Quando o pai é pai e o filho é filho, quando o irmão
mais velho desempenha o papel de irmão mais velho
e o mais novo age de acordo com o papel de irmão
mais novo, quando o marido é realmente marido
e a esposa é realmente esposa,
então existe ordem.
I Ching
I – Introdução
Muito já se refletiu na psicologia sobre o mito de Édipo (Brandão, 1987, p. 223) e minha preocupação aqui não é fazer uma descrição ampla e cuidadosa sobre esse tema. Quero mais é me ater a algumas reflexões sobre a problemática edípica, ou seja, sobre o chamado “complexo de Édipo”, a meu ver de aplicação clínica no trabalho do psicoterapeuta.
II – O triângulo edípico no plano pessoal
Examinei aqui o triângulo edípico no que chamo plano pessoal, ou seja, no que se passa entre um(a) filho(a), um pai e uma mãe. O curso natural (gráfico I) de um grupo familiar se inicia com um homem e uma mulher que se encontram e que só se tornam pai e mãe com o aparecimento de uma terceira pessoa, o(a) filho(a). Desde a concepção até o parto, o(a) filho(a) está biologicamente mais próximo da mãe, é “um” com ela. Todo o contato do pai com o(a) filho(a) nesse período será feito através da relação pai-mãe. Porém, do ponto de vista psicológico, o(a) filho(a) tem a vivência do “um”, um com a mãe, com o pai, com o mundo, como tão bem nos coloca Erich Neumann, quando descreve a relação primal (Neumann, 1973, p. 7).
Com o nascimento, a criança permanece nessa relação por muito tempo e lentamente vai para uma espécie de “rede de balanço”, cujas extremidades estão uma com a mãe e a outra com o pai. Vai, aos poucos, percebendo-se distinta da mãe, descobrindo o pai, passando a viver a relação triangular, como representado no gráfico.
Classicamente na psicologia, o triângulo edípico é uma problemática da infância e tem uma resolução diferente para o menino e para a menina, como nos mostra Freud (1974, p. 259). Assim, o menino terá de sacrificar sua relação erótica com a mãe e se identificar com o pai para estruturar sua identidade masculina. A menina terá uma resolução mais complexa, pois terá de separar-se da mãe, aproximando-se amorosamente do pai; terá depois de sacrificar sua relação erótica com o pai e aproximar-se novamente da mãe, identificandose com ela para então estruturar sua identidade feminina.
Dessa forma, vemos que um contato profundo e íntimo, tanto para o menino como para a menina, será fundamental, tanto com a mãe como com o pai. Sabemos, para a estruturação da identidade sexual, a importância para ambos, menino e menina, do contato com a figura parental do mesmo sexo e do sexo oposto. Se um desses contatos, por qualquer razão não se der ou se der inadequadamente, precária ou excessivamente, conhecemos os riscos que isso pode trazer para o desenvolvimento do menino ou da menina. Tanto um como o outro precisam relacionar-se profundamente com a figura parental igual, do mesmo sexo, que será seu modelo. Tanto um como o outro também precisam relacionar-se com a figura parental do sexo oposto, do qual tem de se diferenciar. Esse processo é de indiscutível importância na estruturação da identidade sexual ou primeira identidade (Byington, 1986, p.15).
Porém, não penso que a problemática edípica, normal no desenvolvimento, se esgote na primeira infância. Penso que, após as vivências classicamente descritas, tanto o menino quanto a menina terão de relativizar seu contato, tanto com a figura paterna quanto com a materna. E é na adolescência que ambos passarão pelo processo de distanciamento do casal parental.
Uma maneira, a meu ver prática, de compreendermos como isso se faz é pensarmos que, progressivamente, o “triângulo” constituído por pai-mãe-filho(a) passará a ser um “quadrângulo”, pela separação no(a) filho(a) de dois papéis, FM (filho(a) da mãe) e FP (filho(a) do pai). Ou seja, em nível da pessoa do(a) filho(a), este(a) necessitará ter a discriminação em si mesmo(a) desses dois papéis, com a percepção de que ele(a) tem uma filiação dupla, ou seja, a de filho(a) de um pai-homem e a de filho(a) de uma mulher-mãe (gráfico II).
No processo da adolescência, descreve Carlos Byington, o(a) filho(a) necessita romper com o círculo à volta do triângulo que forma com os pais (Byington, 1978). Ou seja, a libido exogâmica (força que “puxa” para fora do círculo parental) terá de superar a libido endogâmica (força que “puxa” para dentro do círculo parental).
