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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.32 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2020
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0032n01A01
SEÇÃO TEMÁTICA - CLÍNICA DA CRIANÇA
Cuidado a crianças e suas famílias e queixas de agressividade: um estudo de caso clínico
Care for children and their families and complaints of aggressiveness: a clinical case study
Cuidado a niños y sus familias y quejas de agresividad: un estudio de caso clínico
Vania Bustamante
Psicóloga, Doutora em Saúde Coletiva, Instituto de Psicologia e Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. email: vaniabus@yahoo.com
RESUMO
Este artigo aborda o cuidado em saúde mental a crianças que chegam com queixas de agressividade. O estudo foi realizado no projeto "Brincando em Família", em Salvador, Bahia, que presta atendimento a crianças acompanhadas de suas famílias. Trata-se de uma pesquisa qualitativa - um estudo de caso clínico, sob a abordagem psicanalítica, envolvendo uma criança e sua família atendidas durante alguns meses no projeto. Os resultados sinalizam que as expressões agressivas fazem parte de um processo de amadurecimento emocional, porquanto para a criança é importante manifestar agressividade, vivenciar a sobrevivência do ambiente e assim poder construir uma relação de confiança. Os aspectos socioculturais, que naturalizam a agressividade como característica do dispositivo masculino da eficácia, são apontados e destacados como uma dimensão que demanda novos estudos. Revela-se ainda a importância de incluir a família no cuidado ofertado, porque isto propicia avanços nas possibilidades de os familiares compreenderem e acolherem as necessidades emocionais da criança e ampliarem o respeito às diferenças entre eles. Argumenta-se que a oferta de cuidado aqui analisada atende às demandas que se diferenciam dos CAPSi, da atenção básica e dos ambulatórios, e tem potencial para fortalecer a autonomia das famílias, indo assim na contramão da medicalização.
Palavras-chave: crianças; família; agressividade; saúde mental; cuidado.
ABSTRACT
This article focuses on mental health care for children within the context of aggressiveness complaints. The study was carried out in the "Brincando em Família" (family playing) project in Salvador, Bahia, and assists children together with their families. This case study entailed the analysis of a clinical case consisting of a child and his family, assisted for a few months, analyzed from a psychoanalytic perspective. The results were that aggressive expression is part of a process of emotional maturation in which it is important for the child to express aggression, experience the survival of the environment and thus build a relationship based on trust. The socio-cultural aspects that naturalize aggressiveness as a characteristic of the male device of efficacy are pointed out and highlighted as a dimension that demands new studies. The importance of including the family in the proffered care is shown, since this allows family members to understand and welcome the child's emotional needs and to increase respect for the differences between them. It is argued that the care offered here addresses demands that are different from CAPSi, basic care and outpatient care, and has the potential to strengthen the autonomy of families, thus counteracting medicalization.
Keywords: children; family; aggressiveness; mental health; care.
RESUMEN
Este artículo aborda el cuidado en salud mental a niños que llegan con quejas de agresividad. El estudio fue realizado en el proyecto "Brincando em Família" (jugando en familia), en Salvador, Bahía, asistiendo a niños acompañados por sus familias. El método involucró el análisis del caso clínico de un niño y su familia, atendido durante algunos meses, trabajado dentro del abordaje psicoanalítico. Como resultados encontramos que las expresiones agresivas constituyen un proceso de maduración emocional donde, para el niño, es importante manifestar agresividad, vivenciar la supervivencia del ambiente y así poder construir una relación de confianza. Los aspectos socioculturales que naturalizan la agresividad como característica del dispositivo masculino de la eficacia son señalados y destacados como una dimensión que demanda nuevos estudios. Se muestra la importancia de incluir a la familia en el cuidado ofrecido, dado que esto propició avances en las posibilidades de los familiares de comprender y acoger las necesidades emocionales del niño, ampliando el respeto a las diferencias. Argumentamos que la oferta de cuidado analizada atiende a demandas que se diferencian de los CAPSi, de la atención básica y de los ambulatorios, y tiene potencial para fortalecer la autonomía de las familias, yendo así en contra de la medicalización.
Palabras clave: niños; familia; agresividad; salud mental; cuidado.
Introdução
O presente trabalho aborda dois aspectos importantes no campo da saúde mental infantil: a oferta de cuidado à criança e sua família num mesmo espaço terapêutico e, paralelamente, o trabalho de acolher e construir novos sentidos para as queixas de agressividade em crianças. Para realizar esse propósito é necessária, inicialmente, uma contextualização histórica do campo da saúde mental infantil. Após, apresentam-se as contribuições psicanalíticas, seguidas do relato de um caso clínico.
A inclusão de crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira só foi formalmente iniciada em 2001, pouco depois da promulgação da Lei nº 10.216, que estabelece a saúde mental como política de governo. Na III Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), pela primeira vez foram produzidas formulações envolvendo crianças e adolescentes. Em 2002, foi publicada a Portaria nº 336 do Ministério da Saúde, contendo um capítulo específico que versa sobre a criação dos Centros de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes (CAPSi), que têm como características serem serviços ambulatoriais e também funcionarem como reguladores da porta de entrada da rede assistencial, assim como se responsabilizarem pela organização da demanda e da rede de cuidados no território (Brasil, 2002).
