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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.42  São Paulo  2024  Epub 17-Mar-2025

https://doi.org/10.70435/junguiana.v42.120 

Artigo Original

A legalização das apostas e Transtorno de Jogo

Legalización de apuestas y Trastorno del Juego

Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-7956-5244

* Psicóloga. Membro analista da SBPA. Mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Colaboradora do PRO-AMITI no Programa Ambulatorial de Transtorno de Jogo do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. E-mail: mpm_fto@uol.com.brBrasil


Resumo

O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre apostas em jogos de azar e Transtorno de Jogo (TJ). A regulamentação de Bets, apostas online em esportes, foi aprovada recentemente no Brasil e o diagnóstico de TJ e seu tratamento ainda são pouco conhecidos. Diferentes posturas de estímulo, tolerância ou proibição frente aos jogos de azar em diferentes épocas são abordadas. O impacto da tecnologia no aperfeiçoamento dos jogos de azar é discutido, bem como o papel da indústria do jogo. São tecidas considerações sobre a constelação do arquétipo da Senhora da Sorte no seu polo negativo. É enfatizada a importância de integrar Dionísio e Apolo no tratamento de TJ, sendo ressaltada a importância de prestar atenção em sonhos e abrir espaço para o Si-mesmo nesse processo de transformação. O papel do analista é apontado como lugar privilegiado para denunciar a sombra coletiva e favorecer a ampliação de consciência, ajudando a criar estratégias para identificar riscos, tratar e prevenir TJ.

Palavras-chave Apostas online; Transtorno de Jogo; tratamento; psicologia analítica; sombra coletiva

Resumen

Este trabajo presenta una reflexión sobre el juego de azar y el Trastorno del Juego (TJ). El reglamento de Bets, apuestas deportivas online, fue aprobado recientemente en Brasil y el diagnóstico del TJ y su tratamiento son aún poco conocidos. Se abordan diferentes posturas de estímulo, tolerancia o prohibición hacia el juego en distintos momentos. Se analiza el impacto de la tecnología en la mejora del juego de azar, así como el papel de la industria del juego. Se hacen consideraciones sobre la constelación del arquetipo de la Dama de la Suerte en su polo negativo. Se enfatiza la importancia de integrar a Dioniso y Apolo en el tratamiento de TJ, resaltando la importancia de prestar atención a los sueños y hacer espacio para el Self en este proceso de transformación. El papel del analista es visto como un lugar privilegiado para denunciar la sombra colectiva y promover la ampliación de la conciencia, ayudando a crear estrategias para identificar riesgos, tratar y prevenir la TJ.

Palabras clave Juegos de azar en línea; Trastorno del Juego; addición; psicología analítica; sombra colectiva

Abstract

This paper presents a reflection on gambling and Gambling Disorder (GD). The regulation of Bets, online sports betting, was recently approved in Brazil and the diagnosis of GD and its treatment are still little known. Different positions of encouragement, tolerance or prohibition towards gambling in different eras are addressed. The impact of technology on the improvement of gambling is discussed, as well as the role of the gambling industry. Considerations are made about the constellation of the Lady Luck archetype in its negative pole. The importance of integrating Dionysus and Apollo in the treatment of GD is emphasized, as well as the importance of paying attention to dreams and making room for the Self in this process of transformation. The role of the analyst is pointed out as a privileged one to denounce the collective shadow and favor the expansion of consciousness, helping to create strategies to identify risks, treat and prevent GD.

Keywords Online gambling; Gambling Disorder; addiction; analytical psychology; collective shadow

“O que é o acaso? Bondades das desventuras, favores da adversidade

Toda vida é um navegar num oceano de incertezas” Edgar Morin

O governo aprovou recentemente no Brasil a regulamentação de Bets, apostas em esportes online, visando a aumentar a arrecadação do Estado. Trata-se de uma forma de aposta que vem se tornando bastante popular, sem despertar devida atenção sobre suas consequências. Os jogos de azar se sofisticaram, apostas pela internet se difundiram e o futebol, esporte nacional, passou a ser financiado pelo dinheiro de apostas. Times exibem sites de apostas em seus uniformes e propagandas são veiculadas livremente em diferentes locais e meios de comunicação. Na esteira das apostas em esportes, cassino online e outros jogos de azar estão entrando indiscriminadamente no mercado brasileiro. Como exemplo, pode ser citado o jogo do Tigrinho (um jogo tipo caça-níquel) que provocou reações públicas, após denúncia de que havia crianças divulgando esse jogo em redes sociais. Paralelamente, avança no Congresso a legalização de cassinos, bingos e outros locais destinados à prática de jogos de azar.

