a história mítica grega, as duas genealogias que mais se impuseram na cultura mostram Eros sendo filho de Afrodite Pandêmia e de Mercúrio, bem como de Afrodite e de Ares. Ele é alado e foi moldado por poetas e escultores, sendo este o representado, por exemplo, na escultura Cupido e Psique, de Antonio Canova (Brandão, 2015).
Simbolicamente, podemos assimilar Eros como um processo imagético que carrega a fonte unificadora e mobilizadora do mundo, como um espelhamento de uma energia psíquica que se manifesta desde o “caos primordial”, transitando pela corporificação do desejo carnal pelo outro, até alcançar a plenitude relacional do eu com o outro e consigo mesmo. Poderíamos, talvez, associar a imagem de Eros à própria energia psíquica, o que pode também ser nomeada de libido.
Segundo Neumann (2017), a relação primal existente no início da vida do ser, entre o recém-nascido e a mãe, tem um caráter de Eros, que se manifesta cósmica e transpessoalmente, em primeiro momento, para depois ser diferenciada a partir do desenvolvimento egóico. Neumann traz o Self como, inicialmente, apresentado na própria relação mãe-bebê, para depois ser discriminado no indivíduo. Para Fordham (2017), no estágio inicial da vida, o Self individual já se encontra autônomo em relação à mãe. Apesar da diferença conceitual entre os autores, o Self parece ser estruturado por Eros. Há uma relação entre Self e Eros, os quais se entrelaçam como uma estrutura mantenedora, nutridora, reguladora e organizadora da individuação do ser. Quando não há Eros, a realização do Self está comprometida, e, assim, seremos convocados a uma mobilização de Eros para que o fluxo da própria vida continue possível.
Considerando Eros como filho da união entre Poro (Recurso) e Pênia (Pobreza), segundo Platão (1991), percebemos um aspecto de “carência” e outro de “recurso” (Brandão, 2015). Talvez Platão reconhecesse a busca insaciável de Eros em diversos cenários, por vezes aterradores e autodestrutivos, porém, quando direcionada, lapidar-se-ia numa plenitude das relações.
No início do mito de Eros e Psique, a relação mãe-filho de Afrodite-Eros é praticamente uma participation mystique, na qual o filho vive mergulhado indiscriminadamente na “grande mãe”, permanecendo em dinamismo matriarcal (Byington, 1983). Sob um ponto de vista da alquimia, é possível relacionarmos tal estado à solutio, uma imersão e dissolução, que tem como agente o princípio de Eros, Vênus ou Afrodite, segundo Edinger (2009). Eros vive no desejo imediato através de vivências fugazes, como menino alado de má conduta à moral pública, que corre durante a noite pela casa dos outros incendiando lares e cometendo escândalos (Apuleio, 2019). Apesar de aparentemente viver pelo próprio desejar, em realidade é levado por uma experiência não apropriada e integrada no Self, sendo escravo das situações condicionadas pela falta de uma plenitude, já que o próprio sentir é atrelado à mãe, Afrodite. Ela o chama e ordena uma tarefa: destruir a vida da belíssima moça que estaria ofuscando a própria beleza. Ele, Eros, deveria fazer com que Psique se apaixonasse pelo pior e mais horrendo dos homens. Percebe-se aqui a existência de Eros ainda como apêndice da própria Afrodite.
Hillman (1984) clarifica Eros como impulso de individuação que arranca a personalidade de sua inércia e a estimula ao desenvolvimento. Apesar de defender que Eros em si não se transforma, mas que nós seríamos transformados por ele, é possível reconhecer que há no Eros humanizado o caráter iniciático para esse desenvolver. Quando Eros encontra Psique, há um chamado que se instala, e, ao invés de ele seguir cegamente o comando materno, vê-se direcionado a aprofundar uma relação com a jovem moça. Hillman (1984) segue relacionando Eros ao fogo (flecha) e ao ar (asas), e Afrodite à água. Jung, em Psicologia e alquimia, descrevendo o vaso hermético, o “útero” do qual deve nascer o “filius philosophorum”, a pedra milagrosa, fala-nos do vaso como um símbolo no qual seria instilada a aqua permanens, para dar início à Opus. Porém, na aqua permanens reconhecer-se-ia o próprio Mercúrio dos filósofos, o qual não somente como água, mas também o oposto, como fogo (Jung, 2012b, p.254, § 338). Mercúrio pode ser representado como uma projeção do próprio Eros, inicialmente direcionado à aqua permanens, corporificada em Afrodite e, no decorrer do mito, em Psique.
