“Na manhã da vida, o filho afasta-se dolorosamente da mãe, para erguer-se até a altura que Ihe está destinada.” C.G. Jung
Introdução
Olhos Negros é a narrativa da vida de Romano, italiano de meia idade. O filme transcorre com o relato da história dele para outro homem de nacionalidade russa e de idade próxima, em um doloroso confronto com a sombra. Através do diálogo e do olhar do outro personagem, Romano se depara com a visão da própria alma atormentada, abandonada em seus anseios de expressão. Romano nasceu em uma família humilde, era o caçula, o único a cursar uma universidade. Os pais se sacrificaram, para que ele tivesse a chance de uma vida melhor. Investido do desejo paterno, Romano faz planos de uma monumental obra arquitetônica que irá celebrizá-lo.
Quando era estudante, conheceu Elisa, filha de banqueiros, única herdeira de uma imensa fortuna. Namorados, acreditavam em uma vida construída segundo valores próprios, diferente do modelo familiar de ambos: “No início, pensávamos que só os sonhos bastassem, mas, aos poucos, fomos nos acomodando e os sentimentos, se tornando hábito”. Palavras de Romano, descrevendo as circunstâncias do casamento com Elisa que estava à frente dos negócios familiares após a morte do pai.
Sabaticka e Bufão
Símbolos usados defensivamente por Romano, máscaras para esconder de si mesmo e de todos o enorme vazio de sua vida.
Sabaticka — palavra russa que significa cãozinho. O vaidoso prefeito nos esclarece sobre seu significado simbólico no filme: “Os cães nos aquecem a alma.” Romano tinha o lugar e a função de um Sabaticka junto a Elisa, a dona da mansão e da fortuna. Bufão — máscara que permite a Romano um mínimo de expressão rebelde. O bufão é ligado diretamente ao trickster; quanto maior a opressão vivida e a fixação em um complexo matriarcal, mais difícil o surgimento de um herói efetivo que promova transformação. O bufão torna a vida mais tolerável, o objetivo dele é a busca de prazer, ele desarruma a ordem patriarcal com palhaçadas.
Elisa — família, poder, casamento
Elisa detém o poder que o dinheiro Ihe dá. É a dona da mansão e desfaz ordens do marido-bufão, dizendo para os criados: “Não façam nada sem que eu ordene!” Repreende carinhosamente a mãe, mas repete junto com ela uma cantilena de muitos anos: “Como você pôde se casar com um homem desses, medíocre, interesseiro, que teve a sorte de se casar com uma mulher rica. Não passa de um bufão!”
Elisa se diverte com sua amiga Tina, ambas sintônicas no desprezo à virilidade dos maridos, porém encantadas com eles enquanto representam cãezinhos de estimação: “Mário, quem é Mário? Romano, quem é Romano?” Riem juntas, deliciadas com a brincadeira de desconhecerem os próprios maridos.
No entanto, parece que o bufão cumpriu a tarefa criativa dele, desestruturando, ou, pelo menos, contribuindo na derrocada de todo aquele poder. Elisa, ao se saber falida, culpa Romano: “Você é o responsável, no seu comodismo e desinteresse, você nunca fez nada. Seu único trabalho começado há trinta anos, nunca saiu do esboço.” Elisa esbraveja e mostra um desenho, um plano arquitetônico colocado em uma moldura. Romano, acordado pelos gritos da mulher, se mostra incomodado, pede a ela que pare de gritar, para que os outros não ouçam. Diz que não se sente bem, tem andado muito cansado, se levanta e vai ao banheiro lavar as mãos — gesto de Pilatos. Elisa continua furiosa: “Você sempre mentiu para mim.” Romano está visivelmente contrariado, foi tirado do sono pueril, as queixas de doença e de cansaço dele não foram acatadas, responde com um muxoxo: “Como você pode dizer isso, Elisa?” Elisa põe-se a chorar e corre para o quarto, trancando a porta. Por um momento, Romano fica realmente abalado e tenta arrombar a porta, mas agora é ela, a puella, que recusa o confronto. Nesse momento, aparece Tina, com a função de promover o reforço para o padrão defensivo. “Romano, o que você está fazendo?”. Refeito, Romano responde: “Estou medindo o tapete.” E Tina, cúmplice: “Mário, venha aqui. Precisamos medir o tapete” e, então, nesse momento são três bufões que agem comprometidos com a estagnação patológica. Dão-se os braços e, indiferentes ao audível choro de Elisa, com pulinhos ridículos, medem o tapete.
