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Psicologia Clínica
Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.34 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2022
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0034n02A07
SEÇÃO TEMÁTICA - REVISÃO, AVALIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E PRÁTICO NA CLÍNICA PSICOLÓGICA
Contribuições e especificidades da clínica winnicottiana para a prematuridade: Evidências a partir de dois casos
Contributions and specificities of the Winnicottian clinic for prematurity: Evidence from two cases
Aportaciones y especificidades de la clínica de Winnicott para la prematuridad: Evidencia de dos casos
Carolina Marocco EstevesI; Cesar Augusto PiccininiII
IMestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Pós-doutorado Júnior do CNPq, UFRGS, RS, Brasil. email: carolmak2006@gmail.com
IIDoutor pela University of London (Inglaterra), com Pós-Doutorado na mesma Instituição; Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). RS, Brasil. email: piccicesar@gmail.com
RESUMO
O presente estudo investigou as contribuições dos princípios e da técnica da clínica winnicottiana no atendimento a duas mães e seus bebês no contexto da prematuridade. No primeiro caso, a mãe tinha 20 anos e a filha nasceu com 27 semanas gestacionais, pesando 1.020 gramas, e permaneceu 81 dias no hospital; no segundo, a mãe tinha 21 anos e as filhas gêmeas nasceram com 27 semanas gestacionais, pesando 1.600 gramas, e permaneceram 49 dias no hospital. O atendimento foi realizado durante a internação dos bebês. O foco da análise dos resultados foi no processo do atendimento, considerando cinco eixos temáticos derivados dos atendimentos: tolerância e confiabilidade; setting constante e confiável; acompanhamento das mães nas primeiras aproximações das filhas; espaço para elaboração dos conflitos conjugais e familiares; e desafios e impasses da clínica winnicottiana para a prematuridade. Os resultados revelaram que os atendimentos auxiliaram as mães em suas dificuldades frente à maternidade, bem como para verbalizar e elaborar as culpas, as perdas, o luto e os medos que a experiência do nascimento prematuro agrega à maternidade.
Palavras-chave: clínica; bebês prematuros; maternidade.
ABSTRACT
The present study investigated the contributions of the principles and techniques of Winnicott's clinic in the care of two mothers and their babies in the context of prematurity. In the first case, the mother was 20 years old and the daughter was born at 27 weeks gestational age, weighing 1,020 grams, and stayed 81 days in the hospital. In the second, the mother was 21 years old and the twin daughters were born at 27 weeks gestational age, weighing 1,600 grams, and stayed 49 days in the hospital. Care was provided during the babies' hospitalization. The focus of the analysis of the results was on the process of care, considering five thematic axes derived from the sessions: tolerance and reliability; constant and reliable setting; support for the mothers in the first approaches to their daughters; room for the elaboration of conjugal and family conflicts; and challenges and impasses of the Winnicottian clinic for prematurity. The results revealed that the consultations helped the mothers in their difficulties facing maternity, as well as to verbalize and elaborate the guilt, losses, mourning and fears that the experience of premature birth adds to maternity.
Keywords: clinic; premature babies; maternity.
RESUMEN
El presente estudio investigó las contribuciones de los principios y técnicas de la clínica de Winnicott en el cuidado de dos madres y sus bebés en el contexto de la prematuridad. En el primer caso, la madre tenía 20 años y la hija nació a las 27 semanas de edad gestacional, con un peso de 1.020 gramos, y permaneció 81 días en el hospital. En el segundo, la madre tenía 21 años y las hijas gemelas nacieron a las 27 semanas de edad gestacional, pesaron 1.600 gramos, y permanecieron 49 días en el hospital. La atención se prestó durante la hospitalización de los bebés. El foco del análisis de los resultados fue el proceso de atención, considerando cinco ejes temáticos derivados de las consultas: tolerancia y confiabilidad; setting constante y confiable; acompañamiento de las madres en los primeros acercamientos a sus hijas; espacio para la elaboración de conflictos conyugales y familiares; y desafíos e impasses de la clínica winnicottiana para la prematuridad. Los resultados revelan que las consultas ayudaron a las madres en sus dificultades frente a la maternidad, así como a verbalizar y elaborar las culpas, las pérdidas, el duelo y los miedos que la experiencia del nacimiento prematuro añade a la maternidad.
Palabras clave: clínica; bebés prematuros; maternidad.
Introdução
Tendo em vista a alta prevalência de nascimentos prematuros no Brasil e no exterior, a prematuridade se configura como um problema de saúde pública mundial. Dados recentes revelam que mais de 14,8 milhões de bebês nascem anualmente antes de completarem 32 semanas de gestação, e que mais de 95% desses bebês nascidos prematuros sobrevivem (WHO & UNICEF, 2019). A implementação e modernização das Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTI Neo1) é considerado um fator que contribuiu para a sobrevivência desses bebês e reduziu a mortalidade neonatal (Cordova & Belfort, 2020). Porém, a prematuridade do bebê pode ser uma condição de risco para seu desenvolvimento socioemocional (Ritchie et al., 2015; Cheong et al., 2017).
Ao nascer, os bebês prematuros podem ser classificados da seguinte forma: bebês extremamente prematuros (EP), com menos de 28 semanas gestacionais; bebês muito prematuros (MP), que englobam os nascidos entre 28 e 32 semanas gestacionais; e bebês prematuros moderados, nascidos entre 32 e 37 semanas gestacionais (Mathewson et al., 2017). A classificação do bebê no nascimento pode ser feita considerando-se, além da idade gestacional mencionada acima, o seu peso (Stewart & Barfield, 2019): são considerados de extremo baixo peso (EBP) os bebês com menos de 1.000g; de muito baixo peso (MBP), os com menos de 1.500g; e de baixo peso (BP), os nascidos com menos de 2.500g (Schmidt & Saigal, 2020).
O rompimento do contato físico e da proximidade emocional entre a mãe e o bebê pode afetar o vínculo materno e a capacidade da mãe de fornecer respostas adequadas aos sinais dos bebês (Butti et al., 2018). Inicialmente, a participação de mães e pais no cuidado com o bebê será limitada; para sua sobrevivência, o cuidado substitutivo da equipe se fará necessário e vital (Twohig et al., 2016).
Na perspectiva winnicottiana (Winnicott, 1954/2000), a relação primitiva mãe-bebê é central para o desenvolvimento emocional do ser humano e a dinâmica dessa relação pode ser transposta para a relação terapêutica no setting da clínica. Em sua obra, o autor não se debruçou especificamente sobre a relação com bebês nascidos prematuros, apenas relatando que pareciam existir diferenças nas necessidades emocionais de um bebê nascido a termo e de um bebê nascido prematuro (Winnicott, 1971/1999). De qualquer modo, considerando as ideias de Winnicott (1971/1999), particularmente a importância da mãe e do ambiente para o desenvolvimento emocional, pode-se pensar que a situação imposta pela prematuridade traz particularidades para o desenvolvimento da relação mãe-bebê, especialmente durante a internação e frente a situações extremadas de prematuridade. Um estudo investigou indicadores da preocupação materna primária (Winnicott, 1956/2000) na gestação e após o parto de quatro mães que tiveram bebês nascidos prematuros (Esteves et al., 2011). Uma análise de conteúdo qualitativa das entrevistas revelou que a possibilidade do parto prematuro parece ter intensificado a ansiedade dessas mães que estavam em processo de desenvolvimento do estado de preocupação materna primária. Porém, observou-se que, com a assimilação de sua condição de saúde e da gestação, as participantes conseguiram desenvolver bons indicadores desse estado materno algumas semanas após o nascimento do bebê.