Em 2005, no documento "Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto-juvenil" (Brasil, 2005), produzido pelo Ministério da Saúde, são formulados como princípios para uma política nacional de saúde mental infantojuvenil: (1) Toda criança ou adolescente a cuidar é um sujeito. Isso implica a ideia de responsabilidade "pela sua demanda, seu sofrimento, seu sintoma", bem como se reporta a um sujeito de direitos, incluindo o direito a cuidado, enquanto sujeito singular; (2) Acolhimento universal para quem chega ao serviço, onde, após receber e ouvir a demanda, é preciso dar uma resposta; (3) Encaminhamento implicado; (4) Construção permanente da rede que inclui o trabalho com os demais serviços e equipamentos do território; (5) Trabalho no território, entendido como o lugar psicossocial do sujeito; (6) Intersetorialidade na ação do cuidado.
O papel estratégico do CAPSi junto aos diferentes serviços e setores é reforçado com a formulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), pela Portaria MS/GM nº 3.088 do Ministério da Saúde (Brasil, 2011) e, nesse sentido, "o trabalho em rede chama nossa atenção para construção de relações com os diferentes serviços, que são em si mesmas redes, uma vez que sustentam práticas." (Bertoul, 2014, p. 51).
Ao refletir sobre o conceito de saúde mental, usando o referencial da clínica ampliada, Campos (2016) aponta que "saúde mental tem a ver com a liberdade e autonomia das pessoas, com a dificuldade do sujeito de lidar com a rede de dependência que toda existência engendra" (p. 33). Desse modo, a saúde mental ampliada como conjunto de práticas seria tanto terapêutica quanto preventiva, indo muito além de "uma prática centrada no alívio de sintomas incômodos ou no treinamento de comportamentos adequados ao meio social" (p. 33). O autor aponta que atribuir à estratégia de saúde da família a responsabilidade por cuidar de diversas "dificuldades de viver", outras modalidades de sofrimento psíquico ou distúrbios intermediários constitui um encargo demasiado grande para a atenção básica. Isto se deve à necessidade do apoio matricial para a construção do cuidado em saúde mental e, de um modo amplo, refletir sobre a construção de diversas modalidades de cuidado.
Onocko-Campos (2012) aponta a existência de importantes falhas na atual política pública de saúde mental para crianças, pois as intervenções não observam o contexto, a cultura e as redes de atendimento ao sujeito. O efeito disso, muitas vezes, é a fragilização dos sujeitos em sua família. Em diálogo com a obra de Winnicott, essa autora argumenta que "não há como atendermos crianças gravemente perturbadas, ou em risco sério de sê-lo, sem acolhermos e trabalharmos também clinicamente com as suas mães, e com seu ambiente" (p. 143). Destarte, é preciso que os serviços de saúde mental, tais como o CAPSi, atentem para o fato que "o trabalho com a dupla mãe-filho faz parte das suas tarefas primárias e não é um acréscimo inesperado!" (p. 143).
As pesquisas que incluem a família no emergente campo da saúde mental infantojuvenil evidenciam a persistência de lacunas na assistência e no registro de informações e também apontam a necessidade de aprofundar estudos sobre essa temática. De um lado, encontram-se alguns dados quantitativos sobre as famílias em estudos de caracterização de usuários, que mostram serem as mulheres, majoritariamente, as responsáveis pelo cuidado das crianças (Muylaert, Delfini & Reis, 2015; Reis, Delfini, Dombi-Barbosa & Bertolini, 2010). Também existem estudos qualitativos que buscam compreender os sentimentos dos familiares e os itinerários terapêuticos percorridos (Delfini, Bastos & Reis, 2017). Outros pesquisadores, ao analisarem as condutas terapêuticas de atenção às famílias em CAPSi no estado de São Paulo, se deparam com a falta de registro nos prontuários e com evidências de escassas ofertas para as famílias. (Dombi-Barbosa, Bertolino, Fonseca, Tavares & Reis, 2009)
Dentre os estudos que abordam as experiências de cuidado incluindo os familiares, Paravidini e Chaves (2012) relatam a experiência de atendimentos ambulatoriais a crianças e seus pais - como parte de um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Uberlândia - em que a psicoterapia é conduzida por uma dupla de terapeutas. Os autores apontam o grande potencial desse trabalho para fortalecer as relações entre pais e filhos.
O "Brincando em Família", realizado em Salvador, BA, é um projeto de ensino, pesquisa e extensão, vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA), que oferta um serviço de promoção da saúde e cuidado à saúde mental e ao desenvolvimento de crianças e suas famílias. É uma proposta que preenche lacunas assistenciais deixadas pela especificidade da cobertura dos CAPSi, serviços centrados em casos considerados "graves", e a atenção básica que deve se responsabilizar pelos casos "leves" e que frequentemente não consegue oferecer um acompanhamento processual. Outras características são a liberdade para frequentar o serviço, que habitualmente funciona em dois turnos por semana, e o fato de funcionar com as portas abertas, assim como não ser necessário que existam queixas para frequentar o espaço (Bustamante, Oliveira & Rodrigues, 2017).
A psicanálise proporciona suporte teórico e técnico ao projeto. Compreende-se a psicanálise como disciplina teórica, abordagem terapêutica e estratégia de pesquisa, onde alguns pressupostos técnicos, como o trabalho com a transferência, são fundamentais. Dialoga-se especialmente com a teoria geral do cuidado que, operando um atravessamento de paradigmas em psicanálise (Figueiredo, 2009), ressalta que o cuidado ocorre na integração de quatro matrizes de intersubjetividade: intersubjetividade trans-subjetiva, traumática, interpessoal e intrapsíquica (Coelho Junior & Figueiredo, 2004).