Bufão — estação de águas, Anna e o amor
Romano parte para uma estação de cura, onde continua brincando, brinca de fazer amor, brinca de fazer farras noturnas, infringindo as regras da clínica, e, muito de acordo com a situação, brinca de estar doente. Tina vai visitá-lo, por necessidade de manter-se a par de tudo que acontece com o marido da amiga. Romano diz-lhe que está doente das pernas, que mal consegue andar, e ela, sempre disposta a ajudá-lo nas brincadeiras defensivas, chama Mário e os dois fazem de conta que auxiliam Romano a se locomover. Foi Tina que, atenta a tudo que cerca Romano, primeiro percebeu o brilho de Anna e disse para ele: “Desta vez, a coisa é séria.” Anna possui o brilho da vivência numinosa, vinda através do amor, o arquétipo do Self, sempre presente proporcionando a chance da transformação que pode reconduzir o ego ao processo de individuação de modo a realizar uma vida que seja expressão do Si Mesmo. Ao ser deixado só, após a farsa da doença das pernas, Romano vê a seu lado Anna, que Ihe diz: “Deixe que eu ajudo, sou forte.”
Romano aceita a ajuda de Anna e, como mais uma brincadeira, conta para ela que um antepassado dele, que sofria da mesma doença, foi curado por uma moça russa. Pede a ela que diga uma palavra em russo, qualquer uma, o cãozinho late e Anna diz: “Sabaticka”. Repetindo a palavra Sabaticka, Romano se solta dela, anda e grita: “Milagre!”. Anna, assustadíssima, solta um grito de horror e corre. Romano percebe que enganou alguém crédulo e ingênuo, corre atrás dela, cai e se machuca. Enquanto isso, todas as pessoas presentes na clínica, gritam de horror, contaminadas pelo sentimento de Anna. O que começava a acontecer entre Romano e Anna transcendia o pessoal, atingindo o coletivo porque trazia a força do arquétipo.
O reencontro ocorre durante a refeição e é marcado por nova explosão emocional coletiva, como o primeiro violino de uma sinfônica. Anna é acompanhada por todos em um hilariante ataque de riso. Agora Romano usa uma bengala, as pernas “doentes”, símbolo de uma base estrutural falha, trazem a marca de um machucado, a presença da mulher junto a ele começa a destruir o falso espelho narcísico dele. A partir desse momento, é com facilidade que Romano se aproxima de Anna. O espectador assiste à transformação do personagem, que passa a ser uma pessoa gentil e encantadora, realizando brincadeiras de genuína alegria, com o intuito de alegrar os tristes olhos negros de Anna. Em uma cena, o chapéu dela é levado pelo vento e cai na piscina de lama curativa. Romano, que está inteiramente vestido de branco, entra na piscina, resgata o chapéu, traz uma flor da lama e entrega ambos para Anna. Simbolicamente, a piscina de lama negra e curativa pode significar o estado alquímico do Putrefatio, início do “Opus Alquimicum”. Romano teria que deixar as defesas naquela piscina para sair renovado, verdadeiro ato batismal. Tudo indicava que essa meta havia sido atingida — embora Romano tenha se sujado apenas até a cintura, ele traz da lama uma linda e branca flor. A cena seguinte corrobora essa dedução, porque se vê um feliz casal de namorados, protegidos em um caramanchão enquanto cai uma forte chuva, água redentora que lava os pecados do mundo.
À noite, Romano procura por Anna, encontra Sabaticka, o cão, sozinho; instintivamente, o leva para a dona. Ele a encontra chorando copiosamente e, nesse estado, ela revela nunca ter pensado que pudesse ser tão feliz quanto tinha sido naquele dia e agradece a ele essa felicidade. Romano escuta e a acalma carinhosamente. Começa a beijá-la e a leva para o quarto.
