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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n01A08 

ARTIGOS - FAMÍLIA, SOCIEDADE E CULTURA: INTERVENÇÕES TEÓRICO-CLÍNICAS

 

Réson: Ruído, ressonância e razão significante na clínica psicanalítica

 

Réson: Noise, resonance and significant reason in the psychoanalytic clinic

 

Réson: Ruido, resonancia y razón significante en la clínica psicoanalítica

 

 

Luis Achilles Rodrigues Furtado

Pós-doutor em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Psicologia pela UFC, Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia e Políticas Públicas e do Programa de Pós-graduação em Saúde da Família da UFC, Campus de Sobral, CE, Brasil. luis_achilles@ufc.br

 

 


RESUMO

Este artigo faz parte de uma pesquisa que busca articular a clínica psicanalítica com sujeitos ditos autistas com o estudo das noções de voz, vazio, silêncio, música e topologia. Aqui partimos de uma leitura do uso feito por Lacan, em suas aulas sobre o saber do psicanalista, da noção de ressonância para, enfim, abordar a questão da voz e da fala e sua articulação com conceitos provenientes do campo da teoria musical. O trabalho constitui uma investigação teórico-clínica no campo da psicanálise, com referência à experiência de extensão numa universidade brasileira. Além da incursão teórica na psicanálise e na teoria musical, faz-se referência a casos clínicos clássicos já publicados na literatura psicanalítica, como o caso Dick, descrito por Melanie Klein, o caso Marie-Françoise, abordado por Rosine e Robert Lefort, os casos Joey e Frank, de Bettelheim, e vinhetas provenientes de nossa experiência de trabalho. Relacionando as noções de ruído, ritmo e melodia com os registros do real, do simbólico e do imaginário, o artigo conclui sobre a importância clínica da dimensão musical da linguagem na constituição subjetiva e no enquadramento da voz como medida protetiva contra a invasão que alguns sujeitos sentem como ameaça.

Palavras-chave: psicanálise; autismo; ressonância; teoria musical; réson.


ABSTRACT

This paper is part of a research that relates the psychoanalytic clinic with subjects deemed autist to the study of the concepts of voice, emptiness, silence, music and topology. In this study we start with a reading of Lacan's use of the notion of resonance in his classes about the knowledge of the psychoanalyst and the concept of resonance, in order to address the theme of voice and speech and their articulation with concepts from the field of music theory. This article constitutes a theoretical-clinical investigation in psychoanalysis, with reference to the experience of an extension project in a Brazilian university. In addition to the theoretical incursion into psychoanalysis and musical theory, a reference is made to classic clinical cases published in psychoanalytic literature, such as Dick's case, described by Melanie Klein, Marie-Françoise's case, by Rosine and Robert Lefort, and the cases of Joey and Frank, by Bettelheim. We also make use vignettes from our own experience. By relating the concepts of noise, rhythm and melody to the aspects of real, symbolic, and imaginary, the paper concludes on the clinical importance of the musical dimension of language in the subjective constitution and in the framing of the voice as a protective measure against the invasion that some subjects feel threatening.

Keywords: psychoanalysis; autism; resonance; musical theory; réson.


RESUMEN

Este artículo es parte de una investigación que busca articular la clínica psicoanalítica con sujetos dichos autistas y el estudio de las nociones de la voz, lo vacío, lo silencio, la música y la topología. Aquí comenzamos con una lectura del uso de Lacan, en sus clases sobre el saber del psicoanalista, de la noción de resonancia, para abordar el tema de la voz y la palabra y su articulación con conceptos del campo de la teoría musical. El trabajo constituye una investigación teórico-clínica en el campo del psicoanálisis, con referencia a la experiencia de extensión en una universidad brasileña. Además de la incursión teórica en el psicoanálisis y la teoría musical, se hace referencia a casos clínicos clásicos ya publicados en la literatura psicoanalítica, como el caso Dick, descrito por Melanie Klein, el caso Marie-Françoise, por Rosine e Robert Lefort, y los casos de Joey y Frank, de Bettelheim. Se hace referencia también a viñetas de nuestra experiencia. Relacionando los conceptos de ruido, ritmo y melodía con los registros de lo real, lo simbólico y lo imaginario, el artículo concluye sobre la importancia clínica de la dimensión musical del lenguaje en la constitución subjetiva y en el encuadre de la voz como medida protectora contra la invasión que algunos sujetos sienten tan amenazante.

Palabras clave: psicoanálisis; autismo; resonancia; teoría musical; réson.


 

 

Introdução

A psicanálise renova a cada sessão, com cada analisante, as condições pelas quais o sujeito pode advir, operando no campo da linguagem e na função da fala. E se há sujeito é porque algo foi escutado, fato que nos leva a uma topologia que liga os campos do sujeito e do Outro tendo a voz como objeto suporte que carrega o significante. (Didier-Weill, 1976/1997).

Com essas constatações que a experiência psicanalítica fornece, a partir de uma pesquisa que aborda a psicanálise, a voz e a música no trabalho com sujeitos autistas (Furtado, 2018), encontramos o uso feito por Lacan, em seu seminário sobre o Saber do Psicanalista (1971-1972/1997), da noção de "ressonância". Realizamos um percurso teórico buscando compreendê-la em sua utilidade clínica, especialmente na clínica da psicose e do autismo. Estudamos a voz enquanto objeto pulsional, usamos exemplos clínicos clássicos publicados na literatura psicanalítica sobre autismo (Lefort & Lefort, 1980; Bettelheim, 1967/1972; Klein, 1930/1975) e vinhetas retiradas de uma experiência de extensão universitária, e exploramos conceitos do campo da teoria musical, tais como ruído, melodia, timbre, ritmo.

O objetivo principal deste trabalho é esclarecer e destacar o uso que Lacan faz da noção de ressonância, articulando-a com o conceito de pulsão invocante na constituição do sujeito e com a dimensão musical da linguagem, fornecendo, assim, elementos conceituais na elaboração da clínica psicanalítica, especialmente com sujeitos autistas. Ao abordar a linguagem no que tange aos registros do real, do simbólico e do imaginário relacionando-os com a teoria musical e casos de autismo, este estudo se justifica por trazer uma contribuição ao debate sobre o autismo numa perspectiva ainda pouco explorada na psicanálise. Por meio dos exemplos clínicos fornecidos, este artigo permite também refletir sobre a dimensão material da linguagem tão presente na clínica cotidiana, especialmente com psicóticos e autistas.