O nascimento prematuro pode ser considerado um nascimento de risco. Ele poderá vir acompanhado de muita angústia e remanejo psíquico por parte dos pais. Uma "tempestade psíquica" poderá instalar-se sobre o casal, na qual o bebê imaginado na gestação não corresponde ao filho que está na incubadora (Druon, 2011). No que diz respeito a intervenções psicanalíticas nesse contexto, destaca-se haver a ocorrência de um trauma, uma "explosão vulcânica psíquica" (Druon, 2011, p. 42), na qual os pais necessitam de um mínimo de elementos de sustentação. Tal intervenção, que a autora chama de trabalho de prevenção, consiste numa clínica de apoio do Eu, em ajudar os pais a falarem desse nascimento antecipado e dar significado ao não dito. Trata-se de não deixar avançar muito as associações e a regressão, dando-lhes o mínimo de elementos de sustentação do Eu (Druon, 2011).
Em relação à função do terapeuta na UTI Neonatal, Caron et al. (2011) compreenderam que, para entrar nesse ambiente, o terapeuta deveria utilizar seu corpo-psiquismo como ferramenta. O profissional vivenciará, assim como o bebê e a mãe, sentimentos de angústia, invasão e não compreensão. Os autores concluíram que a principal ferramenta de trabalho do terapeuta deverá ser sua presença constante e uma postura que sustente a experiência emocional primitiva que surge do contato com a vida desses bebês e suas mães. Nesse sentido, o terapeuta deverá oferecer mais do que palavras e construir um ambiente acolhedor para a díade. Tal conceito será melhor abordado posteriormente.
Frente à complexidade da situação vivida pelas mães no contexto da prematuridade de seu filho e à importância de serem acompanhadas em suas demandas psíquicas, foi proposto um atendimento baseado nos pressupostos da clínica winnicottiana para o contexto da prematuridade. As sessões tiveram como base a teoria e a clínica winnicottiana. Nessa modalidade de acompanhamento, o ambiente protetor e contínuo torna-se mais importante que as interpretações, o que parece adequado para o contexto da prematuridade, no qual as mães encontram-se no período pós-parto, com extrema sensibilidade, acentuada pelo nascimento prematuro. Os atendimentos envolveram o manejo, que correspondeu à função terapêutica expressa nos cuidados que a terapeuta proporcionou à mãe e ao bebê, da qual fez parte, entre outras, o holding (Winnicott, 1964/2006), que, adaptado para o contexto da prematuridade, deveria se caracterizar pela dedicação sensível e ativa da terapeuta às demandas das mães e do bebê, além de fornecer um apoio constante, o que poderia garantir uma proteção psíquica à mãe e a seu bebê. A manutenção do silêncio (Winnicott, 1958/2007), corresponderia à não imposição de posturas específicas, isto é, à possibilidade de deixar a paciente simplesmente estar ali, num ambiente seguro, e acolher seu sofrimento. O setting foi adaptado para as condições do bebê, da mãe e da UTI Neo. Assim, as sessões estavam previstas para serem realizados tanto em sala individual, como junto à incubadora, ou em diferentes ambientes.
Assim, o objetivo do presente estudo foi investigar as contribuições dos princípios e da técnica da clínica winnicottiana para duas mães e seus bebês no contexto da prematuridade e suas especificidades, em vista da internação do bebê na UTI Neo. Em particular, se investigou as contribuições desse atendimento para a diminuição do sofrimento psíquico e de conflitos da mãe relacionados ao bebê.
Método
Participantes
Participaram desse estudo duas mães e seus bebês nascidos prematuros. As mães eram primíparas e tinham ensino médio incompleto. No Caso 1, a mãe, Mayara2, tinha 20 anos e a filha (Estefani) havia nascido com 27 semanas gestacionais e pesava 1.020 gramas. Ela não residia com o pai da filha. No Caso 2, a mãe, Alice, tinha 21 anos e suas filhas gêmeas (Camila e Catarina) haviam nascido com 27 semanas gestacionais e pesavam 1.010 gramas e 1.600 gramas, respectivamente. A mãe residia com o pai das filhas. Os critérios de inclusão paras as mães foram ser primíparas e adultas. As famílias eram de nível socioeconômico (NSE) baixo. Os bebês eram considerados extremamente prematuros, pela idade gestacional. Foram excluídos bebês que apresentaram qualquer tipo de má-formação congênita, impedimentos sensórios significativos, meningites e vírus da imunodeficiência humana (HIV). Este artigo é derivado da tese da primeira autora (Esteves, 2017). Cabe ressaltar que, no total, quatro mães receberam atendimento clínico winnicottiano. No entanto, em decorrência das limitações quanto ao tamanho esperado para uma tese, apenas dois casos foram incluídos. Esses casos foram escolhidos por apresentarem uma boa oportunidade de aprendizado (Stake, 2006), ao retratarem a prematuridade de um ou dois filhos, por apresentarem diversidades em termos de estrutura e organização psíquica das mães, conflitos e demandas familiares. Além disso, também representam especificidades na aplicação da clínica winnicottiana e os alcances da técnica no contexto da prematuridade e de internação numa UTI Neo.
Delineamento, procedimentos e instrumentos
Trata-se um de estudo de caso coletivo (Stake, 2006), de caráter longitudinal, a fim de investigar as contribuições dos princípios e da técnica da clínica winnicottiana para duas mães e seus bebês no contexto da prematuridade e suas especificidades, considerando a internação do bebê na UTI Neo. Em particular, se investigaram as contribuições desse atendimento para a diminuição do sofrimento psíquico e dos conflitos da mãe relacionados ao bebê.
As mães e bebês que atenderam os critérios do estudo, e que foram indicadas pela psicóloga responsável pelo Serviço de Psicologia na UTI Neonatal, foram convidadas a participar deste estudo. No Caso 1, o acompanhamento teve início no 17º dia após o nascimento da filha. O encaminhamento do caso se deu por: tristeza, estresse, cansaço, conflitos com o pai da bebê, conflitos familiares e ambivalência relacionada à filha. No Caso 2, o atendimento teve início no 6º dia após o nascimento das filhas gêmeas. O encaminhamento foi motivado por: cansaço físico e mental, tristeza, abatimento, estresse e conflitos com o marido, que começaram após o nascimento das filhas.
Após cada sessão, era feito o relato clínico do atendimento. Tal relato consistiu na descrição detalhada dos encontros com as mães, em alguns dos quais os bebês estiveram presentes. Tais consultas ocorriam principalmente numa sala dentro do hospital. Além disso, também constaram no relato as impressões e sentimentos da terapeuta a respeito da sessão, somados a observações da interação mãe-bebê e dos bebês na UTI Neonatal, além de outros aspectos não verbais observados pela autora deste estudo. Quando a consulta não ocorria na sala individual, a terapeuta realizava um relato pós-atendimento gravado em áudio com a descrição do atendimento. O relato clínico do atendimento era levado semanalmente para a supervisão com as supervisoras clínicas, na qual eram discutidos objetivos das consultas, aspectos transferenciais e contratransferência.
Com base no prontuário do bebê, foi também preenchida a Ficha de dados demográficos da família (NUDIF/PREPAR, 2009a), a Ficha de dados clínicos gestacionais (NUDIF/PREPAR, 2009b), a Ficha de dados clínicos do bebê pré-termo e da mãe/pós-parto (NUDIF/PREPAR, 2009c), e a Ficha de dados clínicos do bebê pré-termo e da mãe/pré-alta (NUDIF/PREPAR, 2009d), que contribuíram para caracterizar o caso.
