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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.42  São Paulo  2024  Epub 27-Jan-2025

https://doi.org/10.70435/junguiana.v42.109 

Artigo Original

Imagens de coniunctio no sandplay: quando Eros e Psiquê brincam na areia

Imágenes de coniunctio en sandplay: cuando Eros y Psique juegan en la arena

Patrícia Dias Gimenez* 
http://orcid.org/0009-0007-2211-5334

*Psicóloga junguiana, mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, membro da SBPA e IAAP. Trabalha em seu consultório particular com crianças, adolescentes e adultos. Coordena o núcleo “Sandplay e técnicas expressivas” na SBPA. Autora do livro Adolescência e escolha: um espaço ritual para a escolha profissional através de sandplay e dos sonhos (Editora Casa do Psicólogo). https://orcid.org/0009-0007-2211-5334. E-mail: patgimenez@uol.com.br


Resumo

A imagem alquímica da coniunctio – a união entre opostos – é o que inspira esta reflexão. O tratado alquímico Rosarium Philosophorum é uma sequência de imagens em que o tema da coniunctio é central e foi uma centelha importante para Jung quando se debruçou sobre a questão da transferência no processo analítico. Como forma de imersão no tema da coniunctio e da relação transferencial, imagens bordadas pela autora ilustram o trabalho, somadas a imagens de sandplay que têm o tema da coniunctio como inspiração. O motivo do encontro é central no conto de Eros e Psiquê, de Apuleio. Ele está presente também nos sonhos e em muitas imagens plasmadas nas areias de sandplay. Por meio da jornada da psique/Psiquê descrita no conto, das imagens na areia e das representações alquímicas bordadas, busca-se uma linguagem mais sensível para se aprofundar na questão transferencial nos processos de análise com sandplay.

Palavras-chave psicologia analítica; coniunctio; transferência; sandplay; Eros e Psiquê

Resumen

La imagen alquímica de la coniunctio – la unión entre opuestos – es la que inspira esta reflexión. El tratado alquímico Rosarium Philosophorum es una secuencia de imágenes donde el tema de la coniunctio es central y fue una chispa importante para Jung cuando investigó la cuestión de la transferencia en el proceso analítico. Como una forma de inmersión en el tema de la coniunctio y la relación de transferencia, imágenes de bordaduras hechas por la autora ilustran este trabajo, además de imágenes de sandplay que tienen como inspiración el tema de la coniunctio. El motivo del encuentro es central en la historia de Eros y Psique de Apuleyo. También está presente en los sueños y en muchas imágenes creadas en las arenas de sandplay. Por medio del viaje de la psique/Psique descrito en el cuento, las imágenes en la arena y las representaciones alquímicas bordadas, se busca un lenguaje más sensible para profundizarse en la cuestión transferencial en los procesos de análisis con sandplay.

Palabras clave psicología analítica; coniunctio; transfer; sandplay; Eros y Psique

Abstract

The alchemical image of coniunctio – the union between opposites – is what inspires this reflection. The alchemical treatise Rosarium Philosophorum is a sequence of images in which the theme of coniunctio is central and was an important spark for Jung when he investigated the issue of transference in the analytical process. As a way of immersion in the theme of coniunctio and the transference relationship, images embroidered by the author illustrate the present work, together with sandplay images that have the theme of coniunctio as inspiration. The theme of encounter is central to the story of Eros and Psyche by Apuleius. It is also present in dreams and in many images created in the sandplay sands. Through the journey of the psyche/Psyche described in the story, the images in the sand and the embroidered alchemical representations, we seek a more sensitive language to delve deeper into the transference issue in the analysis processes with sandplay.

Keywords: analytical psychology; coniunctio; transfer; sandplay; Eros and Psyche

Minha proposta

A imagem alquímica da coniunctio como união ou encontro entre polaridades será minha inspiração neste trabalho. Minha proposta é refletir sobre o tema da eterna busca do equilíbrio entre os polos feminino e masculino em nós, através de nós, e como essa busca se reflete nas imagens plasmadas na areia nos processos de psicoterapia com o sandplay.

As imagens na areia, a escrita poética e as imagens alquímicas nos guiarão neste caminho. Busco, através delas, uma linguagem mais sensível.

Outra experiência que me propus neste processo de mergulhar no tema da coniunctio foi bordar algumas imagens do tratado alquímico Rosarium Philosophorum (Figura 1 e outras) para, através do bordado, vivenciar de forma profunda essas imagens tão inspiradoras de encontro e transformação. Elena Bernabè, escritora e psicóloga italiana, descreve poeticamente essa atividade tão antiga:

Figura 1 Bordado baseado na segunda gravura do Rosarium Philosophorum (o rei e a rainha). Ver Jung, 1986, fig. 2. 