 

Voz, vazio e ressonância: comentários de Lacan a capella

Quando trabalhamos com pessoas autistas, cotidianamente nos deparamos com o uso muito característico da voz e de sua modulação por parte desses sujeitos (Maleval, 2009). Isso nos indica, portanto, que o modo como se relacionam com o Outro, o grande tesouro da linguagem de onde escutam o que articulam, produz um enlaçamento, no mínimo, curioso. Daí a necessidade que tivemos de investigar a relação da voz com a topologia nos ensinamentos de Lacan.

Partindo disso, encontramos alguns comentários de Lacan nas aulas dedicadas ao Saber do Psicanalista (1971-1972/1997, p. 42-56). Insatisfeito com a falta de reconhecimento de seu ensino por parte dos dirigentes de Hospital de Sainte-Anne, não se sentindo "escutado" - o que podemos chamar de "ponto surdo" do Outro (Vivès, 2013, p. 20), Lacan - após um ato falho que cometera - inicia uma discussão sobre a ressonância da linguagem.

No contexto da terceira "conversa" dedicada aos psiquiatras, Lacan inicia afirmando que não poderia repetir e desenvolver ali o que elabora em seu seminário, já que é lá que leva as coisas mais a fundo. Ele insiste que não estava falando no local onde esperava - no anfiteatro Magnan - mas numa capela.

Contradizendo-se, Lacan continua a articular as questões que desenvolvia no seminário "Ou pior" (Lacan, 1971-1972). Logo se apercebe disso, sublinha esse ato falho e relaciona-o com o fato de estar falando na capela. "Je parle à la chapelle!", Lacan repete e pergunta se as pessoas o ouviram, se ouviram a equivocidade da frase. Faz uma brincadeira com as palavras dizendo que em Sainte-Anne sempre falou com as paredes, "aux murs!", aos muros. Aqui a homofonia também equivoca com a palavra amor, "amour", em francês, e causa risos na plateia.

Vale esclarecer que "Falo à capela" ("Je parle à la chapelle!") equivoca com "Falo a capella". A expressão "à la chapelle" pode ser traduzida pela expressão italiana muito comum no campo da música: "a cappella". Essa expressão refere-se ao canto coral sem acompanhamento (Candé, 1989, p. 275). Na França, na Idade-Média, "cappella" é conhecida como "maîtrise", local ligado às igrejas onde se ensinava música às crianças. Assim, Lacan faz a relação entre o que diz e o canto a cappella, ou seja, canto sem acompanhamento que ressona nas paredes das igrejas.

Percebe-se que Lacan faz uma crítica ao fato de seu ensino não surtir efeito naquele contexto nem ser legitimado, já que não o colocaram no auditório que esperava, mas, justamente, numa capela, numa igreja.

A expressão francesa "parler aux murs", pode ter o sentido de "falar sozinho", "falar para as paredes" e, assim, expressar uma queixa. Contudo, pode-se "parler aux murs" na perspectiva da ressonância e do eco, como no canto a cappella. Falar às paredes implica fazer ressoar uma voz, exatamente um dos objetivos da arquitetura das igrejas e das capelas, onde a disposição das paredes é planejada para produzir ressonância. Lacan, numa reflexão nitidamente topológica, lembra que os arquitetos trabalham para fazer paredes e tais superfícies existem para envolver um vazio.

Por isso, Lacan inicia uma referência ao mito da caverna de Platão, articulando-o com o objeto a e com o vazio. Afirma que o problema ali colocado é o do nascimento da linguagem. Citemo-lo na íntegra:

Suponham que a caverna de Platão sejam esses muros onde se faz ouvir minha voz. É evidente que as paredes, isso me faz gozar! E é nisso que todos vocês gozam, e cada um por participação. Ver-me falar às paredes [murs] é algo que não pode lhes deixar indiferentes.

E reflitam: suponham que Platão tenha sido estruturalista, ele teria se apercebido disso que é a caverna verdadeiramente, a saber, que, sem dúvida, é lá que nasceu a linguagem. É necessário revirar a coisa, porque, certamente, há muito tempo que o homem solta vagidos, como qualquer um dos animaizinhos, enfim eles piam [piaillent] para ter o leite materno. Mas para se aperceber de que ele é capaz de fazer algo que, evidentemente, escuta há muito tempo, no balbucio [babilage], no resmungo [bafouillage], tudo se produz, mas para escolher ele deve se aperceber que os "K" ressoam melhor do fundo, o fundo da caverna, o ultimo muro, e que os "B" e os "P" brotavam melhor na entrada, foi lá que ele ouviu a ressonância. Eu me deixo levar essa noite, porque eu falo aos muros [je parle aux murs]. (Lacan, 1971-1972, p. 35, tradução nossa).

Esse problema esteve presente desde o início de seu ensino (Lacan, 1953/1998). Trata-se da relação entre a dimensão material, sonora, da linguagem e a dimensão lógica. Lacan articula esses elementos com a topologia do que chama de "caverna", referindo-se à boca como câmara de ressonância. Lemos a indicação de que o sujeito incorpora a voz do Outro na dialética em torno do objeto e ao fazer isso, goza.

No jogo entre o bebê e a mãe, no qual é preciso que esta interprete o grito de sua cria como uma demanda, algo se passa. Lacan diz que o sujeito tenta fazer com seu corpo aquilo que escuta do Outro há muito tempo. Na condição de infans e de desamparado, o bebê incorpora a voz que escuta, apercebendo-se de que as partículas distintivas dos fonemas possuem efeito sobre a escolha dos objetos. Ao fazer isso, goza de seu corpo com a ressonância de sua voz, ao ouvi-la e ao articulá-la com os lábios, a língua, o palato, os dentes etc.

É sobre a ressonância da linguagem que Lacan insiste. Aulas depois, chamará de horizonte material/maternal do significante, em contraposição ao horizonte lógico. No primeiro, as dimensões do sentido e da razão devem ser "secretadas" (Lacan, 1971-1972, p. 35). O autor é enfático: "A questão na ordem do dia é o que a razão ter a ver com o fato de () que muitos tendem a reduzi-la à réson". (p. 36).

Essa questão também foi colocada pelos matemáticos e relaciona-se com o Real que está nos limites do saber e suas impossibilidades (Lacan, 1971-1972, p. 36). Eis o problema: O que a razão tem a ver com algo que se imporia, não como visual e intuitivo, mas como ressonante? Assim, quando Lacan - usando os termos franceses foneticamente parecidos "babilage" [balbucio] e "bafouillage" [resmungo] - faz um jogo de palavras, estamos diante da relação do significante com lalíngua, como as palavras nas suas dimensões simbólica e real se articulam. Essa indagação não é nova e data do início do ensino de Lacan, questão que nos remete até mesmo à mitologia grega, no conflito entre o logos, a razão, o apolíneo e o musical, o extático, o dionisíaco (Didier-Weill, 1999).

