Um encontro de dois: olho a olho, cara a cara
e quando estiveres próximo arrancarei teus olhos
e os colocarei no lugar dos meus
e tu arrancarás meus olhos
e os colocará no lugar dos teus
Então te olharei com teus olhos e tu me olhará com os meus.
J. L. Moreno
Introdução
Parece desnecessário, para nós, acentuar a importância do casamento e da família como objeto de preocupação e reflexão. Tais instituições, quase tão antigas como o ser humano e tão frequentes como maneiras de vida, são as grandes formadoras das bases e das estruturações primárias de nossa personalidade. Para a grande maioria da humanidade, é um fato que nascemos, somos criados e formados dentro de famílias.
Que razões teriam levado e ainda levam a maioria dos seres humanos a casar-se e a viver em família? Seriam razões genéticas próprias da espécie? Com certeza não, pois as minorias que não viveram e não vivem assim seguramente não são anormais por esse motivo. O que será que a estrutura familiar e o casamento propiciam tão frequentemente ao ser humano que leva essa grande maioria a optar por essa maneira de viver? Certamente devem atender a muitas das necessidades mais básicas do ser humano, daí serem tão comuns como opção de vida.
Há muitos anos trabalho em consultório como terapeuta de casais e de famílias. As vinculações conjugais, parentais e familiares sempre foram objeto de grande interesse e preocupação de minha parte, o que só tem aumentado com os anos e a experiência clínica.
Tentar entender melhor o que leva homens e mulheres a se proporem a ter uma vida conjugal, como e por que se apaixonam, se amam, se odeiam e se separam, sempre me pareceu de fundamental importância para o trabalho do psicoterapeuta.
Espero que as considerações que faço neste trabalho consigam refletir essas preocupações, estimular indagações e ser de alguma ajuda para os que se preocupam com o ser humano.
Casamento. Família – crise e individuação
Há tempos se fala e se constata que o casamento e a família são instituições em crise. Como é frequente que aconteça em toda crise, há os que querem reafirmar tais instituições em seus modos tradicionais e ortodoxos e os que querem aboli-las como se fossem causas de quase todos os males. Como sempre, o difícil é encontrar o caminho do meio, o difícil é construí-lo.
A existência dessa crise aponta para a dificuldade de reformulações e mudanças. Estas, porém, penso, devem ser no sentido de enriquecer e flexibilizar tais instituições, mantendo, entretanto, as características estruturais básicas que fizeram delas locais privilegiados para o desenvolvimento de nossa personalidade. Fundamentais no processo de nossa criação e desenvolvimento, são riquíssimas propiciadoras de vivências indispensáveis para nossa completude.
O vínculo conjugal é por excelência um vínculo paradoxal. O ser humano necessita do outro para saber quem é, que existe e como. O ser totalmente só e isolado perde seus referenciais e enlouquece. Precisamos do outro para sabermos que somos. Mas também nascemos para, na nossa individuação, nos tornarmos o ser único que somos em potencial. Precisamos ser o que somos, independentemente do outro. Essa realidade paradoxal do ser humano, que se atualiza em qualquer vínculo, é extremamente viva e rica no vínculo conjugal.
Os modelos preestabelecidos de casamento e família, que por séculos atenderam às necessidades humanas, para muitos com certeza já não servem mais. As evidências de que a humanidade se abre cada vez mais para um mundo de alteridade, de respeito às peculiaridades de cada um, são muito grandes. O casamento e a família evidentemente não poderão ficar fora desse movimento. Também deverão se alterar para poder conter essas possibilidades de desenvolvimento e enriquecimento das personalidades.
A preocupação com a ecologia, com o nosso futuro comum, com a melhoria do “Outro”, que é também o “Eu”, está a nos mostrar que nossa cultura cada vez mais deixa de ser marcadamente patriarcal e caminha para uma cultura de alteridade, como nos descreve C. A. Byington (Byington, 1983).
Após a Segunda Guerra Mundial, com as intensas experiências nos campos de batalha e, principalmente, com a saída das mulheres de casa para substituírem os homens no trabalho e no meio social, ocorreram vivências profundamente transformadoras que abalaram o casamento e a família.
Cada vez mais ganha terreno o desejo de não ter de ser e fazer o que se predetermina para uma esposa e mãe ou para um marido e pai, mas de poder desempenhar esses papéis na plenitude da individuação de cada um.