Bordando você se conecta àquele fio fino que pertence a toda a humanidade e aos seus mistérios. Costurando você se transforma em uma aranha que tece sua teia contando silenciosamente ao mundo todos os segredos da vida. Entrelaçando os fios, entrelace seus pensamentos, suas emoções. E você se conectará ao divino que está em você e que segura o início do fio. (Bernabè, s.d., tradução nossa)

Bordar, para mim, é uma atividade repleta de Eros, realizada a partir da alma; é uma vivência de encontro entre fios, tecidos, imagem desenhada que vai se transformando aos poucos através das cores e dos pontos do bordado livre (Figura 2). No ato de bordar, mergulhamos profundamente na imagem, por ser uma atividade demorada, maturada no tempo, como um processo alquímico – a alma projetada na imagem bordada no tecido. Entendo que o sandplay também pode ser uma ferramenta nesse sentido. O bordado e o sandplay são experiências de criação e cocriação.

Figura 2 Bordado baseado na quinta gravura do Rosarium Philosophorum (coniunctio). Ver Jung, 1986, fig. 5. 

No Rosarium, a imagem da etapa alquímica era minha base, minha prima materia, e me permiti cocriar imagens com cores e pontos inspiradores. Apelo aqui à noção de cocriação por se tratar de uma criação intuitiva com base numa imagem que já existe. Essa também pode ser a busca no sandplay ao criar uma cena/imagem com o material disponível: miniaturas e mesas com areia. Nosso objetivo é também uma cocriação no sentido de colaboração, de laborar/ trabalhar junto: a imagem plasmada em três dimensões na areia é uma colaboração entre inconsciente e consciente.

Eros e Psiquê

O tema do encontro ou da coniunctio está presente na belíssima poesia de Fernando Pessoa:

Eros e Psiquê

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera,

Sonha em morte a sua vida

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado,

Ele dela é ignorado,

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A princesa que dormia.

(Pessoa, 1983, p.175-176)

Essa última estrofe sempre me emocionou: aquele que busca e aquela que espera como a mesma pessoa (Figura 3). Duas polaridades em nossas almas em uma busca eterna: o equilíbrio entre as polaridades como opus alquímica, a eterna, constante e cíclica busca em cada um de nós, como indivíduos ou como sociedade.

Figura 3 Cena de sandplay com o tema da coniunctio. 

A poesia de Fernando Pessoa traz uma bela imagem de encontro/coniunctio! O enredo remete ao conto dos Irmãos Grimm, “Rosinha de Espinhos”, mais conhecido como “A Bela Adormecida, mas o poeta o nomeou como Eros e Psiquê! O mesmo casal divino/mortal que inspirou tantos autores junguianos – Erich Neumann, Marie-Louise Von Franz, James Hillman, Rafael López-Pedraza – intitula a poesia.

Em sua obra, Pessoa vivenciou diversas facetas de sua alma e as identificou com os heterônimos. Nesta poesia, vemos a busca do príncipe (o aspecto masculino de nossa alma) e a espera em sono da princesa (o aspecto feminino de nossa alma). No conto/mito Eros e Psiquê (Figura 4) descrito por Apuleio (século II d.C.) no livro O Asno de Ouro, essa mesma temática se cristaliza de forma invertida, e quem empreende a busca é Psiquê, a alma.

Figura 4 Bordado baseado na escultura Eros e Psiquê de Antonio Canova (1793), Louvre. 

Minha intenção neste texto é pensar e sentir o tema da eterna busca pelo encontro, ou casamento psíquico, hierosgamus ou coniunctio, através da alma (não do ego). O tema está presente em muitas imagens mitológicas e contos sagrados – como Eros e Psiquê. E é também constante em nossos sonhos e nas imagens consteladas na areia.

Em seu livro Sobre Eros e Psiquê (2010), Rafael López-Pedraza, analista cubano, relata que o mito:

[...] é o único em toda a literatura mitológica que nos fala da iniciação da alma com imagética mitológica e de conto popular ou de fadas. No legado grego abundam os modelos de iniciação que vão da infância à velhice, modelos que podem ser considerados como etapas do psíquico, mas só o conto do Apuleio nos dá a iniciação da alma na alma. A iniciação de Psiquê no psíquico através de suas penas, seu sofrer, suas emoções: a luta do psíquico. Temos que atribuir à alma a trama e a ação, as imagens e a imagética deste conto. E isso requer um esforço por parte do leitor porque a história nos acostumou a nos referir à alma desde o ego. Mas qualquer coisa que pensemos desde o ego não é alma. (López-Pedraza, 2010, p. 25)

Ainda no início do livro, López-Pedraza cita James Hillman, que, em seu texto “Sobre a criatividade psicológica”, também analisou o tema de Eros e Psiquê de forma profunda:

[…] nos revela que a dinâmica de Eros e Psiquê, por ser arquetípica, vale tanto para o homem quanto para a mulher e que isso acontece em todos nós: todos nós temos direito a Eros e Psiquê. Não importa quem somos, não importa o que façamos na vida, apesar de nossas doenças e misérias – e é possível que por causa delas – Eros e Psiquê estão em nós. (Hillman citado em López-Pedraza, 2010, p.34)

Para López-Pedraza (2010), é tarefa do analista exercitar o “psiquiar”, que traz em si a ideia de gerar movimento psíquico, imagina, movimentar águas psíquicas. Entendo que “psiquiar” é uma forma almada de expressar o que podemos vivenciar com o sandplay, as técnicas expressivas e o bordado, assim como Jung vivenciou por meio da imaginação ativa. Colocar uma imagem em movimento através do sandplay é permitir-se “brincar” com as miniaturas e a areia.