 

As ressonâncias da interpretação e a réson

Quando Lacan, nessa aula de 1971, recorre ao neologismo "réson" para se referir ao problema da palavra falada e ouvida e sua articulação como linguagem, não está trazendo nenhuma novidade em seu ensino. Trata-se de um neologismo criado por Francis Ponge e que Lacan (1953/1998, p. 294) já havia citado no final de Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise, onde trata das "ressonâncias da interpretação".

Lacan fala de uma "linguagem primeira", linguagem do desejo do sujeito, fundamentada nas imagens do corpo (1953/1998, p. 302). Será preciso, na análise, que o sujeito se faça ouvir para que daí possam surgir "ressonâncias semânticas de suas colocações" (1953/1998, p. 295). Os efeitos de interpretação acontecem sobre aquilo que o sujeito ouve do fato de que operou um dizer. O que se coloca em evidência é a função da fala como dom da linguagem e, simultaneamente, como imperativo e como lei. Para o autor, a psicanálise maneja a função poética da linguagem para dar uma mediação simbólica ao desejo, uma lei, uma regularidade. A realidade dos efeitos da psicanálise reside, portanto, no dom da fala, com a capacidade de seu manejo por parte do sujeito dando-lhe seu "tom" particular. É por esse dom que a realidade se constitui e é por ela que ele a mantém num trabalho contínuo. (Lacan, 1953/1998, p. 323).

Quanto às diversas dimensões que o "dom" da fala apresenta, Lacan (1953/1998) recorre a um apólogo concernente à mitologia hindu o qual envolve os devas, os homens e os assuras em suas relações com Prajapati. Apresentemo-lo para que possamos entender os níveis que, segundo o autor, a função da fala apresenta, especialmente em sua função de ressonância.

Prajapati é o supremo criador no período védico do hinduísmo, responsável pela criação e preservação da vida (Yogapediacom, 2019; Ramachandran, 2018). Para alguns, Prajapati - que em sânscrito quer dizer "filho do mestre" - é identificado com o próprio deus Brahma.

Os devas são deuses regentes, potências superiores, da natureza. Os assuras são entendidos como espécies de demônios, potências inferiores, que tiveram conflitos com os devas graças à bebida sagrada Ayahuasca ou Soma, que concedia a vida eterna. Contudo, para bebê-la era preciso que fosse doada como gesto de generosidade. Indra, chefe dos devas, recebeu a bebida da parte da rainha Lakshmi, esposa de Visnhu, um dos criadores do universo. Indra, por sua vez, levou-a e doou-a para os devas, que se tornaram uma raça de deuses voltados para os mundos criados, destruídos e contemplados pela tríade primordial. Já os assuras também receberam a bebida da parte da mesma rainha; porém, antes de servi-la aos outros, com generosidade, beberam-na e não obtiveram o efeito da imortalidade. Disso iniciou-se uma guerra que duraria até hoje.

Utilizando-se desses personagens, Lacan recorre a uma passagem que reproduz o diálogo entre o deus supremo Prajapati, os devas, os homens e os assuras. Nela, esses três grupos, ao fim de seu noviciado com Prajapati, pedem que ele lhes fale alguma coisa.

A primeira coisa que chama a atenção é que para cada um dos grupos, Prajapati, descrito como o Deus do trovão, fala a mesma coisa, a partícula "Da". E esta, por sua vez, é ouvida de forma diferente por cada grupo, fato que coloca cada um numa posição discursiva diferente.

Os devas responderam que escutaram: "Damyata", completando à maneira de seu entendimento o que foi articulado por Prajapati. Essa palavra quer dizer "Domai-vos". Assim, o texto sagrado deveria ser entendido, por parte dos devas, como uma indicação que eles deveriam ser submetidos "à lei da fala".

Por sua vez, os homens, escutaram e entenderam outra coisa do "Da" dito por Prajapati. Eles ouviram "Datta", que quer dizer "Dai", remetendo à dimensão do dom. Ali adquire-se o sentido de que o reconhecimento dos homens se dá pela fala como um dom.

Já os assuras ouviram "Dayadhvam", "graça", colocando a dimensão do perdão em primeiro lugar. Lacan (1953/1998, p. 324) afirma que os assuras, as potências inferiores, "ressoam à invocação da fala". Aqui, chamamos a atenção para a equivocidade da palavra francesa "grâce", que foi traduzida em português por "perdoai". Trata-se de um substantivo, e não um verbo no imperativo, que quer dizer "graça" e "indulto". Nesse sentido, trata-se do perdão de uma pena. A tradução pela palavra "perdão" faz mais sentido quando entendida como uma graça recebida.

Nesse ponto, Lacan adiciona (em 1966) uma nota afirmando que a palavra referente a "ressonância" em francês, na frase " réssonent à l'invocation de la parole", pode ser substituída pelo neologismo de Ponge, "réson" - que é homófono de "raison", "razão", como se pode ler na aula de 1972.1 Temos aqui, enfim, três palavras praticamente homófonas em francês (réssonent, réson e raison), distintas por sua escrita.

Lacan finaliza dizendo que a voz divina do Prajapati se faz ouvir no som do trovão, com a onomatopeia "Da da da". Assim, quando escutamos o som estrondoso do trovão, podemos ouvir "Da, da, da", "Submissão, dom, perdão", correspondendo às respostas de Prajapati aos devas, aos homens e aos assuras.

Entendemos que a introdução de "réson" nesse ponto implica a passagem do que é ouvido no real, tal como chega ao sujeito, e sua transformação em fala como ressonância do que se ouviu. Dessa forma, podemos destacar três dimensões da função da fala na linguagem: (1) a lei do desejo, colocada pela lógica da articulação significante que assegura uma regularidade; (2) a dimensão da fala como um dom de linguagem (Lacan, 1953/1998, p. 302), um enlaçamento do sujeito com o Outro pela via da demanda, de onde ele recebe seu material e o colore com os tons da enunciação e da melodia; e (3) a função de evocação da fala na linguagem (p. 301), de invocação, ou seja, de imperativo pulsional na relação com o Outro, a quem me ofereço como objeto.

Notamos que, no estabelecimento da dialética na qual o infans usa seus gritos como chamado pela presença do Outro, há subtendido o fato de que foi por ter sido inicialmente escutado que passou a usar a voz no imperativo de sua demanda. Todavia, é preciso, num segundo tempo, que esse Outro seja "surdo" a essa demanda para que os elementos diferenciais do grito se apresentem. Freud (1895/1992) já havia destacado que a função simbólica do Outro é convocada para que essa mudança se opere. Para ele, a presença do Outro é necessária para que o circuito do "ser escutado" se complete e traga "vivência de satisfação" - que retrata um tempo mítico que tem valor lógico na estrutura constitutiva do sujeito por demonstrar as marcas de memória supostas pelo fato da função do pensamento existir.

