Introdução
Este artigo visa expor um posicionamento teórico, ético e político sobre o que Lacan denominou no desenvolvimento de seu ensino como desejo do psicanalista. O posicionamento é teórico porque implica a importância dos conceitos da psicanálise pensados na contemporaneidade; é ético porque eles envolvem a direção de um processo analítico; e é político porque envolve as implicações do neoliberalismo na experiência contemporânea do gozo no consumismo de massa.
O neoliberalismo pode ser entendido como um sistema almejado por algumas sociedades contemporâneas em que o Estado tem – ao menos em teoria – pouca ou mínima participação na engrenagem econômica, deixando a cargo do livre mercado e do consumo a regulação da organização social, econômica e política. Prepondera aí a presença do capital no âmbito da acumulação conforme o consumismo de massa globalizado, em que a produção e o consumo são atributos de organizações privadas com fins lucrativos de ordem transnacional. O neoliberalismo ganhou força nos anos 80 do século passado, quando o capital internacional passou a ter uma atuação mais agressiva nas sociedades de consumo e livre mercado (Dunker et al., 2020).
Por sociedade de consumo, entendo o modus operandi da existência humana no socius baseado no ideal de consumo de mercadorias. Essa lógica é pensada por autores como Don Slater (2001), Fietherstone (1995) e Baudrillard (1995), que destacam importantes modificações desde o século XVII na forma como as pessoas se relacionam com as produções artificiais. Como afirma Lígia Barbosa (2010), “O consumo na sociedade moderna se tornou uma atividade individual, uma expressão de um dos valores máximos das sociedades individualistas – o direito de escolha” (p. 24). Nesse contexto, as posses de objetos valorizados pela tradição familiar de longa durabilidade são cada vez mais substituídas por objetos de moda de menor durabilidade – o que ocorre especialmente com a revolução industrial. Na contemporaneidade, como afirmam alguns autores como Baudrillard, são cada vez mais descartáveis não apenas os objetos de consumo, como as próprias relações interpessoais, interprofissionais etc., cujos laços de amor, amizade e cidadania passam a ser expressos pela linguagem de consumidor (Barbosa, 2010).
Em meio a isso, a ética psicanalítica envolve a maneira como um sujeito lida com a incidência das formas de gozo e seus imperativos diante do desejo – o que toca a experiência do consumo que implica o sujeito do inconsciente no campo sócio-político. Dito de outra forma, o neoliberalismo, impulsionado pelo consumismo de massa cada vez mais pregnante na atualidade, se acha relacionado, até certo ponto, ao consumo constitutivo de toda experiência psíquica na relação ao Outro: a introjeção com sua faceta mais pregnante do devoramento, ou como colocava Freud, do canibalismo da pulsão oral. Trata-se de um fator crucial que implica a relação entre gozo e consumo. Quais as ressonâncias disso na atualidade, quando falamos de sujeito do inconsciente? Qual o lugar da clínica psicanalítica perante essas ressonâncias?
A noção de gozo tem em Lacan relevância fundamental, e podemos localizar suas principais referências e avanços nos seminários 7, 16, 17 e 20. Tomarei aqui a definição fundamental do gozo como caminho para a morte que aparece no seminário 17 (Lacan, 1970/1992), no qual Lacan relaciona a experiência do gozo e sua perda com a espoliação do trabalho. O gozo pode ser entendido como uma experiência em que a satisfação excede o prazer em função de uma demasia. Trata-se da experiência de todo sujeito em termos de acumulação e perda desde os primeiros encontros com o Outro. Para Lacan, a engrenagem capitalista implica uma economia libidinal, em que a mais-valia marxiana é o eixo do avanço de seu pensamento. Há para Lacan (1969/1992) uma homologia entre a espoliação do trabalho e a espoliação do gozo na lógica da mais-valia. Essa lógica, além de produzir espoliação, impele todo sujeito a recuperar o gozo perdido: recuperação que o sistema de consumo oferta como solução derradeira para a renúncia primordial. Extraio aqui uma passagem de Safatle (2020), em que ele define bem essa engrenagem:
Lacan compreenderá que o capitalismo nunca poderia ser um modo de existência fundado na simples renúncia ao gozo. […]. O capitalismo se funda no que Lacan chama de espoliação do gozo, ou seja, na inscrição de seu excesso e desmedida no interior das dinâmicas de reprodução social. (p. 68)
Esse apontamento de Safatle segue a afirmação de Lacan de que “O que distingue o discurso do capitalista é isto – a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico […] a rejeição de que? Da castração” (Lacan, 1923/2011, p. 96).