Por fim, foi reunido todo o material, assim como as anotações derivadas da supervisão clínica do caso. O material foi analisado buscando-se entender em profundidade a clínica baseada nos conceitos winnicottianos para o contexto da prematuridade, a partir de cinco eixos de análise derivados dos atendimentos, descritos adiante.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (protocolo 512.422) e do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (protocolo 534.779).
Resultados
A análise de conteúdo qualitativa (Bardin, 1977/2011; Laville & Dione, 1999) foi utilizada para se examinar as falas das mães no decorrer dos atendimentos, pautada na ideia de que em estudos qualitativos (APA, 2020) é importante a busca pelo novo e este deve ser sempre considerado, mesmo que apareça de forma única. Assim, no presente estudo não se buscou a saturação teórica, de forma que um único exemplo de relato em uma categoria foi considerado por sua relevância, pois o que se busca é a essência do fenômeno estudado (Henwood & Pidgeon, 2010), o significado do que se está tentando compreender, sem o objetivo de quantificar, como é praxe de estudos qualitativos (APA, 2020).
Para fins de análise, estabeleceram-se cinco eixos inspirados nas consultas: (1) Tolerância, confiabilidade e holding; (2) Setting constante e confiável; (3) Acompanhamento das mães nas primeiras aproximações das filhas; (4) Espaço para elaboração dos conflitos conjugais e familiares; e (5) Desafios e impasses da clínica winnicottiana para a prematuridade. Os relatos das mães e as trocas verbais com a terapeuta foram transcritos e postos entre aspas para facilitar sua identificação. Destacam-se, a seguir, os principais momentos que envolveram os encontros com as mães e os bebês, a partir dos eixos estabelecidos.
Tolerância, confiabilidade e holding
Nesse eixo de análise, foram incluídos relatos das mães e da terapeuta que ilustraram a tolerância, confiabilidade e um holding emocional às mães (Winnicott, 1963/2007). Tais aspectos foram caracterizados pelo espaço de escuta empática e atenta das necessidades das mães e filhas e pela não imposição de posturas específicas, isto é, a possibilidade de deixar a paciente simplesmente estar ali, num ambiente seguro, e acolher seu sofrimento e o holding emocional às mães, que, adaptado para o contexto da prematuridade, caracterizou-se pela dedicação sensível e ativa do terapeuta às demandas das mães e do bebê, além de fornecer um apoio constante, o que pode garantir uma proteção psíquica à díade.
Tais aspectos podem ser evidenciados nas trocas com a mãe Alice: "Ele [marido] acha que eu tô triste e que precisa ficar fazendo gracinha, sendo infantil. Mas eu não sou mais assim, eu amadureci." Terapeuta: "Talvez o jeito dele te lembre de como tu eras também antes de ter as meninas, mais infantil. Te lembra de um jeito que tu não podes mais ser, porque agora tu tens elas e assume as tuas filhas como mãe, não mais como menina." Mãe A.: "Acho que sim, eu era meio assim como ele, sem responsabilidades, e agora…" (fica em silêncio). Terapeuta: "Talvez tu estejas bem no meio dessa transição." Mãe A.: "Mas é normal eu ficar assim, tão na minha, só pensando nelas?" Terapeuta: "Claro que sim, é um sentimento muito natural desse período depois do parto que tu estás passando." (3º atendimento). Alice também destacou, em relação aos atendimentos: Mãe A.: "Me faz muito bem conversar contigo." (2º atendimento). Na supervisão, discutimos que Alice estava elaborando seu luto diante de um sonho que não se realizou. Ela parecia ainda estar gestando psiquicamente as filhas.
A possibilidade de a terapeuta prover uma escuta sensível e acolher parte das angústias das mães auxiliou no começo das primeiras conexões destas às necessidades físicas e emocionais das filhas. Por exemplo, Mayara verbalizava conflitos desde a gestação, que, segundo ela, não tinha conseguido verbalizar antes: Mãe M.: "Eu peguei o exame e 'deve tá errado, não pode!' e a médica disse 'tu vai ser mãe' e eu disse 'ai, não, que merda! Acabou a minha vida.' e a médica disse que era para eu ficar feliz. E eu fui embora!" (3º atendimento). Questões relacionadas à aceitação da gestação e a um possível aborto também foram trazidas: Mãe M.: "Nem pensar, tu não podes tomar esse remédio porque tu vais abortar. O que aconteceu é que ela (farmacêutica) não acreditou que eu estava grávida, ela ficava perguntando: 'tu tens certeza que tu tá grávida?' 'tu não tá grávida'. Eu achava que ela poderia estar morta, e um dia ela ficou das nove horas da manhã até o outro dia de tarde sem se mexer." (3º atendimento).
Além do conflito com a filha e com a maternidade, ela relava uma difícil relação com a sua própria mãe: Terapeuta: "Tu sentes que ela te magoou bastante?" Mãe M.: "Sim, sinto. Hoje em dia eu nem dou mais bola. Ela fala, fala, briga e eu nem escuto mais." Terapeuta: "Tu achas que essa fortaleza que tu acabaste construindo para se proteger foi também para se proteger dela?" Mãe M.: "Sim, eu acho que sim. Que era o único jeito que eu teria a atenção de alguém. Das minhas irmãs?" Terapeuta: "Mas tu não precisas ter essa fortaleza erguida para se aproximar da Estefani. Dá para baixar a guarda." Mãe M.: "Não, com ela não." (começa a chorar). Ficamos em silêncio e ela chora muito Depois de um tempo, retomei as palavras e expliquei que quis retomar um pouco da sua história porque ela se faz muito presente na relação com a Estefani. (10º atendimento).
Discutimos na supervisão a respeito do imenso sofrimento ao qual a jovem mãe estava sendo exposta tão precocemente. E que, mesmo sendo jovem, ela tinha um potencial psíquico para "suportar" estar ali ao lado da filha e enfrentar uma série de exigências da vida adulta, incluindo a maternidade, a prematuridade da filha, a solidão nesse momento tão delicado. Apesar de todas as dificuldades da mãe, acredita-se que ela tinha dentro de si um desejo de acertar, por Estefani e por ela, e seguir crescendo com os desafios que a vida lhe impôs.
Setting constante e confiável
Destaca-se a importância do setting constante e confiável, que diz respeito à constância e continuidade dos atendimentos (a presença diária da terapeuta na UTI Neo), além de a terapeuta ter priorizado o setting interno e externo como componente terapêutico (Winnicott, 1954/2000), com o suporte da supervisão e de terapia pessoal. Com isso, as mães conseguiram verbalizar parte dos seus conflitos a respeito dos sentimentos que as acometiam, principalmente aqueles relacionados aos bebês, como pode ser visto no caso de Mayara: "Eu não tenho muita paciência. Às vezes ela [a filha] me irrita tanto, que fico olhando para as pessoas na calçada e não me olhem!" Terapeuta: "Acho muito importante tu conseguir falar isso, até para tu conseguires ouvir o que tu tá dizendo, e pensar no que tu tá falando. O que isso que tu tá falando significa? Onde toda essa irritação entra na tua vida?" Mãe M.: "Acho que eu tô meio irritada demais com ela. Tenho que ficar mais calma com ela." Terapeuta: "Aproveita esse momento aqui, para te escutar também, pensar contigo mesma, o que tu tá sentindo, o que tu vais despejar nas pessoas na rua, na Estefani." Mãe M.: "É, brabeza. Mas isso dela piorar, me deixou ruim mesmo." (8º atendimento).
