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Psicologia Clínica
versión impresa ISSN 0103-5665versión On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.33 no.2 Rio de Janeiro mayo/ago. 2021
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n02A07
SEÇÃO LIVRE
Ferenczi: Por uma multiplicidade de modos de expressão
Ferenczi: For a multiplicity of modes of expression
Ferenczi: Por una multiplicidad de modos de expresión
Leonardo CâmaraI; Regina HerzogII
IProfessor Adjunto-A do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil. lcpcamara@ufscar.br
IIProfessora Associada do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. rherzog@globo.com
RESUMO
O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933) desenvolveu, ao longo de sua obra, concepções originais sobre o corpo, e delas podemos inferir uma teoria da expressão. Este artigo pretende se debruçar sobre esse aspecto de sua teoria, trabalhando com dois pontos. Em primeiro lugar, descrever as diferentes formas de expressão concebidas por Ferenczi. Em segundo lugar, apresentar algumas características e consequências do seu modelo dos diferentes modos de expressão, notadamente, o respeito pela multiplicidade das formas de expressão, considerando cada uma em sua diferença e singularidade, não obstante entendendo-as como tendo uma origem comum, o corpo. Esse posicionamento leva a uma problematização do lugar hegemônico conferido à linguagem no discurso psicanalítico, bem como do espaço relegado ao corpo na experiência psicanalítica.
Palavras-chave: Ferenczi; expressão; corpo; psicanálise.
ABSTRACT
The Hungarian psychoanalyst Sándor Ferenczi (1873-1933) developed, throughout his work, original conceptions about the body, and from them we can infer a theory of expression. This article intends to address this aspect of his theory, working with two points. First, to describe the different forms or modes of expression conceived by Ferenczi. Secondly, to present some characteristics and consequences of his model of the different modes of expression, notably, his respect for the multiplicity of forms of expression, considering each one in its difference and uniqueness, despite understanding them as having a common origin, the body. This position leads to a problematization of the hegemonic place given to language in psychoanalytic discourse, as well as the space relegated to the body in psychoanalytic experience.
Keywords: Ferenczi; expression; body; psychoanalysis.
RESUMEN
El psicoanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933) desarrolló, a lo largo de su trabajo, concepciones originales sobre el cuerpo, y de ellas podemos inferir una teoría de la expresión. Este artículo pretende abordar este aspecto de su teoría, trabajando con dos puntos. Primero, describir las diferentes formas de expresión concebidas por Ferenczi. En segundo lugar, presentar algunas características y consecuencias de su modelo de diferentes modos de expresión, en particular, el respeto a la multiplicidad de formas de expresión, considerando cada una en su diferencia y singularidad, a pesar de entender que tienen un origen común, el cuerpo Esa posición lleva a una problematización del lugar hegemónico dado al lenguaje en el discurso psicoanalítico, así como del espacio relegado al cuerpo en la experiencia psicoanalítica.
Palabras clave: Ferenczi; expresión; cuerpo; psicoanálisis.
Introdução
Baseando-se na clássica divisão entre forma e conteúdo, Ferenczi constata, em O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios, publicado em 1913, que Freud se detivera até aquele momento de sua teorização sobre o conteúdo dos sintomas. A interrogação que Ferenczi coloca nesse texto, por sua vez, se dirige para a forma dos sintomas: por que alguns se expressam pelo pensamento, ao passo que outros aparecem por meio de movimentos corporais, e assim por diante? Essa interrogação inaugura não apenas uma construção teórica sobre o desenvolvimento do eu em sua relação com o meio, como também estabelece o núcleo daquilo que consideramos ser a teoria da expressão de Ferenczi, teoria esta que é retomada intermitentemente e que se complexifica ao longo de toda sua obra.
Conforme desenvolvemos alhures (Câmara, 2018), sustentamos a posição de que a ideia de linguagem, amiúde mobilizada para ler certos aspectos da obra ferencziana, mostra-se inadequada, no sentido de não ser suficiente para apreender muitas das sutilezas do pensamento do psicanalista húngaro. Devido a isso, e como se tornará claro ao longo deste artigo, propusemos o emprego do termo expressão para caracterizar a maneira como ele concebe e aborda as produções do analisando (e também, acrescente-se, do analista) no processo analítico, as quais não se reduzem à linguagem verbal, mas incluem também os gestos motores e, até mesmo, atividades sensoriais. Dentre outros motivos, a escolha da palavra "expressão" foi influenciada por Espinosa (1677/2015), e sobretudo pela leitura que Deleuze (1968/2017) faz deste filósofo, na medida em que o termo em tela protagoniza a crítica ao dualismo cartesiano e defende, ao mesmo tempo, que o psíquico e o corporal não são substâncias distintas. Com efeito, entendemos, em concordância com outros autores (por exemplo, Gondar, 2010), que Ferenczi possui um posicionamento epistemológico monista, e aquilo que depreendemos como sua teoria da expressão destaca, até as últimas consequências, esse posicionamento.
Um dos pontos decisivos da noção de expressão, conforme a defendemos aqui, é o de que a expressão é múltipla. Ferenczi utiliza com certa frequência o termo Ausdrucksbewegungen, "movimentos de expressão", e algumas vezes Ausdrucksmittels, "meios de expressão" (Ferenczi, 1912/1927, p. 23; 1919/1939, p. 141). Entretanto, decidimo-nos por empregar, sobretudo, os termos "formas de expressão" e "modos de expressão" de maneira intercambiável e, portanto, como sinônimos, por serem mais próximos do uso cotidiano. Sustentamos essa imprecisão terminológica porque ambos os termos, se forem tomados em um sentido filosófico estrito, apresentam problemas (forma pode ser entendida como uma entidade apriorística e ideal; modo se refere etimologicamente à moderação) e poderiam causar prejuízos no sentido principal que lhes atribuímos, isto é, de evidenciar a multiplicidade da expressão.