 

A "Vivência de satisfação", a pulsão invocante e a ressonância da linguagem

Nesse ponto - com o cuidado de não exceder os limites de um artigo -, uma pequena digressão é necessária. Esse desvio se justifica por permitir situar conceitualmente a articulação que realizamos entre a ressonância da linguagem e sujeito, articulação que implica, em outros termos, a indagação de como a voz enquanto objeto de satisfação pulsional produz marcas psíquicas que podem, ou não, se estabelecer como significantes, constituindo a função do sujeito.

Sobre esse assunto, todavia, uma vasta literatura nos permite apreender o conceito de voz na obra de Freud e no ensino de Lacan. Destacamos o artigo de Pereira, Vorcaro e Keske-Soares (2018), o qual trata da articulação da voz com a lógica do significante, bem como inúmeros trabalhos de Vivès (2016, 2013, 2012, 2009).

A relação entre a voz e as marcas que ela deixa no corpo na forma de restos mnêmicos já pode ser encontrada no texto freudiano antes mesmo da virada do século XX. No Projeto (Freud, 1895/1992), lemos um comentário importante que também é retratado na Interpretação do Sonhos (Freud, 1900/1991) e no texto da A Negativa (Freud, 1925/1992). Ali, Freud apresenta a "vivência de satisfação" como um mito originário ao qual recorre para dar inteligibilidade ao modo como as primeiras inscrições do objeto têm como resultado a animação psíquica, ou seja, a causação do sujeito.

Inicialmente, o infans só pode eliminar as estimulações internas de seu corpo com uma ajuda externa. Essa é uma ação específica que tem a capacidade de modificar a fonte das estimulações e apaziguar a tensão gerada. É preciso da intervenção de um Outro, um "auxílio alheio" (Freud, 1895/1992, p. 362) que "entende" seus comportamentos - os gritos e o esperneio da criança - como alerta de suas necessidades. Freud destaca a dimensão simbólica implicada nesse tempo: "Essa via de descarga cobra assim a função secundária, importante ao extremo, da comunicação [Verständingung] e o inicial desamparo do ser humano é a fonte inicial de todos os motivos morais." (Freud, 1895/1992, p. 362-363, tradução nossa, grifo do autor).

Para Freud (1895/1992), a "vivência de satisfação" corresponde à "totalidade" da experiência - à experiência como um todo -, na qual o "indivíduo auxiliador" obtém sucesso na promoção da ação específica no mundo externo. Isso deixa marcas psíquicas que passam a ser "lidas" pelo sujeito. Tais marcas são referidas como investimentos energéticos correspondentes, relacionados, à "percepção de um objeto" (Freud, 1895/1992, p. 363). Trata-se da marca de percepção da coisa que promoveu a satisfação pela via do alívio da tensão no aparelho psíquico. Ela se associa a outras representações, pois esse apaziguamento ocorre junto a diversas outras sensações que, por sua vez, também deixam suas marcas. Esse tipo de associação das marcas mnêmicas é chamado de associação por simultaneidade, e seriam as primeiras que ocorrem (Freud, 1895/1992, p. 363).

Para Freud, na experiência de satisfação, esse "semelhante" e "único poder auxiliador", se divide. Uma parte dele aparece como uma coisa do mundo [Das Ding], estranha, hostil e que é expulsa pelo sujeito por não ser comparável a nada prazeroso, a nada que lhe tenha trazido alívio. Sua outra parte é reconhecível por trazer elementos que se ligam a vivências corporais. Freud exemplifica aí a visão dos movimentos e o grito. Este, por ter sido escutado como efeito de seu corpo numa vivência de dor, associa-se ao traço dos "gritos" do Outro, como experiências de dor. (Freud, 1895/1992, p. 376-377). Para que esse efeito seja suplantado, é necessário que outras experiências se mostrem mais pregnantes - mais prazerosas - que a lembranças da dor e, assim, possam ser investidas em seu lugar. Elas causam satisfação por terem a característica de apaziguar o estímulo que produz tensão no aparelho psíquico. Desse modo, a voz do Outro precisa se associar a uma satisfação para que ela escape de sua relação com o desamparo. Em condições "normais", isso de fato ocorre, já que o Outro também traz os objetos apaziguadores. Por isso - por trazer uma dupla satisfação - é que a voz do Outro pode ser prazerosamente incorporada, "por imitação", como diz Freud (1895/1992, p. 415) e repete Lacan (1971-1972, p. 35). Essa satisfação é dupla porque produz uma ressonância prazerosa no corpo do sujeito e ressoa no vazio do Outro (em seu desejo) fazendo-o aparecer com sua presença e seus outros objetos de satisfação. É, portanto, com a incorporação das modulações e sonoridades do Outro que as vivências de prazer podem se repetir, já que ele é o único poder auxiliador do sujeito e usa da função da comunicação [Verständingung] como função secundária necessária à vida.

Temos uma situação paradoxal. A sonoridade da fala do Outro surge para o sujeito pela via do reconhecimento simultâneo do grito como inscrição de uma vivência de dor e de prazer. Assim, as palavras adquirem seu peso por carregar, a uma só vez, a dimensão das vociferações do Outro caprichoso - que pode tomar o infans como objeto ou abandoná-lo ao desamparo fundamental - e o Outro que satisfaz o sujeito com sua presença e com a presença do objeto - que aplaca os estímulos interiores que produzem desprazer. A vivência de satisfação tem seu efeito de inscrição, então, com a submissão desse grito inicial e gutural à lei da melodia de lalíngua que o Outro fala, na canção que ele canta, na sua prosódia e na distinção das primeiras partículas diferenciais.

Desse modo, a voz deixa sua marca, constituindo-se como objeto pulsional que fica esquecido toda vez que a demanda se articula por meio da lógica dos significantes. Apesar de podermos fundamentar a pulsão invocante nos textos de Freud, foi apenas Lacan (1964/1993, p. 102) quem a destacou, afirmando-a como a experiência mais próxima do inconsciente.

Duas referências importantes sobre a voz enquanto objeto pulsional são as aulas de Lacan nos seminários dedicados aos temas da angústia e aos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1962-1963/2005, 1964/1993). No seminário sobre a angústia, ele tenta situar a função constitutiva do objeto a como resto destacável do sujeito. Lacan aponta que, num tempo primitivo, é do lado de uma voz "separada de seu suporte" - ou seja, o significante - que devemos procurar a função do resto. Isso se ilustra com a fala hipnopômpica das crianças, a qual, na presença de outras pessoas, não se consegue verificar. É preciso que se use um gravador para verificá-las. (Lacan, 1962-1963/2005, p. 298).