Sandplay

A tradução mais literal de sandplay é brincar na areia. Muitas vezes, esse trabalho também é denominado “caixa de areia” ou “jogo de areia” no Brasil. Mas muitos dos analistas que hoje trabalham com sandplay em nosso país preferem chamá-lo sandplay, justamente pelo sentido de brincar na areia. É importante transmitirmos a ideia de que, em nosso ofício como analistas de sandplay, o brincar é essencial e é livre, portanto sem regras (como a expressão jogo de areia poderia sugerir)!

A areia é um material versátil: quando está molhada, pode ser moldada; quando está seca, permite muitas texturas e desenhos também. Brincar na areia das praias ou dos rios faz parte da nossa história de vida no Brasil e em muitos lugares do mundo. Quando crianças, nós nos encantávamos diante da grande areia. E também podemos nos encantar diante da pequena areia no sandplay!

Mas por que trabalhar com areia? Por que considerá-la prima materia no processo analítico?

Um grão de areia, quando aumentado muitas vezes, se revelam miniaturas de minerais, conchas e cristais de sal.

Os grãos de areia são muito antigos, carregam em si milhares de anos de história. Aparentemente, todos são iguais. Mas, olhando de perto, cada um é único – como as estrelas, como todos nós. O singular e o universal estão reunidos em um grão de areia.

Como diz William Blake, citado por Greenberg, em seu incrível livro de fotografias de grãos de areia (Figura 5):

Figura 5 Grão de areia ampliado em microscópio 3D (Greenberg, 2008). 

To see a world in a grain of sand,

And a heaven in a wildflower

Hold the infinity in the palm of your hand,

And eternity in an hour1.

(Blake citado em Greenberg, 2008, s/n)

Vivenciei o sandplay ao longo de dez anos com a querida Fátima Salomé Gambini, que, por sua vez, tinha vivido um longo processo com Dora Kalff, analista junguiana suíça criadora do sandplay. Em seu único livro publicado, Sandplay: a psychotherapeutic approach to the psyque (1980), até esta data ainda não traduzido para o português, Dora Kalff descreve o sandplay de forma sensível. Para ela, a construção de um espaço livre e protegido através da relação transferencial e contratransferencial é muito importante no trabalho com o sandplay. Pretendo aprofundar esse tema nesta reflexão.

Roberto Gambini, no prefácio do meu livro Adolescência e escolha: um espaço ritual para a escolha profissional através do sandplay e dos sonhos, revela:

[...] Eu sabia, e disso muito me orgulhava e alegrava, que Frau Kalff havia detectado em Fátima qualidades raras e necessárias para dar continuidade ao trabalho que iniciara: um olhar sensível, intuitivo, profundo, mais do que um discurso teórico e intelectual, sobre essa fascinante técnica de representar imagens do inconsciente, símbolos, potencialidades, cenas e conflitos interiores, dispondo sobre uma superfície de areia miniaturas que conferem visibilidade e concretude a tudo aquilo que, na análise dialogada, só pode ser transmitido por palavras e pela contribuição da imaginação. (Gambini citado em Gimenez, 2009, p.14)

Mais adiante, Gambini descreve: “Foi Fátima quem introduziu o sandplay no Brasil, trazendo-o não de livros, mas de sua fonte viva”. (Gambini citado em Gimenez, 2009, p.14).

É lamentável Fátima não ter deixado nenhuma publicação. Mas ela pôde partilhar sua experiência com Kalff e seu profundo conhecimento sobre sandplay e cultura brasileira com cada um que trabalhou com ela em sua pequena sala repleta de miniaturas e com suas maravilhosas areias. Nos últimos anos de vida, ela compartilhou seu vasto conhecimento de sandplay com grupos maiores, em encontros que um pequeno grupo de profissionais organizava, convidando pessoas de várias partes do país para trocar conhecimentos sobre sandplay ou para conhecer esse material tão rico. Tais encontros eram chamados de cooperativa de sandplay.

Minha reflexão neste artigo tem raiz profunda em minha experiência com Fátima, a quem serei eternamente grata. Mas nos últimos 20 anos, desde que ela nos deixou, venho criando e ampliando formas próprias de atuação com sandplay.

Quando proponho o trabalho com sandplay, primeiro sugiro ao cliente escolher com qual areia quer trabalhar: molhada ou seca. Ele se vê diante das estantes de miniaturas e passa a observar interna e externamente quais miniaturas lhe chamam atenção (Figura 6). É um exercício de colheita das imagens. Ao perceber e acolher as miniaturas que querem “brincar comigo”, eu me permito acolher imagens que me conectam com o inconsciente.

Figura 6 Mesas de areia e estantes com miniaturas de sandplay. 