Eros encontra Psique e propõe que uma relação amorosa se estabeleça, em um castelo ornamentado, cheio de serviçais para suprir as necessidades e cuidados da jovem, porém com uma condição: a de que eles somente se encontrassem à noite, e ela jamais poderia vê-lo. Ela aceita, envolvendo-se cada vez mais com a presença daquele homem que deveria ser o companheiro de sua vida. Inicialmente, não importava muito quem ele fosse. O apaixonamento arrebatava-os e dispensava a necessidade, por parte de Psique, de conhecer plenamente o ser que ali deitava-se com ela. Em um primeiro momento, a relação de apaixonamento baseia-se em projeções que acontecem em cada uma das partes, de forma que a conexão com o outro além do projetado pode ficar em segundo plano.
Tomadas de inveja pela vivência de aparente felicidade de Psique, as irmãs encontram-na e instilam ideias manipulativas para que a jovem descobrisse a verdadeira identidade de seu amado. Durante uma noite, Psique resolve, com um candeeiro e um punhal, iluminar o companheiro enquanto ele dormia. Ao dar-se conta de quem era o seu amante, quase simultaneamente à iluminação do corpo do deus, uma gota de óleo quente cai sobre o ombro de Eros. Imediatamente, ele voa para longe de Psique.
Sob um aspecto simbólico, percebe-se uma força (exogâmica) que leva Eros para além do seu campo materno, ao encontrar Psique. Porém, há também uma força (endogâmica) que o faz retornar à presença de Afrodite, quando exposto pela luz do candeeiro e ferido pelo óleo – após ser reconhecido não mais como projeção, mas como um ser diferenciado de Psique. Há também uma influência familiar (representada pelas irmãs) contraditória, porque, ao mesmo tempo que os sentimentos das irmãs estariam voltados para destruir o que Psique vivia, ela recebe o “chamado” de uma realidade externa ao castelo, cujo resultado é o fim do mundo perfeito e fantasioso no qual Psique ocupava com o desconhecido, auxiliando-a, assim, a libertar-se do estado ilusório que experimentava até então (Kalsched, 2013). Só após as duas irmãs jogarem-se do penhasco – uma representação simbólica para a discriminação entre Psique e as irmãs – e sob orientação de Pã, Psique decide trilhar o caminho para reencontrar Eros (não antes de, ela mesma, tentar jogar-se nas águas de um rio).
Paradoxalmente, Eros nasce em Psique no momento em que dela ele se afasta. Após a separação vivenciada entre eles e a ferida de Eros, o caminho da jovem se inicia, e ela é iniciada, para então reencontrar o seu amor. Há um aspecto sacrifical que Psique promoveu a si mesma, ao tomar conhecimento de quem estaria ao seu lado. O espírito da profundeza, segundo Jung (2009, p. 112) em O livro vermelho, esclarece em seu processo imaginativo que ninguém poderia nem deveria impedir o sacrifício e que, inevitavelmente, deveríamos buscar os “mosteiros” interiores, bem como os desertos que estariam em nós: “O deserto vos chama e vos puxa de volta, e se estivésseis chumbados com ferro ao mundo dessa época, o chamado do deserto quebra todas as correntes”. Através do sacrifício e do chamado do deserto interior, o preparo para a solidão ocorreria, tal como a que Psique é convidada a experimentar.
Psique: individuação em direção à alma
Psique significa “sopro” ou “princípio vital” (Brandão, 2015). No mito, Psique é descrita como a mais bela das jovens, de forma que muitos homens, apesar de atraídos, não conseguiam pedi-la em casamento. Emanava dela uma beleza encantadora, a qual começava a ser venerada como a própria Afrodite. O que, afinal, essa beleza incomensurável poderia simbolizar? Como tal beleza poderia ser caracterizada em termos do desenvolvimento psíquico? É possível imaginar tal aspecto como a pureza e perfeição paradisíaca representantes do divino, do ouroboros do mundo materno inconsciente, do ainda não diferenciado, do que não foi encarnado ou mesmo humanizado. Seria uma ideia não materializada, cuja inocência e fantasia não demonstram vida mundana, entretanto esboçam uma potencialidade infinita que está em vias de ser realizada.