Maneiras de se relacionar dentro da conjugalidade e da parentalidade que seriam impensáveis há pouco tempo são hoje relativamente comuns. Famílias constituídas das maneiras mais variadas, com filhos de casamentos anteriores dos cônjuges e também do atual, não constituem mais anomalias que despertem tanto espanto.
O ser humano atual tem necessidades e uma riqueza que precisam ser atendidas e vivenciadas de modo criativo. Em princípio, o questionamento das velhas fórmulas, a abertura para se ver e as almejadas mudanças são desejáveis e necessários para trazer nova vida ao casamento e à família. Mas, como em todas as transformações e passagens, o perigo de nos perdermos cresce e é sempre ameaçador. O exagero, a falta de discriminação de limites e, principalmente, a regressão caótica são perigos constantes. Não devem, porém, servir como argumentos para a negação da validade das transformações.
O “homem”, para Jung, não nasce como um feixe de instintos, e sim com arquétipos, com potenciais estruturantes de comportamentos básicos, contendo todas as polaridades que serão, de maneira individual e peculiar, vivenciadas por cada indivíduo.
Cada arquétipo regente, com seus símbolos estruturantes, como os denomina C. A. Byington, coordena a estruturação de um dos fundamentais ciclos (matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmico) de desenvolvimento de nossa personalidade (Byington, 1987).
Na medida em que o ser humano nasce para sua individuação, ele procurará, consciente ou inconscientemente, situações que propiciem condições para esse desenvolvimento, esse “tornar-se si mesmo” (Jung, 1978, p. 49, § 266).
Nessa busca ora ele se depara com situações que estimulam o desenvolvimento de potenciais ainda não atingidos, ora com a necessidade de superar obstáculos, entraves que estejam limitando e impedindo o desenvolvimento mais amplo e harmônico da personalidade. É dessa perspectiva que procuramos entender paixões e ligações aparentemente tão inadequadas e incompreensíveis por todos e às vezes pelo próprio apaixonado, que não se conforma, muitas vezes, com seus sentimentos por uma pessoa tão “complicada e inadequada”. E é tantas vezes por esse caminho sofrido, complicado e irracional que uma personalidade tem melhores possibilidades de se desenvolver.
É também a partir dessa visão que entendemos a constatação clínica de que é tão rica de oposições a relação conjugal e, por isso mesmo, tão complicada.
As realidades profundas dificilmente são apreendidas pelo nosso ego e talvez por isso os paradoxos sejam uma das maneiras de tentar expressá-las.
O vínculo conjugal, tão potencialmente rico de desenvolvimento, pode também se tornar uma terrível defesa e estagnar a vida dos cônjuges. Aquilo mesmo que faz crescer ou desenvolver tem o potencial para complementar defensivamente e paralisar a relação como criativa. Quando um cônjuge só se expressa em função do outro, se “explica” como reação ao outro, é sinal de que o vínculo se distorceu para o lado da definição em função do outro e se tornou sufocante e paralisante e o casamento, uma “não vida”.
Cada cônjuge é indivíduo diante do outro, podendo ser influenciado, tomar o outro em conta, mas se define por si mesmo. Fiz alguma coisa porque fiz e não porque o outro fez ou deixou de fazer outra coisa. O que faço é basicamente um problema meu, embora possam existir influências e motivações. É óbvio que minha responsabilidade é relativa e em situações extremas pode se tornar muito pequena.
Vivência das polaridades arquetípicas no casamento e na família
O ser humano necessita de humanizadores para desenvolver e estruturar seus dinamismos arquetípicos, do contrário eles não se realizam. Essa é sempre uma história pessoal e específica para cada ser humano, mas é coletiva a necessidade de realizá-la.
Dificilmente conseguiremos fantasiar uma situação que possa propiciar melhor humanização para os arquétipos parentais (Grande-Mãe e do Pai) do que uma mãe e pai pessoais. Embora não sejam as únicas possibilidades, são, sem dúvida, as melhores. Uma criança que perde precocemente um deles vive sempre uma tragédia, embora disso possa resultar aspectos criativos ou positivos. É sempre uma substituição difícil e complicada, por isso é tão fundamental que, quando um casal se separe, que o faça como marido e mulher e nunca como pai e mãe, que precisam ser preservados para os filhos.
Para uma mais ampla e rica estruturação de um dinamismo, temos de vivê-lo nas suas mais variadas polaridades. Há, porém, uma que é básica: vivê-lo primeiramente nas suas polaridades como objeto e depois como sujeito. Primeiro vivemos o dinamismo matriarcal como filho(a) do outro que me maternaliza e depois como maternalizador do outro – como quem vai se exercer como mãe do filho(a). Diga-se o mesmo quanto ao dinamismo patriarcal.