Dito de outra forma, se a articulação significante produz uma cota de renúncia na constituição civilizatória, o capitalismo neoliberal, fomentado pela cultura do consumo, promete que esse gozo possa ser acessado diretamente e não mais renunciado. Trata-se de uma promessa que alimenta os imperativos de gozo do supereu, hoje menos em função da renúncia e mais em função da acumulação e do excesso. Como veremos, a força superegoica hoje se dirige mais a objetos externos do que ao eu, o que implica uma diferença na economia libidinal ligada à promessa capitalista.
Apesar de haver algumas nuances diferenciais entre o capitalismo industrial – que perdurou desde o século XIX até o pós-guerra – e o neoliberalismo pós-industrial que ganhou força nos anos 80, a questão da economia libidinal se coloca para a psicanálise desde o momento em que o capitalismo contou com o modus operandi da mais-valia atrelada ao consumismo de massa. Após a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o neoliberalismo passou a tomar uma feição mais específica e agressiva no arranjo das formas de economia e livre mercado impostas ao mundo e às nações.1 A passagem de um capitalismo industrial para o neoliberalismo, em que predominam as forças da livre concorrência sem mediação do Estado e especialmente dos imperativos de gozo relacionados a isso, leva a uma conformidade de coisas que marcam novas formas de estar no mundo e maneiras de gozar muito específicas, como veremos.
Autores contemporâneos como Anselm Jappe (2021), Byung-Chul Han (2021), Robert Dufour (2005), Pierre Dardot (2016) e outros debatem – de maneira heterogênea, cada um com seu enfoque – sobre a concepção de que o neoliberalismo não é apenas um modo de economia política que conta quase exclusivamente com o laissez-faire para a solução dos problemas da humanidade. Não é somente, também, uma forma de organização social baseada num sistema econômico. Trata-se, no neoliberalismo, segundo esses autores, da produção de um modo de estar no mundo, implicado radicalmente na própria constituição da subjetividade de uma época.
O que pretendo aqui, do ponto de vista da psicanálise, é situar o lugar da clínica perante os imperativos superegoicos e suas implicações sintomáticas na engrenagem da cultura do consumo presente na sociedade contemporânea – levando em consideração que a teoria do sujeito do inconsciente é sempre intrínseca à constituição da cultura em seu caráter estrutural. Friso desde já, entretanto, que não cabe à psicanálise realizar um “diagnóstico” sobre a sociedade contemporânea, como se a aquela fosse capaz de localizar todos os problemas da nossa conjuntura social. Tampouco cabe a ela ofertar soluções para os problemas da humanidade neoliberal. Supor que a psicanálise seja capaz de dar conta dos problemas da sociedade contemporânea e de dar respostas últimas e unívocas sobre isso seria um contrassenso psicanalítico. Afinal, foi o próprio Lacan (1970/1992) que afirmou a subversão psicanalítica, na medida em que a psicanálise se concebe como um discurso que não apresenta solução.
Trata-se de discutir de dentro da psicanálise, portanto, a implicação do sujeito do inconsciente na própria marcha neoliberal e os efeitos possíveis do desejo do psicanalista na engrenagem do consumo intrínseca à experiência do sujeito do inconsciente pensando por uma lógica clínica. Se a psicanálise opera efeitos de resistência na polis contemporânea – como tratarei de discutir neste artigo – isso não significa que ela seja capaz de resolver os problemas da humanidade.
Viso, assim, abordar a lógica do consumismo de massa ligado aos imperativos de gozo superegoicos, em que o desejo evanesce numa certa tentativa de suspensão da experiência da divisão constitutiva do sujeito do inconsciente face a um empuxo ao gozo que, em última análise, conduz à morte. O imperativo de gozo, assim definido por Lacan no avanço de seu ensino, está ligado à instância superegoica que força a experiência de excesso para a obtenção de uma satisfação além do princípio do prazer. Veremos adiante que o supereu, sempre com sua força sádica, massacra o sujeito na visada do excesso: seja o excesso de punição ligado à renúncia apoiada no ideal do eu da época de Freud (calcado na figura do pai), seja o excesso de consumo de objetos hoje imputados pela mesma força superegoica. As diferenças na forma como o supereu opera na atualidade serão explicitadas no desenvolvimento.