O pai de Psique, temendo haver alguma maldição que distancia todos os homens da vida de sua filha, consulta o Oráculo de Apolo, e recebe a previsão:
Sobre o rochedo escarpado, suntuosamente enfeitada, expõe, rei, a tua filha, para núpcias de morte. Então, ó rei, não esperes para teu genro, criaturas originadas de mortal estirpe, mas um monstro cruel e viperino, que voa pelos ares. Feroz e mau, não poupa ninguém. Leva por toda parte o fogo e o ferro, e faz tremer a Júpiter (Zeus), e é o terror de todos os deuses, e apavora até as águas do inferno, e inspira terror às trevas do Estige. (Apuleio, 2019, pp. 178-179)
Oráculo, como destino, tão presente nos mitos, carrega em si a inevitabilidade da transformação, de encruzilhada, da tragédia e da surpresa, da morte e do renascimento. Reverbera-se, aqui, no movimento de saída de Psique do mundo familiar e no direcionar de seus passos em direção ao abismo no rochedo, ao desconhecido. Psique, como criança recém-liberada do paraíso e abandonada pela família, mobiliza-nos a convocar Jung, quando ele nos fala que o abandono e o risco a que está sujeita a criança são aspectos que configuram o início insignificante, por um lado, e o nascimento misterioso e miraculoso por outro – a partir de um conflito doloroso aparentemente sem saída (Jung, 2014, p. 170, § 287). “Criança”, complementa ele, significaria algo a se desenvolver rumo à autonomia. Psique não poderia tornar-se sem desligar-se da origem. “O abandono é, pois, uma condição necessária, não apenas um fenômeno secundário”, arremata Jung (2014, p. 170, § 287).
A experiência de Psique com as irmãs mostra-nos a ambivalência das relações familiares no processo de desenvolvimento psíquico. As irmãs instigaram-na para que ela tomasse consciência de quem a acompanhava, sob o risco de perder o amado e retornar, de alguma forma, ao âmbito familiar. Contrariamente, Psique adotou uma postura de tomar as rédeas em busca da sua individuação. Tendo em vista a permanência em relações psíquicas incestuosas e endogâmicas familiares, é possível que a desidealização necessária entre pais e filhos possa mostrar-se atrofiada e desafiadora, gênese de diversos sintomas psíquicos no crescimento do indivíduo rumo à vida adulta – que pode ser considerada como um momento em que a autonomia psíquico-emocional, social e material concretiza-se (Araújo, 2022). Acrescentar-se-ia a autonomia arquetípica, simbolizada pelo recolhimento e pela autoapropriação dos papéis materno e paterno constelados pelos pais ou cuidadores, no eixo ego-self ao longo da individuação. Da mesma forma, os cuidadores primários são chamados a retomarem em si mesmos o papel depositado nos filhos, para que a potência criativa seja reexperimentada nos processos individuais de cada um, além de permitirem-se ser filhos de si mesmos (Galiás, 2003). Ao ser visto por Psique, Eros amedronta-se e retorna ao ambiente materno. A ferida acontece ao mesmo tempo que a moça percebe que o seu amante é o deus do amor. O que antes era “cego”, como um apaixonamento entre dois seres, transforma-se em tomada de consciência de quem é o outro, o que mobiliza o aparecimento dos aspectos sombrios que são acumulados na experiência de cada um. Eis que Psique nasce em Eros após tocar-lhe simbolicamente com o óleo quente — Eros mobiliza-se em dor e vulnerabilidade pela consciência de ser visto. Do apaixonamento, surge a possibilidade do amor. É interessante perceber que o elemento fogo, neste momento, toma a dianteira, o que pode ser relacionado com a operação alquímica calcinatio: o fogo efetua uma “queima” do desejo faminto e instintivo, gerando frustração em Psique por não obter o objeto tão egoisticamente desejado (Edinger, 2009).
Temerosa e desesperada pela partida de Eros, Psique tenta jogar-se nas águas do rio mais próximo, mas é devolvida pelo movimento fluvial e acolhida por Pã, divindade agreste, que reconhece o sofrimento da jovem: “essa marcha incerta e vacilante, essa extrema palidez, os suspiros contínuos, e, sobretudo, esses olhos rasos de lágrimas indicam que um grande amor é a causa de tua mágoa.” (Apuleio, 2019, p. 209) Pã a orienta e direciona a buscar em preces o próprio Eros, e assim Psique embarca numa caminhada em direção ao seu amante. Fica sabendo que Afrodite a estaria procurando e, cansada, desiste de fugir e vai ao encontro da mãe-sogra.