Existem várias vias pelas quais a linguagem chega ao sujeito, mas a mais comum é a da voz. Consoante com a questão de 1972, Lacan sublinha que a relação entre a linguagem e uma sonoridade é mais que acidental, é instrumental. Ou seja, a sonoridade é um instrumento pelo qual a linguagem é carregada.

É com uma digressão na fisiologia, na qual explica a estrutura da cóclea como uma caixa de ressonância, que Lacan fala da relação da voz com a estrutura topológica do vazio como o que permite a ressonância. O uso dessa digressão é metafórico e busca lembrar a topologia constituinte do vazio, como a de um vaso. Tais estruturas, por sua vez, têm a capacidade de serem ressonantes e seu vazio, a exemplo da cóclea, só ressoa uma determinada faixa de frequências das sonoridades, ou seja, "impõe uma ordem a tudo que possa vir a ressoar nele de uma certa realidade" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 300).

Com isso, destaca-se que a voz não ressoa num espaço vazio qualquer. Tal como o vazio das aberturas de uma flauta, de um órgão acústico ou de um pote, há a imposição de uma mediação nessa ressonância. O modo como o vazio é constituído influencia e determina diretamente o que pode ou não ter ressonância. É esse fato que todo arquiteto, músico ou engenheiro de som deve levar em consideração quando estrutura um espaço destinado à execução de um espetáculo musical. Em resumo, ressonância sonora está diretamente relacionada às superfícies que propagam o som dentro de uma determinada frequência.

Considerando tal metáfora sonora, a presença da voz ressoa no vazio do Outro. "A voz responde ao que é dito, mas não pode responder por isso", ou seja, a voz serve ao que é dito por ser o instrumento através do qual o dito chega ao sujeito; todavia, ela não é responsável por ele. É nesse sentido que a voz se opõe ao dito e se separa dele, constituindo-se como sua alteridade. (Lacan, 1962-1963/2005, p. 300).

Não podemos aqui falar de uma musicalidade da voz, mas de sua sonoridade como articulada e não modulada. A modulação entra em jogo num outro momento, criando assim sua musicalidade, que vem proteger o sujeito da posição de desamparo primordial frente aos caprichos do supereu primitivo (Vivès, 2012). É essa estranheza da voz como alteridade-íntima, ex-timidade, efeito de Unheimlich, que remete ao "complexo do próximo", descrito por Freud (1895/1992, 376-377). Ele descreve a condição de desamparo do sujeito frente a um semelhante e que, por sua vez, se reparte em três dimensões: uma reconhecível (simbolizável), outra que permanece como uma estrutura constante - um coisa [Das Ding] do mundo (estranha) - e o único poder auxiliador do sujeito por fazer as vezes de seu corpo ainda insuficiente para sobreviver sozinho.

Nesse momento mítico, a voz não aparece como música, mas como grito que é reconhecível (Freud, 1895/1992, p. 377) e referente a uma experiência dolorosa - pois quando o Outro chega com o traço de sua fala, o sujeito reconhece essa sonoridade como relativa ao seu próprio grito que é emitido e escutado em si mesmo quando de uma experiência desagradável. Assim, o que seria a inscrição sonora primitiva remete à lembrança traumática do desamparo fundamental e, por conseguinte, falar, na sua dimensão de evocação, remete sempre a essa posição que envolve um perigo mortal. Por isso podemos dizer, com Lacan, que as palavras têm muito peso (Lacan, 1975/2016, p. 73), o peso real do sujeito no discurso que remete à formação do supereu e que "representa a instância de um Outro se manifestando como real". (Lacan, 1958-1959/2002, p. 411).

É em relação a esse momento de desamparo fundamental e submissão aos caprichos do Outro que o sujeito fica submetido à uma voz obscena e sem lei da qual tem que se proteger. Essa situação remete ao que Freud (1912-1913/1991) descreveu no mito do Pai primitivo, tirânico e dono de todo o gozo do qual privava seus filhos (Vivès, 2012). A dimensão musical, prosódica, na qual o sujeito se engajará num segundo momento é o que permitirá a lembrança apaziguadora de que o Outro está distante, morto, salvando o sujeito de seus caprichos. Com a identificação pela incorporação da voz, o sujeito tem acesso a essa dupla característica: a de representar um gozo primitivo do Outro ao qual foi submetido inicialmente, mas, por ter incorporado sua voz, tomar distância dessa lei sem limites.

Em alguns quadros ditos como autistas, o que vemos é uma recusa na incorporação da voz, o que deixa o sujeito na condição de desamparo frente às invasões do Outro caprichoso. Por isso os autistas, por exemplo, precisam defender-se das diversas demandas provenientes de suas relações com as outras pessoas, pois isso os remete à sua posição primitiva de objeto. Daí sua necessidade de ter um mundo organizado, regulado, repetitivo, previsível, no qual o desejo do Outro com sua falta pode ser barrado naquilo que mostra ser imperativo e caprichoso.

Outro fator importante a considerar no que tange ao posicionamento de Lacan em sua abordagem da incorporação da voz é que ele não se refere à sua musicalidade, mas ao imperativo relacionado à fala (Lacan, 1953/1998). É isso que o faz questionar seus ouvintes a respeito do que falava sobre o som do chofar, se era realmente da música que tratava. Referindo-se ao som desse instrumento como um substituto da fala que arranca os ouvidos das "harmonias costumeiras", afirma:

Ele serve de modelo do lugar de nossa angústia, mas, observem, só depois do desejo do Outro ter assumido uma forma de ordem. É por isso que ele pode desempenhar sua função eminente de dar à angústia sua resolução, que se chama perdão ou culpa, mediante a introdução de uma outra ordem. (Lacan, 1962-1963/2005, p. 300).

São duas ordens, enfim. Uma é o imperativo do gozo primitivo do Outro diante do qual o sujeito encontra-se desamparado. A segunda é a ordem que interdita e divide esse Outro, inscrevendo-o na lei do significante, modulando suas vociferações pela via da incorporação de sua voz pelo sujeito.

Ora, se o chofar remete ao grito gutural do pai totêmico, lembrando sua morte e a culpa pelo seu assassinato, ele encarna, simultaneamente, a lembrança de um gozo sem limites e obsceno. Seu toque - e não apenas seu som -, entoado nas cerimônias judaicas, lembra a lei que apazigua esse gozo (Vivès, 2012). A questão que permanece suspensa é sobre a dimensão musical que está em jogo na fala.

É com a noção de lalíngua que poderemos ter indícios sobre esse ponto.