Postas essas considerações, é o momento de delimitar os objetivos deste artigo. Em primeiro lugar, descrever as diferentes formas de expressão concebidas por Ferenczi, desde a que se dá por elementos sensoriais até chegar à linguagem verbal, passando pelos movimentos e gestos corporais. Em segundo lugar, apresentar algumas características e consequências do seu modelo dos diferentes modos de expressão, notadamente o respeito pela multiplicidade das formas de expressão, considerando cada uma em sua diferença e singularidade, não obstante entendendo-as como tendo uma origem comum, o corpo. Esse posicionamento leva a uma problematização do lugar hegemônico conferido à linguagem no discurso psicanalítico, bem como do espaço relegado ao corpo na experiência psicanalítica.
O modo de expressão por imagens
Cabe, antes de apresentar o primeiro modo de expressão descrito por Ferenczi, explicitar brevemente a arquitetura que ele compõe para narrar a constituição das formas de expressão. Essa arquitetura envolve duas séries paralelas e complementares: a primeira série é composta pelas ideias de onipotência, catástrofe e regressão, e a segunda série pelas ideias de condição, adaptação e complexificação. O estado original de onipotência é a vida intrauterina, e a primeira catástrofe que a criança sofre é o nascimento. É na catástrofe, considerada como um momento crítico em que é impossível ou muito dificultoso preservar o estado de onipotência, que a criança é convocada a constituir diferentes modos de expressão. Com a organização de um novo modo de expressão, ela busca, paradoxalmente, regredir ao estado de onipotência que perdeu. Para isso, ela deve se adaptar às novas condições impostas pela catástrofe, no sentido de não apenas aquiescer a elas, como também de se apropriar delas. Com o progressivo enriquecimento de experiências em sua relação com o mundo, cada modo de expressão se complexifica cada vez mais, no sentido de ser capaz de figurar mais experiências tanto no sentido quantitativo quanto no qualitativo.
Retornando à catástrofe do nascimento e à correlata perda da onipotência vivida nas entranhas da mãe, uma das condições mais simples e que, no entanto, já envolve uma ação ativa por parte da criança, consiste em ela imaginar, com todas as suas forças, a situação em que se encontrava quando no útero (Ferenczi, 1913/1992a). O primeiro modo de expressão descrito por Ferenczi tem como matéria prima, pois, a bildlichen Vorstellung, a representação por imagens ou a imaginação, isto é, a figuração de uma experiência por meio de imagens, não necessariamente visuais (Ferenczi, 1913/1927, p. 75).
A criança alucina com um estado de quietude, estado esse próprio da vida intrauterina; porém, essa quietude não é necessariamente revivida de maneira negativa, pela mera supressão de desejos ou perturbações provocadas pelas carências e necessidades. Sua alucinação consiste, mais, em produções positivas, isto é, em reviver sensações que fazem parte da tranquilidade de estar no seio materno: sentir-se abrigada em um lugar cálido, protegida de variações de temperatura e da intensidade de estímulos sensoriais, embalada por sons calmos e movimentos rítmicos monótonos (Ferenczi, 1913/1992a).
Chama atenção Ferenczi afirmar que as primeiras experiências alucinatórias e imaginativas visam a repetir não tanto uma vivência de satisfação classicamente descrita por Freud, na qual a criança seria alimentada pelo seio materno, quanto a reconstrução da sua relação corporal (e concreta) com o ambiente em que se encontrava envolta num momento anterior ao nascimento. Geralmente, tende-se a associar uma alucinação a imagens visuais ou acústicas, mas a ideia que Ferenczi propõe vai além: é verdade que a criança reproduz estímulos sensoriais delicados - e, dentre eles, uma importância particular é concedida às alucinações olfativas (Ferenczi, 1926/1993) -, mas revive também amplas sensações corporais, tanto relacionadas a movimentos em um ambiente aquático quanto a contatos de sua pele e expansões de seus músculos nos interstícios do corpo da mãe. Vale dizer, ele propõe uma espécie de alucinação carnal, em que todo o corpo participa da experiência alucinatória.
Contudo, em simultâneo a isso e sem se dar conta, a criança desencadeia uma variedade de movimentos corporais inespecíficos e descoordenados, análogos às "alterações internas" de que Freud dá testemunho: enrubesce, geme, chora, grita, debate-se (Freud, 1895/1995; Ferenczi, 1913/1992a). Esses movimentos acabam por funcionar, incidentalmente, como um sinal àqueles que cuidam da criança de que há uma carência a ser satisfeita. Ferenczi utiliza o verbo erraten, adivinhar, para designar a faculdade dos adultos de perceber - e, mais que isso, de identificar-se no "plano afetivo" - com os movimentos expressivos da criança e ofertar a ela algo que sentem que vai ao encontro do que deseja (Ferenczi, 1913/1992a). Uma vez intuída, por meio da adivinhação dos movimentos corporais caóticos, a necessidade que a criança sente, os adultos apressam-se em acalmá-la, reproduzindo, por meio de diversos artifícios (como cobri-la com uma manta, "solfejar" uma cantiga de ninar), o que a criança imagina.
Daí a dimensão mágica da alucinação, cuja consequência maior é a manutenção de um estado de onipotência: o cenário imaginado pela criança é efetivamente assegurado e concretizado pelos cuidados maternos que simulam condições perdidas e ansiadas (Ferenczi, 1913/1992a). O novo ambiente assim produzido é herdeiro de uma forma de vida anterior à catástrofe do nascimento e inventora, ao mesmo tempo, de uma nova maneira de viver. Em Ferenczi, toda regressão implica, paradoxalmente, em uma progressão: ao ir para trás, vai-se para frente; na busca de retomar condições anteriores, geram-se condições novas e inéditas.