Na esteira da consideração de Lacan (1923/2011) de que a lógica capitalista promete a foraclusão da castração, pensemos o lugar da ética na apreensão clínica intrínseca à emergência da divisão do sujeito. E, para pensar o que seja da ordem da clínica e seu lugar frente a isso, trago o que Lacan evidenciou como um dos cernes da práxis analítica, com sua afirmação de que “[…] o desejo do psicanalista é o desejo de obter a diferença absoluta” (Lacan, 1964/2008, p. 267).
É partindo desses balizadores psicanalíticos e sociológicos que o presente trabalho visa pôr em cena o lugar que o desejo do analista ocupa e o ponto crucial de sua operação na relação entre sujeito do inconsciente e sociedade do consumo. Este artigo visa percorrer esse caminho à luz do desejo do psicanalista.
O que o analista deseja?
Lacan cunhou a noção de desejo do psicanalista fundamentalmente para pensar sobre a posição que o analista ocupa no processo de uma análise, partindo do problema da contratransferência. Fazendo uma crítica ao uso da contratransferência como técnica da análise, Lacan afirma que não cabe ao analista interpretar o analisante a partir de seus próprios sentimentos naquilo que o primeiro desperta. Não se trata de uma relação entre dois egos, mas da relação entre o sujeito, seu inconsciente e aquele que está em posição de causa – o analista. Definindo o desejo do sujeito como desejo do Outro, Lacan entende o desejo do psicanalista numa lógica de perda e operação de causa conquistada na análise do próprio analista, característica do que ele denomina objeto a – a parte perdida do eu/outro (autre) que impede a plenitude e causa desejo. Lacan salienta no seminário 8 que, enquanto o desejo do Outro é desejo de desejo – e não de alguma coisa – o desejo do analista funciona como um espaço vago para que “o desejo do paciente se realize como desejo do Outro” (Lacan, 1960-1961/2012, p. 137). Direciona o sujeito, assim, a se haver com sua própria determinação inconsciente. A emergência da divisão do sujeito em análise o leva a deparar-se com a estrutura lógica da diferença imposta pela cadeia significante: o sujeito é diferente de si mesmo. O sujeito emerge a partir da fala como dividido, diferente de si mesmo e desejante. Nesse sentido, o analista não se presta a funcionar como um sujeito, nem como um grande Outro, mas como espaço vago para a atualização da fantasia do analisante, de forma a fomentar o trabalho da análise (Lacan, 1960-1961/2012).
No seminário 11, Lacan define o desejo do analista como um desejo de obter a diferença absoluta: diferença real com a qual o sujeito se depara ao fazer a travessia de sua fantasia inconsciente. É visando obter a diferença absoluta – e não a identidade fechada num imaginário narcísico – que o analista opera com seu desejo.
Ou seja, o desejo do psicanalista é o de causar a análise, de modo que o sujeito possa produzir algo radicalmente singular em seu percurso, perdendo gozo e potencializando o desejo. A diferença absoluta, desejada pelo psicanalista, implica a abstinência de seu próprio ser no ato psicanalítico. Nesse sentido, o desejo do analista coloca em suspenso seu próprio ser e seus próprios ideais narcísicos para que a análise aconteça, fazendo com que o sujeito entre no trabalho de análise, de modo que este se faça valer da diferença real a partir da operação do significante.
Veremos o lugar crucial que o desejo do psicanalista ocupa na contemporaneidade quando nos referimos aos percalços do sujeito em sua relação com o gozo e seus imperativos. O estatuto do supereu hoje, bem como as defesas contemporâneas e os sintomas daí decorrentes, serão objeto de nossa perquirição adiante, de forma a discutir sobre a função da clínica psicanalítica não apenas na acepção de um tratamento psíquico, mas na própria acepção política que essa diferença absoluta opera na relação intrínseca entre sujeito e laço social.