Se, de um lado, a voz aparece como as produções relativas a esse gozo caprichoso do Outro ao qual o sujeito está submetido, é, por outro lado, com a lalíngua materna que ele vai encontrar os elementos musicais, ainda desatrelados do sentido, que poderão aí deixar seus detritos (Lacan, 1975/1991). No entanto, lembremos que, se num certo sujeito, a constituição do supereu não se verifica como internalizada, o que resta é sua dimensão vociferante e invasiva que precisa ser apaziguada, pois ela vem do lado de fora. É justamente esse ponto que nos interessa clínica e teoricamente.

Vivès (2012, p. 54) nos dá pistas: "A lei conduzida pela voz faz calar a voz fora da lei constituída pelo supereu". Há um entrelaçamento de duas vozes, ou duas dimensões dela: uma é real e a outra é simbólica. O autor nos dá o ilustrativo exemplo da criança submetida aos gritos de raiva do pai e que serão esses urros, que distorcem as palavras, que deixarão as marcas diferentes de uma fala e da qual o sujeito terá de dar conta de se proteger. Será preciso de uma "música" para que esses urros sejam apaziguados, atenuados.

 

O entrelaçamento das vozes e a música

Se nos debruçarmos sobre a expressão "entrelaçamento de duas vozes" somos remetidos aos estudos da harmonia musical e ao jogo entre som, ruído e silêncio, noções que podem ser úteis em nossa discussão.

Sabe-se que a música é composta pela alternância organizada entre som e silêncio. Mas entre o som e o silêncio podem existir interferências sonoras, outros tipos de sons que se caracterizam por sua irregularidade de frequência: são os ruídos, os "sons do mundo" (Wisnik, 1999, p. 33). O som só pode ser concebido por quem escuta, por quem sente suas vibrações que, por sua vez, sofrem influências de vários fatores físicos, como o espaço vazio e o corpo por onde ressoa. A leitura sobre essas vibrações e seus efeitos no corpo (sua ressonância) é que vai marcar a diferença entre os homens e os animais. Citemos Wisnik:

O mundo é barulho e silêncio. A música extrai som do ruído num sacrifício cruento, para poder articular o barulho e o silêncio do mundo. Pois articular significa também sacrificar, romper o continuum da natureza, que é ao mesmo tempo ruidoso (). Fundar um sentido de ordenação do som, produzir um contexto de pulsações articuladas, produzir a sociedade significa atentar contra o universo, recortar o que é uno, tornar discreto o que é contínuo (). (1999, p. 35)

É no sacrifício de um continuum que a voz se destaca e surge como objeto privilegiado. Sem a extração da musicalidade, tudo resta como ruído, barulho. A música é uma composição entre o ritmo, a harmonia e a melodia. Viana et al. (2017) nos lembra a dimensão musical de lalíngua pelo destacamento da alternância simbólica entre som e silêncio, produzindo um vazio, e salienta a dimensão do ritmo imposta pela voz em lalíngua. Lacan (1975/1991, p. 33-34) nos fala que para os "ditos autistas" todo o resto do mundo é barulho, tagarelice sem sentido. Vemos, assim, em lalíngua, a entrada da dimensão simbólica pela via do real musical da fala que recebemos e somos marcados inicialmente. Entretanto, podemos nos perguntar ainda se isso explica a dimensão ruidosa, vociferante, real e estranha também presente na conjunção que compõe a voz.

Se o ritmo é composto pela lei de alternância padronizada entre som e silêncio e sua distribuição no tempo por suas durações, resta explicar outro princípio fundamental da música: a dimensão da melodia. A melodia caracteriza-se não pela alternância som-silêncio, mas pela "sucessão lógica de sons diferentes, cujas relações permitem uma percepção global, uma forma melódica, da mesma maneira que uma sucessão de durações corresponde, em condições análogas, a um ritmo" (Candé, 1989, p. 143). Para o autor, a melodia é a própria manifestação do gênio musical. É aqui que podemos falar de entrelaçamento de vozes, compondo um conjunto que vai implicar as modulações, entonações - variações de volume, variações de altura - e, especialmente, o timbre.

Para Wisnik (1999, p. 44), há dois níveis de manifestação dos ruídos: aquele referente à eclosão desordenada proveniente do mundo externo e os ruídos referentes à intromissão das características de textura do corpo sonoro musical. Ora, sendo o som um feixe de onda regular, temos nele a presença de sutis irregularidades, pequenos e quase imperceptíveis ruídos. Eles são causados, grosso modo, pelas características próprias do corpo sonoro. Ou seja, seriam micro-desafinações que marcam a característica da voz de um instrumento, ou simplesmente de uma voz. É o real do corpo do instrumento produzindo uma marca que lhe é própria, uma assinatura presente por sua diferença e descontinuidade em relação aos harmônicos de uma onda. Podemos dizer que o timbre é relativo à presença real dos ruídos do corpo na continuidade harmônica de uma nota musical, inserindo nelas pequenas descontinuidades que estabelecem a singularidade de uma voz.

É com a noção de timbre que podemos situar a vociferação, o gozo nas interjeições, o grito, que marca a presença da Coisa, sempre estranha ao sujeito, e que o remete à sua posição de desamparo frente ao supereu atroz e invasivo. É preciso, ademais, introduzir aí o ritmo, intensidade e as modulações. É preciso introduzir a lei que faz alternar a duração, o volume e o tom do som. É a articulação dessa lei com esses cortes de silêncio, intensidade e altura que produz o efeito enunciativo da melodia. A articulação musical de lalíngua produz uma figura, uma totalidade melódica que introduz a dimensão do imaginário. "Mas basta escutar a poesia () para que nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo discurso revele alinhar-se nas pautas de uma partitura". (Lacan, 1957/1998, p. 506-507). Não seria a polifonia aqui o entrelaçamento de vozes, de melodias?

No que se refere à importância da constituição do registro do imaginário para o sujeito, Lacan (1962-1963/2005, p. 296) nos diz: "De hábito, o que a forma especular tem de satisfatório é justamente mascarar a possibilidade desse aparecimento". Por ser a dimensão do registro do imaginário essa captação do sentido como uma totalidade, consistente, a melodia da voz implica aí esse efeito de satisfação que aplaca o horror do Unheimlich causado pela presença não subjetivada do vazio do objeto. Nesse sentido, a música é uma armadilha para o objeto, como nos diz Vivès (2013, p. 21).

 

A letra, a música e o som das coisas nas palavras

Ilustremos nossa discussão com exemplos clínicos.