O modo de expressão por gestos
A catástrofe que torna insustentável para a criança manter a imaginação como único modo de expressão remete, acima de tudo - mas não exclusivamente -, a uma questão temporal. Se antes havia uma simultaneidade da situação imaginada com sua satisfação, a onipotência entra em crise à medida em que se instala uma crescente dissincronia entre ambos os eventos. Aqueles que cuidam da criança tornam-se menos sensíveis não tanto ao conteúdo do desejo quanto aos momentos em que ele emerge e exige sua satisfação:
Como o desejo de satisfações pulsionais surge periodicamente sem que o mundo externo tenha conhecimento do instante em que a pulsão se manifesta, a representação alucinatória da realização do desejo [halluzinatorische Repräsentation der Wunscherfüllung] não bastará em breve para acarretar efetivamente a realização do desejo. (Ferenczi, 1913/1992a, p. 44; 1913/1927, p. 70)
A nova condição de que a criança deve se apropriar para regressar ao estado de onipotência é utilizar-se ativamente de seus movimentos corporais, transformando-os em gestos, isto é, em ações motoras progressivamente mais complexas. Ferenczi designa a ação que é envolvida por esse modo de expressão como uma dramatischen Darstellung, uma encenação dramática (Ferenczi, 1913/1927, p. 76). No ato de imaginar, os movimentos corporais participavam de maneira periférica, como se fossem meros ruídos provocados ao acaso, a ponto de serem desorganizados. Agora, das ações motoras - mesmo aquelas mais descoordenadas - a criança produz sinais (Signale): sinais mágicos, uma vez que, com sua mera execução, aquilo que deseja é realizado. Isso leva a uma complexificação dos gestos.
Com efeito, de início apenas espasmos desarticulados, executados de maneira aleatória e sem controle, os gestos se tornam, devido ao contato com o mundo e com a introjeção de novas experiências - incluindo aquelas com o próprio corpo -, progressivamente mais complexos e especializados. A especialização de um gesto significa que sua execução passa a estar vinculada à materialização de um desejo específico, abrindo espaço para a criação de diversos gestos que, enquanto tais, serão ligados à realização de uma pluralidade de desejos. Nesse sentido, a criança inventa, por exemplo, um gesto para comer, outro para sentir contentamento e até mesmo outro para indicar, com a mão, um brinquedo que quer, um lugar para onde deseja ser transportada. "Resulta daí uma verdadeira linguagem gestual [eine förmliche Gebärdensprache]: por uma combinação apropriada de gestos, torna-se capaz de exprimir [zu äußern] necessidades muito específicas" (Ferenczi, 1913/1992a, p. 45; 1913/1927, p. 72). Com a complexificação dos desejos, pois, produz-se uma arquitetura de gestos e sinais, que são combinados e recombinados para explorar novas maneiras de usar uma forma de expressão já criada.
Um "aperfeiçoamento importante da linguagem gestual" consiste na formação de símbolos (Ferenczi, 1913/1992a, p. 47). A simbolização, em Ferenczi, não é a incorporação ou a metabolização de algo na esfera da linguagem verbal, dando nome a algo que não o tem. Rigorosamente falando, o símbolo é uma produção que antecede a formação da linguagem. Crítico da concepção de símbolo tal como proposta por Jung, que, a seu ver, adquirira conotações metafísicas, Ferenczi concebe o símbolo como algo corporal (Freud & Ferenczi, 1914-1919/1996). O símbolo é o produto de uma relação de semelhança desenhada entre dois corpos e, mais especificamente, entre o próprio corpo da criança e um objeto, seja este pertencente ao mundo externo ou até mesmo outra parte específica do corpo que é por ela menos conhecido (Ferenczi, 1913/1992a; 1913/1992b).
Não é por uma razão qualquer que o símbolo é pensado assim. Aquilo com que mais a criança tem familiaridade, sobre o que mais dedica sua atenção antes de deslocá-la para outros objetos, é o seu corpo, e mais particularmente as partes do corpo que lhe dão prazer (Ferenczi, 1913/1992b). Se, por diversas contingências, a criança retira a exclusividade de sua atenção sobre o corpo e a dirige para o mundo, a solução que ela encontra para perceber esse mundo, para se apropriar dele, é encontrando, nele, semelhanças com o próprio corpo, pois "a tendência natural da criança pequena", diz Ferenczi (1928/1992), "é para amar-se a si mesma, assim como a tudo o que considera como fazendo parte dela" (p. 7). Nesse sentido, uma vez que a criança deve reconhecer o mundo, e o faz procurando redescobrir, nele, coisas semelhantes ao seu próprio corpo, "a tendência para redescobrir o objeto amado em todas as coisas do mundo externo hostil é, provavelmente, a fonte primitiva da formação dos símbolos" (Ferenczi, 1915/1992a, p. 201).
Embora a formação e o uso de símbolos esteja contido no modo de expressão por gestos, ele representa uma inflexão importante que Ferenczi faz questão de frisar. O símbolo tem um estatuto particular, estatuto esse que pode ser resumido pelo termo "Zwischending". De acordo com os tradutores franceses, essa palavra significa, "literalmente, uma coisa de permeio entre sujeito e objeto" (Ferenczi, 1928/1992, p. 7, nº 6), o que significa dizer que o estatuto do símbolo é o de ser algo que se dá numa zona intermediária, na qual há um processo de diferenciação mas também de indiferenciação entre a criança e o mundo. Nesse sentido, o salto que o simbolismo representa, dentro do modo de expressão por gestos, é a capacidade de apreender um mundo que começa a ser reconhecido pela criança como não fazendo parte dela. Paradoxalmente, no entanto, a maneira que ela encontra para reconhecê-lo é encontrando partes de si mesma, partes do seu próprio corpo.