Ao situar a teoria geral do cuidado, Figueiredo (2014) se coloca em sintonia com a preocupação de "[...] ampliar os dispositivos que podem ser acionados nas diversas situações em que o analista é chamado para atuar junto a outros profissionais" (p. 10). Nesses contextos, "[...] uma teoria geral do cuidado de orientação psicanalítica pode oferecer uma plataforma básica para todas as disciplinas e práticas envolvidas" (p. 10). Assim, a psicanálise se situa entre as práticas de cuidado e tais práticas se diferenciam em função dos dispositivos de cuidado que cada uma institui e sustenta. No caso da psicanálise, trata-se da situação analisante.
Para Figueiredo (2009), a figura de alteridade - o agente de cuidado - pode ser entendida a partir de duas categorias: presença implicada e presença em reserva. Exercer essas duas funções é fundamental para o cuidado integral, pois a primeira se refere ao "fazer coisas", enquanto que a segunda requer neutralidade, silêncio. O agente de cuidado, em presença implicada, apresenta-se em três modalidades: Sustentar e conter; Reconhecer; Interpelar e reclamar. Cada modalidade está relacionada com a figura de alteridade. O autor aponta a complementaridade entre as três modalidades de cuidado e destaca que elas têm de estar em equilíbrio para a instalação de uma "capacidade de fazer sentido no indivíduo" (Figueiredo, 2009, p. 140). Por outro lado, para além da presença implicada, o cuidado exige certo afastamento: a presença em reserva que, tal como o equilíbrio nas funções da presença implicada, requer ausência. O cuidado poderia ser pensado como estar presente e, ao mesmo tempo, fazer outras coisas. Quando o cuidador se permite estar em ausência, canaliza para o sujeito um espaço criativo, no qual ele poderá exercitar sua capacidade para brincar, fantasiar, pensar e criar o mundo de acordo com suas possibilidades. Na presença em reserva, o agente de cuidado chama à ação.
Figueiredo (2009) ainda discute os extravios e excessos nas funções de cuidado, relativos aos exageros da implicação. As três funções da presença implicada, quando em excesso, sucessivamente: (1) sufocam e não dão sossego ao objeto de cuidado; (2) produzem uma especularidade narcísica, onde a dependência e alienação se estabelecem; (3) geram um traumatismo crônico devido ao outro que interpela e reclama em demasia enquanto o sujeito se vê impotente ou, ainda, se torna um sujeito com um superego severo. É preciso que o cuidador possa se desapegar, cuidar de si e deixar-se ser cuidado por um outro, por exemplo, permitindo a entrada de um terceiro na relação, ou ainda, percebendo que mesmo o objeto de cuidado pode cuidar do seu cuidador. A possibilidade de que quem recebe cuidado possa se tornar também um cuidador, e assim construir mutualidade no cuidado, é uma expressão de saúde (Figueiredo, 2014).
Com base nessa perspectiva, o projeto "Brincando em Família" é entendido como um espaço onde o cuidado não é tarefa exclusiva das terapeutas - psicólogas e estagiárias que se apresentam como "acolhedoras" -, mas é construído também a partir da oferta de um ambiente acolhedor onde crianças e adultos podem cuidar e ser cuidados ao ter experiências como brincar, conversar, até mesmo se desentender e brigar. Guiada por essa compreensão, a equipe permanece disponível e atenta aos momentos em que se faz necessária a presença implicada, onde é preciso sustentar (como escutar alguém que precisa muito falar), reconhecer (ao valorizar o esforço de uma mãe para trazer o filho ao projeto) e também interpelar e reclamar (quando é preciso expressar que os limites estão sendo testados ou quando é preciso convocar maior envolvimento das famílias no espaço).
Como parte de um estudo de caracterização dos usuários do projeto "Brincando em Família", Rangel, Bustamante e Silva (2015) identificam que, entre as famílias que trouxeram queixas, a referida com mais frequência foi quanto a "problemas de comportamento", predominantemente em meninos. As autoras mostram que esse achado está em consonância com os resultados de diversos estudos de caracterização de usuários, tanto de clínicas-escolas quanto de CAPSi que atendem crianças e adolescentes. Não se trata de um diagnóstico, mas de uma queixa que aparece com muita constância e requer maiores reflexões para assim se pensar em políticas públicas que se desdobrem em ofertas de cuidado mais adequadas. Sob esse prisma, espera-se que este estudo possa trazer contribuições para os diferentes matizes de análises que o tema requer.
Existem diversos modos de compreender a agressividade e certamente se faz necessária uma abordagem interdisciplinar (Birman, 2006), o que não será possível realizar aqui, posto que apenas serão esboçadas algumas contribuições. Por um lado, a análise do comportamento, uma perspectiva teórica bastante presente na psicologia, aponta que os problemas externalizantes:
Em geral, são considerados indicadores iniciais do comportamento antissocial infantil e podem evoluir para transtornos mentais, como o Transtorno de Conduta, o Transtorno Desafiador Opositivo e o Transtorno de Personalidade Antissocial (APA, 2002). Tais problemas envolvem queixas de agressividade, impulsividade, problemas de atenção e delinquência. (Lins, Alvarenga, Paixão, Almeida & Costa, 2012)
Já na perspectiva psicanalítica, trata-se de refletir sobre os sentidos da agressividade para as crianças e suas famílias dentro do contexto em que vivem e de construir ofertas de cuidado que possam ir ao encontro das necessidades emocionais de crianças e adultos.