Depois de feita a colheita da areia e das miniaturas, nós nos sentamos frente a frente e, no decorrer da sessão, uma imagem poderá ser criada. As crianças criam de forma dinâmica, em pé ou caminhando ao redor da mesa de areia, montando e desmontando a cena enquanto, muitas vezes, relatam o que estão criando. Os adolescentes e adultos geralmente aceitam o convite para criar sentados, frente a frente, com a areia ocupando o espaço entre cliente e psicólogo. Toda a atividade pode ser em silêncio ou não.

No final da sessão, como fechamento, convido o cliente a fotografar sua cena de forma livre. Ele pode observar e fotografar a cena por diversos ângulos, circulando em torno da mesa de areia.

Em meu entendimento, não precisamos comentar ou interpretar a cena ao final. O essencial é acolher a imagem que acabou de nascer, com respeito e delicadeza. Em outro momento do processo de análise, a imagem criada poderá ser contemplada pela observação da sequência das cenas que foram sendo fotografadas por um período.

Quando Eros e Psiquê brincam na areia: a relação transferencial

Como analistas, nossa busca em um processo analítico com sandplay visa possibilitar esse encontro/coniunctio que se constelará inicialmente na relação transferencial com o analista para que o “espaço livre e protegido” possa ser construído e vivenciado na relação, na forma como o analista acolhe as imagens criadas e as emoções vivenciadas no processo. Isso possibilitará, aos poucos, esse encontro com as imagens criadas na areia de forma cada vez mais autônoma, a percepção desse “espaço livre e protegido” como interno, o acolhimento das imagens pelo próprio cliente e a sensação de segurança nesse encontro consigo mesmo.

O sandplay pode ser vivenciado como uma experiência de encontro com a alma, na medida em que é um convite para brincar: quando nossa psique/Psiquê se permite brincar e dançar e se entregar para Eros. Mas, como no mito, esse encontro exige um mergulho profundo, uma entrega. Não é imediato. Talvez como no mito, nossa alma vivencie essa entrega a Eros como um sacrifício. Na história, Psiquê é entregue por seus pais em sacrifício, após eles consultarem o Oráculo de Delfos. Os humanos estavam cultuando Psiquê, uma mortal, como se fosse uma deusa da beleza. Isso criou uma concorrência de que Afrodite não gostou e exigiu esse sacrifício.

Psiquê é, então, condenada a ser atirada do alto do abismo para ser devorada por um monstro “que é da esfera da serpente” (López-Pedraza, 2010, p.42). Afrodite, com requintes de crueldade, manda o filho Eros flechá-la para que ela se apaixone pelo monstro que a devoraria. Mas quem acaba se ferindo com a flecha é o próprio Eros, que se apaixona por Psiquê e ordena que Zéfiro, o vento do oeste, a conduza até seu castelo, abaixo do precipício de onde ela tinha sido atirada.

Eros aparece no conto como o monstro/serpente que deve raptar Psiquê: é uma imagem demoníaca (daimon) procriadora que surge do Caos primordial. Nesse momento, López-Pedraza (2010, p.40) cita Hillman novamente: “Ele (Eros) representa uma experiência intermediária, conecta o pessoal com algo que está além, e traz isso que está mais além para a experiência pessoal […] torna possível a comunicação entre um tu e um eu.”

Nesse trecho do conto, Eros, monstro e serpente são um só, e o rapto dá início ao processo: vê-se claramente a oposição masculino/feminino. Para o masculino, Eros/ monstro, as bodas se caracterizam pelo rapto, pela ação/agressão/triunfo, força procriadora e satisfação de um desejo. Para o feminino, em Psiquê, é destino, transformação e mistério. Para o feminino, esse ato de defloração representa uma verdadeira conexão misteriosa entre um final e um começo, entre deixar de ser e entrar na verdadeira vida (López-Pedraza, 2010, p. 40). Esse encontro (Figura 7) revela a penosa iniciação de Eros em Psiquê e de Psiquê em Eros:

Figura 7 Cena de sandplay (encontro masculino/feminino). 

Psiquê como a alma que espera, que sofre na espera, mas não está apta a um viver convencional, não foi feita para a mediocridade. Ela espera e precisa excluir o que poderia desvirtuar sua verdadeira vocação (seu chamado interno). Há a possibilidade de se desvirtuar, indo em direção ao coletivo. Para evitar isso, precisa dizer não ao medíocre e se conectar com seu caminho.

Nesse momento, algo me toca pessoalmente: quando López-Pedraza discorre sobre a necessidade de vivenciarmos a espera no cultivo da alma; assim como Psiquê, ele estabelece que é preciso forjar a alma do analista que trabalha com imagens, e isso exige espera, a paciência atenta dos alquimistas na opus alquímica. É preciso estar atento para não cair na armadilha da mediocridade e “excluir o que poderia desvirtuar a verdadeira iniciação” (López-Pedraza, 2010, p. 38.). Ressalta que, se não dermos atenção à verdadeira espera, podemos vivenciar na psicoterapia o que ele denomina “mimetismo psicopático”, que acontece quando seguimos de forma automática os slogans e receitas para viver.