O corpo torna-se, assim, a palheta com que se pode pintar o mundo. As coisas que se assemelham a partes do corpo - mesmo que muitas vezes de jeitos que os adultos ignoram -, são percebidas, portanto, como extensões do corpo, como propagações dele espalhadas pelo espaço. Ferenczi (1913/1992a; 1913/1927) diz, a esse propósito, que "a criança só vê no mundo reproduções de sua corporalidade [Abbilder seiner Leiblichkeit] e, por outro lado, aprende a figurar [darzustellen] por meio de seu corpo toda a diversidade do mundo externo" (p. 47; p. 74). O símbolo, enquanto formação que se desdobra numa zona intermediária, explicita essa via de mão dupla que, no fundo, caracteriza os modos de expressão: apreensão do mundo e figuração dele por seu próprio corpo, por suas formas particulares de expressão.
Ferenczi era um amante das semelhanças, das analogias, das comparações. Em posição contrária a um discurso racionalista que denunciava essas figuras como potencialmente perigosas para a atividade do conhecimento - procedimentos, inclusive, considerados flagrantemente pré-científicos (Bachelard, 1938/2011) -, Ferenczi entendia as semelhanças não apenas como uma dita formação do inconsciente, mas também como produtos de uma maneira profunda de conhecer as coisas, maneira esta eminentemente inconsciente (Ferenczi, 1915/1992a). Toda a sua teoria filogenética em Thalassa, aliás, é construída com base em analogias: entre o ser humano e os animais, entre o pênis e o peixe, entre o útero materno e o oceano, só para citar algumas (Ferenczi, 1924/1993b).
O símbolo, para Ferenczi, se constitui também predominantemente nas brincadeiras, como naquelas em que a criança brinca de ser escultor de suas próprias fezes, para depois brincar de fazer formas com argila etc. (Ferenczi, 1914/1992). Ele vai ainda mais longe e considera o símbolo como o modo de expressão próprio das crianças. Com efeito, em resposta a uma indagação de Melanie Klein, Ferenczi faz uma reflexão profunda a esse propósito: "Quanto a saber como traduzir [übersetzen] os símbolos para as crianças, direi que, em geral, as crianças têm mais a nos ensinar nesse domínio do que o inverso. Os símbolos são a própria língua das crianças [Symbole sind die Sprache der Kinder], não temos que ensinar-lhes como se servirem dela" (Ferenczi, 1928/1992, p. 13; 1928/1939, p. 366).
A formação de semelhanças, base da criação de símbolos, acarreta um prazer especial, qualificado por Ferenczi como um tipo de "prazer estético": o prazer da redescoberta, isto é, o de descobrir, nas coisas estranhas, algo de familiar, algo de semelhante (Ferenczi, 1915/1992a). O prazer da redescoberta na experiência lúdica, na produção de semelhanças, na fabricação de símbolos é o prazer implícito do reconhecimento, e também aquilo que motiva as repetições nas brincadeiras infantis. Mais que dominar excitações ou tomar uma posição ativa frente ao excesso pulsional (Freud, 1920/2006), a repetição no brincar é, para Ferenczi, uma atividade de tatear e descobrir o mundo. Essa atividade, que poderia acarretar impressões dolorosas, se torna agradável na medida em que a criança descobre o mundo pela brincadeira de encontrar semelhanças, e dessa brincadeira é recompensada pelo prazer estético da redescoberta (Ferenczi, 1915/1992a).
Inflexões do modo de expressão por movimentos corporais
O modo de expressão por gestos ocupa uma posição particular no pensamento de Ferenczi. Ao longo de seus escritos, encontramos observações fragmentárias sobre os movimentos corporais dos analisandos, desde os pequenos sintomas transitórios que emergem ao longo do processo analítico até as crises neocatárticas (Ferenczi, 1912/1991; 1930/1992); desde as expressões emocionais cotidianas até os tiques violentos e bizarros (Ferenczi, 1919/1993b; 1921/1993b); das modulações impressionantes da voz de um rapaz até o cruzar de pernas com fins libidinosos de uma histérica (Ferenczi, 1915/1992b; 1919/1993a); do jovem elegante que palita todos os seus trinta e poucos dentes no restaurante até as flatulências de uma paciente tímida (Ferenczi, 1921/1993a; 1921/1993b); da frieza de gestos do analista até a espontaneidade e naturalidade que surgem após uma abertura afetiva dele (Ferenczi, 1932/1990)… enfim, a lista é virtualmente inesgotável, e o que devemos salientar, acima de tudo, é como esse talento de observação fina em relação aos gestos tornou inevitável a conceptualização do modo de expressão por movimentos corporais, e como este, por sua vez, desdobrou-se em algumas inflexões teórico-clínicas fundamentais.
Dessas inflexões, podemos citar duas. Em primeiro lugar, a materialização histérica, conceito que busca delimitar e descrever modificações e hiperproduções que concretizam no próprio corpo - na própria carne - desejos, lembranças e pensamentos, é relacionada ao modo de expressão por gestos (Ferenczi, 1919/1993b). Essa correspondência produz uma consequência decisiva. Além dos movimentos corporais que comumente entendemos como gestos, a materialização engloba os movimentos expressivos das emoções humanas e, também, outros tipos de alterações fisiológicas, como "a mobilização dos músculos lisos das paredes vasculares, a atividade das glândulas, a composição biológica e química do sangue, assim como toda a nutrição tecidual" (Ferenczi, 1919/1993b, p. 48).