Segundo Birman (2006), a agressividade vem ganhando espaço nas teorias psicanalíticas e se "impõe hoje de maneira insistente e irrevogável" (p. 361), considerando as demandas das pessoas que chegam aos consultórios e outros espaços onde os psicanalistas trabalham:
as formas contemporâneas de mal-estar caracterizam-se pelo predomínio dos registros do corpo, da ação e das intensidades na enunciação das queixas dos pacientes, sejam esses frequentadores dos divãs dos analistas, sejam dos consultórios dos psiquiatras ou dos psicoterapeutas. Ao lado disso, os registros da linguagem e do pensamento se empobrecem vivamente nas formas de ser daqueles. (Birman, 2006, p. 361)
Num trabalho em que reflete sobre a agressividade em psicanálise, com ênfase nas obras de Freud, Lacan e Winnicott, Birman (2006) mostra que a agressividade foi ganhando espaço na psicanálise. Enquanto na primeira teoria pulsional de Freud a agressividade "pendia ora para o polo da pulsão sexual, ora para o da pulsão do eu" (p. 363), na virada dos anos 20 "a oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte ofereceu um outro quadrante teórico à agressividade" (p. 364), e nesse sentido:
[...] se, classicamente, a agressividade se restringia à relação do sujeito com o outro, na violência que o primeiro exercia sobre o segundo, no discurso freudiano após os anos 1920, a agressividade circula no campo do sujeito de diferentes maneiras: masoquismo e autodestrutividade, sadismo e destrutividade, e ainda nas relações agressivas estabelecidas entre as diferentes instâncias psíquicas (Birman, 2006, p. 365)
Winnicott, que não trabalha com a teoria pulsional freudiana, constrói uma teorização original sobre a agressividade, que considera central para a construção da relação com a realidade. Ele considera que a agressividade é inerente à natureza humana, pois faz parte do estar vivo, e não tem uma única raiz nem um significado unívoco (Dias, 2000). Assim:
Se o ambiente fornece cuidados satisfatórios e se mostra capaz de reconhecer, aceitar e integrar essa manifestação do humano, a fonte de agressividade - que, no início, é motilidade e parte do apetite - torna-se integrada à personalidade total do indivíduo e será elemento central em sua capacidade de relacionar-se com outros, de defender seu território, de brincar e de trabalhar. Se não for integrada, a agressividade terá que ser escondida (timidez, autocontrole) ou cindida, ou ainda poderá redundar em comportamento antissocial, violência ou compulsão à destruição (Dias, 2000, p. 13)
Segundo Winnicott, nos estágios iniciais do desenvolvimento, os afetos ainda não estão desenvolvidos e então a agressividade não ter a ver com amor ou ódio:
Amar e odiar são conquistas do amadurecimento que têm pré-requisitos. Se o indivíduo não se constituir como um EU, se ele não puder proceder à criação da externalidade pela destruição sem raiva, no anger, dos objetos subjetivos e não puder usar objetos que são independentes e externos ao si-mesmo, ele não poderá usar esses objetos para o amor, na genitalidade, por exemplo, nem poderá odiá-los. O ódio, diz Winnicott, é uma conquista da civilização (Dias, 2000, p. 13)
O desenvolvimento da capacidade de usar um objeto é, para Winnicott (1971/1975), um exemplo de como o amadurecimento depende de um ambiente facilitador. O uso de um objeto é posterior à relação de objeto, onde o momento intermediário é fundamental, o objeto é localizado fora da zona de controle onipotente, ou seja, é percebido como um fenômeno exterior e não como uma entidade projetada. Depois o sujeito destrói o objeto que se tornou exterior; então é possível que o objeto sobreviva à destruição. Nesse momento, o objeto ganha valor por ter sobrevivido; o sujeito pode amá-lo e utilizá-lo. Winnicott (1971/1975) destaca que "enquanto o sujeito não destrói o objeto subjetivo (material de projeção), a destruição aparece e se torna um objeto central, na medida em que o objeto é objetivamente percebido, tem autonomia e pertence à realidade 'compartilhada'" (p. 123). A destruição tem um papel na construção da realidade, pois localiza o sujeito fora da pessoa. Esse modo de compreender o amadurecimento emocional e o lugar da agressividade se relaciona estreitamente com uma clínica com características diferentes da clínica clássica freudiana, onde é primordial a oferta de um ambiente que propicie a integração e o amadurecimento emocional:
A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. (Winnicott, 1971/1975, p. 59)
Antes de empreender a apresentação e análise de um caso clínico, é preciso trazer como ressalva que a compreensão winnicottiana da agressividade e sua relação com o amadurecimento emocional não deve ser utilizada para atribuir uma origem infantil ao sofrimento do presente. Para Aiello-Vaisberg (2017), é preciso avançar em relação à ideia de que o sofrimento emocional e os sintomas atuais estão estreitamente relacionados com experiências da infância na relação com a figura materna. Nesse sentido, é preciso considerar o sofrimento social, gerado por fenômenos como o racismo, o sexismo e outras formas de discriminação, que podem levar a experiências de despersonalização.
Com base na argumentação apresentada, no presente estudo busca-se refletir sobre como se apresentam as queixas de agressividade em um serviço de saúde mental infantil, de orientação psicanalítica, que atende a criança e sua família, e sobre as possibilidades terapêuticas dessa modalidade assistencial. Isto será feito pela análise de um caso clínico, tal como o descrito a seguir.
Método
Esta é uma pesquisa qualitativa, um estudo de caso clínico sob orientação psicanalítica. Nesse sentido, vale recuperar aqui a perspectiva de Safra (2001), que, ao defender a utilização do método psicanalítico na produção de conhecimento dentro da Universidade, destaca que um princípio fundamental da investigação em psicanálise é ser "um processo investigativo não conclusivo" (p. 173). Franke e Silva (2012, p. 43) destacam que "os princípios norteadores da pesquisa em psicanálise não diferem daqueles que estabelecem seu exercício clínico, ou seja, são os mesmos que sustentam a prática".