Estudos recentes sobre o impacto dos jogos de azar na população brasileira vêm sendo divulgados na mídia. Um deles revelou que 38% dos entrevistados apostaram online, sendo que metade fez ao menos um jogo por semana. Além disso, 63% das pessoas que apostaram tiveram, ao menos uma vez, sua renda principal afetada (Chiara e Agrela, 2024). O volume de dinheiro movimentado pelo jogo vem chamando atenção. O Brasil passou a ser o terceiro maior mercado de apostas online do mundo. Muitas empresas estão se habilitando para entrar nesse mercado e o reflexo no varejo já aparece. Muitos deixaram de consumir pois o dinheiro foi direcionado às apostas. Estima-se que R$ 68 bilhões foram gastos em apostas entre junho de 2023 e junho de 2024, o que representa 22% da renda disponível das famílias. Jovens de baixa renda são os mais afetados (Amorim, 2024).

No Brasil o diagnóstico de Transtorno de Jogo (TJ) e seu tratamento ainda é pouco conhecido e muitos profissionais não se sentem preparados para identificar e tratar jogadores (Oliveira, Castro, Braga e Raszeja, 2022). Relação entre indicadores socioeconômicos e gastos, ou prejuízos, devido ao jogo tem sido observada (Abbott, 2020). Homens, jovens, com baixo poder aquisitivo apresentam maior risco de problemas com jogo. Quanto mais cedo começam a apostar, maior a probabilidade de se tornaram jogadores compulsivos. Os dados divulgados pela mídia mostram que é justamente esse o perfil que vem se envolvendo mais com as apostas. Em São Paulo, no PRO-AMJO, ambulatório especializado em Transtorno de Jogo do Instituto de Psiquiatria da Faculdade e Medicina da Universidade de São Paulo, o perfil de quem procura ajuda vem mudando. Se antes a maioria dessa população tinha por volta de 40 anos e se dedicava aos jogos eletrônicos (Tavares, 2014), atualmente, chegam mais jogadores jovens endividados devido às apostas esportivas.

Jogos e jogos de azar em diferentes épocas

Jogar é uma atividade imprescindível para o desenvolvimento humano. Huizinga (1999) usa o termo homo ludens, ressaltando ser o ato de jogar fundamental como preparação para a vida adulta. O autor afirma ser o jogo mais antigo que a cultura, sendo uma atividade voluntária, associada à liberdade. Não é vida “corrente” nem vida “real” — trata-se de evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação própria, um intervalo na vida quotidiana. Os jogos têm regras, acontecem em espaço e tempo delimitados e apresentam um ar de mistério. Associados à brincadeira e à representação, promovem o simbólico e a imaginação. A graça do jogo é a surpresa. Se você sabe o resultado, ele perde o sentido e é abandonado. Os jogos possuem elemento de tensão, ritmo e harmonia que podem fascinar. A tensão chega ao extremo nos jogos de azar e competições esportivas (Huizinga, 1999). Nos jogos de azar, o desafio é apostar algum valor, geralmente dinheiro, num resultado incerto, determinado pelo acaso. Se o jogador acreditar literalmente que vai acertar, que domina as variáveis e consegue prever o resultado, deixa se ser jogo. Sai do simbólico e vira literal. Trata-se de uma hybris, pois saber o futuro não é da alçada dos humanos, apenas oráculos conhecem o destino.