Ademais, modificações morfológicas, isto é, transformações da própria estrutura de partes do corpo e das vísceras são envolvidas por esse conceito: órgãos podem ser criados ou modelados, podem aumentar ou diminuir de tamanho, podem trocar de funções e até mesmo se rebelar a continuar exercendo determinada função. Na materialização, é como se o corpo se tornasse uma substância "semifluida", sendo a partir de então capaz "de exprimir nas transformações de sua estrutura e de suas funções, desejos, sensações de prazer-desprazer, ou até mesmo pensamentos complicados (linguagem dos órgãos)" (Ferenczi, 1932/1990, p. 38).
Ferenczi não entende o corpo como uma estrutura cristalizada, com limites estreitos de possibilidades. Ao propor a materialização, ele concebe o corpo como sendo capaz de uma plasticidade e flexibilidade impressionantes: o corpo é capaz de se remodelar de diferentes formas. Mais íntimas de suas realidades corporais, as crianças revelam essas características extraordinárias, uma vez que são capazes de fazer infinitas travessuras com as próprias partes do corpo, travessuras acusadas de maus hábitos pela impotente higiene adulta (Ferenczi, 1919/1993b). Assim, por meio de movimentos dos mais diferentes tecidos, o corpo se transforma, e se ele se cristaliza é devido às inúmeras tentativas de discipliná-lo. Apesar dessas tentativas, todos os movimentos, todas as alterações que o conceito de materialização histérica envolve - qualificadas por Ferenczi como "hiperproduções" - são maneiras que o corpo encontra para se expressar (Ferenczi, 1919/1993b). Assim, o modo de expressão por gestos implica uma miríade de processos corporais que vão muito além do sentido cotidiano que damos ao termo "gesto".
A correspondência entre esse modo de expressão e o conceito de repetição é uma segunda inflexão desenvolvida por Ferenczi. Para Freud, a repetição é uma forma de atualizar o passado que se faz pela ação ou pela atuação, em vez de se dar por meio das palavras - e isso por reviver, a grosso modo, eventos que jamais foram conscientes (Freud, 1914/2017). O fato de sua expressão se dar, por um lado, por movimentos corporais, e, por outro, por envolver lembranças que jamais foram conscientes, leva Ferenczi a relacioná-la ao modo de expressão gestual. Longe de ser o produto de uma mera analogia, essa correspondência abre um espaço particularmente profícuo para a repetição, esta que "foi até agora menosprezada e mesmo", observa Ferenczi (1924/1993a), "considerada um embaraçoso fenômeno secundário" (p. 228).
Na medida em que a repetição é considerada uma forma de expressão com toda sua potência e singularidade, sendo inclusive inevitável no processo analítico, surge "a necessidade prática, não só de não estorvar as tendências para a repetição na análise, mas até mesmo de favorecê-las" (Ferenczi, 1924/1993a, p. 227). A repetição deixa de ser um resíduo indesejável para tornar-se legítima no processo analítico. A direção que Ferenczi vai sustentar cada vez mais em relação a isso não é transformá-lo em uma recordação. A repetição será reconhecida como expressão de algo do passado que se atualiza no presente. E o que da repetição se espera é que dela se desenvolva algo novo por meio dos próprios movimentos corporais, sem que tenham de ser necessariamente traduzidos em linguagem.
Seja na técnica ativa, na neocatarse ou em outras inovações técnicas de Ferenczi, a dimensão expressiva do corpo, de seus movimentos e remodelamentos, adquire um papel principal. A técnica ativa vai estimulá-la, dando-lhe espaço no processo analítico e permitindo-lhe que não apenas expresse um pedaço pretérito da vida como também, em seu próprio desenrolar, desenvolva coisas que ficaram congeladas no tempo (Ferenczi, 1921/1993a). O mesmo pode ser dito em relação à neocatarse, com a diferença de que a repetição não é ativamente estimulada. O que o analista faz é criar as condições afetivas para que ela surja espontaneamente. Por meio dessa inovação técnica, a realidade do traumático aparece em toda sua crueza a Ferenczi, transformando-o em testemunha viva do horror mudo a que certos pacientes foram submetidos em sua infância (Ferenczi, 1930/1992).
As palavras e a linguagem verbal
Retomando a teoria de Ferenczi sobre as diferentes formas de expressão, o último modo a ser forjado, a linguagem verbal (Sprach) ou simbolismo verbal (Sprachsymbolik), tem nas palavras sua matéria prima (Ferenczi, 1913/1992a). Ela consiste numa continuação e diferenciação do simbolismo gestual. Ambas as formas de expressão se originam do processo de imitação (Nachahmung), assim como mobilizam o corpo para modular a expressão. No caso da linguagem, a criança concentra suas brincadeiras e seus experimentos nos órgãos de fonação e procura, por meio da ação delas, imitar, isto é, realizar uma "reprodução vocal [stimmliche Darstellung] de sons e ruídos produzidos pelas coisas, ou que se produzem por intermédio delas" (Ferenczi, 1913/1992a, p. 48; 1913/1927, p. 75).