É no relato clínico que se fundamenta a construção teórica em psicanálise, na medida em que o caso, único, permanece como marca distintiva do método psicanalítico. A construção do caso inclui os dados da história do paciente e dos acontecimentos das sessões, e o trabalho de supervisão também faz parte. É preciso ainda que se coloque um enigma, uma interrogação à qual o analista tentará responder ao dialogar com a teoria psicanalítica (Franke & Silva, 2012). Com base na comparação entre um caso atendido em uma instituição e outro atendido em consultório individual, Zanetti e Kupfer (2006) inferem que caberá aos profissionais da instituição cuidar para que o acompanhamento seja sistemático e assim poder-se construir o caso clínico. Nesse sentido, considera-se que o projeto "Brincando em Família" tem condições propícias para desenvolver tal estudo, pois realiza reuniões semanais de estudo e supervisão, em que a equipe - formada por psicólogas e estudantes de psicologia - discute a compreensão e o manejo dos casos, ao mesmo tempo em que elabora um registro sistemático de todos os atendimentos.
Sob tais fundamentações, aborda-se aqui o trabalho desenvolvido com Pedro, um menino de 5 anos, e sua família, que inclui o pai Manoel, a madrasta Laura, o coirmão Lucas (de 9 anos) e a mãe Paula. A família esteve presente em 25 encontros ao longo de 9 meses no ano de 2017. Todos os atendimentos foram registrados em relatos, produzidos por vários membros da equipe - psicólogas e estudantes - que tiveram contato com a família O caso foi discutido nas supervisões semanais da equipe. Destarte, foi produzido um psicodiagnóstico interventivo (Barbieri, 2009) e realizada uma visita escolar. Todos esses registros foram incluídos na construção do caso clínico.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma unidade da Universidade Federal da Bahia (Parecer nº 120.687). Como parte dos cuidados éticos, e visando a garantir sigilo e anonimato, todos os nomes utilizados são fictícios e alguns dados dos participantes foram adaptados. Cabe mencionar que Manoel, como principal responsável por Pedro, aceitou participar do estudo e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Este documento foi discutido com detalhes na primeira visita da família, deixando claro que o acesso aos serviços não estava condicionado à assinatura do TCLE.
A construção de um caso clínico no cuidado a Pedro e sua família
No primeiro dia, Pedro veio junto com o pai Manoel e a madrasta Laura. Trata-se de um menino negro, com um olhar bastante expressivo que, nesse primeiro momento, se mostrou interessado em conhecer os diversos brinquedos e materiais disponíveis no espaço. Inicialmente teve dificuldade para escolher dentre tantas opções. Aos poucos foi brincando com diversos bonecos e mostrando-os ao pai e à madrasta. Desde o primeiro encontro, Pedro gostou especialmente de brincar com dois bonecos grandes (de aproximadamente 70 centímetros de altura) - o Super-homem e o Capitão América.
Enquanto Pedro explorava o espaço, o casal relatou que vieram por indicação de um CAPSi, trazendo um encaminhamento por escrito, onde estava registrado "a família refere que a criança apresenta comportamento agressivo e impulsivo, apresentando dificuldade para acatar limites e regras" (Trecho do encaminhamento). Após uma entrevista de acolhimento, na qual se verificou que Pedro não apresenta "comprometimento cognitivo e ou psiquiátrico" (Trecho do encaminhamento) a profissional do CAPSi o encaminhou ao "Brincando em Família" "para avaliação e acompanhamento" (Trecho do encaminhamento).
O casal expressa que Pedro não consegue brincar com outras crianças sem bater ou causar tensões. É preciso prestar atenção nele o tempo todo para que não bata em outras crianças, que podem devolver a agressão, especialmente quando são crianças maiores. Este comportamento foi descrito pela escola e também visto no ambiente familiar.
Atualmente Pedro está morando com o pai, a madrasta e os dois filhos dela (de 9 e 14 anos). Trata-se de uma mudança recente, pois até há poucos meses a criança morava com a avó paterna. O casal considera que a mudança está sendo difícil para Pedro, pois a avó o criava sem regras nem limites, fazendo todas as suas vontades. Já na casa atual existem regras; Laura diz estimular a autonomia e responsabilidade de Pedro buscando conversar com ele e não utilizar castigo físico.
Outra fonte de conflitos na família é a relação com Paula, a mãe de Pedro. Segundo Manoel, ele e Paula tiveram um relacionamento conflituoso, e a gravidez de Pedro aconteceu muito rapidamente e sem ser planejada. Eles optaram por morar juntos, em uma casa próxima da mãe de Manoel. Pedro nasceu prematuro e teve problemas respiratórios desde pequeno. Quando estava com poucos dias de nascido, a avó materna o levou para a casa dela, oferecendo-se para cuidar dele. Paula e Manoel se separaram e Pedro "foi ficando" (expressão usada pelo pai) na casa da avó, tendo pouco contato com Paula.
Recentemente Paula moveu um processo judicial alegando que estava sendo impedida de ver o filho. O processo culminou na decisão de guarda compartilhada, pela qual Pedro mora com o pai e passa alguns momentos da semana com a mãe, assim como alguns finais de semana. Segundo Manoel e Laura, o contato é tenso, porque Paula não cumpre com os horários combinados de buscar o filho e o diálogo entre eles é difícil. O casal acredita que essa situação influencia o comportamento de Pedro. Já no primeiro encontro considerou-se que seria muito importante convidar Paula para vir ao projeto.