Foi possível perceber na supervisão que a fala de Mayara algumas vezes era desprovida de afeto, sobre questões importantes do parto e do nascimento da filha. Seu amadurecimento psíquico parecia impedir que vivenciasse o contexto da prematuridade da filha de forma mais vívida: Mãe M.: "É, mas ela está fazendo isso aí desde a gravidez. No começo da gravidez, não, tu vai ganhar normal, de 9 meses, mas quando foi chegando no final, 'ai não acredito que essa guria vai me dar problema agora'. Começou aquelas coisas chatas… Mesma coisa que ela tá fazendo agora, ficou boa no início e agora no final, quase antes de ir embora, tá começando a dar problema." Terapeuta: "E como é que tu te sente com isso?" Mãe M.: "Fico meio preocupada com ela." Terapeuta: "E na gravidez, quando ela veio antes, sem te avisar?" Mãe M.: "Eu tô braba com ela, ué!" (9º atendimento).
Ao mesmo tempo, foram oferecidos uma escuta e um espaço para as mães elaborarem a ruptura na continuidade da gestação e separação precoce das filhas, como pode ser visto no caso de Alice: "No sábado, quando a médica veio me dizer que a Camila [filha], que nasceu piorzinha, estava morrendo, foi uma coisa sem palavras. A gente nunca pensa que isso pode acontecer. Por mais que 'eu sabia' que elas iam nascer antes, achava que iam ficar um pouco no hospital e sair. Mas risco de vida nunca passou pela minha cabeça. Aqui dentro é um horror, um dia tão bem, outro tão mal, eu não tô conseguindo acompanhar isso. É muito medo que a gente sente." Terapeuta: "Sim, eu imagino o quanto deve estar sendo difícil. Um dia elas estão na tua barriga, protegidas, e no outro, estão correndo risco de vida numa UTI." Mãe A.: "Nossa, eu passo a mão na barriga de vez em quando e fico me perguntando 'cadê elas?'. A mesma coisa foi na hora do parto, elas nasceram tão rápido que, depois do nascimento ficava passando a mão na minha barriga para me dar conta que elas tinham nascido. Essas coisas que eu sinto, não consigo falar com ele [marido]. Tu és a minha confidente." (1º atendimento).
Na supervisão, observou-se a intensidade dos sentimentos da mãe. O puerpério parece abrir um fluxo contínuo de elementos inconscientes. Discutiu-se como as mães em atendimento se desorganizaram emocionalmente em suas relações com as pessoas nesse período. Dentre os achados deste estudo, observou-se que o contexto vivido na prematuridade pode exacerbar emoções primitivas nas mães. Enfatizei no atendimento a importância de ela conseguir falar sobre o que estava sentindo, e que isso poderia ajudá-la a enfrentar melhor tudo o que está passando com as filhas. Alice teve um insight da complexidade dos sentimentos que o nascimento prematuro e a UTI Neo despertavam nela: Mãe A.: "É isso que eu sinto mesmo. Eu não faço nada aqui, nada, mas eu fico mais cansada do que quando eu trabalhava o dia todo ou estudava, que tinha que ir a pé de um lado para o outro. Eu chego dormindo em casa. E hoje eu tô bem assim. Cansada, sem energia. Agora eu tô vendo a minha prima cuidando da filha dela, não é inveja, ela é minha melhor amiga, eu tô muito feliz por ela. Só que vendo ela me entristece porque eu não tô com as minhas filhas em casa, né?" (começa a chorar) (4º atendimento).
Discutimos em supervisão que a mãe verbalizava claramente sua intensa atividade psíquica nessa fala. Alice verbalizava também que sente raiva e inveja, apesar de se assustar com tais sentimentos. Seguimos no assunto e pergunto: Terapeuta: "Já pensaste que é isso que te deixa tão braba e triste?" Mãe A.: "É, guria. É triste, é isso que eu penso mais, tu tens um filho, tu tá ali com teu bebê. Tu não vai pensar por ruindade, mas tu pensa 'eu poderia tá ali com as minhas também'." Terapeuta: "É um sentimento muito natural diante do que tu estás vivendo. Faz parte sentir isso, raiva, inveja, ódio…" Mãe A.: "Tudo me dói. Até as gurias esses dias 'por que tu tá quieta?', porque eu não sou de ficar quieta, as gurias tão tristes e tudo e eu tô ali tentando animar elas. Eu sei como precisa de alguém nos deixando bem, com energia boa. Eu sei que eu tenho que ficar calma por causa das nenês. Para passar uma energia boa para elas, não adianta eu ficar mal e passar uma coisa ruim." (4º atendimento). Dentre os achados deste estudo, observou-se que o contexto vivido na prematuridade poderá exacerbar emoções primitivas nas mães. É interessante destacar que, no decorrer dos atendimentos, a mãe vai assimilando e ressignificando seus sentimentos e a experiência da prematuridade.
Acompanhamento das mães nas primeiras aproximações das filhas
A terapeuta estar disponível para quando e onde a mãe precisasse ser escutada foi fundamental para reforçar as potencialidades da mãe e o vínculo terapêutico, como pode ser visto com Mayara: "Tu podes tirar uma foto? Tá todo mundo me incomodando para ver uma foto dela." Terapeuta: "Claro! Com todo o prazer. Eu queria muito acompanhar esse momento de vocês duas também." A bebê vai para o colo da mãe e fica tranquila. Mayara parece segurá-la um pouco ansiosa. Tiro três fotos delas. Estefani está de bruços no peito da mãe e parece bem acomodada nessa posição. Começo a notar que ela faz um esforço maior para respirar, parecendo ofegante. Mayara também se dá conta e pega o tubo pelo qual sai o oxigênio e o coloca bem perto do rosto da filha: "Tá com preguiça de respirar sozinha." Terapeuta: "Ela tá aprendendo. Vocês estão aprendendo juntas. Oi, Estefani [ela vira os olhinhos para mim]. Hum, acho que eu tô estranhando a voz dessa tia, não ouvia ela quando estava na barriga da mamãe. Tá gostoso esse colinho, bem quentinho?" Mãe M.: "Ela fica abrindo a boquinha, tu tá vendo?" Terapeuta: "Tô vendo, sim." Mãe M.: "Ela fica abrindo a boquinha, procurando o peito para mamar, essa gulosa." (4º atendimento). Foi possível perceber na supervisão a importância de a terapeuta reforçar as potencialidades da mãe, sem ser intrusiva, mantendo uma postura sensível e acolhedora com a dupla.
Um dos aspectos incluídos nessa categoria de análise foi a forma gradativa com que as mães começaram a observar as características das filhas, à medida que iam conseguindo se aproximar delas, como pode ser visto no caso de Alice: "É diferente, uma da outra mamando. Elas não mamam igual, mas tô gostando muito. Ontem eu cheguei e fui mudar a Catarina e ela tava toda cocô. Daí tirei ela da incubadora e fiquei segurando, bem feliz. Mas hoje fui de novo trocar, porque agora sou eu que troco elas. Tirei a fralda e veio aquele jato, cagou toda a parede da incubadora, cagou por tudo. Peguei e disse para ela 'tá fazendo cocô na parede do teu quarto, é?'." (risos). (6º atendimento). A partir dos relatos maternos, constatou-se em supervisão que a mãe estava em sintonia com as filhas, com indicadores que apontam para o estado de preocupação materna primária (Winnicott, 1956/2000), sendo capaz de perceber as diferenças sutis entre as filhas e suas necessidades.