Quando Psique chega ao reino de Afrodite, é levada por Hábito até o encontro da deusa. As servas Inquietação e Tristeza são chamadas para causarem aflição e tormento “à pobre criança” (Apuleio, 2019). Depois de machucar cruelmente Psique, despedaçando suas vestes, arrancando os seus cabelos, manda trazer grãos de trigo, cevada, milho, ervilha, lentilha, fava e papoula, mistura-os e joga-os para que Psique os separe. A primeira tarefa de Afrodite estava dada. Pode-se notar que, mais uma vez, o símbolo da grande mãe surge nos passos da jovem. Ela precisa reconhecer os grãos indiscriminados e criar limites entre cada um deles. “Arranja-os em ordem”, exigiu Afrodite. A ordem, a discriminação, os limites podem ser vistos como características a serem desenvolvidas através da dinâmica patriarcal que toma espaço a partir de uma dinâmica matriarcal instalada, desde o nascimento do ser (Byngton, 1983). A nutrição, o prazer imediato, a receptividade e passividade vão compartilhando espaço com o hábito, a disciplina, a ordem, o limite, e a consciência diretiva. É interessante frisar que a primeira tarefa oferecida pela “grande mãe Afrodite” é criar ordem nela mesma. Psique recebe ajuda de formigas — um representante organizador, persistente e paciente da natureza — e conclui o desafio. Reconhece-se a imagem da operação alquímica separatio, na qual há a divisão (dos grãos) em dois e consciência dos contrários, entre sujeito e objeto, entre o eu e o não eu. Edinger (2019) lembra-nos da separação entre os aspectos literais e concretos de uma experiência e o significado simbólico interior que estão a ela vinculados como algo inevitável ao desenvolvimento humano e à individuação.
A segunda tarefa dada por Afrodite diz respeito a coletar e levar até ela flocos de lã de ouro das ovelhas que pastam numa área ribeirinha próxima. Pela segunda vez, Psique tenta tirar a própria vida, mas é salva por um verde caniço, que a orienta sobre como conseguir a lã: ela deveria esperar que as ovelhas repousassem nas margens do rio; ao passarem por árvores próximas, elas deixariam os flocos de lã presos nas pontas dos ramos. Têm-se os flocos de lã de ouro como substâncias a serem “coaguladas” a partir das ovelhas, os quais dão forma a outros itens que possam derivar da lã. Nesta imagem visualiza-se a operação alquímica coagulatio. A formação egóica pede que o desejo coagule, encarne. A corporeidade é um passo importante no desenrolar da individuação do ser. A vivência de coagulatio de Psique inicia-se junto à materialização do desejo com o próprio Eros, em seguida pela responsabilidade de ter ferido o amante (e de conhecê-lo), culminando na redenção possível a partir da realização das tarefas de Afrodite. O ouro presente na lã pode ser relacionado ao tesouro que potencialmente se materializa com o trabalho paciente de agir conscientemente no momento adequado para coletá-lo – o ouro também está ligado à transformação alquímica do mercúrio, como símbolo do Self integrado. As lãs de ouro, são, assim, entregues à deusa.
Psique precisa, então, realizar a terceira tarefa demandada por Afrodite: ir ao cume de uma montanha escarpada e apanhar um pouco da água de uma fonte presente na região. Ao chegar lá, percebeu que não alcançaria a fonte. Além da dificuldade do terreno — um estreito canal —, dragões vigiavam a fonte. Em desespero, sentiu como se seu corpo estivesse presente, e os sentidos estavam longe (Apuleio, 2019). Nesse momento, a águia de Zeus surge, pega o vaso de cristal e capta a água, devolvendo-a com o líquido. Nessa fase, dialoga-se com a operação sublimatio: uma ascensão que nos eleva acima do emaranhado da existência, amplificando nossas perspectivas, porém, por vezes, distanciando-nos da vida real. O risco é a possibilidade de dissociação, o que simbolicamente acontece com Psique, quando o sentir afasta-se do próprio corpo.