Paula então se apresentou, na quarta visita de Pedro ao projeto, dizendo que trará o filho ao projeto, pois Manoel trabalha regularmente como pedreiro; porém, considera que o filho não precisa de acompanhamento psicológico - "Meu filho não é louco. É agressivo como qualquer criança". Menciona que Manoel informou-lhe que no projeto seriam dadas orientações sobre como tratar o filho. A acolhedora pergunta se ela achava necessário receber orientações - Paula responde que sim. A acolhedora responde que ela, como mãe de Pedro, sabe o que é melhor para o filho. Isto parece surpreender Paula, que gagueja e depois assente. Paula então comenta que pretende "pegar Pedro de volta para criar ele", assim que puder construir uma moradia para ela, o atual companheiro e o filho de 8 anos, em uma laje recentemente adquirida.
Pedro se relaciona intensamente com o projeto, tanto com a equipe de acolhedores quanto com outras crianças e adultos. Faz contato com os diversos brinquedos e materiais disponíveis: pinta usando tintas, veste fantasias, brinca de comidinha, de faz de conta com bonecos, carrinhos e animais. Transita entre expressões de agressividade e desqualificação do outro, ao solicitar a presença dos acolhedores fazendo elogios. O seguinte relato de um atendimento é ilustrativo do modo como Pedro se relaciona no projeto, especialmente nos primeiros meses:
Logo que Pedro chegou, já foi pegando brinquedo de outras crianças, dizendo que a brincadeira estava toda errada e que ia brincar sozinho. Ele dizia que era ele quem mandava. Gritava que era para eu sair de lá. Depois, ficava me delegando algumas funções. Às vezes eu não aceitava, dizia que não queria, que queria brincar junto, mas não ficar com ele me dando ordens sobre a brincadeira o tempo todo. Ele parece querer provocar. Diz que quem manda é ele.
Às vezes as expressões de agressividade tomam a forma de uma arma e Pedro aponta para uma acolhedora dizendo "vou atirar em você", frequentemente diante do questionamento - "Pedro, por que você quer atirar em mim?" O revólver volta a sua forma original de secador de cabelo e Pedro brinca de pentear os cabelos da mesma acolhedora. As lutas entre amigos também são comuns: Pedro se aproxima com dois bonecos, Super-homem e Capitão América. Eles estavam em luta e Pedro batia em um e em outro. Não parecia estar com raiva, ao contrário, se divertia batendo nos bonecos. Pergunto se eles fizeram algo que deixou o outro irritado. Ele diz que os dois estavam brigando, porque se desentenderam, que o Super-homem havia batido no Capitão e ele estava revidando.
Pedro gosta de brincar de cozinhar e se mostra criativo ao preparar pratos. Também chama a atenção a tentativa de controle na brincadeira:
É Pedro quem precisa cozinhar e preparar tudo, escolher a receita, separar os ingredientes, prepará-los e servir. Fui tentando respeitar os movimentos dele, e também continuar participando da brincadeira. Ele disse que iria fazer um pirão para o pai e o acordou para servi-lo. Manoel ria e aceitava. Pedro dizia "come rapaz". Ele é quem fazia tudo "Deixa que eu faço, você lava os pratos". Eu disse a ele que queria ajudar com a receita, se não poderíamos dividir as tarefas, mas ele resistia. No fim, Pedro praticamente mandou que eu lavasse os pratos. Questionei o modo autoritário que ele se posicionou. Ele disse que já tinha feito tudo e que eu não tinha feito nada. Eu devolvi dizendo que tínhamos dividido as tarefas de cozinhar e que era ele quem queria fazer tudo sozinho. Ele ficou pensativo e, dessa vez, pediu que eu lavasse os pratos. (Relato de atendimento)
Em outros momentos, agressividade e necessidade de controle aparecem juntas:
Pedro me colocou de castigo. Estava bastante irritado e quando eu fiz menção de falar algo, ele ficou mais exaltado, agressivo/intimidador, e com a mão fechada e apenas o dedo indicador apontado para mim disse "calada!" Quando eu insisti mais um pouco que não queria ficar ali, não merecia o castigo, ele me bateu. Quando pontuei: "você me bateu Pedro", ele pareceu voltar a si e constatar o que fez, se redimiu. Em outro momento Pedro fez questão de sentar no meu colo, e deitou em cima de mim e teve uma hora que ele me disse "De que você não gosta?" Eu disse, eu não gosto de apanhar, no que ele me respondeu, como se fosse um grande feito "Quando eu apanho fortão, eu não sinto dor". (Relato de atendimento)
Os conflitos e desencontros com Paula foram relatados em vários momentos. No sexto encontro, Manoel relata que ficou combinado que, por ser o dia das mães, Paula passaria o domingo com Pedro. A criança passou o dia esperando e Paula não chegou. Nessa noite, muito chateado e triste, pergunta a Laura: - "você quer ser minha mãe?". Laura responde que pode ser uma mãe emprestada. Pedro então comenta: "você é minha mãe consertada".
Frequentemente escutamos queixas feitas por Manoel a respeito de Paula e vice-versa. A equipe se coloca disponível para escutar o que Paula e Manoel quiserem expressar, sem tomar partido e propiciando que ambos se coloquem no lugar de Pedro. Manoel relata que ela não cumpre os acordos, não cuida bem de dar a medicação que Pedro usa para controlar a asma. A acolhedora valida a perspectiva de Manoel e também pondera que parece ser mais difícil para Paula cuidar do Pedro, pois ela não tem apoio familiar e ainda tem outra filha. Já Manoel conta com o apoio da mãe dele, da esposa e dos filhos desta. Manoel fica reflexivo. Em outros momentos de diálogo com Paula, a equipe também acolhe a perspectiva de Paula, para quem o filho não precisa de psicólogo.