Jogos de azar estão presentes nas mais diversas épocas e culturas, ora permitidos, estimulados ou proibidos. Há registros de jogos de azar em tumbas egípcias, templos chineses e em cidades como Atenas e Pompeia. Com o cristianismo, houve mudança na forma como os jogos eram encarados, mas continuaram populares. Nas cruzadas, novas modalidades de jogos foram trazidas para Europa e depois foram proibidas. Há relatos de soldados que apostavam até suas roupas (Currie, 2006). A Igreja condenava jogos de azar, afirmando que o diabo guiava os dados, ou que Lúcifer, chefe da igreja dos jogadores, inventou jogos de carta e de dados. O Corão islâmico condena, de uma só vez, o vinho e o jogo, como se vê na Surata V, 91 (Le Coran, p. 101) “Satanás quer provocar o ódio e a inimizade entre vós pelo vinho e o jogo e vos distanciar da lembrança de Deus e da oração. Não vos abstereis diante disso?”. No século XIII aparece na Itália e em Castilha, locais para exercer a atividade, casas de jogos de azar. A palavra “cassino” vem de “casa pequena”, em italiano, e estavam presentes na maior parte das vilas italianas. Do Renascimento até o fim do Antigo Regime, particularmente na época de Luís XIV, foi considerada era de ouro do jogo (Gokalp, 2023).

O capitalismo passa a considerar o jogo como vício nefasto que impede a poupança e o planejamento, que nega valores como trabalho, paciência, habilidade e qualificação. Por outro lado, enseja esperança, oferecendo muito mais do que a vida de disciplina e de fadiga (Gokalp, 2023). No século XX, cassinos ganharam destaque e foram construídos em muitos países. Atuavam como bancos, com pagamento de prêmios, fazendo empréstimos e os cobrando. O cinema retrata esse período com muito glamour, como nos filmes de 007 com James Bond vestido no melhor alfaiate de Londres, sempre a rigor em cassinos luxuosos a ganhar apostas milionárias em jogos de cartas ou roleta, com distraída sobriedade. Associado à elite, ao luxo, remete a imaginário de festa, suscita o sonho de enriquecimento repentino, alimentando a ilusão de uma outra vida (Grillet, 2023).

Essas diferentes posturas de estímulo, tolerância ou proibição frente aos jogos de azar que vêm se alterando em diferentes épocas e culturas, podem ser simbolizadas por um conflito entre Dionísio e Apolo, em que cada momento prepondera um. Filho de uma mortal, Sêmele, Dionísio é o deus do vinho, da fertilidade, do êxtase e da loucura. Sua origem e hábitos denunciam um perigoso descaso com limites e fronteiras, representa uma versão da mãe terra no seu aspecto indiferenciado (Rowland, 2017). Consumo de álcool e outras drogas, apostar, comprar, jogar videogame são alguns exemplos de comportamentos que podem proporcionar experiência intensa de prazer e levar a transgressão de normas, revelando esse descaso com limites e fronteiras. Alguns jogadores, ao apostar, ficam inebriados, perdem a noção de tempo e espaço e têm uma vivência intensa de prazer durante o jogo. A posição dos que condenam os jogos de azar, por sua vez, pode ser associada a Apolo, comumente relacionado à ordem. Apolo, deus da música, da poesia, da eloquência, da medicina, possui o dom de oráculo e representa a luz solar (Commelin, 1994). Seu nome passou a ser associado à religião Órfica, um sistema de pensamentos que prometia segurança e vida eterna aos iniciados (Grimal, 1990).