As crianças têm uma intuição que os adultos parecem ter perdido: as palavras são, afinal de contas, nada mais que coisas materiais, dotadas de corporalidade, e isso se torna flagrante em suas brincadeiras. Com a imitação dos sons no ato de brincar, a criança passa a esculpir sons e a modelá-los como se fossem argila. Experimenta variações e modulações para compará-los com os barulhos das coisas, inclusive os barulhos-palavras que os pais fazem. Combina os sons e os separa, gargalha com algumas produções, busca repetir, com uma concentração inabalável, outros barulhos que acreditou terem soado bonitos…
É que, antes de se tornarem coisas que tendemos a considerar como entidades imateriais, as palavras envolvem, rigorosamente, Wortklangbilder und Schriftbilder, isto é, imagens sonoras e imagens gráficas (Ferenczi, 1910/1927, p. 175). Escutá-las (ou vê-las) leva o ouvinte a imaginá-las, quase aluciná-las, como se estivesse diante do objeto que elas representam (Ferenczi, 1910/1991). Do mesmo modo, as palavras concentram em si um motorische Element, um elemento motor, cuja mera pronúncia faz aquele que fala ter a impressão de estar cometendo uma Handlung, uma ação (Ferenczi, 1910/1927, p. 178). Não à toa, uma criança que diz algo terrível de acordo com seus critérios sente que realizou uma ação igualmente terrível, com efeitos reais e irreversíveis.
Seja no ato de escutar ou de ler, no de falar ou de escrever, percebe-se que, para Ferenczi, as palavras, entendidas como coisas materiais - como corpos -, condensam os outros modos de expressão (imagem e motilidade), que passam a se organizar em torno da articulação dos sons que adquirem sentidos específicos. Esses sons, verdadeiros barulhos e ruídos organizados, passam a ser postos "em estreita relação associativa com coisas e processos determinados, e são até progressivamente identificados com eles" (Ferenczi, 1913/1992a, p. 48). O vínculo que é desenhado entre o som e a coisa torna possível à criança designar as coisas do mundo, e nesse fator reside o poder da linguagem: o de conseguir figurar mais objetos que não se confundem com o eu.
Ainda que as palavras possam, para a criança, satisfazer as condições impostas para regressar a uma experiência de onipotência, o que Ferenczi deixa claro é que a linguagem se organiza em um momento no qual a criança reconhece a realidade, isto é, em que percebe a existência de coisas que não se confundem com o eu e que resistem à sua vontade: "A mão estendida é, com frequência, recolhida vazia, o objeto cobiçado não acompanha o gesto mágico. E mesmo uma potência adversa e invencível pode opor-se pela força a esse gesto e coagir a mão a retomar sua posição anterior" (Ferenczi, 1913/1992a, p. 46). Por não se conformar mais ao seus desejos, as coisas são projetadas para fora, e as relações que as encadeiam em causas e efeitos não estão mais remetidas ao seu desejo, mas a condições que escapam de seu controle. Visto que, em decorrência de seu contato com o ambiente, a criança introjeta mais experiências e multiplica objetos que deseja, o simbolismo gestual torna-se menos capaz de figurá-los com precisão; neste sentido, por meio das palavras, a criança consegue designar mais coisas.
A outra vantagem da linguagem é a de ser mais econômica, no sentido de exigir menos esforço corporal para ser realizada e compreendida pelo entorno. Um exemplo simples que Ferenczi evoca relaciona-se aos rudimentos da habilidade de matemática: "Quando, em vez de acompanhar cada vez o cálculo nos dedos, se colocou um número como símbolo no lugar de uma série de números, já se economiza bastante gasto psíquico" (Ferenczi, 1920/1992, p. 181). Tal princípio de economia também se torna flagrante quando as palavras passam por um processo de abstração. As palavras abstratas, essas que os adultos conhecem e usam, são mais precisamente entendidas como signos verbais, e o signo verbal, por sua vez, consiste em um fragmento atenuado daquelas palavras eivadas de vivências corporais (Ferenczi, 1910/1991).
A abstração que se dá na linguagem é o processo de selecionar alguns elementos e excluir e descartar os demais, com o fim de manter somente aqueles elementos capazes de generalização (Ferenczi, 1920/1992). Como um elemento sonoro que cristaliza um sentido específico, o signo verbal apresenta-se despido de sua potência imaginativa e motora e, por isso mesmo, pode ser generalizado para abarcar objetos diferentes com qualidades distintas sob um mesmo nome. Sua atenuação reside justamente nessa exclusão de processos corporais mais visíveis, tornando-se apto a se ligar aos processos de pensamento, complexificando o modo de expressão por palavras: o pensamento consciente.
Destaque-se, contudo, que, em primeiro lugar, atenuação não significa uma perda irreversível. Mesmo as palavras que se tornaram neutras ou abstratas ainda invocam imagens quando nos atentamos a elas e, mais que isso, preservam um componente motor, na medida em que, para serem pronunciadas - ou mesmo escutadas - mobilizam uma multiplicidade maior ou menor das partes do corpo, como se as fizessem vibrar. Não à toa, a emoção que suscitam produz aquilo que Ferenczi designou como "mímica da representação [Vorstellungsmimik]", o que significa dizer que essa mímica se faz mais presente quanto mais afeto permeia as palavras ditas (Ferenczi, 1910/1991, p. 114; 1910/1927, p. 179).
A bem dizer, até mesmo o pensamento, este processo que parece prescindir inteiramente do movimento corporal, é, pelo contrário, permeado por gestos mais ou menos visíveis. De fato, longe de conceber o pensamento e a motilidade como duas entidades separadas por uma distinção fundamental, Ferenczi (1919/1992) diz haver "uma identidade desses dois processos" (p. 349). Acrescente-se que, para ele, o pensamento origina-se do olfato, tido como o protótipo do pensamento (Ferenczi, 1924/1993b; 1926/1993). De qualquer maneira, a ideia que concebe uma relação de identidade entre pensamento e corpo se faz presente em uma miríade de contextos ao longo de sua obra: não apenas a criança denuncia o que pensa devido às feições que seu rosto apresenta (Ferenczi, 1913/1992a), como mesmo aqueles adultos que estão mergulhados nas reflexões mais abstratas podem estar acariciando, sem o saber, suas partes íntimas (Ferenczi, 1919/1993a). Não apenas a paciente esfrega suas coxas para obter prazer enquanto está mergulhada em suas associações (Ferenczi, 1919/1993a), como movimentos corporais do analista enquanto se entrega à atenção flutuante, para ele imperceptíveis, expressam algo (Ferenczi, 1932/1990; 1933/1992).