A riqueza e a profundidade com que podemos vivenciar essas duas fases dos ciclos parentais não podem ser substituídas com vantagem por nenhuma outra instituição, apesar de todos os riscos e dificuldades que, por essa mesma riqueza, a família pode representar.
Da mesma forma, como descreve Iraci Galiás no seu artigo “Reflexões sobre o triângulo edípico”, a triangulação edípica, tão fundamental para a estruturação de nossa personalidade, é vivida na sua primeira fase quando somos o(a) filho(a) diante do pai e da mãe e na segunda como quem exerce a mãe ou o pai junto com seu cônjuge diante do(a) filho(a) (Galiás, 1988).
Ao termos filhos, a vida familiar naturalmente nos propicia, como vemos, uma segunda possibilidade de elaboração com enriquecimento das dinâmicas parentais, ao mesmo tempo que as eventuais fixações nas relações parentais podem ser resgatadas ou, pelo menos, mais bem conscientizadas e elaboradas, de modo que tenhamos uma melhor adaptação. Portanto, uma pessoa que teve dificuldades na sua estruturação do dinamismo matriarcal e não conseguiu superá-las, ficando com fixações na relação filho(a)/mãe (complexo materno), poderá, quando tiver um(a) filho(a), remobilizar esse dinamismo. A estruturação simbólica por meio de sua vivência do polo-mãe, com a possível reelaboração da relação mãe/filho(a), poderá ajudá-la a superar suas fixações matriarcais ou pelo menos a lidar melhor com elas. Diga-se o mesmo a respeito do dinamismo patriarcal.
A constelação no(a) filho(a) dos arquétipos da anima e do animus cria geralmente uma grande efervescência na família pela oposição que traz em relação aos arquétipos parentais (Byington, 1988a). Assim, vão levando a criança para a vida adulta e estimulando os pais (na medida em que também se constelam neles, porém na segunda fase) para uma maior alteridade com os filhos e com a vida. Concomitante a essa primeira fase da adolescência do lado dos filhos, teremos do lado dos adultos a estimulação para a vivência da segunda fase do ciclo de alteridade. Se na primeira temos o início da transformação da criança em adulto jovem, na segunda temos o adulto começando a se transformar em “velho” e, portanto, a se preparar para a busca de um sentido maior e mais profundo da vida, a se preparar para a segunda metade da vida. Essa segunda “crise da adolescência” será vivida, como qualquer crise, de uma maneira que poderá ser criativa ou não. É a segunda oportunidade para a vivência desse dinamismo, para o resgate de eventuais aberturas e criatividades não vividas na primeira fase de adolescência. É, como a primeira, uma fase perigosa, porque, principalmente quando existem grandes repressões e fixações, o risco de uma enantiodromia é grande, pois a constelação dos arquétipos da anima e do animus é muitas vezes extremamente forte.
Como ilustração, gostaria de citar um caso de terapia de casal em que, de maneira não tão incomum em nossos dias, a constelação da anima do marido nessa segunda fase o levou a um intenso conflito conjugal pelo questionamento da grande criatividade profissional e intelectual de sua mulher. Sentia, na sua vida, muita falta da criatividade da esposa no cozinhar, no cuidar da casa e do jardim, no ser companheira para coisas simples e aconchegantes da vida doméstica. Sentia-se sufocado pelo sucesso profissional e intelectual da esposa, principalmente pela sua grande capacidade de iniciativa e atuação em vários setores da vida em comum. Sufocava-o também sua própria vida profissional, de sucesso econômico, mas frustrante quanto à realização pessoal. A constelação da anima o levou a buscar desenvolver o que estava estagnado e pouco desenvolvido em sua personalidade. Manifestamente, queria o desempenho da mulher naqueles aspectos domésticos, vendo-a não mais como a companheira que até então tinha sido. A crise se agravou com uma grande paixão por outra mulher, que tinha, quanto aos aspectos apontados, condutas opostas às da sua esposa: era simples dona de casa, bastante maternal com os filhos, não desenvolvida nem profissional nem intelectualmente.
A condição para que esse casamento possa continuar sendo vivo e válido implica a possibilidade de reformulação de ambos os cônjuges no sentido de poderem continuar sendo reciprocamente estimulantes para o desenvolvimento de cada um. A falta de oposições paralisa esse desenvolvimento e pode reduzir a relação conjugal ao seu componente de amizade e solidariedade.