A próxima cena, se passa no quarto de Anna; após uma relação de amor, a vemos deitada, cantando uma canção de ninar enquanto, com os dedos molhados por suas lágrimas, faz desenhos na parede, e Romano está sentado à mesa, comendo um pedaço de melancia. Por um momento, já frente a frente, ambos se olham nos olhos; nesse instante, poderia de fato acontecer um encontro de amor, mas ele volta à melancia, na tentativa de preencher o vazio afetivo e refaz as defesas contando as coisas engraçadas que aconteceram na clínica naquela manhã. Ela se cala. É também uma puella. A defesa dela é a fuga — foge de uma vida própria e do amor. No entanto, não consegue fugir do sofrimento e, talvez por isso, tenha mais chance de transformação que ele, que já não sente mais. Ela deixa para Romano uma carta escrita em russo. Uma vez que Romano não consegue lê-la, nega a presença no quarto de Anna, entregando para a camareira uma moeda de ouro. Realmente, perde o ouro de um encontro, que poderia ser transformador.
O amanhecer do herói — sua jornada
O tempo passa e Romano, que voltou para casa, não consegue esquecer Anna. Alguns meses depois, consegue alguém que traduza a carta em que ela conta que a mãe morreu quando ela era ainda pequena, que a família é muito pobre, que o pai alcoólatra está sempre doente e que ela fez um casamento sem amor para poder ajudar o pai e um irmão. Continua, dizendo que fugiu do amor, que sempre achou que não fosse nunca vivê-lo, mas, que, quando conheceu Romano, percebeu que ela, também, era uma pessoa com capacidade para amar e para ser feliz. Como tinha compromisso com outras pessoas, se afastava fugindo. A tradutora, comovida, pergunta a Romano para quem foi dirigida aquela carta e ele diz que para um amigo. A moça pergunta o que aconteceu com seu amigo e Romano responde: “Morreu de frio na Rússia”. Realmente, até aqui, Romano é um morto de frio, não existe o calor que vem de um coração amoroso. Mas, ao se saber amado, decide ir ao encontro do seu amor.
Sob o pretexto de fabricar vidro inquebrável na Rússia, Romano parte para lá. Precisa de uma licença para chegar até a cidade onde mora Anna; ele viaja carregando nas mãos o vidro, de um canto para outro, animado pela energia do Herói frente à sua missão. Logo que consegue o visto, desfaz-se do vidro, atirando-o num riacho. O vidro que ele carrega poderia ser, como símbolo, resistência ainda inquebrável. Ele desfaz-se do vidro para prosseguir sua jornada, porém a resistência permanece intacta na água do inconsciente. Ao chegar na cidade de Anna, para sua surpresa, é recebido como verdadeiro herói, aquele que vem de longe trazendo progresso. Saúdam-no com vodca, música, dança, flores e abraços. Carregam-no nos braços, embebedam-no, honras ao herói que tem disposição para o cumprimento da tarefa.
À noite, refeito após o sono, se prepara para uma recepção em sua homenagem na casa do prefeito e, nesse momento, aparece Konstantin, um ecologista, que, preocupado com o possível dano ecológico às matas e aos rios da região, provocado pela implantação da indústria do estrangeiro, fala a Romano sobre o equilíbrio entre a natureza e o progresso. Konstantin, símbolo da harmonia necessária ao real crescimento, é afastado pelas autoridades locais, que o consideram contra o desenvolvimento, após o que Romano é encaminhado à casa do importante anfitrião.
O prefeito, um ridículo e vaidoso homem, vê, no hóspede, a possibilidade de ganhos pessoais e o, leva à sua biblioteca, repleta de objetos antigos da família. Em vez de livros, uma espécie de museu familiar. Fala sem parar sobre si mesmo; em um determinado momento, a câmara focaliza uma xícara de chá, com o brilho de Anna, e, logo depois, é Romano que percebe a xícara. Unidos, espectador e personagem na mesma emoção. A qualquer momento, Anna pode entrar por aquela porta. É a possibilidade de receber o milagre da renovação, pela vivência numinosa do ego sintonizado ao Self.