Em segundo lugar, nota-se também que atenuação não é uma sentença e nem se dá como um processo global. Palavras que, devido à reiterada circulação nas relações entre a criança e o mundo, se tornaram neutras, podem voltar a adquirir sua dimensão mágica de acordo com as experiências que o sujeito vive, ou no contexto em que está imerso, incluindo aí o processo analítico. Essa é a via que nos parece mais interessar a Ferenczi: em vez de purificar as palavras, ele busca devolvê-las à solidariedade que têm com a imagem e a ação, pois é nessa solidariedade que reside o afeto (Câmara et al., 2018). Entretanto, o contrário também é possível: palavras que encerram um grande poder de mobilizar o corpo podem tornar-se mais atenuadas, até mesmo completamente esvaziadas por circunstâncias as mais diversas. Seja como for, intui-se, a partir dessas observações, outro fato sublinhado por Ferenczi: as palavras não possuem uma potência equânime de invocar os processos corporais. Há uma enorme heterogeneidade entre elas, e isso porque tudo depende das experiências em que as palavras circulam (Ferenczi, 1910/1991).
No que diz respeito à linguagem, cumpre destacar uma característica essencial de sua concepção por Ferenczi: ele não se preocupa com a dimensão sintática da linguagem, focando-se apenas nas palavras. A ele não parecem interessar tanto as regras implícitas que ordenam e estruturam o discurso, mas tão somente o aspecto da ação, isto é, o ato de falar ou escrever, de escutar ou ler. Do mesmo jeito, sua abordagem em relação às palavras pauta-se menos na dimensão semântica, quer dizer, nos processos que fazem as palavras adquirirem tal ou qual sentido e deslizarem para outros significados, que o fator do afeto nelas envolvido. Tudo se passa como se, para Ferenczi, o que importasse a respeito da linguagem fosse o afeto que a constitui e os meios corporais que a expressam.
A expressão - na forma verbal ou do modo que for - é ação, pura ação e movimento imanente àquele que a realiza. Não há sentido em se estabelecer as regras ou linhas estruturais que a transcendem e que a determinam. Longe de isso indicar uma deficiência da teoria ferencziana, explicita, pelo contrário, a singularidade de sua perspectiva, na medida em que abre condições para se pensar a linguagem sob um viés alternativo, entendendo-a como uma experiência inseparável do afeto, do corpo e da ação. Em outras palavras, como uma forma, dentre múltiplas, de expressão.
Multiplicidade dos modos de expressão
Ferenczi concebe a linguagem verbal baseado, pois, numa perspectiva que a entende inseparável do afeto e, nesta direção, enquanto um modo de expressão que, como os demais, se origina do corpo. A ideia de que a origem dos modos de expressão é o corpo leva a uma outra: se todos são fundamentalmente corporais, não há diferença de natureza, mas de grau entre eles. Não à toa, a linguagem verbal é por ele qualificada como, literalmente, um "körperlichen Mittel", isto é, como um meio físico, material - e o mesmo vale para os outros modos de expressão (Ferenczi, 1913/1927, p. 75). Desse modo, o corpo é o pano de fundo de onde todos os modos se derivam e por meio do qual se atualizam. Toda expressão, em Ferenczi, é expressão corporal.
Se há uma unicidade de origem dos modos de expressão, isso não significa que não haja diferenças entre eles. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que há um longo período no qual a criança, não tendo ainda desenvolvido a linguagem verbal, constitui outras maneiras de se expressar. Cada modo se organiza em tempos diversos de sua história, sendo soluções precárias que visam a lidar com crises que se instalam na sua relação com o mundo: com a progressiva expansão dos limites e das possibilidades do corpo, os desejos da criança se tornam mais complexos, por um lado, e os adultos excluem de seu campo perceptivo e interpretativo demandas cuja expressão não parece condizer mais com a dita maturação da criança, por outro (Ferenczi, 1913/1992a). Ora, se, na relação do ambiente com a criança, determinadas formas de expressão são excluídas, sendo a criança disciplinada a aperfeiçoar uma única - a linguagem verbal -, é de se questionar se o processo analítico deve reproduzir essa exclusão e essa disciplinarização. Apesar de o método analítico se afiançar principalmente na produção verbal, Ferenczi decisivamente sustenta a posição de não excluir os outros modos de expressão.