Pensemos essa questão partir de novos achados sobre uma defesa que desponta na relação do sujeito com a privação na atualidade, segundo as questões que a sociedade de consumo impõe no capitalismo neoliberal de hoje, tal como abordarei em seguida.
Uma defesa contemporânea: o desmentido da privação
Desde Freud (1930/1996), entendemos que toda civilização se acha calcada sobre uma renúncia pulsional. Uma perda fundamental que se inscreve como condição dos laços amorosos e sociais. Disso a psicanálise extrai o que há de mais precioso quando toca a radicalidade do desejo. Pensar essa lógica na civilização atual requer de nós uma certa torção sobre aquilo que implica a renúncia pulsional e o desejo, pois, como foi dito anteriormente, o capitalismo funciona como se essa renúncia pudesse ser dissipada, erradicando-se o mal-estar. Pensemos isso a partir de aportes psicanalíticos que possam lançar luz sobre essa problemática.
Para Lacan, leitor de Freud, o desejo se dirige a outro desejo, não a um objeto, como já salientamos. O desejo não é articulável, dizia Lacan. Mas ele é articulado pelo significante que produz o deslizamento do sujeito numa cadeia (1957-1958/1999).
O avesso do desejo é o supereu, sedento e guloso (Ambertín, 2009). É importante que se chame atenção para essa gula. Como demonstra Lacan (1959/1997), não se pode reduzir o supereu à moral. O supereu é uma força bárbara, uma lei insensata que massacra e empurra o sujeito ao sofrimento e ao excesso. Seja o excesso do masoquismo moral, seja o massacre da gula feroz que tudo visa na lógica pulsional, o supereu está sempre massacrando e empurrando para a morte. Quanto mais o sujeito acata a exigência superegoica, mais o supereu ganha força.
O obsessivo, por exemplo, é alguém que sofre por desejar o impossível. Por exemplo, ler todos os livros (devorá-los), e não apenas alguns. Eis aí a legislação insensata do supereu como próprio avesso desse desejo impossível (a outra face da mesma moeda). O supereu opera aí obrigando o sujeito ao devoramento. Sobre isso, Lacan (1974/2003) dizia de maneira precisa: “A gula com que denota o supereu é estrutural, não efeito da civilização, mas mal-estar (sintoma) na civilização” (p. 52).
Essa gula feroz, insensata e obscena do supereu é estrutural, mas a forma como ela se manifesta pode passar por modificações. Na cultura atual, a gula superegoica emerge cada vez mais articulada às engrenagens da sociedade de consumo.
A questão do consumo e sua relação com a subjetividade não se circunscreve no desenho contemporâneo apenas. Desde o século XVII, as mudanças na forma como o ser humano lida com o consumo modificam a relação com a liberdade, com o individualismo e as formas de satisfação, de acordo com autores como Baudrillard (1995) e Sennett (2006), cada qual à sua maneira. De modo geral, os principais autores que trabalharam a noção de “sociedade de consumo” no campo da sociologia advertem para o fato de que o ser humano é insaciável (Barbosa, 2010). Afirmam que essa constatação da insaciabilidade humana pode ser apontada pela sociologia, mas não explicada por ela.
A psicanálise tem algo de muito preciso a dizer sobre isso. Ela evidencia a relação entre o desejo e os imperativos de gozo. Pensar isso no contemporâneo é tarefa sobre a qual a psicanálise não pode se furtar.
Em 2016, cunhei o termo desmentido da privação (Quintella, 2016)2 para pensar sobre uma defesa contemporânea que implica essa relação intrínseca entre desejo e gozo. O conceito-chave para pensar essa defesa é o de privação em Lacan, que nos abre um vasto campo de discussão sobre a relação do sujeito com o excesso nos dias de hoje. O desmentido da privação é uma defesa contemporânea ligada à perda de referências simbólicas sustentadas pelo ideal do eu. Na ocasião, frisei que na clínica atual aparecem casos em que o sujeito não toma a figura “assimétrica” do pai como um ideal do eu. Trata-se hoje de um desnorteamento do sujeito perante a evanescência dos ideais de eu. Os modelos ideais hoje perdem lugar de norteamento na relação com a satisfação pulsional; eles desvanecem, ou não assumem valor para muitos sujeitos na clínica atual.