Penso que, nesse conflito que se cria entre essas duas correntes de libido, os papéis de FP e FM do(a) filho(a) têm uma função muito importante, ajudando-se reciprocamente nessa espécie de segundo parto. Assim, se um dos papéis (FP ou FM) estiver a serviço da libido endogâmica, o outro estará a serviço da exogâmica e vice-versa. Essa espécie de jogo de forças terminará com a saída do(a) filho(a), adulto(a) jovem, do círculo parental, com o recurso dos dois papéis FM e FP, adequadamente vividos.
Tudo o que descrevemos até aqui é a primeira fase edípica.
II a – Édipo é uma problemática bifásica
Penso que o até aqui descrito deve ser considerado como a primeira fase edípica, como já foi colocado. A meu ver, porém, devemos considerar a situação edípica como bifásica.
A segunda fase se inicia com o homem e a mulher, já adultos, que se encontram. Eles terão então de já terem feito sua separação das figuras parentais. Ou seja, o homem e a mulher se tornarão pai e mãe no momento em que uma terceira pessoa, o filho ou a filha vier. A meu ver, é quando isso ocorre que se inicia a segunda fase edípica do desenvolvimento. O homem viverá no papel de pai (segunda fase) as mesmas vicissitudes da situação edípica pelas quais já passou como filho (primeira fase). A mulher as viverá como mãe. É como se, como filho(a), essa trajetória fosse a primeira volta de uma grande viagem que se completa com a segunda volta, vivida com o papel adulto de pai para o homem e de mãe para a mulher.
O(A) filho(a) estará na primeira fase (primeira volta dessa viagem) “recebendo” cuidados dos pais e “dando” a eles a possibilidade de serem pais. Os pais estarão na segunda fase (segunda volta dessa viagem) “dando”, através de cuidados, ao(à) filho(a) a possibilidade de ser filho(a) e dele(a) recebendo a possibilidade de serem pais. É a lei natural das coisas pela qual recebemos dos nossos pais o que damos (transformado) aos nossos filhos e estes receberão de nós, pais, o que darão (transformado) aos seus filhos. Concomitantemente estaremos, portanto, recebendo de nossos filhos o que demos a nossos pais, enquanto possibilidades, e nossos filhos nos dando o que receberão de seus filhos.
Penso que somente depois dessas duas “voltas”, vivendo, portanto, as duas fases, teremos passado pela problemática edípica inteiramente, uma primeira vez.
Torna-se importante esclarecer que, obviamente, não existe a necessidade concreta da união entre um homem e uma mulher e de que ambos tenham um(a) filho(a) para que isso ocorra. A necessidade é de que, na relação com um “outro”, esses papéis sejam vividos. Podemos “maternalizar” ou “paternalizar”, por exemplo, um(a) filho(a) adotivo(a), nossos sobrinhos, nossos alunos, nossos clientes, etc. A necessidade de viver os papéis de pai e/ou mãe nos levará, por assim dizer, a desempenhá-los onde quer que existencialmente seja possível, dado que ela é inerente ao nosso desenvolvimento. Ou seja, filho(a) é uma vivência concreta, todos nós nascemos concretamente de um pai e de uma mãe, mesmo que não tenhamos por ele(a) sido criados. Já pai e/ou mãe serão experiências a serem vividas quer seja com nosso(a) filho(a) legítimo ou com qualquer outra pessoa com relação a quem desempenhemos esses papéis.
II b – Desvios
Dada a nossa necessidade de vivermos as duas fases, os primeiros papéis (FM e/ou FP) não adequadamente vividos irão aparecer na segunda fase. Ou seja, quando na segunda volta da mesma “viagem” passarmos pelas mesmas vivências, porém nos papéis adultos de M (mãe) ou P (pai), os papéis de FM e/ou FP não adequadamente vividos buscarão seu espaço, juntamente com os papéis de M e/ou P. Assim, por exemplo, se o papel FM de um homem foi mal vivido, ao se tornar pai, ele tenderá a viver junto com o(a) filho(a) esse papel. Necessitará que sua esposa seja também mãe dele e não só do(a) filho(a), com quem competirá pela mãe. Poderá sentir ciúme exageradamente, por exemplo, vivendo o(a) filho(a) como se fosse um irmãozinho, por necessitar daquela vivência, por assim dizer, incompleta de filho-da-mãe. Se esse homem não viveu adequadamente o papel FP, ao se tornar pai (P), ele terá dificuldade de desempenhar esse papel adulto, pois, juntamente com o(a) filho(a), o que ele busca é um pai para si mesmo, confundindo sua performance. De igual maneira para a mulher.