Muitas vezes, é assim que nossa psique/Psiquê chega ao processo analítico: atirada em direção ao abismo. É um sacrifício no sentido de sagrado ofício, mas não nos entregamos por bem, no início. Nos sentimos “forçados” pelo que nos levou ao processo analítico, jogados no precipício como nossa querida Psiquê. O exercício de brincar (Figura 8) com as imagens no sandplay pode não ser divertido no começo; nos desconectamos do Puer em nós que nos permitiria brincar com as imagens de forma livre, sem julgamentos. Nossa consciência precisará aprender a vivenciar a entrega quando chegarmos ao processo analítico: o processo de trazer imagens inconscientes para a consciência, seja relatando sonhos, seja criando através do sandplay; isso exige entrega. E não é fácil no início de um processo.

Figura 8 Cena de sandplay (criança brincando na areia). 

Em nossa história, Psiquê, no belíssimo castelo de Eros, continua inconsciente por um bom tempo: ela se encontra com seu amado no escuro da noite quando ele vem visitá-la, e aceita passivamente esses encontros. Ela confia de forma inconsciente, se deixa conduzir neste período inicial, na vivência paradisíaca da paixão.

No início de um processo analítico, é preciso confiar para que ocorra a entrega, e penso que esse tempo requer o cuidado de não “colocarmos muita luz”. Frédérick Leboyer, obstetra francês, ensinou ao mundo que o momento do nascimento, o dar à luz, deve ocorrer de forma cuidadosa: sem luz direta, sem muitos barulhos, em um espaço acolhedor! Por vezes me pego refletindo sobre a delicadeza dessa entrega e sobre a responsabilidade que temos, enquanto analistas, nesse momento inicial da análise: um tempo de construção do vínculo de confiança projetada inicialmente no analista e que permitirá ao cliente construir o vínculo de confiança com o próprio inconsciente: é o curador projetado inicialmente no analista, através da relação transferencial, para posteriormente, no decorrer do processo, ser reconhecido como uma possibilidade interna: curador ferido enquanto arquétipo/potência que todos temos dentro de nós e que pode atuar através de nós!

Mas esse período lusco-fusco de confiança e entrega precisa terminar em algum momento. No conto, ele se encerra quando as irmãs vêm visitar Psiquê e invejam seu destino, vivendo feliz em seu lindo palácio inconsciente. A inveja das irmãs provoca um movimento necessário ao processo: instiga o medo e a curiosidade em Psiquê. Afinal de contas, com quem ela se deita todas as noites? Por que ela não pode ver seu rosto? Seria ele realmente um demônio, como previu o oráculo? E, com isso, Psiquê sai da passividade e rompe o combinado com Eros: leva luz para seu leito de amor. Ao iluminá-lo com uma vela, ela se assusta com tamanha beleza e deixa cair umas gotas de cera, queimando seu amado e causando-lhe uma ferida. Ele acorda assustado, se irrita com a quebra do acordo e foge para o palácio de sua mãe, Afrodite.

Essa é uma oportunidade no processo analítico, uma crise que pode gerar nova consciência. Psiquê se vê sozinha, abandonada por seu amado. É um momento de separatio, que eu vejo como necessário ao processo analítico. Penso novamente na relação transferencial e contratransferencial, quando surge a premência da separação após um bom tempo de entrega e extrema confiança entre cliente e analista: ao ter mais consciência das polaridades, me coloco na condição de cliente e me percebo diferente do analista. Tenho mais consciência de minhas projeções sobre ele e talvez até das projeções do analista sobre mim. Posso até sentir a necessidade de me opor a ele.

Vivi uma situação muito interessante em um processo de análise com uma cliente jovem, também psicóloga. Ao criar uma cena na areia, sentada à minha frente, ela construiu, muito compenetrada, uma trincheira e havia vários soldados mirando suas armas na minha direção. Eu me senti literalmente “sob a mira” daqueles soldados. Em determinado momento da sessão, eu a convidei a se sentar no meu lugar e me contar como se sentia. Foi quando ela percebeu a situação de “estar sob a mira” (Figura 9). Muito interessante o que pudemos perceber e trabalhar a partir daquela cena: ela conseguiu me trazer o desejo que sentia de conhecer outros analistas, outras linhas de trabalho, pois eu tinha sido a única até aquele momento. A partir dali, trabalhamos o fechamento de seu processo de análise comigo, com cuidado e respeito. Depois de alguns anos, ela me pediu para voltar e pôde me contar suas descobertas e aprendizados e se aprofundar em seu processo de análise.

Figura 9 Cena de sandplay (cena da cliente) 

Poderíamos dizer que a coniunctio precisa se constelar inicialmente na consciência, possibilitando que esta se torne, aos poucos, mais permeável às imagens vindas do inconsciente. É necessário começar criando um vaso alquímico seguro, um temenos, um “espaço livre e protegido” que precisa ser sentido/vivido na relação transferencial e contratransferencial analista/cliente/sandplay, para que essas imagens e as emoções despertadas ao longo do processo analítico possam ser plasmadas na areia e acolhidas no processo. Mas a crise, o momento de separatio no conto e no processo analítico pode nos levar a um nível diferente de coniunctio: não mais do ego para a alma, mas da alma para o ego; não somente uma consciência permeável às imagens anímicas, embora essa seja uma grande conquista inicial, mas uma consciência que se submete ao processo maior de criação, que co-cria da alma para o ego, que confia na própria capacidade autorreguladora da psique.