Ora, o Édipo declina com a formação do ideal do eu. Com Lacan, fica evidenciado que o ideal do eu é movido pela privação edipiana. Essa articulação não é nada desprezível e deve ser evidenciada para uma reflexão mais profunda sobre a subjetividade atual. Trata-se de evidenciar a condição fracassada do pai privador – aquele que abriria caminho para o ideal do eu. Essa dificuldade de introjeção simbólica de um ideal do eu está implicada de maneira decisiva na defesa contemporânea que toma a privação como elo da articulação sintomática. Com efeito, a defesa opera desmentindo toda e qualquer privação, empurrando o sujeito a uma busca ensandecida por mais e mais satisfação pulsional.
Para pensar sobre a defesa em questão, caminhamos com Lacan no estudo detalhado dos três tempos do complexo de Édipo, tema a ser aqui retomado de maneira resumida.
O primeiro tempo é o da inscrição da lei simbólica; o segundo tempo é o da onipotência do pai privador que dá suporte à lei, empurrando o sujeito para o ideal do eu. Com efeito, a privação é um motor do ideal do eu e se acha intrinsecamente ligada a ele. O terceiro tempo é aquele em que há o declínio do complexo de Édipo, quando a criança retoma a lei pela assunção do ideal do eu.3
A defesa em questão se acha localizada na passagem do segundo para o terceiro tempo. Defendemos nesta tese que a lei, tendo sido inscrita no primeiro tempo, perde força, ou perde eficácia, na medida em que o ideal do eu se acha hoje no extremo da evanescência (Quintella, 2018).
Como afirma Žižek (2016), o pai não é mais colocado em lugar de ideal – suporte da lei que confere ao sujeito sua eficácia. O mesmo autor afirma:
É disto, portanto, que se trata a eficácia simbólica: ela diz respeito a um mínimo de “reificação” em razão da qual não basta todos nós, os indivíduos em questão, sabermos um fato para que ele se torne operativo – a instituição simbólica também deve saber “registrar” esse fato para que se sucedam as consequências performativas do ato de afirmá-lo. (Žižek, 2016, p. 343)
Aqui se localiza a distinção entre o pai como uma lei simbólica e o pai como um ideal do eu: não obstante essas duas coisas se relacionarem, são diversas (Quintella, 2014). Nisso encontramos um importante elo de concepção que nos conduz a uma saída do escolho teórico-clínico com respeito ao sujeito contemporâneo. Conforme Lacan evidencia, a castração se acha vinculada à lei simbólica, enquanto a privação se acha vinculada ao ideal do eu. É aí que a questão da reificação apontada por Žižek se localiza: a lei e a castração se acham inscritas no simbólico, mas é necessário que isso ganhe um referendo (“um mínimo de reificação”) para que a operação de sua eficácia nos laços sociais ganhe força.
Ou seja, é preciso que a lei simbólica ganhe um referendo para que ela alcance alguma eficácia. Se a lei se inscreve no primeiro tempo, é o pai privador no segundo tempo que tem a função de torná-la eficaz. Tal eficácia ganha força na passagem do segundo ao terceiro tempo, em que o ideal do eu se erige a partir da privação. Mas nem sempre o Édipo se dinamiza dessa forma: na atualidade essa passagem do segundo para o terceiro tempo – do pai privador ao ideal do eu – se acha modificada. Podemos observar que o declínio do pai como ideal do eu na sociedade contemporânea do consumo define aí o ponto mesmo em que a privação se acha posta em xeque.
Cabe então ponderar que na atualidade o pai, em muitos casos, não funciona como suporte da lei (não a “suporta”), não obstante a presença dela, implicando uma ruptura precoce com o ideal do eu. Definir uma posição diante do desejo se torna, nessas condições, uma tarefa ainda mais difícil, quando o que se vê é um sem-fim de ofertas sociais e mercadológicas que funcionam desmentindo a privação e tentando afrouxar o interdito; objetos tão fugazes que dificultam muitas vezes a sustentação do próprio desejo na cultura.