De certa forma, pais que não viveram adequadamente seus papéis de filhos tenderão a “pegar carona” com os próprios filhos na busca do pai e/ou da mãe, o que traz evidentemente uma perturbação nos seus desempenhos parentais. Naturalmente, também haverá confusão nos seus papéis de marido-esposa, companheiros, uma vez que um pode ser vivenciado como pai e/ou mãe do outro e vice-versa. Nesse sentido, um desvio frequente na nossa cultura é o homem ser marido-pai da esposa e a mulher ser esposa-mãe do marido. Consequentemente, os filhos serão filhos-irmãos do pai e/ou da mãe, o que traz distúrbios na estruturação dos papéis adequados de todos os membros da família.
Teremos sempre nos desvios uma fixação dos símbolos referentes a um papel e, portanto, uma dificuldade na continuidade do desenvolvimento simbólico.
Chamaremos, portanto, de desvios as situações em que, por alguma razão, o triângulo edípico não puder ser vivenciado adequadamente. Não existindo o triângulo, não poderemos ter o quadrângulo, resultante da separação dos papéis FM e FP. Não teremos, portanto, a possibilidade da saída adequada do triângulo. E teremos então o “deslocamento” dessa problemática para a segunda fase edípica, como já explicamos, e a repetição dessa problemática.
Os distúrbios da segunda fase edípica não virão necessariamente sempre como consequência dos distúrbios da primeira fase, embora essa seja a situação mais frequente. Alguém que tenha vivido adequadamente a primeira fase poderá ter distúrbios na segunda, como por exemplo em casos de perdas traumáticas do cônjuge (viuvez), de filhos, de vivências de sobrecarga em outras áreas de seu desenvolvimento, etc.
Há, portanto, obviamente, muitas circunstâncias que dificultam ou mesmo impedem a triangulação edípica. Separações de casais, “mãe solteira” etc. podem ser algumas delas. Vejo, porém, que essas são situações mais visíveis e de mais fácil percepção no trabalho analítico. Evidentemente, nem sempre nas situações exemplificadas temos a impossibilidade da triangulação, pois pode-se ter a figura masculina ou feminina substituta.
II c – Síndrome da retificação do triângulo
Essa situação existe quando, ao invés do triângulo, temos uma reta.
Se observarmos o gráfico I, veremos que há várias passagens naturais em que um lado do triângulo é mais frágil (linha pontilhada). Nessas situações normais de desenvolvimento, podemos ter uma ruptura desse lado do triângulo e sua consequente retificação.
Assim, poderemos ter:
Esses são os três tipos possíveis de retificação, sempre, portanto, com prejuízo de uma relação e, consequentemente, de todas.
Assim, na retificação “a”, o contato do(a) filho(a) (F) com o pai (P) não se dá diretamente, e sim através da mãe (M). Isso dificultará, por parte do(a) filho(a) (F), a vivência e o desenvolvimento do papel FP. Teremos aí, portanto, um forte papel FM em detrimento de um frágil papel FP. Se esse filho for do sexo masculino, teremos toda uma dificuldade na sua identificação com o homem-pai e, portanto, tenderá a ser problematizada sua relação com sua própria “hombridade”. Também sua relação com a mulher-mãe será complicada, pois faltará o equilíbrio. Issa trará para ele dificuldades também nas suas relações com as mulheres.
Se o filho (F) da retificação “a” for do sexo feminino, a não possibilidade da vivência e estruturação adequada do seu papel FP trará não só dificuldades na sua relação com o pai-homem, mas também com os homens de maneira geral. A falta de equilíbrio na sua relação com a mãe (M) também lhe trará problemas na sua relação com a própria identidade feminina.
A falta de equilíbrio trará, portanto, problemas para as três pessoas envolvidas. O pai (P) nessa situação não poderá se desempenhar como tal e a mãe (M) ficará com seu desempenho sobrecarregado. A relação conjugal será amplamente afetada.
O(A) filho(a) (F) viverá então nessa retificação problemas com sua primeira fase edípica, enquanto pai (P) e mãe (M) viverão problemas com sua segunda fase edípica.
Poderíamos dizer as mesmas coisas acerca da retificação “b”, mas ao contrário. Ela será igualmente problematizante.
Na retificação “c” teremos, ao nível do(a) filho(a) (F), uma forte tensão entre seus papéis FP e FM. Ele ou ela estará em sobrecarga. Ele ou ela funcionará como uma espécie de “pombo-correio” entre pai e mãe, geralmente com mensagens difíceis. Ao nível do pai (P) e da mãe (M), teremos altamente prejudicada a relação conjugal.
A retificação, funcionando como um desvio do triângulo, trará sempre a impossibilidade de o triângulo se transformar em quadrângulo (pela discriminação dos papéis FM e FP). Isso impedirá a continuidade do desenvolvimento edípico e, portanto, teremos uma fixação.