Um episódio ilustrativo aconteceu numa escola regular na qual nosso grupo de extensão universitária realiza um trabalho de acompanhamento de crianças diagnosticadas com autismo. Cecília (nome fictício), em situações de crise, sempre cantava. Apesar de causar medo nas outras crianças, devido a suas agressões, havia uma coleguinha de cuja presença ela gostava. Um dia, foi necessário que a coleguinha saísse e voltasse para a sala de aula. Para isso, as professoras distraíram Cecília com outros objetos de seu interesse. Quando ela voltou para o lugar onde havia deixado a amiga e percebeu sua ausência, cantarolou eloquentemente o refrão de uma música interpretada por Luan Santana: "Deixou digitais em mim", sem fazer uma pergunta ou uma demanda da presença de sua amiga, que funcionava como duplo para ela. Cecília recorre ao mecanismo enunciativo no qual utiliza a melodia como proteção, como enquadramento do efeito de desamparo diante da falta. Essa recorrência acontece sem uma enunciação que lhe seja própria, alienada nas palavras de um Outro.

"Que se diga, fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se ouve". (Lacan, 1972, p. 3, tradução nossa). Todavia, esse apagamento do sujeito da enunciação não oculta seu ato, a saber: o próprio apagamento. Eis de onde deduzimos a posição do sujeito, dividido na linguagem entre o que articula e aquilo do que se defende e oculta a uma só vez. É um sujeito que precisa anular a falta naquilo que ela tem de invasivo. É o que Éric Laurent (2013, p. 82) chama de "foraclusão do buraco", e Maleval (2009) nomeia de "retenção do objeto vocal", marcando a estrutura subjetiva e singular dos autistas.

Em consonância com Vivès (2012) e Laurent (2013), ao se perguntar por que os autistas demonstram um investimento tão notável no domínio musical, Maleval (2009, p. 199) afirma que é porque a música permite um tratamento do gozo vocal, "regulando-o pelo ordenamento de signos, mas também porque o permite apagá-lo, estetizando-o. Se ela pode dar ao sujeito a possibilidade de transmitir seus afetos, é de maneira alusiva, não deixando de recusar o engajamento em uma enunciação expressiva".

Se, por um lado, reconhecemos a necessidade de apagamento da falta nas diversas enunciações dos autistas, confirmando as hipóteses dos autores supracitados, podemos nos perguntar, por outro lado, o que eles nos dizem a partir do que escutam.

Com efeito, a enunciação do sujeito, enquanto aquele que escuta, é a prova de que a palavra encontrou alguma ressonância em seu corpo. Sua resposta, por sua vez, não deixa de ser um eco, mesmo que sem palavras, apenas em ato. É a isso que Lacan (1975/1991, p. 133-134) chama a atenção ao dizer que os autistas são muito "verbosos" e que precisamos saber onde escutaram o que articulam. Entendemos que essa recomendação apenas repete o que ele já havia abordado vinte e dois anos antes, em seu comentário sobre o caso Dick: "Essa criança é mestre da linguagem, propriamente falando, até um certo momento, até um certo nível. É perfeitamente claro. Ela não fala (), é um sujeito que está lá e que, literalmente, 'não reponde'. A fala não lhe vem". (Lacan, 1953-1954/1994, p. 102).

Reafirmando essa "mestria na linguagem", lemos algumas passagens encontradas na literatura psicanalítica e que só são inteligíveis com a consideração de sua língua original. A diferença em relação ao nosso exemplo anterior é que se referem a casos de crianças pequenas bem mais novas.

Na clássica intervenção de Melanie Klein (1930/1975) com o pequeno Dick, podemos isolar alguns significantes que se destacam no caso, em duas cenas. A primeira ocorre diante das dificuldades da analista quanto à indiferença e aparente mutismo de Dick. Klein parece levar em consideração o interesse do garoto por trens e, ao pegar um trem grande e um pequeno, os nomeia: "Daddy-train" e "Dick-train". A essa oposição, Alan - esse era seu nome verdadeiro (Hinshelwood, 2008) - pega o "Dick-train" e o leva para a uma janela - um corte na superfície de uma parede - e completa: "Station".

Considerando a dimensão de lalíngua de Klein, sempre nos chamou atenção o fato do pseudônimo de Alan ter sido escolhido como Dick. É curioso também saber que ele se tornou um especialista em música e que Melanie Klein, durante os dezessete anos que o atendeu, leu o caso Dick para o garoto que se tornaria um grande leitor de Charles Dickens (Grosskurth, 1992). Considerando que, frequentemente, na construção de um caso (a exemplo de Freud com o Homem do Ratos e o Homem dos Lobos), atribuímos seus nomes a significantes relacionados ao gozo ali implicado, desconfiamos que havia algo além de uma teoria que considerava "apenas" a significação forçada, fálica e edipiana do termo "Dick" (Lacan, 1953-1954/1994).

O que nos chamou a atenção e surpreendeu é que a palavra "Dick", repetida várias vezes, produz a onomatopeia de um trem. Do mesmo modo, o par "Train-Station" promove o mesmo efeito pela aliteração do fonema linguodental /t/, que é produzido, como diria Lacan, "na entrada da caverna".

Podemos dizer, portanto, que Dick escutou a coisa na palavra, e pôde gozar de sua sonoridade. Klein foi sensível à dimensão de lalíngua, haja vista outros significantes que ela salienta em seu relato: coal-cart - cut; tea daddy - eat daddy; poor Mrs. Klein - poor curtain. Resta realizar uma investigação mais aprofundada - que está em andamento (Furtado, 2018) - para termos mais elementos sobre a hipótese acerca da nomeação de Alan com um nome onomatopaico referente aos trens.

O que se destaca no comentário feito por Lacan (1953-1954) sobre o caso é a importância da delineação de um vazio pela alternância entre o dentro-fora do par train-station, abrir-fechar do par door-handles-doors, entrar e sair dos vestíbulos do consultório etc. Podendo exercitar o sujeito nessa função de alternância e na dimensão de ser ou não objeto de incorporação pelo Outro. É aí que vemos repetir algo em outras duas cenas constantes em obras importantes na literatura psicanalítica sobre o autismo.

Bruno Bettelheim (1967/1972, p. 431-432) afirma que os autistas utilizam a linguagem não para se comunicar, mas para se defender. O autor diz que eles utilizam a percepção e os sentidos não para a compreensão, mas para defesa também. Relata o caso de Frank (Bettelheim, 1967/1972, p. 431-432), que entrava em crise quando via, muito ao longe, um carrinho de bebê. Todavia, a equipe de cuidadores não havia percebido de saída que essas crises aconteciam quando o garoto via esse objeto, que se desvelou, mesmo longe, como ameaçador.