Transtorno de jogo

Assim como falamos em uso, abuso e dependência de drogas, há jogadores sociais, jogadores-problema e jogadores patológicos. O grave nisso é o excesso, quando há falta de parâmetros, Dionísio a reinar sozinho sem a iluminação de Apolo. Transtorno de Jogo (TJ) é caracterizado por persistência e recorrência em apostar apesar de consequências adversas (APA, 2013). As consequências negativas impactam a saúde, física e mental; relacionamentos familiares e sociais; produtividade no trabalho e estudo; situação econômica, dívidas e inadimplência; como também podem acarretar problemas com a Justiça. A maioria dos que apostam em jogos de azar não apresenta problemas, entretanto, pesquisas internacionais revelam que na população geral, entre 0,12% e 5,8% preenchem critérios para diagnóstico de TJ e estima-se que a porcentagem de pessoas com problemas decorrentes dessa prática seja pelo menos três vezes maior (Abbott, 2020). São pessoas que ao jogar podem ficar como que embriagadas, mergulhadas num universo dionisíaco. Passam o dia, ou dias, envolvidos em apostas, negligenciando cuidados básicos; afastam-se da família e amigos, prejudicam-se no trabalho, contraem dívidas, enfim, sofrem de forma semelhante a dependentes de drogas. Problemas relacionados ao excesso de apostas são mais difíceis de serem notados, principalmente online. No caso das apostas em esportes, essa modalidade vem associada a um aspecto saudável e popular, a prática esportiva. O mesmo ocorre com quem especula na bolsa de valores, o day trade. Passa-se a imagem de investidor, associando a trabalho, mas, na verdade, pode ser pura especulação.

Os jogos, quer sejam de cartas, dados, roletas ou os mais diversos tipos, eram sempre uma disputa com outras pessoas. O aparecimento dos caça-níqueis e outras máquinas de jogo no final do século trouxe uma mudança importante ao possibilitar o jogo contra a máquina e não contra um adversário com quem tem que interagir. O contato com o jogo se reduz a apertar um botão, possibilitando uma espécie de fluxo contínuo, com movimentos repetidos e automáticos, em ambiente projetado para apostarem até se esgotarem (Troche, 2023). A internet, por sua vez, elimina os limites físicos dos jogos presenciais e o jogo passa a ser atividade solitária, sem a presença do outro. As modalidades de jogos vêm se multiplicando e, atualmente, as Bets estão em alta. Presentes em todo tipo de competição, ganham destaque em grandes eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas, sendo transmitidas em tempo real mundo afora. Com isso, fatores de proteção, que poderiam dar limites e inibir excessos, foram perdidos.

O governo brasileiro regulamentou as apostas online sem restringir publicidade e sem destinar recursos para cuidar da população, quer seja para financiar pesquisas sobre o tema, desenvolver campanhas de prevenção ou prover tratamento para portadores de TJ. Valorizou-se os benefícios que podem ser obtidos pelas divisas advindas com a taxação do jogo e o impacto da atividade sobre o jogador foi negligenciado, ignorando riscos, custos e consequências negativas (Oliveira, 2023). Cabe a nós, como analistas, olhar o que acontece à nossa volta e procurar contribuir a partir da nossa prática clínica. Encerrados em nossos consultórios esquecemos que dispomos de uma ferramenta poderosa, a reflexão, e que podemos fazer na esfera social o que procuramos fazer no consultório, criar consciência e denunciar a sombra, nesse caso, a sombra coletiva. Jung (1993), em sua obra, deixa claro o quanto a dissociação é um mal da sociedade moderna. A alta prevalência de dependências de drogas e de dependências comportamentais não seriam sintomas de um modo de viver, característico da sociedade contemporânea, que remetem à dissociação apontada por Jung?

Sociedade contemporânea e a Indústria do Jogo

É importante divulgar esse fenômeno e relacionar com a sombra coletiva. Como bem aponta Amadieu (2020), um estudioso francês sobre o tema, o jogo, ao exercer essa sedução, é sinal de que a sociedade não oferece perspectivas de realização pessoal e ascensão social. Apostar aparece como paliativo de uma sociedade que não permite que um número crescente de cidadãos viva dignamente. Insegurança social e cultural, perspectiva de ser substituído por uma máquina, desintegração da antiga solidariedade entre as pessoas, são fatores que contribuem para aumentar dependências. A sociedade capitalista produz ansiedade e condutas de risco (Amadieu, 2020).