Através do contato com os avós ou outros parentes mais velhos, a estimulação para a vivência do arquétipo da sabedoria, da maturidade, é ativada na sua primeira fase, como netos diante dos avós ou como filhos adultos diante dos pais que estão envelhecendo.
Através dos filhos adultos que se casam e dos netos, ativa-se fortemente a segunda fase do ciclo cósmico, em que, como adultos-velhos, caminhamos para a transcendência da vida, para a relativização dos valores e para o sentido mais profundo da vida.
A família, quanto mais rica e variada em membros participantes, através do convívio com ancestrais (avós e pais), descendentes (filhos e netos) e colaterais (tios, irmãos, primos e sobrinhos), mais naturalmente propiciará vivências humanizadoras e ricas dos dinamismos arquetípicos estruturadores básicos da personalidade.
Cada vez mais o conceito de família no sentido biológico se torna relativo quanto à sua importância em nossa individuação, continuando, porém, a ser fundamental quando se entende família como a psicológica, aquela que é a verdadeira família porque é como tal. Nem sempre o grande humanizador do arquétipo do Pai é o pai biológico, e sim aquele que de fato desempenhou esse papel. Ele será, como designou Jung, o pai psicológico, corroborando seu conceito de verdade psicológica como aquela que funciona, que é efetiva (Jung, 1975).
Uma dinâmica familiar frequentemente pouco enfatizada, mas a meu ver de grande ajuda para a individuação, é a que existe entre irmãos. A vivência dos dinamismos arquetípicos nas diferentes dimensões de nossa personalidade (corpo, sociedade, natureza e ideativo-emocional) acontece entre irmãos de modo bastante diferente daquele vivido entre pais e filhos e entre cônjuges. Assim, dois irmãos vivenciam o dinamismo da relação pai-filho entre si de maneira mais livre e mais solta, não tão carregada. As trocas costumam ser mais fáceis e mais leves.
O arquétipo do herói se constela de uma maneira mais próxima da identidade, não tão idealizada e distante, e com isso sua vivência, sua humanização, é mais fácil. O irmão mais velho, por exemplo, é tantas vezes o pai ou o professor mais próximo e mais amigo, com quem, para certas situações, há mais facilidade de entrega e de abertura, com quem também é mais fácil competir, agredir, brigar e fazer as pazes. Entre irmão e irmã frequentemente são vivenciados símbolos muito importantes dos eixos mãe/filho e pai/filha e também dos arquétipos da anima e do animus (Vargas,1986).
Por assim dizer, o “namoro” com a mãe é muito mais carregado de riscos de regressão e incesto e, portanto, mais perigoso, daí a necessidade de um tabu mais forte. Com a irmã ele não é tão carregado e menos ainda com a prima. Esse fato, como todo símbolo, tem dois lados: por ser mais leve, facilita certas vivências e dificulta ou impede outras pelo mesmo motivo.
Psicologicamente, a relação conjugal é frequentemente a mais duradoura e profunda que temos na vida. É também aquela que mais retrata nosso ser, uma vez que decorre de nossa escolha amorosa e reflete, portanto, nosso Self nos seus componentes conscientes e inconscientes.
Muitas vezes se diz, frequentemente de modo agressivo, que “mãe a gente não escolhe”, retratando uma realidade hereditária na qual nossa participação, no sentido de escolha consciente, é nula.
É claro que, psicologicamente, é uma realidade relativa, uma vez que podemos, embora de maneira tardia e muito restrita e limitada, escolher “outra mãe” que possa ser, a nosso ver, melhor humanizadora do dinamismo matriarcal.
Do cônjuge não podemos dizer isso. De maneira mais ou menos consciente, ele é nossa escolha. De algum modo nos retrata, nos exprime e nos complementa, mas também nos denuncia, na medida em que o consciente de um expressa muito do inconsciente do outro, e vice-versa.
As diferentes características do vínculo conjugal podem trazer à tona símbolos os mais variados para serem elaborados e cumprirem seu papel de estruturadores de nossa consciência, daí a grande importância de um vaso conjugal bem constituído (Byington, 1988a).
Talvez por isso devamos empregar o que temos de melhor, principalmente nossa capacidade de esforço e sacrifício, na construção desse continente conjugal, pois frequentemente é nesse relacionamento, nesse self conjugal (Byington, 1985), que surgem os mais ricos e fortes símbolos de nossa vida, para o bem e para o mal. Assim, as possibilidades de vivências criativas são tão grandes quanto as possibilidades de atuações, cumplicidades e vinculações mórbidas, que, se não forem terapeuticamente tratadas de algum modo, se constituirão na paralisia e na não realização de nossa vida.