A partir dos relatos maternos, constatou-se em supervisão que a mãe estava em sintonia com as filhas, com indicadores que apontavam para o estado de preocupação materna primária, e era capaz de perceber as diferenças sutis entre as bebês e suas necessidades.
Espaço para elaboração dos conflitos conjugais e familiares
A transição para a parentalidade, em especial no contexto do nascimento prematuro, acarreta mudanças importantes na vida dos casais e famílias, e isso apareceu em diversos conflitos relatados pelas mães, como no caso de Alice: "Tudo aquilo que eu te falei, cheguei em casa e conversei com ele. Tem que amadurecer, eu falei para ele, se não eu ia querer me separar. Tem que ver, guria, ele mudou completamente. Eu achei que eu nunca ia ter coragem de falar com ele. Mas eu tive. E ele chorou um monte e falou do meu jeito, o que incomodava ele. Eu também sou meio grossa, estressada. Essa conversa nós dois estávamos precisando. Parar um pouco para conversar e acertar as coisas entre a gente. E deu tudo certo." (3º atendimento). Ela segue explicando que se sentia confusa antes a respeito de seus sentimentos e que eu a ajudei a organizar o que ela sentia. Destacou que o jeito dele em relação a ela mudou e que agora "ele me escuta, ele pergunta delas." Discutimos em supervisão que a mãe precisava que o companheiro demonstrasse sua preocupação com ela e com as filhas. Para além disso, percebeu-se que ela começava a elaborar a "perda" que sentia pelo nascimento prematuro das filhas e começava a se organizar psiquicamente para continuar seu desenvolvimento emocional, interrompido pelo parto prematuro. Discutimos em supervisão a respeito das potencialidades de Alice e sua capacidade de gratidão em relação às pessoas que cuidam dela. Falou-se na supervisão que sua família também demonstrava uma estrutura emocional forte para apoiá-la.
Da mesma forma, porém vivendo uma relação mais conflituosa com o namorado e a família, a mãe Mayara encontrou um espaço no setting para trazer os problemas envolvendo o relacionamento com o pai da filha: Mayara: "Então eu disse 'tá bom, então eu vou embora para P.' e ele 'se tu for não tem mais direito à pensão' e ele ficou brabo, baixou o boné e fez que estava dormindo." Terapeuta: "Acho que na verdade tu querias perguntar outra coisa. Se ele gosta de ti." (5º atendimento). Após algumas sessões, ela relatou que conseguiu se entender com o marido: Mãe M.: "O [Miguel] foi lá em casa no domingo falar com a minha mãe e dizer que nós vamos ficar juntos mesmo. Agora ela [sua mãe] se aquietou e está mais calma. Combinei com meus pais de ir para lá para eles curtirem um pouco a Estefani depois da alta, não quero ser injusta com ela [sua mãe]. Afinal é ela quem está me ajudando enquanto a Estef está aqui." (10º atendimento).
Foi discutido em supervisão que Mayara tinha um funcionamento mais projetivo e onipotente, que visava a protegê-la de sentimentos depressivos, o que foi agravado pelo ambiente ansiogênico da UTI Neo. No caso da família de Mayara, todas as suas irmãs mais velhas já foram mães e isso parece representar um "troféu" aos olhos desse ambiente, fato que potencializa sua onipotência.
Desafios e impasses da clínica winnicottiana para a prematuridade
Um dos impasses e desafios que a terapeuta vivenciou na UTI Neo foram momentos de em que a equipe teve uma postura intrusiva. A situação ocorreu com a mãe Alice. Técnica: "A mãe dela não está aqui." Terapeuta: "Eu sei, encontrei com ela agora na Sala dos Pais." Técnica: "Gostaria de saber onde ela está, não vi ela hoje. Tá quase na hora do mamá dela e as fonos já vão chegar." Terapeuta: "Ela já deve estar vindo." A mãe entra na sala. Técnica: "Tu não trocaste a minha filha [Camila] ainda?" Mãe A.: "Não, vou trocar ela agora" [Alice faz uma cara de quem não gostou muito da brincadeira da técnica, que chamou Camila de "minha filha"]. (6º atendimento). Discutimos em supervisão que a mãe estava entrando numa outra fase com as bebês e a equipe. Não estava mais tão dependente da equipe e queria assumir da sua forma os cuidados com as filhas. Nesse sentido, gostaria de se tornar independente do excesso de controle, que começava a incomodá-la mais do que antes.
Certa ambivalência, por não terem um espaço de escuta que as mães têm por parte do Serviço de Psicologia, também apareceu na rotina com a equipe: Técnica: "Olha só, elas pedem para serem nossas amigas no Facebook e a gente fica vendo elas postando, 'comendo no Mc, curtindo'? E nós aqui, cuidando dos bebês como se fossem nossos. Ninguém nos escuta." Terapeuta: "Humm, e você gostaria de conversar?" Técnica: "O Serviço de Psicologia aqui não pode nos atender." Terapeuta: "Posso conversar com a chefe do Serviço e tentar te ajudar. Farei isso e amanhã te dou um retorno." Técnica: "Tá bom, obrigada." (7º atendimento). Este momento ilustra a importância de se abrir um espaço de escuta para a equipe. Muitas projeções nas mães e nas bebês poderiam ser evitadas caso a equipe pudesse elaborar seus sentimentos num setting adequado.
Quanto ao setting, ele precisou ser adaptado para o contexto da UTI Neo, e alguns impasses e interrupções ocorreram no decorrer dos atendimentos, como pode ser visto num atendimento de Mayara. Terapeuta: "Encontro a mãe na Neo e saímos para realizar o atendimento. Abro a Sala do Canguru e está ocupada. Seguimos até a sala de descanso dos pais. Me sinto decepcionada com a falta de estrutura do hospital para atendê-la individualmente. Sinto um alívio pela sala estar vazia. Tem uma televisão, que está ligada em um volume muito alto. Eu penso: 'Assim não dá'. Que ambiente barulhento. Procuro o controle para desligar a tevê e não acho. Então desligo na tomada mesmo. Sinto a importância do setting interno num ambiente como este, que o setting externo é tão instável e imprevisível." (2º atendimento). Esse relato ilustrou o quanto o ambiente hospitalar é repleto de interferências externas que permeiam os atendimentos e mostra o quanto é fundamental que o terapeuta mantenha, na medida do possível, o setting constante internalizado. Perdemos, literalmente, o "controle" do ambiente externo e algumas vezes precisamos lidar com o improviso.
Por fim, o momento da alta hospitalar gerou preocupações e estresse nas mães e em mim, terapeuta. As mães demonstraram uma carência em relação aos cuidados do hospital, que provia um holding, como pode ser visto no caso Alice: "Sou meio chorona e fico pensando que eu ainda não tenho carrinho, não tenho de onde tirar, não tenho condições de comprar." Terapeuta: "Mas tu tens outras condições, que vêm de dentro de ti, de querer estar com as meninas, de cuidar delas, de te dedicar. E isso que tu tens é o mais importante para começar a cuidar de verdade delas…" (6º atendimento). Refletimos na supervisão que Alice começou a se sentir desamparada, pois o hospital sustentou, até esse momento, as necessidades básicas dela e das bebês, e eu mesma, como terapeuta, pelo menos algumas de suas demandas emocionais.