Após entregar a água da fonte para Afrodite, Psique, que já vinha ganhando certo respeito da deusa-mãe-sogra, é convocada para a última tarefa: entrar no inferno, buscar uma parte da Formosura de Perséfone e levar de volta. Mais uma vez, Psique decide tirar a própria vida e, subindo numa torre, prepara-se para o fim. Porém, a Torre auxilia-a a sobreviver, orientando-a a respeito de como chegar ao Hades. Psique deveria ter moedas para dar ao barqueiro Caronte (na ida e na volta), dois bolos para o cão de três cabeças Cérbero (na ida e na volta). Durante o percurso, várias distrações surgiriam — um ancião morto e velhas tecelãs pediriam auxílio, mas seriam artimanhas de Afrodite para que ela não conseguisse alcançar o objetivo. A Torre ainda lhe deu um aviso primordial: a jovem não poderia ver dentro da caixa o que Perséfone teria deixado nela. Tudo se sucedeu conforme a previsão da Torre. Porém, no fim da prova, quase saindo do espaço infernal, Psique pensou: “sou tão boba que vá levar a beleza divina, sem tirar nem um pouquinho para mim e agradar assim, quem sabe, o meu formoso amante?” (Apuleio, 2019, p.239). Então, resolve abrir a caixa, mas não percebeu sinal de beleza. Ao contrário, foi tomada por um sono infernal, o que a deixou em estado de letargia.
Cabe aqui uma consideração a respeito da descida ao Hades. Simbolicamente, Psique deveria enfrentar o próprio inferno para finalmente viver o seu amor. Esse espaço psíquico pode ser encarado como o campo de complexos existentes na sombra pessoal, pela qual somos convidados a atravessar, alcançando a dimensão anima-animus, profundeza da psique através da qual se permitem relações mais inteiras (e reais) com estruturas arquetípicas e com o próprio Self e pode se estabelecer a plenitude do encontro com o outro. Jung (2012, p. 130, § 454) diz que “o ser humano que não se liga a outro não tem totalidade, pois esta só é alcançada pela alma, e esta, por sua vez, não pode existir sem o seu outro lado que sempre se encontra no tu”. O encontro com o outro nos leva, inevitavelmente, à mortificatio — o negrume refere-se à sombra, e há uma possibilidade de tomarmos consciência dela. Edinger (2009) esclarece que explosões de afeto, ressentimento, prazer e exigências de poder devem submeter-se à mortificatio para que a libido emaranhada em formas infantis e imaturas se transforme. Em Símbolos da transformação, escrito por Jung (2013, p. 483, § 646; p. 499, § 668), lembramos do aspecto sacrificial em sustentar os opostos e, consequentemente, abrirmos espaço para o Self. O ego, como afirma Edinger (2009), ao se encarnar, quando se atreve a existir como um centro autônomo do ser, incorpora a realidade substancial, mas se torna, ao mesmo tempo, suscetível de corromper-se e morrer – o resíduo morto e sem valor seria o aspecto imagético da nigredo. Entretanto, naquilo em que, aparentemente, há o vazio, o desprezado, o sem valor, há a psique. Psique morre para encontrar Eros, fora e dentro dela mesma. Eros recupera-se de sua ferida, e tal qual o curador ferido, vai em direção à sua Psique, curá-la (e ser curado), no próprio inferno. Através do processo de conhecimento da própria dor e mácula, Eros consegue salvar Psique de sua própria sombra. O outro de Eros é Psique, e o outro de Psique é Eros. Assim, Eros e Psique renascem juntos, no encontro entre morte e renascimento.
O encontro entre Eros e Psiqué
Eros, após recuperação da ferida, vai ao encontro de Psique. Esta encontrava-se em sono profundo, próximo à saída de Hades. Ele afasta a caixa contendo o que foi oferecido por Perséfone e desperta-a com uma discreta picada de uma de suas flechas. Orienta-a a concluir a tarefa levando o que foi pedido para Afrodite, enquanto o deus segue até Zeus, a quem suplica para ficar junto de Psique. Zeus critica-o pelos golpes que Eros já teria aplicado aos outros, porém aceita o pedido. Solicita que Mercúrio convoque todos os deuses. Quando reunidos, Zeus fala:
Achei que é preciso pôr um freio aos impetuosos ardores de sua primeira juventude. Assim, ele tem dado o que falar, pelo escândalo cotidiano de seus adultérios e tolices de toda espécie. Tiremos-lhe a ocasião e acabemos-lhe com a luxúria de adolescente, encadeando-o com os laços do casamento. Ele escolheu uma moça e tirou-lhe a virgindade. Que a conserve, que a guarde para si, e, unido a Psique, possa fruir para sempre do seu amor. (Apuleio, 2019, p. 241)
Mercúrio leva Psique ao Olimpo. Ela recebe de Zeus um copo de ambrosia: “Toma, Psique, e sê imortal” (Apuleio, p. 241, 2019). Todos celebram em um grande banquete nupcial. Após algum tempo, Psique dá à luz uma filha, chamada Volúpia.