Mas o que há de ameaçador em um singelo carrinho de bebê? Seu próprio nome: "baby buggy". Os equívocos da expressão se perdem com a tradução e com uma escuta que busca o sentido sem considerar os equívocos. Aqui, é como se Frank, ao ver o carrinho de bebê, na verdade, recebesse do Outro a expressão: "Baby buggy", colocando-o na posição de objeto, na literalidade e na sonoridade do fonema /b/ que faz uma onomatopeia de um bebê. Assim, fica mais inteligível o que Frank articula do que recebeu do Outro: "defeitinho", "defeitinho-bebê" como designando o mesmo espaço vazio no qual um sujeito pode ser envolvido, engolido. Diferentemente de Joey - que funcionava com seus tubes, fans e air ports -, Frank apenas encontrou o recurso da crise como recusa à invasão do Outro que o toma como objeto. (Bettelheim, 1967/1972).

No que concerne ao caso Joey, lembremos que a palavra fan [ventilador], carrega pelo fonema /f/ a aliteração onomatopaica de vento e do corte das hélices dos aviões e dos ventiladores. Assim, Joey, que relacionava os ventiladores aos airports (portos de ar, porta ar), justamente a seu pai, que havia aparecido de avião, um aircraft. Aqui, o poeta e cantor cearense Belchior (1974) vem em nosso socorro com a aliteração: "Eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês".

Algo semelhante acontece com Marie-Françoise (Lefort & Lefort, 1980, p. 269), que, dividida entre o desejo e o horror diante de um desejável prato de arroz-doce,2 não o consegue comer nem demandar, limitando-se a apenas olhá-lo, a tremer e a balançar os braços de "forma quase convulsiva". Uma dramática cena repetida em duas sessões seguidas. No texto original, no entanto, o nome utilizado para descrever o objeto desejado e temido é "rize au lait" [arroz ao leite]. Ora, não deixamos de nos surpreender com a proximidade fonética entre o nome da coisa (rize au lait) e o nome de sua analista: "Rosine Lefort" (grifo nosso). A proximidade fonética é evidente e com apenas uma pequena inversão: /rizolé/ /rozinlé/. Diferentemente do que a própria autora afirma em seu texto, não podemos dizer que não havia o Outro nessa cena. A recusa e tentativa de proteção contra sua face caprichosa e invasiva, na verdade, demonstram seu excesso.

Onde situar nesses exemplos, entretanto, a dimensão musical, enquanto dimensão enunciativa, polifônica, que pode, segundo Lacan (1957/1998, p. 507), "alinhar-se nas diversas pautas de uma partitura"? É na articulação própria da língua na qual esses sujeitos estão inscritos, mais especificamente em sua lalíngua, fora do sentido e no deslizamento de suas sonoridades. É nesse sentido que podemos falar de ressonância, daquilo que escutaram e receberam do campo do Outro. Que disso advenha o jogo significante, continua sendo, como disse Lacan, a questão na ordem do dia na clínica cotidiana.

Com os casos aqui descritos, deparamo-nos com os equívocos que a musicalidade lalíngua carrega, mas é mais claramente com Dick que vemos in statu nascendi a articulação entre as dimensões material/maternal do significante e a matemática (Lacan, 1953-1954, 1971-1972/1997, 1971-1972/2012). De um lado, lalíngua marcando o corpo, fazendo seu furo e apresentando a dimensão real e ruidosa do significante. Do outro, a dimensão simbólica que inscreve uma lei de alternância, produtora de um vazio e do efeito imaginário contido na própria melodia da fala.

 

Conclusões

"Não existiria som se não fosse o silêncio, não haveria luz se não fosse a escuridão", diz a letra da canção Certas coisas (1984), de Lulu Santos e Nelson Motta. É a lei do significante. Do mesmo modo, não há ruído sem música. Já o guitarrista e compositor cearense Fernando Catatau nos canta uma outra perspectiva na letra da canção Todas as vozes do mundo: "O silêncio é um estranho absurdo, não se diz nada, mas se escuta tudo. Talvez seja ele um abismo profundo que nos permita chegar a todas as vozes do mundo." (Cidadão Instigado, 2002).

Escutar faz parte da palavra, nos lembra Brunetto (2001). Se a réson da poesia era, para Ponge, fazer operar o gozo no equívoco entre a razão e a ressonância, para a psicanálise ela está no bojo do tratamento. Salientar a dimensão da ressonância da linguagem nos permite conceber, especialmente na clínica com os ditos autistas, a articulação entre o ruído, a música da fala com suas modulações, ritmo e intensidade e o efeito apaziguador e imaginário da melodia. A clínica psicanalítica impõe a evidente insuficiência de um trabalho pautado unicamente pela vertente lógica da linguagem, pois o efeito de ressonância da palavra afeta não apenas pela possibilidade de produzir sentido, mas por produzir satisfação ou proteção, com nos casos Cecília, Dick e Joey. O mesmo se aplica ao que pode ressoar presentificando um Outro ameaçador, como vimos com Marie-Françoise e Frank. O deslizamento possível na dimensão musical pode, portanto, indicar a problemática do sujeito em questão, bem como as saídas suportáveis para seu sofrimento.

Não se pode depreender daí uma receita de que o uso da música é uma inovação padronizada no tratamento desses sujeitos. Para que algo ressoe no sujeito é preciso que entre na sua mesma frequência, atinja seu corpo. Eis a metáfora de Lacan. O que salientamos é a dimensão estrutural do vazio constituinte que também se apresenta na fala, especialmente em lalíngua, que nos mostra as onomatopeias, as aliterações e as assonâncias, recursos que vimos se presentificar nos casos de que tratamos.

Em certos casos, como de autismo, por exemplo, sair da dimensão do sentido e adentrar o campo "maternal/material" de lalíngua parece, pelo que vimos, permitir o enquadramento do objeto voz, o que tem um efeito apaziguador, protegendo o sujeito do que lhe invade e da desorganização do seu mundo. Há, contudo, e ainda, uma insondável decisão do ser na qual é preciso fazer réson, permitindo à função do sujeito sair de seu campo originário no Outro e poder advir no real.

 

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Recebido em 29 de julho de 2019
Aceito para publicação em 17 de março de 2020

 

 

1 Para Ponge, em seu Pour Malherbe (1964), a razão [raison] da poesia era a de fazer operar a confusão da razão [raison] e da ressonância [réson]. Para Almeida (2017, p. 176), Ponge chega, com esse "par magnífico" (raison-réson), a estabelecer que a razão do poeta ao escrever "é fazer ressurgir na e pela palavra a contravenção do poeta, criando, reestabelecendo ressonâncias (réson), que o mundo viciado em seus sentidos não pode conceber, não pode sequer ouvir".
2 É assim que se encontra na versão brasileira da obra, traduzida por Angela Jesuíno. (Lefort & Lefort, 1990, p. 193-194).
Esta pesquisa teve financiamento pelo Programa de Bolsas de produtividade em pesquisa, estímulo à interiorização e à inovação tecnológica (BPI) da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).

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