López-Pedraza utiliza o termo “complô inconsciente” para definir esse momento em nossa história. Ele revela: Eros e Psiquê são os verdadeiros autores do complô inconsciente, “mas o complô provê o tema e a energia para que surjam um novo nível de consciência e uma nova visão vital” (López-Pedraza, 2010, p. 47).

Psiquê se vê só, abandonada pelo amado ferido (Figura 10). Sofrida de solidão, ela não vê mais sentido em sua vida e tenta se matar; se joga no rio, mas o rio a devolve sã e salva a terra, pois não é o sacrifício da própria vida que deve ser feito nesta jornada iniciatória, e sim a submissão da nossa consciência egoica ao que é maior que o humano: o ego precisa compreender a necessidade de se submeter ao divino. De fato, algo deve morrer, ser sacrificado, mas não é o corpo.

Figura 10 Cena de sandplay (encontro consigo mesma). 

Esse sacrifício possibilita o surgimento de uma nova consciência, mais abrangente, não limitada às certezas ilusórias a que tanto nos apegamos. Quem a acolhe e orienta neste momento do conto é Pã – o deus da sabedoria da natureza instintiva, acompanhado da ninfa Eco. Ele a orienta a se submeter ao divino; para isso, ela precisa de introspecção. Acho esse momento do conto muito belo, quando penso nos atendimentos clínicos de jovens, em que a consciência precisa se expandir e fazer pontes, novas conexões/sinapses com o universo amplo que podemos acessar através dos sentimentos, sonhos e sintomas, tão característicos da juventude. É uma abertura que gera muito medo. Dizemos que, para o novo nascer, o velho precisa morrer. Esse momento de morte e renascimento é tão intenso que pode gerar pânico e ansiedade quando a consciência se vê impotente diante de algo maior, bem maior que ela, e duvida de sua capacidade de lidar com essa dimensão. Possibilitar ao jovem o contato com esse temor através suas imagens inconscientes, através do sandplay e dos sonhos, pode ser muito precioso para essa nova consciência vir à luz. Amparados por essas imagens, eles se fortalecem e podem se estruturar melhor para dar conta dessa difícil tarefa.

Psiquê precisa se submeter ao arquetípico.

Eros também precisa se transformar, deixando a dimensão do materno: esta será sua jornada iniciatória através do encontro com Psiquê.

Ela enfrentará vários sacrifícios e encontros em sua jornada, mesmo antes das quatro famosas tarefas. Precisará aprender a lidar com a inveja das irmãs, discriminando o que é dela e o que é do outro, aprendendo com dificuldade a não acolher e atuar as projeções alheias.

Encontrará Deméter, a deusa da natureza. Ao adentrar seu templo, demonstrará respeito pelo trabalho no cultivo da terra, submetendo-se a essa realidade arquetípica.

Encontrará Hera, que se compadece dela, mas não pode ajudá-la diretamente, pois ela precisará se submeter à própria Afrodite, que a procura para puni-la. Quando ela vai finalmente encontrar Afrodite, encontrará Costume, escrava da deusa, que pode paralisar a psique/Psiquê se perdermos a espontaneidade nessa jornada.

Também encontrará Tristeza e Ansiedade, guarda-costas de Afrodite capazes de destruí-la, mas não conseguem.

Por último, encontra Culpa e o risco perpétuo da inflação psíquica ao lidar com essa poderosa emoção. Ao nos identificarmos com forças impessoais, assumimos a culpa por algo que é bem maior que nós. Como consequência, ficamos sobrecarregados e paralisados.

As quatro tarefas/desafios

Psiquê então se vê diante das quatro tarefas/ desafios que Afrodite impõe. Segundo a etimologia da palavra “desafio”: des (afastamento) e fides (fé, no sentido de confiança em uma tradição), as quatro tarefas exigem de Psiquê o sacrifício de se afastar das certezas prontas e se aventurar no novo, a ser construído pela própria experiência, não mais a partir do que recebeu como tradição.

A primeira tarefa exige que ela separe milhares de sementes e grãos (trigo, cevada, amapola, grão-de-bico, lentilha e favas) até o anoitecer. Ela precisa colocar ordem no caos dos elementos da natureza, organizando e classificando. Não consigo deixar de relacionar isso com nossa experiência diante do mundo em miniaturas do sandplay. Para muitos, a primeira impressão em face das miniaturas nas estantes é bem parecida com estar diante do caos. Muitas sementes misturadas. Muitas possibilidades. O cliente precisa confiar que encontrará uma ordem interior ao se submeter à tarefa de colher as miniaturas e depois criar uma imagem tridimensional com elas na areia. Essa tarefa de Psiquê lhe permite diferenciar conteúdos totalmente misturados. Exige uma atitude egoica aliada à vontade, possibilitando reconectar o que está dissociado. As formigas são evocadas nessa tarefa: a conexão de Psiquê com o emocional, com o instintivo, permite que ela cumpra, a tempo e com sucesso, essa tarefa, que inicialmente parecia impossível.