Em vários momentos Pedro manifesta o desejo de ter Paula como mãe; ao mesmo tempo, tenta lidar com o fato de não poder confiar na vinda da mãe nos horários pactuados: "sábado é dia da minha mãe Paula vir me buscar, se ela ligar, se ela vier". Em outra ocasião, Pedro expressa: "sábado ela não vem me buscar".
A transferência de Pedro com o projeto é bastante intensa. Pedro parece ter percebido que pode confiar no ambiente. Inclusive fala sobre o projeto em casa e na escola: "Estou indo ao psicólogo brincar". Assim, após um período de intensa agressividade, onde a equipe "sobrevive", Pedro parece perceber a existência real dos acolhedores, que podia ser usada por ele. Os relatos de melhoras no comportamento de Pedro são trazidos por Manoel, que faz referência a estar recebendo elogios sobre Pedro na escola. Laura também relata melhoras em casa. O próprio Pedro procura mostrar seus avanços na escolaridade, como foi registrado no seguinte relato de atendimento:
Pedro me mostra como se escreve o nome dele. Letra por letra. Foi um momento muito legal. Ele escreveu o dele e eu o meu. Depois ele escreveu o meu, o de Manoel e o de Laura, se divertia e comemorava cada acerto.
Manoel explicita que tem observado o modo como a equipe conversa com Pedro, que está fazendo assim também e com isso a comunicação entre ambos tem melhorado. Este é um exemplo de um momento em que o sujeito de cuidado pode se tornar também cuidador, o que é expressão de saúde (Figueiredo, 2014).
A equipe pôde sustentar uma atitude de aceitação de Paula como mãe. Percebeu-se uma diminuição do movimento de se defender e fazer questão de se mostrar como uma mãe comprometida com o filho. Apesar da persistência de um comportamento sentido como apático por vários membros da equipe, houve momentos de aproximação entre mãe e filho, frequentemente propiciados por Pedro.
O projeto passou por mudanças importantes durante o período em que Pedro e sua família o frequentaram. A principal foi o fechamento do turno de atendimento frequentado por Pedro, quinta à tarde, ficando só na terça pela manhã. Pedro continuou frequentando durante algumas terças, pois, segundo Manoel e Laura, o projeto fazia muito bem a Pedro e a professora considerava que ele deveria frequentar quinzenalmente, mesmo perdendo aulas. Paula, mesmo mantendo suas ressalvas, se dispôs a trazer Pedro, pois o novo horário coincidia com o trabalho de Manoel.
Nesse período Pedro demonstrava interesse pelo personagem "Lobo mau", tanto no sentido de brincar com outro menino, em que ambos eram lobos maus, quanto na procura de livros:
Pedro passou um tempo procurando uma história que tivesse o personagem "Lobo mau". Ele encontrou a história do Chapeuzinho Vermelho. Li para Pedro, que ficou ao meu lado atento à história. Ao final da história observei que ele foi mostrar o livro a sua mãe. E percebemos expressões de carinho entre mãe e filho. (Relato de atendimento)
Os livros de "Lobo Mau" parecem ser o espaço onde Pedro pode simbolizar a própria agressividade:
Outro dia Pedro começa a procurar livros e dizer que quer um que tem Lobo mau. Pegamos um de Chapeuzinho Vermelho. A partir dos desenhos, Pedro narra a história mais de uma vez. No livro é contado que o lobo fugiu após a chegada do caçador. Pedro fala que o caçador tinha matado o lobo, eu falo que não, que o caçador chegou e o lobo tinha ficado com medo, mas ele diz que seria para matá-lo, pois o lobo queria matar a vovozinha. Depois ele me conta que uma vez chegou um lobo lá na casa dele, quando ele estava dormindo. Pergunto o que ele fez e ele disse que matou o lobo e que nunca mais ele apareceu. (Relato de atendimento)
Discussão
Com base nesse relato de caso, pode-se compreender a agressividade como expressão de necessidades de Pedro. Estas fazem parte de um processo singular de amadurecimento emocional. Pedro, ao vivenciar a sobrevivência dos acolhedores a seus movimentos agressivos, passa a senti-los como objetos reais e a poder usá-los. Por outro lado, a agressividade faz parte de processos intersubjetivos, onde existe sofrimento social, especialmente práticas sexistas.
O comportamento de Pedro foi entendido como demanda ao ambiente. Pedro pode ter experiências de integração, a partir da sobrevivência do objeto a seus ataques agressivos, em que o ódio pôde ser sentido pela equipe, porém não atuado. O registro contratransferencial de uma acolhedora é ilustrativo: "A relação com Pedro eu descrevo como uma relação de amor e ódio, pois, ao mesmo tempo que é uma criança carismática e conquistadora, ele também se mostra irritante e autoritário" (Relato de atendimento). É preciso que o cuidador esteja em contato com o próprio ódio contratransferencial, que possa reconhecer o sentimento em si mesmo, para se manter consciente diante da "carga emocional" trazida por seus pacientes, de modo a não interferir na postura e nas condutas adotadas pelos profissionais e compreender o que o sujeito comunica (Winnicott, 1947/1993), a fim de ajudá-los a constituir experiências emocionais positivas. Para isso, foi fundamental o trabalho em equipe - um revezamento entre os acolhedores em momentos em que alguém da equipe sentia dificuldades para estar com Pedro. A supervisão semanal e o suporte teórico são centrais na construção do cuidado.