As empresas que exploram jogos de azar vêm atuando pesado nesse sentido. Investem no aperfeiçoamento dos jogos, tornando-os mais atraentes e adictivos. Características estruturais dos jogos, como velocidade, frequência, tamanho da aposta, duração, intervalo de pagamento são mais importantes do que tipo de jogo para determinar risco de perda de controle (Griffiths e Derevensky, 2017). Jogos tipo cassino eletrônicos apresentam mais risco do que jogos em loterias, assim como jogos online comparados aos presenciais. A internet propicia maior acesso, disponibilidade e diversificação de jogos; pagamento online e possibilidade de jogar em local privado. Além disso, conta com jogos com estímulos visuais que chamam a atenção, rápidos e sem interrupção, fatores que contribuem para perda de controle.

Em nome da arrecadação advinda de taxas e impostos propiciados pela atividade, muitos países legalizaram o jogo ou regulamentaram algumas formas de aposta. O interesse dos Estados em recursos para financiar políticas vem de encontro com a pressão das empresas exploradoras do jogo para legalizá-lo. Amadieu (2020) aponta como essas empresas procuram controlar o discurso sobre o jogo, patrocinando pesquisas do seu interesse, para influenciar decisões políticas e impedir medidas de restrição. O diagnóstico de TJ passa a ser utilizado para eximi-los de sua responsabilidade, transferindo-a para o consumidor, alimentando a ideia de que pode haver jogo sem risco. A dependência é compreendida como problema individual, que afeta determinado tipo de pessoas. Esse autor ressalta que dependência não é simplesmente um transtorno mental que atinge uma minoria. É, antes de tudo, produto de uma economia política favorável ao mercado e à expansão de empresas de jogo. Trata-se de uma engenharia de manipulação cognitiva que se apoia nas frustrações sociais e sentimentos de injustiça e vende solução rápida. As empresas utilizam o conceito de Jogo Responsável, em que o jogador é convidado a ser mestre de seu consumo, apenas procurando mostrar preocupação com fins éticos (Amadieu, 2020).

No entanto, a mensagem veiculada é contraditória com sua prática. A publicidade explicita isso. Apresentada nas mais diversas formas, em ambientes públicos e privados, sobretudo por meio de sites, aplicativos e redes sociais, passam a mensagem de enriquecimento imediato, de investimento e de realização dos sonhos. Pesquisas sobre propaganda de apostas revelam que a publicidade tem mais impacto em jovens e adolescentes, atingem mais os jogadores-problema e aqueles que desejam parar de jogar, dificultando a abstenção do jogo (Griffiths, Estévez, Guerrero-Solé e Lopez-Gonzalez, 2018).

Reconhecer o poder de sedução desses jogos é fundamental para criar estratégias de enfrentamento. Sonhar com uma vida melhor, com outra realidade, é legitimo e o arquétipo da Senhora da Sorte (Lady Luck) pode ser constelado. Se a atitude consciente do jogador não é sólida o suficiente para lidar com a energia inconsciente desse arquétipo, ele pode ser tomado por um complexo autônomo. No seu polo negativo, a Senhora da Sorte, como mãe terrível, desmembra e devora (Currie, 2006).

Muitos indivíduos, quando tomados por afetos ou complexos, não suportam a tensão entre polos opostos necessária para transcender esse estado e procuram restaurar o equilíbrio interno por meio de comportamentos que apenas apaziguam um desconforto (Oliveira, 2022). Apostar é um deles. Apostas online acontecem de forma rápida, sem parâmetros ou limites explícitos, não propiciando tempo de pensar e refletir, facilitando a constelação da Senhora da Sorte no seu aspecto terrível. Diferentemente de jogos de cartas, roleta, bingo, associados a jogos de azar, apostas em esportes têm sido relacionadas apenas a sucesso e conquistas. Jovens estão apostando mais e muitos não têm noção do risco que correm. Além disso, sabe-se que jovens e adolescentes são mais vulneráveis a dependências pela própria fase de desenvolvimento em que se encontram, a maturidade cerebral ainda não está completa, favorecendo comportamentos mais impulsivos. Dependências envolvem o sistema de reforço e são caracterizadas pelo prejuízo na capacidade de resistir a impulsos visando gratificação imediata apesar de consequências negativas (Kandel, 2020). Atualmente, não estão sendo veiculadas informações que favoreçam escolhas sensatas e ponderadas. Em um país marcado pela desigualdade, a publicidade vem investindo maciçamente em conteúdos voltados a essa população em diferentes plataformas e redes sociais, sem haver o contraponto dos riscos associados.