Uma questão a se prestar atenção no grupo familiar também é a problemática entre irmãos. Poderemos ter, no mesmo grupo familiar, por exemplo, mais de um tipo de retificação, ocupando cada filho(a) uma posição. Teremos às vezes também os irmãos, entre si, vivendo papéis de pai (P) e mãe (M). Naturalmente tudo isso trará problemas em ambas as fases edípicas.
Vários fatores podem estar presentes no desencadeamento das retificações. Podem estar ligados às condições de personalidade de cada membro do casal parental ou à relação entre eles.
Quanto à relação conjugal e à interação familiar, de maneira geral, a questão da tipologia, por exemplo, é muito importante, como nos mostra Nairo de Souza Vargas em seu trabalho sobre tipologia e terapia de casais (Vargas, 1981, p. 3).
Com frequência vemos que, dada a tendência repetitiva da neurose, uma retificação vivida na primeira fase edípica desencadeia uma retificação na segunda.
Ao nível do trabalho terapêutico, percebo que temos a ganhar quando percebemos a retificação existente. Isso nos possibilitará trabalhar os dois papéis (FM e FP), com o que poderemos ter o recurso dessas duas forças agônicas. Teremos que, portanto, diante de uma retificação, buscar a ‘‘retriangulação” simbolicamente. Isso poderá acontecer concretamente, conforme a idade do nosso cliente, ou abstratamente. É importante que percebamos a necessidade de “retriangular”, quer nosso cliente esteja na primeira ou na segunda fase edípica. Teremos, portanto, elementos para isso ser trabalhado, se nosso cliente for adulto, nas suas duas famílias: a relação com os pais e a relação com o cônjuge e os filhos. Só após a “retriangulação” poderemos propiciar o “quadrângulo” e, portanto, a retomada do andamento do processo edípico.
III – O triângulo edípico no plano arquetípico
Consideremos os arquétipos, descritos na psicologia pela genialidade de Jung (1975, p. 3, § 3), como deuses que moram no Olimpo. Eles usam os símbolos para se comunicar com os humanos. Ou seja, os arquétipos, através dos símbolos, estruturam a consciência (Byington, 1988, p. 14).
Tudo o que foi discutido no item II se refere aos humanos. Agora falaremos sobre os deuses e de como eles se relacionam com os humanos na situação edípica.
Cada “deus” tem uma maneira de “dominar” o cenário dos humanos, com princípios próprios. Cada “deus” tem as próprias leis e as próprias proibições e punições se suas leis não são cumpridas. Todos os deuses “habitarão” os humanos, cada um, a seu tempo e à sua vez, reinará, em ciclos. Mas nunca durante toda a vida de um humano um deus será inteiramente deposto. Cada deus que reina mantém, de certa forma, esse reinado funcionante durante todo o processo de individuação de um humano. Como os deuses são vários, vários serão os reinados ou santuários que convivem, nem sempre em paz, entre si. Todos disputam a atenção dos humanos e estes precisam de todos. Ai do humano que resolva “não dar bola” a um dos deuses! Como analistas sabemos disso.
Quero examinar como é essa tarefa e as disputas da consciência humana, na problemática edípica, pelos deuses.
Gostaria de fazer novamente a mesma viagem com o mesmo roteiro do item II. Portanto, na primeira volta consideraremos o humano filho (F) e na segunda os humanos pai (P) e mãe (M).
III a – Primeira volta ou primeira fase edípica
Com a fecundação, a Deusa Mãe (arquétipo da Grande Mãe) inicia seu reinado. Ela é a grande deusa da fertilidade. Ela toma conta do processo da gravidez. Ela é calor, proteção, aconchego, a serviço da vida. Ela é cuidado, é carinho. A criança nasce assistida pela deusa. É a deusa do “um”, do embalo, da proximidade. Toma conta do corpo do bebê, cuida de sua fome, de sua sede, do seu cocô, do seu xixi. É a deusa da nutrição. Ela cuida da saúde do bebê. Ela quer união, ela é união, ela vem antes da separação, ela vem no “um”, ela é o “um”, ela cuida do uno-mãe, uno-mundo, uno-cosmos da criança. Ela cuida do bem-estar e protesta contra o mal-estar. Ela cuida da saciedade e protesta contra a frustração. Ela é plena, lunar, forte, poderosa, sábia, competente, com discriminação própria quanto a leis próprias. Ela também é bravíssima, é furiosa, ela pune se seus princípios são desrespeitados. Ela “roda a baiana”, ela faz tudo para que possa reinar cuidando do que lhe cabe: nutrição e fertilidade. Quem quiser contra ela cometer o pecado capital que é incorrer no abandono estará no seu inferno, no seu lado terrível.