A alta hospitalar também gerou conflitos em Mayara, que acabou projetando sua raiva nas mães da UTI Neo: Terapeuta: "A única coisa que me tirou do sério foi umas mães novatas falarem na reunião mal das técnicas. Ficaram dizendo que elas fazem lanche na sala, fazem a unha, imagina! Em mais de dois meses aqui dentro, nunca vi elas fazerem isso. Daí eu e a Roberta contamos tudo para elas depois. Na verdade, a Roberta começou a contar e eu confirmei também, daí as outras mães ficaram bravas com a gente." O comportamento projetivo de Mayara nas mães e desejar ser "a preferida" diante dos olhos da equipe, reproduz um funcionamento psíquico seu de atribuir a outras pessoas seus traços de caráter e comportamento. Terapeuta: "Mayara, pensa bem. Tu sabes que o ambiente da Neo estressa a gente, que os bebês aqui estão doentes, as mães estão muito preocupadas e sensíveis e às vezes é mais fácil olhar para fora, brigar com as pessoas, do que olhar para dentro e entender o que realmente está nos deixando bravos e frustrados, seja em ti, seja na Renata ou nelas. Para ti, que está quase indo embora com a tua filha, que tá para cima e para baixo com ela no colo, uma coisa muito gostosa, que tu mesma disse, demorou a acontecer, mas agora tá acontecendo. Tudo dando certo para vocês duas aqui dentro, por que tu ia querer brigar com as outras mães? Ou comprar uma briga que não é tua também, pelo que entendi é a Renata que quer tirar satisfação delas…" Mãe M.: "Sim, mas vou deixá-la sozinha?" Terapeuta: "Sim, mas tu vais brigar com a Estefani no teu colo? Ou vai deixar ela no berço para brigar com as outras mães?" Mãe M.: "Não, claro que não, capaz." (9º atendimento).
Na supervisão, revelou-se que a postura da terapeuta foi confrontativa, pois sentia-se contratransferencialmente irritada com a paciente. Também discutimos que uma mãe como Mayara precisava de uma postura continente por parte da terapeuta. Tal postura consistiu na presença constante e de sustentação para a mãe e a filha. Algumas vezes a terapeuta conseguiu oferecer e estar disponível nesse sentido; outras não. Assim, o terapeuta que se guia pela técnica winnicottiana na UTI Neo deverá oferecer mais do que palavras e construir um ambiente acolhedor para a díade, de sustentação e amparo emocional, com o objetivo de conter toda a demanda primitiva que poderá surgir.
Após essas confrontações, destaquei no atendimento posterior, após a supervisão: Terapeuta: "Então eu fico pensando no que poderia estar te mobilizando também, o que realmente está te preocupando agora que essa briga com as mães vem tapar. É vocês irem embora? É o medo de perder o cuidado que as técnicas têm contigo e com a Estefani?" Mãe M.: "É, eu me preocupo de ficar sozinha com ela, mas também fico feliz porque em casa eu vou poder dar o peito livre para ela, sem nenhuma residente ficar, porque é só ela chegar que a Estefani não pega. Hoje ela tava mamando, no tempo dela, aí ela parou para descansar e aquela residente forçou a cabecinha dela contra o meu peito, sabe? Mas ela pegou a cabecinha da Estefani com força, ela chegou a dar um pulo de susto. Eu vi, e afastei a Estefani dela, não foi nem de propósito, meio que reflexo meu." (10º atendimento). Ela negou a importância do cuidado da equipe, mas seu comportamento pareceu demonstrar o contrário. Foi visto na supervisão que a mãe não conseguia sair bem do hospital. Mayara tinha gratidão à equipe, mas, para conseguir ir embora, ela precisava brigar.
Situação semelhante perto da alta aconteceu com Alice: "Tu sabes aquela Mayara?" Terapeuta: "Sim, sei." Mãe M.: "Ela pegou uma mágoa de mim, eu não entendo. Porque eu gosto muito da Fernanda. Ela teve alta ontem, eu não gosto que me acordem, sabe, eu sempre acordo meio mal-humorada. Bom, mas a Carla veio me acordar, tudo bem. Aí chegou Renata na sala e ela bem assim, a Renata não falou nada, e ela 'tu viu quem teve alta ontem, eu nem tô bem feliz, né'. E eu, meio que dormindo, meio irritada 'se tu continuar falando assim eu vou te pegar lá na rua e vou te quebrar'. E agora ela passou por mim e me deu um baita encontrão no ombro. Aí, louca, ela só pode ser meio louca." (4º atendimento).
Discutimos em supervisão que a briga de Mayara com Alice baseava-se na inveja que a primeira sentia da segunda. Alice encontrava-se mais inteira e organizada, formando sua família junto ao marido, o que despertava a inveja de Mayara. Além disso, Alice teve duas bebês, Mayara uma. No caso de Mayara, ter filhos representava uma mudança de status dentro de sua família. Pode-se pensar que ela, buscando alcançar um status superior, desejasse inconscientemente ter dado à luz gêmeos. Além disso, a competição em relação a mim mostrava a tendência de Mayara à repetição do comportamento competitivo e possessivo que mantinha com as pessoas fora do setting terapêutico. As irmãs são representadas pelas outras mães da UTI Neo e eu a mãe.
Ainda dentro do contexto do desentendimento entre as duas, a mãe verbaliza que não entendia o porquê de Mayara ter "encarnado em mim, eu não sei o que eu fiz para ela." Segue contando que fez tentativas de se aproximar dela, porém não obteve êxito. Mãe A.: "Mas ela pegou uma implicância assim. Teve até um dia que tava ela e o pai da Estefani, um guri! Tavam se agarrando na Sala de Pais e meu marido falou 'Olha, vocês não estão em casa, não dá para esperar para se agarrar em casa, hein?' Daí acho que ela já ficou meio assim. Mas não sei o que vou fazer, acho que vou esperar vir um dos pais dela para falar com eles. Eu não vou tá brigando, sujando a minha imagem. Porque a nenê dela tá bem, graças a Deus. E a Mayara fica com a guria ali, eu ouvi ela dizer para a Roberta 'é bom que ela não vá embora mesmo, não tenho nada para fazer em casa'. Ela não incentiva a filha a nada e ainda fala isso. E esses dias faleceu um bebê, no fim de semana, nasceu e já morreu. E ele era tão pequeno." (4º atendimento).
Discutimos na supervisão que o ambiente da UTI Neonatal suscita nas mães sentimentos primitivos e regressivos. Pode-se dizer que o "clima" entre as mães é regredido e acontece uma competição precoce: qual bebê é o maior; qual está entubado e qual respira sozinho; quem tem leite; ela teve gêmeos e eu não; a equipe dá mais atenção para um do que para o outro. Abre-se um espaço para sentimentos como raiva, inveja e competição em mulheres que estão muito fragilizadas, com uma estrutura de ego frágil para suportar. Discutiu-se a importância de falar a respeito desses sentimentos para que não sejam negados pela mãe. Caso não se consiga verbalizar, tais sentimentos podem se transformar em material tóxico. A mãe segue relatando tristeza ao observar e vivenciar o ambiente da UTI Neonatal.