O encontro de Eros e Psique representa o enlace entre duas polaridades que, antes de se oporem, complementam-se. Eros pode ser visto como consorte masculina, no mito, ou uma figura de animus. Psique representa uma imagem de anima. Ambos são considerados aqui a partir de um conceito para além da contrassexualidade. Eros-animus e Psique-anima são forças presentes em cada ser humano. Hillman (2020) defende a ideia de anima como arquétipo da psique. Anima, em um contexto simbólico, vai tendo sua expressão ampliada, desde a sizígia anima-animus a uma qualidade de anima mundis, como alma do homem e do próprio mundo. Neste ponto do mito temos uma convergência de aspectos — na alquimia, Mercúrio estaria simbolizando a figura hermafrodita junto à ligação de Eros com Psique: um intermediário entre espírito e o corpo. Jung nos diz que o corpo é Vênus e feminino, o espírito é Mercúrio e masculino; a alma, como hermafrodita, seria um vínculo entre o corpo e o espírito (Jung, 2012a, p. 129, § 454). Nas figuras codificadas no Rosarium Philosophorum, tão bem analisadas por Jung, é possível assimilar simbolicamente a união do rei e da rainha nas diversas operações alquímicas, culminando na coniunctio. A rainha representaria o corpo, e o rei, o espírito, mas, como Jung relata, sem a alma eles não se ligariam: alma como anima, representada por Psique, em uma face; alma como animus, manifestada por Eros, em outra. “Enquanto não existir o laço do amor, a alma não está presente neles”, completa Jung (2012a, p. 130, § 454). Pensando na individuação como desenvolvimento anímico, Jung (2012a, p. 57, § 361) traz-nos um paralelo entre quatro imagens femininas (de alma) — Eva, Helena de Troia, Maria e Sofia — e quatro estágios culturais de Eros (manifestações diversificadas da energia psíquica com base na dimensão de anima vivenciada). Uma relação “Eros-Eva” estaria relacionada à personificação de relações puramente instintivas; em um outro nível de encontro, “Eros-Helena” seria representante de uma dimensão predominantemente sexual; “Eros-Maria” manifestar-se-ia como respeito máximo e devoção religiosa; “Eros-Sofia” culminaria numa imagem relacional de extrema sabedoria — sapientia (Hillman, 2020). O mesmo processo transformativo, descrito por Jung, através de camadas relacionais pelos espectros de anima, parece ter como símbolo a energia Kundalini, na cultura mítica hindu, a qual, quando liberada, promove o encontro cósmico interior entre a sizígia Shiva e Shakti, junto ao despertar dos chakras (dimensões psíquicas) pela tal energia, primariamente “enrolada” no chakra básico.
Eros e Psique, inicialmente, vivem uma coniunctio inferior (simultaneamente às diversas experiências psíquicas espelhadas pelas operações alquímicas); solutio, no encontro apaixonado, fusionado e cego; calcinatio, após exposição da figura de Eros pelo fogo; separatio, quando um descobre que não é o outro; coagulatio, quando Psique humaniza o próprio desejo através da perda de Eros e, subsequentemente, na busca do mesmo; sublimatio, quando Psique olha panoramicamente a realidade que precisaria viver para encontrar o amante, o que culmina em mortificatio, quando Psique chega ao Inferno e entra em letargia profunda. Ao encontrarem-se após íntimas e epopeicas transformações, realizam a coniunctio superior, objetivo final da opus alquímica, união final dos opostos purificados e retificação da unilateralidade, conforme esclarece Edinger (2009) (os termos “inferior” e “superior” utilizados aqui nada remetem a algo “pior, menos evoluído” ou “melhor, mais evoluído”; antes e somente carregam um diferencial ilustrativo entre camadas que se interpõem, sem no entanto terem embate de “mais” ou “menos” — o superior e o inferior, neste caso, são interdependentes e um não acontece sem o outro). Eros e Psique encarnam-se e humanizam-se na relação eu-outro, no contexto coletivo eu-mundo, mas, primordialmente, na vivência do eu consigo mesmo. É um chamado humano sustentarmos a dinâmica entre ego e Self como palco da potência relacional entre Eros e Psique interiores. A sizígia Eros-Psique, assim como Shiva-Shakti, pode ilustrar simbolicamente uma dimensão intermediária para a conjunção entre os aspectos egóicos, conscientes, e o arcabouço inconsciente e arquetípico canalizado pelo Self.