A criança forma aí ilhotas de consciência e lentamente, a partir desse mundo, relação primal de Neumann, vai tomando consciência de si e do outro.
Aos poucos outro deus se prepara para entrar em cena. É a vez do Deus Pai. É o deus da espada, o deus solar. Suas leis são seríssimas, importantes, também fundamentais. Ao chegar, como todos os deuses, desperta no humano o fascínio, o fascínio pelo novo, pelo novo código. Não é fácil, aliás é muito difícil essa mudança, como se fosse uma mudança de religião. É um ato de heroísmo da criança, que exige um sacrifício. A sabedoria do Olimpo também isso providência e o fascínio atrai, tornando irresistível a passagem.
Se a deusa cuidou de um tipo de conforto, esse deus cuida da separação dos opostos, da educação, do pode — não pode, do deve — não deve, do certo — errado, do frente — atrás, do em cima — embaixo, da noite — dia, dos sinais. É tudo fascinante. Quem não se lembra do fascínio de um relógio, de aprender a ver as horas, a ler, a escrever, a reconhecer que com sinais se fala? É o fascínio da abstração, o fascínio da coerência, dos números. As descobertas desse tipo de lógica, a descoberta das igualdades e das desigualdades. A descoberta de que 2 + 2 = 4, seja qual for o objeto; 2 laranjas + 2 laranjas = 4 laranjas, 2 bananas + 2 bananas = 4 bananas. É surpreendente descobrir, posteriormente, que isso é apenas um pedaço da história e que 2 + (− 2) = 0 ou − 2 + (− 2) = − 4. Descobrir que os sinais dizem coisas, nesta abstração contínua!
É um deus absoluto, que implanta, que conquista, que legisla, que estabelece o “olho por olho e dente por dente”. É o Deus Pai com sua glória.
Ele tem suas tábuas da lei e também sua lista de crimes ou pecados. Quem quiser perceber sua fúria que o desobedeça. Seu lado terrível se liga à injustiça, à desobediência, ao não respeito à assimetria das coisas.
Esses dois deuses, tão pujantes, ficarão por muitos anos estruturando a consciência do(a) filho(a) humano(a), com conflitos. Crescer é cheio de conflitos.
Na adolescência um grande tumulto se opera. Um deus Herói fará, ao entrar em cena, que o(a) jovem queira e necessite sair do domínio dos dois primeiros deuses. É como se o(a) filho(a) necessitasse se libertar das duas primeiras “religiões”. E é o Herói que traz ao(à) filho(a) — jovem humano(a) — a dose de coragem necessária. O Herói tem seus princípios e o que lhe é sagrado é exatamente a coragem. Seu maior pecado ou crime é a covardia, que tenderá a ser evitada de qualquer maneira. É por isso muitas vezes que vemos no(a) jovem esse lado até temerário. Ele ou ela enfrenta uma batalha por vez e ali coloca toda sua energia, às vezes até a exaustão. O jovem ou a jovem nem sempre atende à sabedoria da Deusa Mãe (ele ou ela não se cuida) ou do Deus Pai (ele ou ela desobedece) como se isso já não fosse o fundamental. Mas é que o Herói lhe dá as novas tarefas, às vezes muito difíceis e nem sempre compreendidas por ele(ela) mesmo(a) ou pela família. São momentos no desenvolvimento de muita insegurança, desarmonia, altos e baixos, insensatez, euforia e tristeza, como ocorre nas batalhas.
O Herói traz a desacomodação, traz a desarrumação na ordem anterior das coisas, para que uma nova seja buscada.
É como se o(a) filho(a) humano(a), o(a) jovem, através do Herói abrisse espaço para outro deus ou outra deusa, conforme seja mulher ou homem.
É assim que o Deus Animus ou a Deusa Anima entram no cenário, ele no cenário da filha humana e ela, a deusa, no cenário do filho humano. A bem da verdade, desde pequenos, a forma de cada filho viver os reinados estruturantes dos dois primeiros deuses é muito individual, muito particular, já pela presença do Animus — Anima. Isso nem sempre é compreendido e respeitado pelos pais, como tão bem coloca Carlos Byington (1987, p. 68).
É a primeira vez que, no desenvolvimento, temos dois deuses: a Anima para o homem e o Animus para a mulher, como propôs Jung (1978, p. 64, § 297). Porém, são dois deuses que têm a mesma “religião”, ou seja, os mesmos princípios, a mesma lista de virtudes e de pecados. Trata-se da Alteridade, proposta na psicologia por Carlos Byington (1983). Das suas virtudes são muito importantes a troca, a simetria, a dialética dos opostos. Seu grande pecado é a traição, da alma, do si-mesmo e, por consequência, do outro. Os valores não são ensinados e sim buscados, descobertos, encontrados. É nela que percebemos plenamente a importância que o “outro” tem para o “eu”.