Podemos dizer que teríamos assim, num extremo, os casamentos muito ricos, vivos e criativos, infelizmente não tão comuns, e no outro aqueles que estão paralisados e sem vida, infelizmente não tão raros. Entre esses extremos, há uma variedade enorme de padrões de vinculação em que podemos encontrar as mais variadas complementariedades criativas e defensivas. As vinculações conjugais propiciam, assim, um riquíssimo “meio de cultura” para nossos “germes”, tanto para os patológicos como para os potenciais de desenvolvimento.
Persona e sombra – vivências estruturantes no casamento e na família
O casamento e a família são também vasos propiciadores de vivências estruturantes para os arquétipos da sombra e da persona.
Muitos de nossos principais papéis sociais e condutas adaptativas, assim como a identificação de características egóicas indesejáveis, são inicial e basicamente desenvolvidos dentro da família e, posteriormente, no casamento.
Jung conceituou a sombra como sendo formada por aqueles conteúdos que por alguma razão não são aceitos pela consciência, não sendo, pois, integrados ao ego (Jung, 1982, p. 6, § 14). Por serem inconscientes, aparecem no nosso comportamento de uma maneira não percebida por nós (ou seja, nos encontramos “cegos” em relação a eles), ficando no escuro, na sombra. Jung a propôs como arquétipo e, portanto, inevitavelmente existente em todo ser humano, mas com conteúdo específico e individual para cada personalidade (Byington, 1988b, p. 31).
C. A. Byington introduziu a ideia, a nosso ver de grande utilidade clínica, de que a sombra pode ser vista nos quatro dinamismos estruturantes referidos aos quatro arquétipos regentes, bem como a distinção entre sombra normal e sombra patológica, conforme o conteúdo da sombra esteja livre ou cercado por defesas (Jung, 1978, p. 32, § 244).
Os símbolos que, total ou parcialmente, estejam na sombra normal podem mais facilmente, com alguma ajuda, cumprir seu papel estruturante da consciência. Já os conteúdos que estejam na sombra patológica, só com significativa ajuda terapêutica podem aos poucos irem se tornando ego, à medida que as defesas se tornem desnecessárias ou dispensáveis.
A persona, como a conceituou Jung, é a parte da personalidade que é uma máscara ou face usada para confrontar o mundo, sendo uma parte identificada com a psique coletiva (Byington, 1988b, p.11). Como a sombra, a persona é um arquétipo e, enquanto tal, é coletiva e está presente em todas as personalidades, mas seu conteúdo é diferente em diferentes culturas e para diferentes indivíduos.
C. A. Byington também relaciona a persona aos quatro dinamismos (matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmico), bem como distingue a persona patológica, defendida e inconsciente, da persona normal, cujos conteúdos podem ser utilizados como instrumentos do nosso desenvolvimento ou adaptação.
A família como um todo e a relação conjugal em especial propiciam riquíssimas situações para a integração egóica da sombra normal e o funcionamento da persona normal. Muitas vezes, essas situações são suficientemente terapêuticas para o resgate de conteúdos mesmo da sombra e da persona patológicas. Por exemplo, quando na relação conjugal existem condições boas de confiança e entrega ao companheiro (vaso conjugal adequado), inúmeras vezes o cônjuge, por conviver intimamente e, portanto, conhecer bem o outro, ajuda-o a se conscientizar de conteúdos negados ou se aperceber de condutas estereotipadas.
É comum ouvirmos, quando uma pessoa elogia muito um membro do casal ou da família, alguém dizer “Ah, é? Vá viver com ele para ver como realmente é”. Diz o povo, com sabedoria, que só se conhece alguém por inteiro “quando se come um saco de sal juntos”. Com isso, expressa-se que o conhecimento mais profundo necessita do convívio íntimo por longo tempo. É somente nessas condições que o indivíduo pode se mostrar mais, na medida em que aflora seu inconsciente ao relaxar os controles egóicos e funcionar cada vez mais no “piloto automático”, ou seja, pelo seu inconsciente. É nessas condições, pois, que surgirão, atenuados ou não, os conteúdos da sombra e da persona.