Refletiu-se em supervisão a importância de trabalhar com esses sentimentos regressivos nesse momento. Em ambientes menos regredidos, isso não seria possível. Mesmo com todas as dificuldades ambientais, conversamos que é fundamental poder abordá-los nos atendimentos. Assim como ocorre com o fenômeno chamado de transparência psíquica (Bydlowski, 2002), discutimos na supervisão que os elementos do pré-consciente e do inconsciente chegam facilmente à consciência nesse delicado momento do puerpério
Discussão geral
Os resultados revelaram benefícios para as duas mães e seus bebês, mesmo considerando as diferenças nas características e conflitos que cada caso apresentava. No primeiro caso, por exemplo, a mãe mostrou-se mais regressiva, fragilizada e desorganizada, apresentando problemas na relação com sua filha, com o ambiente, além de dificuldades psíquicas em seu desenvolvimento emocional. Já no segundo caso, a mãe se mostrava mais organizada emocionalmente, com uma estrutura de ego mais fortalecida. Uma montanha-russa emocional, com altos e baixos, no escuro, na qual elas nunca sabem como será o dia de amanhã, são sentimentos comuns relatados pelas mães atendidas neste estudo.
Mesmo com particularidades tão acentuadas, as evidências sugerem que ambos os casos, em menor ou maior grau, se beneficiaram dos atendimentos baseados na clínica e teoria winnicottiana. No Caso 2, a mãe se sentiu acolhida em seus sentimentos e ressaltou no final da sessão o quanto fazia bem a ela conversar com a terapeuta. Tais achados corroboram o descrito na literatura sobre essa modalidade de atendimento. Segundo alguns autores (Khan, 2000; Abram, 2000), os encontros analíticos winnicottianos podem fluir baseados numa intimidade e confiabilidade, na medida em que o terapeuta consegue estar na relação terapêutica por meio de um manejo do setting, que, de forma semelhante às tarefas exercidas pela mãe ao apresentar o mundo para seu bebê, exerça as funções de holding, não intrusividade e silêncio.
Em ambos os casos, com mais ênfase no Caso 2, o atendimento clínico caracterizou-se principalmente pelo acolhimento, escuta empática e interpretações pontuais, ajudando as mães a falarem sobre seus sentimentos envolvendo a maternidade e a prematuridade, a relação familiar e conjugal, e as dificuldades nos cuidados e na rotina com as filhas. As interpretações pontuais também forneceram um holding emocional para as mães. Com isso, foi ocorrendo um alívio dos sentimentos de culpa decorrentes do nascimento prematuro, da ambivalência e hostilidade, reduzindo, assim, as projeções de sentimentos, sensações e fantasias nas bebês.
No decorrer do tempo, as duas mães tiveram algumas de suas necessidades acolhidas pela terapeuta, e puderam começar a se conectar com mais facilidade às necessidades físicas e emocionais das filhas e com suas próprias emoções, história de vida e cuidados. Winnicott (1945/2000) ressaltou que o analista deve dispor de toda a paciência, tolerância e confiabilidade da mãe devotada ao bebê. O autor entendeu que o terapeuta deve reconhecer que os desejos do paciente são necessidades e deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estar disponível, ser pontual e objetivo. Um exemplo disso, foi que, após algumas sessões da mãe do Caso 2, e perto da alta da mãe do Caso 1, ambas finalizavam os atendimentos demonstrando desejo de ver as filhas. Além disso, a mãe do Caso 2 parecia demonstrar cada vez mais desejo de compreender as necessidades das bebês.
As lembranças do passado e experiências de como foram cuidados estiveram presentes em ambos os casos, com mais ênfase no Caso 2. Mayara relatava nos atendimentos muita mágoa e rancor de sua mãe e da forma como havia sido maternada. Pesquisas mais recentes desenvolvidas sobre a clínica direcionada à parentalidade (Bydlowski, 2002; Stern, 1997; Zornig, 2012) destacaram que é necessário manter uma ponte entre a história atual e a pregressa dos pais para poder assim criar uma nova relação e abrir um espaço para o filho. Mayara trazia elementos de sua história como bebê, buscando criar um espaço para sua filha em sua vida; porém, a mãe parecia ainda não conseguir reconhecer a dívida simbólica geracional com a família.
Em relação ao sofrimento psíquico imposto pelo risco de perda das filhas, ambas as mães demonstraram profunda tristeza quando elas pioravam no decorrer da internação, fato que tem sido destacado na literatura (Schaefer & Donelli, 2017). A manutenção do setting num ambiente repleto de intrusões que permeiam os atendimentos de suporte às mães nesses momentos difíceis e de grandes oscilações só foi possível porque a terapeuta teve o suporte da supervisão, da terapia pessoal e domínio da teoria winnicottiana. Foi fundamental que a terapeuta mantivesse, na medida do possível, o setting constante internalizado. Dessa forma, toda incoerência, transformações, medos e verdades da terapeuta passaram a ser guias ao longo da trajetória com as mães e seus bebês. Como destacado anteriormente, isso só foi possível graças à supervisão clínica dos atendimentos e à terapia pessoal, que ajudou a compreender os sentimentos, e incentivou a terapeuta a confiar em si mesma e nas potencialidades das mães e suas bebês.
A incerteza e descontinuidade do ambiente da UTI Neo poderá provocar diversos sentimentos na mãe, tais como: seu bebê estará bem, ganhará peso, terá uma piora, estará vivo? O acolhimento e a escuta empática, inspirados no setting winnicottiano, trouxe benefícios para o fortalecimento da confiança das mães em seu potencial para superar as adversidades.
Para tanto, se faz necessário que o terapeuta permita que seu sensório sinta juntamente com as mães e os bebês, mas que sua mente também analise e organize essas vivências ambientais potencialmente intrusivas (Caron et al., 2011). Tal qual o conceito da experiência de mutualidade (Winnicott, 1954/1990), que se caracteriza por ser uma comunicação silenciosa, não verbal, entre a mãe e o bebê. A habilidade de comunicar-se está fundada, inicialmente, numa interação pré-verbal estabelecida por intermédio da "mutualidade" entre a mãe e o bebê (Winnicott, 1954/1990). A mutualidade ocorre quando a mãe se adapta às necessidades do seu bebê, por meio do holding, do ato de o bebê ser segurado por uma pessoa identificada com ele e que, por isso, possa lhe proporcionar os cuidados de forma adequada. Segundo o autor, essa é uma das comunicações que é mais importante que ocorram. Dessa forma, tal como os achados deste estudo sugerem, a mutualidade é uma comunicação de confiabilidade que protege de reações automáticas causadas por intrusões da realidade externa, reações essas que rompem sua linha de vida e constituem traumas (Winnicott, 1954/1990). Destaca-se a importância de que o processo terapêutico no setting permita a construção da experiência de mutualidade, mediante o fornecimento de sustentação psíquica, e algumas vezes física, para as mães e as bebês nos momentos de intensa carga emocional.
Tanto no Caso 1 como no Caso 2, observou-se que as mães acabaram construindo uma tolerância maior à frustração relacionada aos altos e baixos no quadro de saúde dos bebês. Porque se caso não tivessem, como iriam suportar essa rotina tão difícil? Os terapeutas que ingressam em um ambiente difícil como o da UTI Neo teriam a função de sombra diante da intensidade solar que atinge esse ambiente (Caron et al., 2011). Nesse sentido, é fundamental ter o setting internalizado, ser flexível e espontâneo, oferecendo um ambiente facilitador para o desenvolvimento emocional dos bebês e das mães (Caron et al., 2011). Em relação a isso, Winnicott (1947/2000) traz contribuições relevantes, destacando em sua teoria e clínica que a postura adotada pelo terapeuta deve ser de tolerância e confiabilidade, como uma mãe devotada ao seu bebê, que oferece um ambiente suficientemente bom para seu desenvolvimento emocional. Nesse sentido, o terapeuta deve saber reconhecer suas necessidades e querer dar o que o paciente realmente necessita, assim como uma sombra que protege dos fortes raios solares, principalmente na terapia de pacientes no estágio de regressão à dependência. Ele deverá estar disponível física e emocionalmente para seu paciente (Winnicott, 1953/2000, 1972/2010), assim como uma mãe suficientemente boa.