E será no desenvolvimento normal, nesse funcionamento, da conjugalidade,
que o homem e a mulher se encontram. São esses deuses que, de certa forma, dirigem a busca do companheiro ou da companheira.
Aí é que o(a) humano(a) filho(a) terminou a primeira volta, ou seja, viveu a primeira fase edípica. Assim se encontram um homem e uma mulher.
III b – Segunda volta ou segunda fase edípica
Entre o homem e a mulher existe uma relação que é a conjugal. Esta, regida pela alteridade, deverá permanecer nessa “religião”. Com a chegada do(a) filho(a), o homem e a mulher desenvolverão outra relação, a parental. É através dessa relação que o casal parental dará a segunda volta.
Esse casal humano, somente com a chegada do(a) filho(a), se tornará pai e mãe. Aí se inicia a segunda passagem pelas “igrejas” ou “religiões” já citadas. Consideremos, portanto, agora o humano adulto pai (homem) ou mãe (mulher).
Na primeira igreja, na igreja da Deusa Mãe, o humano adulto passará como sendo uma espécie de sacerdote (homem-pai) ou sacerdotisa (mulher-mãe) que cuidará da “iniciação” do(a) filho(a). Os adultos pai e mãe serão convocados pela deusa a exercerem seus princípios, porém agora no papel de doadores. Eles aí darão a nutrição ao(à) filho(a) carinho, proteção, os cuidados, o “amor materno”, a dedicação. Os pais aí desenvolverão suas possibilidades, como adultos, de se relacionar com a criança corporalmente, usando a linguagem não verbal, o acalanto, o contato. Eles “humanizarão” o arquétipo da Grande Mãe.
Como adultos, em seguida, juntamente com o(a) filho(a), irão novamente para o Santuário do Deus Pai, como sacerdote e sacerdotisa. Aqui, iniciarão o(a) filho(a) nos princípios desse deus. Vão se dar à criança, ao(à) filho(a), como provedores, implantadores da nova lei e nova ordem, da disciplina, da separação dos opostos. Serão, enfim, os “humanizadores” do arquétipo do Pai.
Tanto com a Deusa Mãe como com o Deus Pai também os adultos (pais) ficarão fascinados novamente nesta segunda volta. Desta vez ficarão fascinados ao ver no(a) filho(a) as aquisições desses dois dinamismos. A natureza, na sua sabedoria, por assim dizer os conduz de fascínio em fascínio a se desenvolverem juntamente com o(a) filho(a).
É nessas “religiões”, da Deusa Mãe e do Deus Pai, que os pais humanos, “dando” ao(à) filho(a) a iniciação, deles “receberão” a possibilidade da estruturação da segunda metade desses dinamismos (Byington, 1983), comprovando o dito de que “é dando que se recebe”.
A seguir, também os pais terão, em si mesmos, a ativação do Herói, na adolescência do(a) filho(a). Muito heroísmo parental é necessário quando o(a) filho(a), já adolescente, se separa dos pais. O mesmo Herói que “empurra” o(a) filho(a) para se separar dos pais, “empurra” os pais para propiciarem essa separação, tudo isso com muito conflito, com dor, como doem todos os partos.
E é aí que, como adultos, os pais, homem e mulher, poderão chegar plenamente à alteridade, já iniciada na primeira volta. Ela não foi interrompida e sim enriquecida pela revivência da Grande Mãe e do arquétipo do Pai, na segunda volta. Com essa revivência, o que houve foi a possibilidade de alteridade plena, por ela necessitar, para ser vivida em sua plenitude, dos dinamismos parentais adultos, de segunda fase ou segunda volta. É aí que o pai-homem e a mãe-mulher estarão aparelhados para exercerem plenamente a alteridade, tendo já aprendido a dar e receber, agora já podem trocar. Tendo sido iniciados como filho(a) nos dois dinamismos ou “religiões” anteriores e neles sendo iniciadores do(a) filho(a), agora podem plenamente viver seu Animus ou Anima. Podem agora se relacionar simetricamente com o outro, buscando sua identidade profunda e dando seu próprio recado.
III c – A importância do sexo
Como descrevemos, tanto o homem-pai como a mulher-mãe terão seu papel como iniciadores do(a) filho(a) tanto com a Deusa Mãe como com o Deus Pai.