Não vemos a cena do reencontro e, sim, Anna saindo apressada por uma porta, tendo nas mãos uma bandeja com copos de vidro que balançam a ponto de cair. Possivelmente, como as defesas — estruturadas a custo de tantos sacrifícios —, a ponto de se romperem. Em seguida, aparece o marido dela, que a repreende por estar se comportando de maneira tão estranha. Além de ela ter empalidecido ao cumprimentar um estranho, carrega a bandeja como uma criada e ele está preocupado com o que vão pensar dele. Os valores acatados no casamento de Anna com o prefeito são os da estruturação de uma persona dissociada, uma imagem superficial. O marido de Anna se retira e Romano vem ao encontro dela. Um diálogo rápido acontece entre os dois, ela suplica que ele vá embora e foge, ele vai atrás dela e a encontra num oratório, rezando, ainda com a bandeja nas mãos. A perseguição continua até que ambos vão parar no fundo do terreno da casa, em um abrigo para animais. E, então, Romano tira das mãos de Anna a bandeja com os copos, jogando tudo em um monte de penas, os dois se abraçam. Romano diz: “Não posso viver sem você.” e Anna responde: “Eu também não.” São trocadas juras de amor e promessas, ele se compromete a voltar para Roma, contar tudo para Elisa e vir buscar Anna enquanto ela deve contar tudo ao marido e esperar por Romano.
O regresso — canção de ninar
Ao voltar para o hotel onde está hospedado, Romano se surpreende ao encontrar Konstantin esperando por ele. O ecologista trouxe a filha, que dorme profundamente. Romano comete o segundo ato falho. No primeiro, referiu-se a Elisa como morta e, agora, diz: “Eu também tive uma filha”. Nem Elisa nem a filha deles morreram, mas é verdade que Romano as perdeu por não ter conseguido estabelecer com elas uma relação verdadeira entre pessoas inteiras — eu versus o outro criando um campo para que brotasse o Amor. Na verdade, nunca as teve. Konstantin fica aliviado ao saber que a indústria não passava de um pretexto e se propõe a ajudá-lo a ir embora. Arranja uma carroça para levá-lo à estação. O caminho é pelos verdes prados, está amanhecendo, Romano está feliz, pensa que é a madrugada de uma nova era, alegres ciganos aparecem, cantam e se divertem; Konstantin fala da natureza como a verdadeira casa do homem, a casa além do portão. Ele sugere a beleza de uma relação estruturada sob o dinamismo da Alteridade, a dialética entre o Ser Humano e o Mundo, entre o Eu e o Outro. Porém, Romano tem a vida regida por uma falta a nível matriarcal; ele escuta a canção de ninar que a mãe cantava quando ele era criança e adormece ao lado da filha de Konstantin. O herói adormece. Tanto ele como Anna são remetidos e subjugados pelo fascínio que exerce a lembrança do primeiro amor da vida humana, aquele sentimento que, muitas vezes, na vida adulta, faz o ego retornar a um estado de estar contido e indiscriminado no seio materno. Ela, após o amor, brinca com as lágrimas enquanto canta uma canção de ninar; ele, após um movimento heroico, ouve a canção e adormece ao lado da criança, símbolo de uma anima infantil que corresponde ao ego de Romano. Ego dominado, afinal, pelo arquétipo do puer, a criança que se recusa a crescer, que nega a anima mulher, incomodando-a, instigando-a e desarrumando-a para despertar o herói que adormece antes da conclusão da tarefa, no grande redondo, seio estupendo da grande mãe castradora que mantém no útero os filhos amantes.