É necessário, portanto, alertar e ajudar a criar consciência sobre essa atividade para prevenir o TJ. É muito comum encontrarmos relatos de jogadores que começaram a apostar por diversão, muitas vezes entre amigos. Por conhecerem o esporte, ou serem torcedores, acreditam em seus palpites. As apostas em esportes permitem que o indivíduo sinta que participa ativamente da atividade, apesar de não estar em campo. Pensamento mágico, distorção cognitiva, ilusão de controle, aspectos típicos de portadores de TJ, vão se evidenciando conforme a frequência do comportamento aumenta. Uma vez que podem apostar a qualquer hora e lugar, sem que ninguém perceba, muitas vezes passam a apostar sozinhos. Diferente dos jogos com adversários ou dos que necessitavam deslocamento a locais públicos, não há esses limites físicos, testemunhas ou mediadores. Ao perderem, frequentemente ficam envergonhados e escondem os prejuízos. Passam então a apostar para recuperar o valor perdido e vão contraindo dívidas, entrando num ciclo vicioso que caracteriza TJ.

Tratando TJ: integrando Dionísio e Apolo

Alguns jogadores relatam sentir excitação e prazer intensos quando apostam. Desconectam-se da realidade, alguns chegam ao extremo, indo ao limite entre vida e morte. Mergulham em um estado semelhante ao relatado em festas e rituais dionisíacos. Kerényi (2002, p. 301) descreve bem esse estado relatando como na Antiguidade Tardia a religião dionisíaca era vivenciada: “Os homens viviam e morriam em conformidade com o mito [...] Nos pontos culminantes de uma vida exaltada, eles experimentavam o que pode ser a morte; e o que é a quase morte, experimentavam na exaustão sexual”. Esse autor se refere a Dionísio como imagem arquetípica da vida indestrutível, alegando que a experiência vivida no rito dionisíaco não é de aniquilação, mas que as polaridades vida e morte estão dentro do próprio Dionísio.

Nos atendimentos aos portadores de TJ, é necessário integrar Dioníso e Apolo, reconhecendo a legitimidade de vivências dionisíacas e a necessidade de ordem apolínea. O conflito entre a tentação em arriscar em uma aposta de ganho imediato e tentar se conter, para construir soluções que levam tempo e exigem disciplina, é um tema frequente nas sessões com jogadores. Nesse processo, é importante ajudar a criar consciência do comportamento impulsivo, identificar gatilhos que levam a apostar e ainda ajudar a criar estratégias para resistirem à tentação, repararem danos e equacionarem suas dívidas. Apolo pondo ordem na casa. O jogo como intervalo da vida cotidiana tem diversão, regras e duração limitada, Dioníso e Apolo integrados. O problema surge com a desmedida, a hybris que provoca castigo. Busca de emoção, de “adrenalina para sentirem-se vivos”, querer sair do tédio, escapar de estados disfóricos, são fatores mencionados por jogadores que perdem o controle. A ilusão de que tudo se resolverá quando ganharem ou saldarem suas dívidas ofusca questões mais profundas. Em muitos casos, não conseguem identificar nem expressar o que sentem, tampouco discriminar do que realmente necessitam, para que possam buscar isso de forma apropriada (Oliveira, 2022). A questão sobre o significado do jogo naquele momento de vida é central nos atendimentos (Oliveira et al., 2022).