Neste estudo percebeu-se, ademais, que a alta hospitalar das bebês gerou ansiedade e preocupações profundas nas duas mães. Pode-se pensar que a atitude algumas vezes intrusiva, outras vezes distante da equipe em relação às mães contribui para o receio delas na volta para casa. A ambivalência de assumir todos os cuidados com as bebês numa hora e de delegar tudo para a mãe em outra pode ter gerado estresse nas mães, pois suas funções maternas ainda estavam se constituindo. Nesse sentido, após o período de internação, onde as demandas clínicas se fazem prioritárias, a equipe deve renunciar a se posicionar como boa e poderosa mãe (Mathelin, 1999).
A abertura de um espaço terapêutico com interpretações pontuais com efeito de sustentação e holding em momentos propícios foram as ferramentas eficazes para acolher as angústias das mães e promover mudanças.
Evidenciou-se que os atendimentos ajudaram de alguma forma as mães e suas filhas, aliviando a angústia, abrindo espaço para elaborações, revelações, reconfigurações, construções de sonhos e planos. Desse modo, a terapia torna-se uma nova oportunidade de amadurecimento emocional do indivíduo (Winnicott, 1954/2000). A aceitação das mães e bebês por parte da terapeuta, incluindo limitações na própria relação mãe-bebê, dificuldades emocionais e financeiras, parece ter ajudado as mães a também aceitarem sua ambivalência em sua totalidade. Como destaca Gutman (2016), ao em vez de conselhos, as mães precisam de pontos de apoio para sustentar suas próprias referências internas, sua própria essência; e a melhor maneira de a mãe entrar em harmonia com o seu bebê é ela ser sincera consigo mesma, admitindo seus sentimentos ambivalentes e hostis.
A abordagem winnicottiana usada neste estudo buscou a valorização dos esforços, recursos e potencialidades maternos. Nessa direção, Winnicott (1964/2006) destacou que a melhor forma de ajudar as mães é reforçando a confiança em si mesmas e em sua capacidade de cuidar de seu bebê. Assim, o melhor a fazer nesse momento sensível do puerpério é não tentar ensinar às mães como cuidar de seus bebês, mas, sim, incentivá-las a conhecer seus bebês e reconhecer sua própria habilidade em atender às necessidades do filho (Winnicott, 1964/2006).
Além disso, os atendimentos clínicos deste estudo também incluíram as bebês. A terapeuta falava em voz baixa com as bebês, na presença das mães. A terapeuta fazia perguntas às bebês, tentava traduzir seu choro e suas expressões, sempre incentivando a mãe a participar, além de reagir positivamente diante de suas manifestações, como sugerido na literatura (Dolto & Nasio, 2008).
Cabe destacar que a supervisão clínica foi fundamental para ajudar na elaboração de sentimentos transferenciais e contratransferenciais. Criou-se um espaço de escuta continente e acolhedora, na qual a terapeuta confiava seus receios, sofrimentos e alegrias. Na medida em que se foi elaborando e reconhecendo tais sentimentos, foi possível ajudar efetivamente as mães e suas filhas.
Considerações finais
Com os resultados do presente estudo, constatou-se que o atendimento clínico se constitui como uma prática complexa, que, por exigir muito do terapeuta, requer formação psicanalítica winnicottiana, terapia pessoal e experiência profissional. Assim, a questão da confiança do indivíduo no ambiente e da confiança do ambiente no potencial de amadurecimento e singularização de cada indivíduo é fundamental para a prática dessa técnica. Os sentimentos da terapeuta passaram a ser guias ao longo da trajetória com as mães e seus bebês. Destacou-se que, para que isso fosse possível, foi indispensável a supervisão clínica dos atendimentos, que ajudou a compreender os sentimentos, e incentivou a terapeuta a confiar em si mesma e nas potencialidades das mães e suas bebês. As feridas, os temores que nos atravessavam - tanto as mães, como a terapeuta - de não saber o que nos aguardava no dia seguinte, na verdade revelaram o que em nós estava vivo, e, portanto, nos fazia seguir adiante. Acredita-se que foi a partir desse ponto que a construção do vínculo terapeuta-mãe-bebê foi possível. Por fim, reitera-se a dificuldade e a riqueza que esta experiência pode proporcionar, tanto pessoalmente quanto profissionalmente.
Em relação à técnica em si, percebeu-se que o setting hospitalar e o momento delicado no qual as mães se encontravam permitiram que se tivesse acesso aos conflitos, dificuldades e potencialidades de cada mãe e seu bebê. Dentre as limitações do estudo está a duração do atendimento. Percebeu-se que um número fixo de sessões pode não ser o mais adequado para determinados funcionamentos psíquicos mais regressivos. Além disso, observou-se que os atendimentos podem ser mais efetivos se forem trabalhados em equipe, que entendessem o porquê da abordagem teórica/técnica aplicada. Uma sugestão que mereceria ser abordada em novos estudos refere-se ao acompanhamento e treinamento de equipes que trabalham na UTI Neo, visando a construção de um trabalho trans e interdisciplinar com a psicologia.
O setting da UTI Neo expõe e testa o terapeuta intensamente em sua postura ética e técnica, exigindo uma atitude neutra, porém ativa, em relação à equipe. Nesse sentido, é importante que os serviços que atendem as mães e bebês nas UTIs Neo trabalhem conjuntamente, e articulem seus objetivos na mesma direção. Tal trabalho deve consistir em atender clinicamente o bebê, apoiar emocionalmente a mãe em suas funções maternas, contribuindo para sua relação e cuidados para com o bebê, além de prepará-los para a alta hospitalar.
Para ser efetivo na ajuda às díades no contexto da prematuridade, sugere-se que o terapeuta tenha uma boa formação psicanalítica, winnicottiana de preferência, e tenha experiência em psicoterapia convencional com mãe/bebê. Com as mães é fundamental ser ético, sutil, sensível, empático, não intrusivo, porém incentivador das potencialidades singulares de cada uma delas, não ter pressa e sim respeitar o ritmo de cada díade, entender que o corpo-psiquismo do terapeuta será usado como instrumento e que volta e meia será invadido por sentimentos primitivos, além de ser tolerante às frustrações inerentes ao processo. Este é facilitado quando o terapeuta tem domínio sobre a teoria e a técnica winnicottiana, para o uso da qual a supervisão clínica é fundamental. Talvez possamos, a partir daí, dar conta de um ofício que exige a constante tarefa de cavar em si, o si-mesmo, "que torna fecundo a arte de cair em si para reencontrar-se com a transitoriedade desta unidade singular que diz: Eu Sou" (Figueiredo, 2011, p. 27).
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Recebido em 23 de setembro de 2021
Aceito para publicação em 07 de março de 2022
Este estudo teve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1 Para fins deste estudo, a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal será denominada UTI Neo.
2 Todos os nomes foram trocados, para evitar identificação dos participantes.