A segunda tarefa demanda que ela lide com o poder solar, o poder destrutivo da consciência: ela precisa recolher a lã de ouro dos carneiros, que à luz do sol são muito agressivos e destrutivos. López-Pedraza entende que Afrodite tenta expor Psiquê a esse poder destrutivo da consciência solar masculina. Se ela tentasse pegar a lã sob o sol mais intenso, seria destruída. Ele ainda aponta o risco de, ao se conectar com o ouro, ser possuída por esse poder, como os colonizadores da América, que, na busca do ouro, destruíam tudo entre eles e o objeto final: o ouro dos tolos (como um governo que acredita ser válido destruir a floresta para obter o mesmo ouro dos tolos).

Ela novamente se desespera e pensa em morte. Esse momento depressivo possibilita que ela escute uma voz interior, uma voz melodiosa vinda da ninfa Cana: para recolher a lã de ouro, ela terá de cultivar novamente a espera (Figura 11): esperar o sol baixar. Ao final do dia, haverá muita lã nos arbustos e ela poderá recolhê-la sem danos. López-Pedraza usa um termo interessante: temple (temperamento, em espanhol), para designar “a disposição da psique para entrar em conexão e harmonia com seu movimento interno” (2010, p.92). Novamente podemos pensar na disposição de consciência necessária ao analista e ao cliente para se conectarem com a imagem criada na areia: no excesso de luz (de consciência solar), destruímos a possibilidade de conexão com a imagem psíquica. Nos paralisamos, e a criação não acontece. No excesso de luz, não conseguimos ouvir essa voz interior. Podemos ser calcinados pela razão excessiva, pela impulsividade que impede que permaneçamos na espera até criar o estado psíquico adequado para acolher o ouro/imagem. É como nos processos de cura na antiguidade, quando métodos de incubação lentos possibilitavam um processo de cura em si mesmo.

Figura 11 Cena de sandplay (A espera). 

A terceira tarefa é muito interessante: trazer um pequeno frasco com a água do Lago Estige. Estige, segundo Kerényi, estava associado ao ódio (López-Pedraza, 2010, p.100). Psiquê precisa conter o ódio em um recipiente, um vaso seguro. A tarefa exige que nos conectemos com o divino e aquela que serve ao divino: a águia de Zeus intervém, e é capaz de entrar em contato com as águas do ódio sem ser paralisada por elas; é o ódio contido em um frasco como força motora para a ação (López-Pedraza, 2010, p.100). Mas antes de tudo, é aprender a lidar com o ódio – lição de casa difícil para todos nós em tempos em que o ódio vem sendo cultivado através das redes sociais, dividindo famílias e impedindo o diálogo. Acho interessante relacionar essa tarefa que exige um vaso para conter uma emoção tão destrutiva, e pensar no espaço da areia, na mesa, na caixa, como um vaso em si mesmo. Muitas vezes percebemos que emoções poderosas podem ser contidas no vaso alquímico do processo no sandplay.

Pude acompanhar uma jovem adulta que, depois de vários anos de análise comigo, e particularmente depois de uma sequência de cenas na areia, conseguiu trazer à luz uma terrível experiência de vida totalmente apagada da memória. Ela havia sofrido abusos sexuais quando criança, por um homem mais velho em quem sua família confiava. E havia enterrado essas memórias terríveis, muito fundo. Um dia, elas vieram à tona logo que saiu do prédio onde ficava meu consultório, ao término de uma sessão em que tinha trabalhado na areia. As lembranças emergiram com força, e ela escreveu tudo de que lembrou e deixou aos meus cuidados. Foi um processo doloroso e difícil: encarar as lembranças, entender o que realmente tinha acontecido, contar para sua família. E acredito que, sem o intermédio da areia, teria sido bem mais difícil o manejo dessas fortes emoções despertadas: raiva, vergonha, medo…

O quarto e último desafio exige que Psiquê desça ao Hades, o Reino dos Mortos, para pegar, com Perséfone, uma caixinha com seu pó da beleza imortal. Nessa tarefa, segundo López-Pedraza, Psiquê precisará entrar em contato com a morte e a depressão para transformar a beleza física em psíquica (López-Pedraza, 2010, p.103). Ela pensa novamente em se matar e sobe em uma torre a fim de se jogar de lá. A torre lhe dá a possibilidade de ver além, de estar acima das coisas para ter maior amplitude do olhar, e lhe dá instruções muito claras e precisas de como entrar e sair do Hades. São fascinantes essas instruções: resistir aos pedidos de ajuda que serão feitos e que a desviariam de seu caminho; levar as moedas para pagar o barqueiro Caronte na ida e na volta; levar dois bolos de mel e cevada para acalmar Cérbero, o cão de três cabeças, tanto na ida como na volta; e não aceitar o banquete de Perséfone, aceitar apenas pão e água. Ela não pode se tornar íntima do local, precisa ir focada no que tem a resgatar e voltar de lá.