Chegando à Villa da família de Elisa, Romano encontra um pandemônio, a casa foi colocada à venda e está sendo esvaziada, pessoas interessadas na compra aparecem, é a bancarrota. O primeiro encontro é com Tina e, para ela, ele fala: “Sabaticka. Eu hoje vou surpreender vocês.” Ainda se pensa herói, acha que são seus últimos momentos de cãozinho de estimação, mas, ao ver Elisa, logo começa a se justificar com mentiras sobre a carta de Anna que ela encontrou. Nesse momento, Elisa se encontra despojada de poder, de dinheiro e de defesas; pela primeira vez, no seu casamento, tem a coragem de pedir a verdade, diz: “Agora estamos como você queria há trinta anos.” E pede: “Me diga a verdade, pelo menos uma vez na vida.” Mas é tarde demais para aquele casamento, a mentira permaneceu demasiado tempo entre os dois. Romano pergunta o que ela quer saber, ela retruca: “Você ama uma mulher na Rússia?” A câmera focaliza a expressão do ator, é evidente um enorme esforço para ser sincero e um sentimento de derrota, quando pronuncia: “Não.” Nesse momento, Elisa volta a ser a mesma de antes, encontra um disco que Romano trouxe com a música dos ciganos da Rússia, põe na vitrola. A câmera focaliza Romano pelas costas, está rígido e tenso, mas a música toca e os movimentos começam devagar, até tomarem se dança. Ouvimos a melodia e as risadas de ambos, marido e mulher, cúmplices de um casamento estagnado, de uma obra não realizada.
O mito de Narciso e Eco
Narciso morre porque só olha a si mesmo; no seu aspecto patológico, o mito nos fala do perigo que representa tomar a Imagem pela Alma ou a persona pelo Self. O marido prefeito mostra retratos e diz: “C’est moi, c’est moi, encore moi”’. Dedica toda a vida a satisfazer necessidades que não atendem ao verdadeiro anseio humano de se fazer realizar segundo raízes arquetípicas.
Eco morre porque só olha Narciso; o mito nos adverte do perigo de não reconhecer em nós o Sagrado, projetando no outro nossa razão de viver. Anna tenta morrer, mas escapa. O sofrimento a conecta com sua alma, dando-lhe a chance de atender sua falta.
No mito, em algum momento um encontro acontece. Após a morte, Narciso renasce na flor que Perséfone vai colher, cumprindo, através desse ato, o destino de rainha no mundo subterrâneo, lugar das sombras onde jaz a memória da humanidade, e de princesa da primavera na superfície da Terra, onde a energia das sombras é coagulada em atos criativos, em flores e em frutos.
Narciso simboliza a capacidade criativa de olhar para si mesmo. Eco simboliza a capacidade criativa de olhar para o outro. O olhar penetrante para si mesmo encontra o outro, tanto quanto o olhar penetrante para o outro encontra o eu. Essa troca é inevitável em qualquer movimento autêntico, para dentro ou para fora, nas igualdades e nas diferenças. Não existe solidão, só dissociação.
Romano, que procurava tanto o seu bem-estar, de fato nunca se viu. Anna sempre tão solicitada e dedicada ao outro, de fato nunca viu o outro. O amor sempre pode operar o milagre. O encontro entre ambos tornou viável a tarefa da transformação, mas faltou energia para o último dos estágios do Opus, o Coagulatio. Faltou tornar possível a primavera de flores e frutos.
O interlocutor — sombra, senex
O filme inicia e termina com um diálogo entre dois homens. O italiano Romano, por volta dos sessenta anos, envelhecido e amargo, com uma fisionomia que pode ter sido bonita no passado, mas que, hoje, apresenta traços de decadência e de maus tratos, e o russo, um homem da mesma idade, que nunca foi bonito e que, no entanto, é feliz. Recém-casado, acredita no amor, os olhos brilham de felicidade quando fala da amada, de indignação diante da descrença e da amargura de Romano e de compaixão diante do fracasso deste. Símbolo da sombra com que o ego faz o inevitável confronto, o interlocutor russo leva para o inconsciente o amor e a felicidade não vividos. É tarde demais, Romano perdeu tudo, até o casamento: “Tive e perdi tudo.” O confronto tardio trouxe a depressão e a amargura: “Só três coisas valeram a pena: a primeira noite com Elisa, a canção de ninar que minha mãe cantava e os prados da Rússia.” Romano é um beberrão descrente, um desleixado garçom de navio, cada dia mais velho e amargo. Entrega o apito do Bufão ao russo, já não serve para nada. O ego dominado pela depressão entrega as defesas ao inconsciente, à sombra. A transformação se faz do Puer para o Senex. O velho decadente e amargo no final da vida não concluiu sua tarefa. A sabedoria, prêmio de uma vida realizada em seu sentido pleno, não foi atingida. ■