Muitos jogadores chegam ao tratamento despedaçados, desesperados, ignorando que há oportunidade de real transformação. Como afirma Hillman (1981, p. 120) às vezes é necessário “que a vida apresente falhas a fim de que outras atitudes, regidas por outros princípios arquetípicos, sejam reconhecidas”. Cabe ao analista auxiliar nesse processo. Jung (1993), discutindo a dissociação do espírito europeu, dá um exemplo com um paciente hipotético que poderia ser um portador de TJ: “Você está com estresse devido às inúmeras atividades e extroversão desmedidas. Na profusão e complicações de suas obrigações econômicas, pessoais e humanas, você perdeu a cabeça [...] Você precisa entender, meu caro, que está completamente arruinado”. (OC10, par. 296). Jung segue afirmando que, quando se esgotam todos os meios, é necessário reconhecer que o caminho não era esse. Para sair do beco sem saída, é necessário tomar consciência de si, prestar atenção nos sonhos, abrir espaço para o Si-mesmo.

Addenbrooke (2015), ao discutir o tratamento de dependentes, explora essa posição defendida por Jung, apontando a necessidade de mudança após uma crise existencial, um acidente, ou a vivência de chegar ao fundo do poço preconizada pelo AA (Associação de Alcoólatras Anônimos). Esse autor afirma que é necessário deixar a vida de dependência para trás para prevenir recaídas. Essa medida reflete o padrão universal no qual a separação de um estado ultrapassado no desenvolvimento é um precursor necessário para crescimento e representa uma mudança radical. Addenbrooke cita o Liber Novus, sugerindo que a partir de seu mergulho pessoal, Jung passou a entender melhor a crise existencial pela qual passam os dependentes, após a observação de que força de vontade racional não tem muito êxito para auxiliar alcoolistas a pararem de beber. Jung sugere a exploração do mundo interno como um todo, diálogo com as fantasias e uso da técnica de imaginação ativa. A crise abre espaço para criatividade emergir. A importância do assassinato do herói é explicitada, representando a função superior da personalidade que precisa ser morta em nome da força da vida, para que outros aspectos da personalidade possam surgir. Esse processo é intenso. Temos que apostar no vínculo como ferramenta fundamental para acompanhar esse processo e lidar com percalços inevitáveis da jornada heroica inerente ao processo de individuação (Oliveira, 2017; 2022).

Considerações finais

Apostar é arquetípico, a forma pode fazer toda diferença. A regulamentação dos jogos de azar pode trazer benefícios, pois os tiram da sombra, explicita a atividade e promove regras claras, podendo ser uma forma de integrar Apolo e Dionísio, sem reprimir ou liberar indiscriminadamente. Além de prover divisas para o país, pode ser medida de combate ao crime. No entanto a regulamentação deveria ser restritiva e acompanhada de política de Estado visando a segurança da população. A política adotada por alguns países como a Holanda vai nessa direção. Postula que prevenir o TJ, proteger consumidores, combater fraudes e outros crimes não pode ser alcançada pela repressão, mas por exigir uma série de condições para concessão de licença para a atividade, propiciando à população a faculdade de apostar de forma mais segura (Griffiths e Derevensky, 2017). Medidas de proteção aos jogadores vêm sendo adotadas, como restrição de idade e de propaganda, necessidade de divulgar probabilidade de ganho e perda, de enviar mensagens de feedback na tela durante o jogo, e a real possibilidade de autoexclusão, além de explicitar risco de patologia e divulgar tratamento. Medidas que dão contorno, ajudam a circunscrever a atividade. Cabe, portanto, ao Estado, proteger e dar liberdade às pessoas, levando em consideração benefícios e prejuízos decorrentes da atividade. O Estado deve incorporar estratégias de prevenção, de redução de danos e ainda prover tratamento.

Como analistas, além de denunciar a sombra coletiva, podemos contribuir lembrando quem joga a ser prudente como Ulisses e se amarrar ao mastro quando passar pelo canto das sereias. Como bem afirma Morin (2021, p. 57) “Cada vida é uma aventura incerta. Toda paixão precisa comportar a vigilância da razão, e toda razão precisa comportar o combustível da paixão.” Àqueles que, seduzidos pelo desafio do jogo, mergulharam em águas agitadas, podemos jogar uma boia e segurar a corda, procurando sustentá-la pelo tempo que for necessário. ■

Referências

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Recebido: 30 de Setembro de 2024; Aceito: 7 de Novembro de 2024; Revisado: 11 de Dezembro de 2024

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