É frequente que encontremos a mãe pessoal só como sacerdotisa da Grande Mãe e o pai pessoal só como sacerdote do Deus Pai. Mas aí estaremos, se não num desvio, no mínimo numa incompletude, numa limitação de possibilidades.
O pai (homem) e a mãe (mulher) terão maneiras diferentes, próprias, de iniciar o(a) filho(a) tanto na religião da Deusa Mãe como na do Deus Pai. O homem fará isso como um homem faz e é diferente de como a mulher faz, além das diferenças pessoais.
É muito importante para o(a) filho(a) ter sua iniciação em cada “religião” tanto por um homem como por uma mulher, tanto pelo seu “igual” como pelo seu “oposto”. Isso alarga sua iniciação, que será mais abrangente e sólida. Isso dará ao(à) filho(a) parâmetros, modelos, de como um homem e de como uma mulher lidam com a Deusa Mãe e de como lidam com o Deus Pai. O(A) filho(a), com isso, terá um universo mais amplo de aprendizado e desenvolvimento.
IV – Parricídio, matricídio e filicídio
O matricídio e o parricídio pertencem aos enfrentamentos normais no desenvolvimento da primeira fase edípica.
Desde que o(a) filho(a) nasce, irá fazendo “matricídios” crescentes, tomando-se cada vez mais capaz de fazer por si mesmo(a) o que antes mamãe fazia por ele ou ela. Ao se tornar independente de cuidados, ele ou ela estará, de certa forma, “matando a mãe”, ou seja, a necessidade de que outra pessoa cuide dele ou dela maternalmente. É assim que o(a) filho(a) vai desenvolvendo a possibilidade de, por assim dizer, ser “mãe de si mesmo(a)”.
Em seguida, o mesmo ocorrerá com relação ao parricídio. Ou seja, aos poucos o(a) filho(a), que era totalmente dependente do pai, irá se tornando independente. O(A) filho(a), através de parricídios sucessivos, irá desenvolvendo sua possibilidade de, por assim dizer, “ser pai de si mesmo(a)”.
Esses dois processos, matricídio e parricídio, terão seu apogeu na adolescência, quando o(a) filho(a) se separa do casal parental.
O filicídio fará parte da segunda fase edípica. Esse movimento se inicia no parto com a “expulsão” do(a) filho(a) pela mãe. Sucessivos “partos” serão necessários para que haja a separação entre mãe e filho(a) e, portanto, sucessivos filicídios. Também o pai pessoal estará envolvido nos filicídios “cometidos” pela mãe, ajudando nesses partos. E terá ele mesmo, pai, que cometê-los, empurrando o(a) filho(a) para seu desenvolvimento.
E será na adolescência do(a) filho(a) que o filicídio também terá de ocorrer, agora em maior grau, para que haja a separação.
Porém, todo esse processo será propiciado pelos próprios deuses. A Deusa Mãe, através dos seus dois lados, propiciará tanto o cuidado como o “desmame”, tanto ao nível do(a) filho(a) como dos pais, tanto o matricídio (da mãe e pai pessoais) quanto o filicídio. Isso se dará em doses harmoniosas com o desenvolvimento. Com o Deus Pai, as coisas se passarão de igual maneira. Através dos seus dois lados, ele proverá e também “empurrará” para o desenvolvimento, tanto ao nível do(a) filho(a) como dos pais; portanto, propiciará tanto o parricídio (do pai e mãe pessoais) como o filicídio.
O Herói, no entanto, trará a grande ativação desse processo de separação, tanto para o(a) filho(a) como para os pais. Portanto, o Herói será um grande ativador, ao mesmo tempo, no grupo familiar, do matricídio, parricídio e filicídio
Pensemos na imagem das igrejas onde o(a) filho(a) está sendo iniciado pelo sacerdote (pai) e pela sacerdotisa (mãe), nas duas “religiões”. O matricídio-filicídio ocorrerá na primeira igreja, a da Deusa Mãe. O parricídio-filicídio ocorrerá na segunda igreja, a do Deus Pai. Tanto numa como noutra os humanos envolvidos serão filho(a), pai e mãe.
E é através desse processo que cada humano desenvolverá em si os quatro papéis em jogo. É “matando” os pais no outro que o(a) filho(a) vai desenvolvendo em si mesmo(a) os papéis M e P. Esse desenvolvimento o indivíduo continuará na sua segunda fase edípica. É “matando” o filho(a) no outro que os pais vão resgatando em si os papéis F (FP e FM), que eles haviam vivido em sua primeira fase.
Dessa forma, cada “humano”, ao final da segunda passagem pelas igrejas da Deusa Mãe e do Deus Pai, terá desenvolvido em si os quatro papéis.