Sempre pensei nessa descrição da torre como instruções perfeitas de uma imaginação ativa, condições para um mergulho no inconsciente de forma segura. Aqui penso em como a vivência ritualística permite essa vivência psíquica e entendo que esse é o objetivo maior no sandplay: possibilitar de forma ritual esse abrir-e-fechar de um portal que nos possibilita entrar em contato com a realidade psíquica de forma protegida e segura.

Psiquê segue todas as instruções corretamente; mas, ao receber a caixinha, sucumbe à curiosidade, abre-a e desmaia. Confesso que sempre achei paradoxal esse final do conto: por que ela cederia à curiosidade de espiar o tal pó da beleza imortal? Seria o apego à beleza da juventude ou a necessidade de mergulhar na morte? (Figura 12) Entendo que, através de cada tarefa, nossa psique/Psiquê pode lapidar em si uma habilidade psíquica que possibilita a união das polaridades consciente/inconsciente, feminino/ masculino.

Figura 12 Bordado baseado na sexta gravura do Rosarium Philosophorum (A morte). Ver Jung, 1986, fig 6. 

Ora, diante do Caos das potenciais sementes, ela precisa se conectar à natureza através das formigas para organizá-las (feminino/sementes, nutrição e masculino/organização). Depois, ela ouve sua intuição para evitar o sol intenso e a fúria dos carneiros e esperar o momento propício para acessar a lã/ouro (intuição/espera/feminino; agressividade/sol intenso/masculino). Na terceira tarefa, precisa da habilidade e da precisão da águia, que, portando um vaso seguro, contém o ódio/água do Estige (águia/foco/precisão/masculino, vaso/ emoções intensas/feminino). A quarta tarefa fecha o ciclo: ela precisa literalmente morrer e renascer. A beleza imortal como morte, e o encontro com Eros como renascimento.

E ele a resgata após se libertar do domínio materno. O fruto dessa união consagrada no Olimpo é uma filha. Mãe mortal, filha divina: Volúpia, prazer. O fruto dessa coniunctio, segundo López-Pedraza (2010, p.114), é um viver psíquico erótico. E nossa busca no processo analítico enfoca a descoberta do prazer como fruto desse encontro alquímico. Prazer e brincar podem ser os frutos desse processo.

Conclusão

Dora Kalff entendia que o sandplay poderia se tornar um espaço livre e protegido para que imagens do Self se constelassem na criação na areia e, com isso, ocorresse o processo de autorregulação da psique.

Aprendi que, quando a água de um lago é colocada em movimento, como uma fonte, ocorre a oxigenação dessa água pelo contato com o ar em um processo dinâmico e natural de purificação. E vejo o sandplay assim: permitimos que nossas imagens circulem como a água, a autorregulação acontece. A primeira imagem do Rosarium Philosophorum em Psicologia da Transferência apresenta a fonte de mercúrio (Figura 13), que contém a prima materia. Ao comentá-la, Jung imagina essa fonte se retroalimentando continuamente, como no processo que descrevi acima (Jung, 1986, § 409).

Figura 13 Bordado baseado na primeira gravura do Rosarium Philosophorum (A fonte de mercúrio). Ver Jung, 1986, fig.1. 

Vivenciamos juntos a busca de Psiquê e Eros descrita por Rafael López-Pedraza, e minha intenção era associar essa descrição poética à nossa prática clínica com o sandplay. Através do encontro analítico, podemos vivenciar inicialmente a coniunctio na relação transferencial e contra-transferencial, conforme a capacidade de acolhimento das imagens e a confiança no processo se fortalece. Neste processo circular e contínuo, precisamos fortalecer nossa capacidade egoica de acolhimento dessa realidade da alma que se constela através das imagens. Mas vejo isso como uma primeira conquista neste longo processo. Em um segundo momento, nossa psique/Psiquê se coloca em uma busca solitária e única, vivencia desafios, sacrifícios e encontros e, enquanto analistas, somos parceiros na busca, testemunhas oculares do processo. Muitas imagens de coniunctio podem se constelar na areia no decorrer de um processo analítico. Mas elas não são percebidas dessa forma, a princípio. Reconhecê-las e se conectar profundamente com elas a partir da alma (não somente a partir do ego) é nossa busca eterna, contínua e circular, enquanto clientes e analistas. É nossa meta enquanto opus alquímica (Figura 14).

Figura 14 Bordado baseado na décima gravura do Rosarium Philosophorum (O novo nascimento). Ver Jung, 1986, fig.10. 

1Para ver um mundo num grão de areia E um paraíso em uma flor silvestre Segure o infinito na palma da sua mão, E a eternidade em uma hora. (tradução livre)

Referências

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Pessoa, F. (2016). Obra Poética (v. 1). Nova Fronteira. [ Links ]

Recebido: 18 de Fevereiro de 2024; Aceito: 09 de Outubro de 2024

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