Ao poder usar os objetos, Pedro também consegue lidar de modo mais integrado com a própria agressividade. O interesse pelos livros de histórias e, especialmente, histórias de "Lobo Mau" é significativo. A agressividade é projetada em um símbolo disponível na cultura. Nas histórias, o "Lobo Mau" é sempre punido; assim, a agressividade pode ser mais simbolizada e menos atuada nas interações cotidianas. Acredita-se que, para Pedro, os livros de "Lobo Mau" funcionam como objeto transformacional derivado, um objeto que exerce funções básicas de cuidado, e que, como obra de arte, amplia as capacidades vitais somáticas e psíquicas (Figueiredo, 2014).
O cuidado foi ofertado a Pedro e aos membros da família que vieram ao serviço. A equipe permaneceu disponível para acolher e validar as perspectivas de todos, mostrando a potência de diferentes modos de lidar. Isto foi reconhecido por Manoel, quando disse que percebia o modo como a equipe dialogava com Pedro. E o fato de Paula continuar frequentando, apesar da manifesta discordância, mostra que algo a aproximava do projeto, provavelmente por sentir que não seria julgada.
Para compreender o cuidado oferecido a Pedro dentro da família, também é preciso refletir sobre aspectos socioculturais. Pedro chama Paula de "mãe Paula", e chama a avó de "mãe Lu". Os termos "mãe emprestada" ou "mãe consertada" fazem parte da possibilidade de uma criança ter várias mães, o que é característico quando se trata do fenômeno da circulação de crianças, expressão de dinâmicas familiares alternativas muito presentes no Brasil, embora com pouca visibilidade (Fonseca, 2002). Além disso, o fato de ter três mães é entendido aqui como expressão da autonomia das crianças na construção de relações de parentesco (Bustamante, 2013), evitando desenvolver exigências dirigidas a uma única pessoa com base na naturalização do laço biológico.
Quando Pedro diz "eu apanho fortão, não choro" e relata ser normal bater em amigos, pode-se pensar na presença do dispositivo masculino da eficácia, conceito descrito por Zanello (2018). A citada autora aponta que, em culturas sexistas, como a brasileira, "tornar-se pessoa é acoplado com tornar-se homem ou mulher e, portanto, implica em pedagogias afetivas (e performativas) distintas" (p. 57), onde os caminhos de subjetivação são criados e mantidos pelos "dispositivos" que implicam sempre "[...] um processo de subjetivação, ou seja devem produzir o seu sujeito" (Zanello, 2018, p. 55).
Zanello formula como dispositivos privilegiados dos processos de subjetivação no momento histórico atual, para as mulheres, os dispositivos amoroso e materno e, para os homens, o dispositivo da eficácia, baseado na virilidade sexual e laborativa. Tais processos de subjetivação criam também "[...] vulnerabilidades identitárias específicas e diferenciadas para homens e mulheres as quais se evidenciam no sofrimento psíquico" (p. 58). Sob esse enfoque: "observa-se que mulheres tendem, pelo próprio processo gendrado de subjetivação, à internalização: deprimem e choram, implodem; já homens, expressam-se pela externalização: majoritariamente, bebem/consomem drogas ou apresentam comportamentos de espectro antissocial" (Zanello, 2018, p. 272).
Acredita-se que é urgente desenvolver um olhar profissional sensível às questões de gênero, algo que já vem sendo feito no cotidiano do processo de supervisão e estudo do projeto "Brincando em Família". Ampliar a reflexão sobre o caráter gendrado do sofrimento é uma tarefa urgente que certamente demandará novos estudos.
No serviço estudado é a família que escolhe em que momento deixa de frequentar e, ao mesmo tempo, sabe que pode retornar assim que quiser. No caso de Pedro, acredita-se que o deixar de frequentar teve relação com alguns fatores: o fechamento do turno de quinta-feira, a percepção de melhoras em Pedro e a confiança dos adultos de que contavam com mais recursos para lidar com suas dificuldades. Trata-se de um caso que se pode considerar "leve" e, ao mesmo tempo, "complexo", pois não existem problemas graves de saúde mental. Contudo, há necessidade de um cuidado que se adapte às necessidades de Pedro e sua família.
Considerações finais
O presente estudo mostra a importância da oferta de cuidado, que se diferencia do CAPSi e também da atenção básica. Nesse sentido, preenche lacunas assistenciais. O espaço se manteve disponível para que a criança e sua família pudessem escolher o modo de frequentá-lo. Acredita-se que esta oferta de cuidado constitui uma alternativa a práticas medicalizantes e psicologizantes, pois visa compreender o sentido relacional das queixas, fortalecer a todos os membros da família sem a prescrição de um tratamento a ser seguido.
Este estudo evidencia ainda a importância e a potência de realizar um trabalho psicanalítico, construído no caso a caso, dentro de um contexto institucional, porém sem deixar de dialogar com questões sociais mais amplas, como o sofrimento social, os dispositivos de gênero e as dinâmicas alternativas de parentesco.
Como limitação desta pesquisa, é preciso lembrar que resultados obtidos em estudos de caso qualitativos não podem ser generalizados e que alguns aspectos teóricos presentes no caso clínico não puderam ser desenvolvidos em profundidade. Por outro lado, a importância deste trabalho reside nas perguntas e reflexões levantadas, que deverão ser mais aprofundados em novos estudos, inclusive no marco do mesmo projeto.
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Recebido em 05 de setembro de 2018
Aceito para publicação em 28 de novembro de 2018
Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de Pós-Doutorado Sênior, processo 108601/2017-0; a Rosana Onocko-Campos, pelo acolhimento como supervisora no pós-doutorado na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; e às colegas do projeto Brincando em Família, pela parceria de sempre.