A convivência conjugal e familiar pode promover naturalmente um aprofundamento dos conhecimentos mútuos, e assim o inconsciente de seus membros cada vez aparecerá mais e poderá, quando as condições permitirem, ser percebido e integrado. Brincadeiras, apelidos, jogos e gozações, dentro do contexto familiar e conjugal, além de reveladores, são muitas vezes vivências simbólicas estruturantes e terapêuticas para nossa personalidade e enriquecedoras de nossa individuação.
Uma situação que penso ser ilustrativa disso foi fornecida por um casal em terapia. Havia da parte de ambos os cônjuges um altíssimo nível de autoexigência quanto às próprias performances, dele no seu papel de provedor e dela no de cuidados com os filhos e a casa. Tinham grandes brigas diante da menor crítica, sugestão ou eventual comentário que um fizesse a respeito do desempenho do outro nesses papéis. Com pequena ajuda terapêutica deram-se conta da incapacidade que estavam tendo de aceitarem sugestões um do outro, pela excessiva autocrítica que tinham e que projetavam mutuamente. Puderam com isso receber as propostas do outro como ajuda e não ameaça à sua individuação. Deram-se conta de como estava sombria para cada um, e projetada no outro, a possibilidade de relaxamento e entrega para a “curtição” de seus respectivos compromissos conjugais.
Transferência. Self e vaso conjugal e familiar
Conforme o conceito mais abrangente de transferência proposto por Jung, ela está presente em toda relação humana, acontece bilateralmente, é inevitável e, portanto, devemos reconhecê-la para melhor lidarmos com ela, tanto no sentido do arquetípico como do pessoal. (Jung, 1987, p. 41, § 358) C. A. Byington descreve a transferência nos seus aspectos criativos e defensivos, o que nos parece clinicamente esclarecedor e útil, e discrimina-a também nos diferentes dinamismos estruturantes de nossa personalidade, onde ela assume características diferentes para cada um (matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmico) (Byington, 1985).
Como seria de se esperar, as relações familiares e conjugais são altamente propiciadoras de relacionamentos transferenciais, uma das razões pelas quais elas são tão potencialmente geradoras de vivências simbólicas, tanto para o desenvolvimento como para a patologia.
São de grande ajuda em nosso trabalho terapêutico a reflexão e a análise das relações conjugais e familiares através da aplicação dessas construções teóricas, uma vez que ajudam a discriminar, ordenar e compreender a imensidão das vivências humanas, sem violentar ou reduzir sua riqueza.
Nosso intuito não é discutir o complexo fenômeno da transferência, mas sim enfatizar o quanto as relações familiares e conjugais são propiciadoras dele e, por isso, ricas para nossa individuação.
Propiciar vivências transferenciais de maneira criativa é talvez a nossa principal tarefa na psicoterapia, por isso é tão fundamental que o analista se conheça bem, que tenha uma rica e ampla abertura dialética como o próprio inconsciente. Só assim, e não querendo evitar o inevitável que é a transferência, é que ele poderá, cada vez mais e melhor, não se misturar de maneira cega e indiscriminada com os seus clientes, ficando preso em defesas não reconhecidas e não trabalhadas e cego para objetivos não identificados e não atingidos.
Do terapeuta devemos esperar, pois está numa função profissional, que esteja a serviço do cliente e, portanto, privilegie o processo dele.
Dos cônjuges e dos membros de uma família é desejável esperar que o autoconhecimento, a abertura e a reflexão contribuam para que cada um lide melhor com as intensas situações transferenciais que surgem nesses meios. Porém, ninguém numa família é terapeuta profissional do outro. Todos podem ser “terapeutas naturais”, mas também podem ser e frequentemente são “agentes patogênicos” entre si.
Os membros de uma família, especialmente os cônjuges, podem, “e é por aqui que os grandes críticos dessas instituições argumentam”, ser propiciadores de grandes problemas e patologias.
Os conceitos junguianos de Self e vaso, que tanto ajudaram a enriquecer a visão do ser humano, trouxeram, porém, certo risco de indiscriminação, como toda visão mais ampla e rica pode trazer. A aplicação desses conceitos dentro da Psicologia Simbólica, feita por C. A. Byington à análise, à família e ao casamento, representa, a nosso ver, um enriquecimento teórico de grande valor clínico, pois nos ajuda a entender melhor e a poder trabalhar com as relações de análise, de terapia de casais e de família de uma maneira rica e aberta, ao mesmo tempo com discernimento e flexibilidade, além de limites teóricos bem claros para nos orientar na prática clínica. ■