Conclusão: Eros e Psique, uma coniunctio inesgotável
Após todas as reflexões colocadas neste artigo, medito: “Quando Eros e Psique nascem em mim?”. Perceber a amplitude da energia de Eros ao encontro de nossa psique pode ser algo intimidador. Primeiramente, por não termos consciência da totalidade da energia psíquica que somos. Segundo, porque tememos, em muitos momentos, vivenciar a plenitude desse encontro. Por vezes, o amor assusta, amedronta, e nos dificulta realizarmos através dele, e deixarmos que ele se realize em nós. Edinger (2009) fala-nos do amor como fundamental para a fenomenologia da coniunctio. Entretanto, a energia de Eros na psique pode ser redentora. Partindo de um amor como desejo egoico e mais intensamente fixado na experiência sexual e menos elaborada do próprio sentir (coniunctio inferior), podemos alcançar um amor transpessoal (coniunctio superior). Temos a potencialidade de amplificarmos nosso individuar através das muitas dimensões da sizígia Eros-Psiqué. O aspecto extrovertido da coniunctio mobiliza-nos ao desenvolvimento do amor transpessoal junto à humanidade, o que se faz tão necessário atualmente; o aspecto introvertido da coniunctio nos propicia a conexão com o Self e a realização de quem podemos ser, em sua totalidade (Edinger, 2009).
Eros e Psique expressam-se durante todo o processo do aflorar humano. Inicialmente, após a concepção, o embrião (e, logo após, o feto) encontra-se mergulhado no cosmo erótico pré-nascimento, porém, desde sempre, o Self parece já coordenar todas as atividades, um milagre de auto-organização e ordem, acolhimento, e berço para a própria psique. Somos continuamente convidados a expandir a própria alma diante do mundo, encarnando o Self através do ego que o abarca, para aos poucos criar uma consciência Self-ego manifesta, ampliando-se sem perder a completude primordial. A alma já está presente primordialmente, entretanto enxergamos um pequeno feixe de sua atuação. Infância, adolescência, vida adulta, senescência, em cada fase da existência, buscamos a alma que, em essência, é o que somos. A alma vai, com essa busca, podendo realizar-se. Esse é o paradoxo da opus: buscar fora o que já está dentro.
Urge a necessidade de reconhecermos tais forças no nosso interior, para realizarmo-nos a partir de uma dimensão na qual o amor-alma possa atuar — entre o eu e todos os aspectos que orbitam em mim, entre o eu-outro, entre o eu-mundo, mesmo (e principalmente) diante das limitações apresentadas e do medo de vivermos a corporificação da própria existência. Retomar Eros é repensar diariamente o sentido ético de nossos atos diante das Psiques que se apresentam a nós, seja em âmbito familiar, profissional, social, político e cósmico. Assumir Psique é encarar o chamado para desenvolver-se em direção ao amor e realizá-lo como estrutura e porto seguro nas tarefas que nos são exigidas pela vida. No fim, fica a provocação: “Quando Eros e Psique nascem em você?”. Concluo com a imagem com que Jung nos iluminou sobre o encontro com a própria alma, como estímulo para nossa experiência interior de “animar” e “almar” a vida. Minha alma, onde estás? Tu me escutas? Eu falo e clamo a ti — estás aqui? Eu voltei, estou novamente aqui. [...] Eu encontrei o caminho certo, ele me conduziu a ti, à minha alma. Eu volto retemperado e purificado. Tu ainda me conheces? Quanto tempo durou a separação! Tudo ficou tão diferente! E como te encontrei? Maravilhosa foi minha viagem. Com que palavras devo descrever-te? Dá-me tua mão, minha quase esquecida alma. Que calor de alegria rever-te, minha alma muito tempo renegada! A vida reconduziu-me a ti. Vamos agradecer à vida o fato de eu ter vivido, todas as horas felizes e tristes, toda alegria e todo sofrimento. Minha alma, contigo deve continuar minha viagem. Contigo quero caminhar e subir para minha solidão. (Jung, 2015, pp. 116-117).