Esses quatro papéis serão exatamente necessários para o exercício pleno da outra “religião”, a alteridade, regida pelos deuses Animus e Anima. Aí então, como é o princípio desses deuses, o ser humano estabelecerá a relação dialética entre esses quatro papéis, ou quatro possibilidades. São quatro polaridades que se relacionarão.
Será assim que o ser humano saberá existencialmente receber (papéis e Fp), se dar maternalmente (papel M) e se dar paternalmente (papel P). E é dando e recebendo que o ser humano poderá trocar.
E será, portanto, o nível pessoal, que, no grupo familiar, será a alteridade dos pais que “sustentará” o desenvolvimento edípico dos filhos.
V – Incesto e castração
Com a compreensão de como os deuses estão operando na interação com os humanos, através dos símbolos — linguagem possível entre deuses e humanos (ou entre arquétipos e ego) —, olhemos novamente para os “desvios”. Veremos que, em todos os desvios descritos e, particularmente, na síndrome de retificação do triângulo, o que temos é a fixação em determinados pontos dessa “linguagem”. Ou seja, temos uma fixação, uma estagnação na cadeia simbólica normal. Isso impedirá a continuidade adequada da trajetória edípica e, portanto, a continuidade plena do processo de individuação.
O tabu do incesto a ser feito pelos humanos faz parte do desenvolvimento normal e é providenciado pelos próprios deuses. E podemos dizer que incesto, em sentido mais amplo, é a própria estagnação, é a parada da cadeia simbólica em determinado ponto, impedindo sua continuidade. Portanto, estaremos diante do incesto cada vez que estivermos diante de um “desvio”.
Estruturar os papéis F (FM e FP) e resgatá-los é fundamental no desenvolvimento. Sem eles não poderemos aprender, receber, sermos iniciados. Portanto, receber, aprender com o outro sempre nos colocará na vida diante de relações assimétricas em que o outro será nosso doador, nosso iniciador (papéis M e P). Porém, essas possibilidades nos são dadas pelos próprios deuses (ou arquétipos).
Temos, portanto, uma capacidade normal de sermos contidos (FM) e contermos (M) o outro (arquétipo da Grande Mãe), o que é muito importante na entrega. Temos também uma capacidade normal de nos submetermos (papel FP) à autoridade legítima do outro e de exercermos a autoridade legítima (papel P) sobre o outro.
Porém, uma coisa é aceitarmos a contenção ou a autoridade legítimas do outro, para podermos dele receber e com ele aprender.
Uma coisa é contermos o outro e exercermos sobre ele nossa autoridade legítima, para podermos nos dar, ensinar. Outra coisa é nos submetermos à possessividade ou ao autoritarismo do outro. Outra coisa é sermos possessivos ou autoritários com o outro. Aí então estaremos diante da castração, no mundo da Grande Mãe ou do arquétipo do Pai.
Portanto, a castração, bem como o incesto, fazem parte, a meu ver, não do processo edípico normal, e sim dos seus desvios, ou seja, da fixação dos seus símbolos.
VI – As outras voltas
Tudo o que descrevemos se referiu às duas voltas básicas (ou duas fases) da trajetória edípica normal. Porém, muitas outras voltas nessa mesma viagem a vida nos propiciará, sempre nos dando a chance do aprimoramento desses papéis.
Assim é que na família, por exemplo, outra volta daremos como avós, quando para ela já traremos o contato com outra importante “religião”, que é a cósmica. Ou seja, traremos o contato com o dinamismo cósmico (Byington, 1987, p. 81).
Assim é que em outras instituições, além da família, outras voltas acontecerão. Seremos, por exemplo, alunos e depois professores.
Tudo o que recebemos poderemos dar transformado, e isso será uma necessidade no nosso desenvolvimento.
E é assim, penso, que Jung descreve a nossa individuação, como tarefa, a busca que resulta no encontro, na descoberta da “família psicológica”.
VII – Observação final
A citação inicial do I Ching refere-se ao hexagrama 37, Chia Jen ou “A Família” (Wilhelm, 1984, p.122).
Senti falta que nela aparecesse a palavra “mãe”. Consultando, porém, os textos de Richard Wilhelm (traduzidos por Gustavo Corrêa Pinto) e James Legge, verifiquei que a palavra “pai”, aí empregada, parece estar abrangendo pai e mãe, pelas qualidades que agrupa. De qualquer maneira, gostaria de acrescentá-la: “Quando o pai é pai (quando a mãe é mãe) e o filho é filho, quando o irmão mais velho desempenha o papel de irmão mais velho e o mais novo age de acordo com o papel de irmão mais novo, quando o marido é realmente marido e a esposa é realmente esposa, então existe ordem”. ■