David Lapoujade (2017) joga com dois personagens do mundo jurídico - a testemunha e o advogado - para traçar o processo de criação de um artista, de um filósofo, de um cientista. Esses sujeitos entram em contato com algo inédito, algo que jamais tinha sido percebido - pelo menos não da perspectiva singular com que percebem. O trabalho de criação não termina aí; o que segue é a assunção do papel de testemunha, aquela que faz ver aos outros a sua percepção original. Mas isso também não é suficiente: quantos não vão desmentir essa visão, considerando-a uma ninharia, algo sem sentido ou sem importância, ou identificando-a com algo preexistente, despindo-a de suas particularidades e homogeneizando-a com o já conhecido? Diante desse movimento de descrédito, a testemunha vira então advogado: ela precisa agora defender o que percebeu e fez ver como algo cuja existência deve ser afirmada, considerada autêntica, como algo, enfim, que tem o direito de existir. Pedimos licença para evocar um longo trecho sobre isso:
(…) perceber não é simplesmente apreender o que foi percebido, é querer testemunhar ou atestar seu valor. A testemunha nunca é neutra ou imparcial. Ela tem a responsabilidade de fazer ver aquilo que teve o privilégio de ver, sentir ou pensar. Ela se torna um criador. De sujeito que percebe (ver), torna-se sujeito criador (fazer ver). Mas isso porque, atrás da testemunha, surge outro personagem, o advogado. É ele quem convoca a testemunha, quem faz com que toda criação se torne um discurso de defesa a favor das existências que ela faz aparecer, ou melhor, comparecer. É preciso dar uma força, uma amplitude para aquilo de que fomos a testemunha privilegiada. (…) Tornar "mais" reais certas existências, dar a elas uma posição ou um destaque particular, não é um meio de legitimar sua maneira de ser, de lhes conferir o direito de existir sob determinada forma? (Lapoujade, 2017, p. 23-24, grifos no original)
Como não pensar em Ferenczi depois de ler esse trecho? Como não pensar em sua agonia ao entrar em contato com a dimensão do traumático na sua clínica, e depois em sua luta por essa dimensão ter o direito de existir dentro do movimento psicanalítico? Como não pensar nos seus esforços para dar voz àqueles que foram violentados e desacreditados no seio de suas próprias famílias, e que ameaçavam continuar nesse estado nos tratamentos analíticos devido aos próprios analistas? Mas também, como não pensar que Ferenczi buscou legitimar e tirar da exclusão os diferentes modos de expressão? Procurou oferecer-lhes cidadania no território clínico-conceitual da psicanálise e almejou conferir-lhes valor, singularidade, potência? Ferenczi, parece-nos, fez ver as múltiplas formas de expressão e defendeu o direito de elas existirem. Por não tê-las excluído, entrou em contato com muitos planos de realidade, incluindo aí o do trauma.
Ao dar cidadania aos outros modos de expressão, Ferenczi não apenas os colocou em cena, como garantiu que fossem recebidos e pensados em toda sua especificidade. O resultado disso é o de fazer com que a linguagem não seja separada fundamentalmente dos demais modos de expressão, e sequer seja tomada como modelo para pensá-los a posteriori, de acordo com suas próprias regras. Não é por outro motivo que a categoria "pré-verbal", utilizada amiúde para qualificar as características etiológicas de determinadas configurações clínicas, é absolutamente estranha à teoria ferencziana. Falar em "pré-verbal" implica duas ideias concomitantes: algo que não é verbal e algo que ainda não é (ou que não pôde ser) verbal. Tanto em um caso quanto em outro, a linguagem acaba por funcionar como norma, como referência, como ponto de chegada, e o "pré-verbal" se torna uma fórmula que comprime e oculta - ou que exclui em sua especificidade - todas as formas de expressão não identificadas à linguagem. Juntas, verbal e pré-verbal tornam-se duas dimensões, uma oposta à outra, mas ao mesmo tempo juntas para assegurar uma única norma. Nada mais distante da proposta de Ferenczi.
Ainda que a elaboração da categoria do dito "pré-verbal" tenha importância inegável para se pensar a clínica, o pensamento de Ferenczi dela diverge por justamente não submeter, a uma lógica que coloque a linguagem como categoria hegemônica, aquilo que dela se distingue. Cada modo de expressão - a linguagem inclusa - tem sua própria potência e, no entanto, todos eles se misturam, apresentando-se em maior ou menor intensidade em cada movimento. Em outras palavras, Ferenczi pensa os diferentes modos de expressão em sua diferença. Assim, ao esmiuçar as passagens que se desdobram antes e, ao mesmo tempo, em concomitância com a linguagem verbal, a sensorialidade e a motricidade adquirem a mesma importância em sua teoria e em sua prática quanto à fala. Um modo não precisa estar subsumido a outro e nem ser transliterado para um específico, supostamente superior.
Com efeito, Ferenczi questiona se uma expressão que se dá predominantemente pelos movimentos do corpo deve ser traduzida em palavras. O que ele defende é que o papel do processo analítico é permitir que uma expressão se desenvolva, se desdobre, tenha a seu favor todas as condições para sua expansão. Dois momentos do Diário clínico revelam claramente essa ética a favor da expressão (Ferenczi, 1932/1990). Num primeiro momento, testemunhando a dor das crises neocatárticas, e sendo profundamente afetado por elas, Ferenczi interrompia o que estava se expressando. Até que percebeu que a interrupção, mesmo que baseada em um sentimento de compaixão e de proteção de suas analisandas, era prejudicial, pois não permitia que isso que estava sendo exprimido se desenvolvesse - algo análogo ao que ocorrera com elas, quando crianças. Ele percebe que tentar colocar em palavras, isto é, tentar representar a expressão corporal, teria efeito semelhante.
Progressivamente, Ferenczi compreende ser necessário que as expressões, por mais terríveis que sejam para a paciente (e para aquele que as testemunham, o analista), possam se desdobrar com o máximo de liberdade. Somente assim ambos poderiam entrar em contato com isso que havia sido clivado. Não à toa, em um segundo momento do Diário clínico, ele passa a considerar que o conteúdo clivado não é uma memória estática e cristalizada, mas uma tendência, uma tendência de que algo que fora interrompido possa se desdobrar no presente (Ferenczi, 1932/1990). Esse desdobramento exige do analista menos sua tradução em palavras - o que significa sua interrupção - e mais uma recepção afetiva por parte dele. Por recepção afetiva, queremos dizer que o analista se deixa ser afetado por aquilo que é expresso, o que inclui ele se permitir expressar os efeitos de ser afetado. Essa é a base de sua crítica à posição neutra e fria do psicanalista, e um dos efeitos mais importantes de sua teoria da expressão, que começou a ser desenvolvida vinte anos antes.
Referências
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Recebido em 19 de fevereiro de 2020
Aceito para publicação em 18 de maio de 2020
Regina Herzog é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.