É importante salientar que o que está em questão é o traço do ideal do eu captado de um pai a princípio potente e privador, um pai que é suposto detentor do falo – lugar de exceção, que norteia o caminho para a identificação ao ideal do eu. É exatamente nesse ponto que insistimos a respeito das nuances desse “fracasso”, dado que a falha no Outro é estrutural. A carência do pai salientada por Lacan implica que as falhas da estrutura sejam, elas mesmas, constitutivas do desejo, do gozo e do ideal do eu. Pôr o pai no lugar de ideal não significa que não haja carência simbólica, dado que a falha é estrutural. Com efeito, sendo a falha no simbólico constitutiva do sujeito, o que muda não é propriamente a estrutura do simbólico, mas a forma como se lida com a falha. Na modernidade era a instauração do ideal com seus alvos de contestação, sobrevindo o sintoma como metáfora do desejo; na contemporaneidade, a falência da autoridade, sobrevindo a fugacidade do ideal na relação com o gozo.
É o pai privador o cerne dessa problemática – o que faz da privação uma questão para o sujeito contemporâneo. O desmentido aqui recai sobre a privação, afastando o sujeito da identificação ao ideal do eu. Não se trata de desmentir a lei como ocorre na perversão, mas de desmentir a força do pai privador no segundo tempo do Édipo, um modo neurótico de defesa que joga o sujeito na direção de um flerte com a morte. Essa circunstância está implicada em experiências de excesso, compulsões, experiências-limite; em todas elas, guardadas as especificidades de cada uma, o sujeito responde aos impasses da vida como se a privação real não existisse.
Nesse sentido, o desmentido da privação não é exatamente ausência da privação, mas uma defesa contra a castração que toma a privação como alvo. Ao desmentir a privação, o sujeito é tomado mais fortemente por um imediatismo da satisfação pulsional característico de uma nova forma de empuxo ao gozo. Nessa conjuntura, o massacre do supereu não se volta para a comparação entre o eu e seu próprio ideal – a figura do pai –, tal como Freud descrevia quando falava do sintoma e das forças superegoicas (Freud, 1933/1996).
Eis a importância de se distinguir supereu de ideal do eu. Num primeiro momento, Freud concebia os dois como sinônimos. Com o avanço de seu pensamento (Freud, 1933/1996), podemos perceber a distinção – e isso será retomado por Lacan de maneira rigorosa. No avanço de seu pensamento, Freud define o supereu como uma pura cultura da pulsão de morte (Freud, 1930/1996). O ideal do eu seria um norteador das identificações edipianas, destinando a força do supereu para aplicações menos devastadoras na relação com o desejo, de forma a apaziguá-lo. O supereu seria, sob essa lógica, herdeiro do complexo de Édipo, forçando o sujeito a encontrar caminhos norteadores para as identificações e para a constituição de valores morais calcados no ideal do eu. Quando supereu e ideal do eu se acham atrelados, constituem-se esses norteadores para a aplicação da libido e a sustentação do desejo.
Ao mesmo tempo, na medida em que o supereu é cultura da pulsão de morte, esse atrelamento entre as duas instâncias deflagra também aspectos destrutivos e sádicos do supereu contra o eu. Ao comparar o eu com seu próprio ideal, o supereu o massacra e culpabiliza, acusando-o pelo fato de não conseguir alcançá-lo. Ali se localiza a aplicação do sadismo sobre o eu e a necessidade insensata de punição. O masoquismo moral vem aí dar o peso desmedido e destrutivo da força superegoica em sua face devoradora e massacrante. Assim, o supereu obriga o sujeito a alcançar esse ideal, na mesma medida em que o acusa de não poder alcançá-lo, alimentando o masoquismo e a necessidade de punição (Freud, 1923/1996).
É importante que destaquemos isso. O ideal do eu tem uma função de apaziguar o supereu. Paradoxalmente, em alguns momentos, o supereu volta seu massacre contra o eu em função do mesmo ideal. Quanto mais o ideal do eu é rígido e pré-definido, mais o supereu tende a massacrar o eu mediante o masoquismo moral.
Hoje o supereu encontra menos respaldo nos valores e crenças sustentadas por um ideal mais rígido para infligir sua punição ao eu e satisfazer o masoquismo moral. Na atualidade, em alguns casos, o supereu opera quase sem referência no ideal do eu. A força agressiva na relação à autoridade do pai em posição de ideal do eu, tal como Freud (1930/1996) a descrevia, passa a ser dirigida menos ao eu e mais violentamente dirigida a objetos externos, na forma da compulsão aos alimentos, ao consumo de mercadorias, às drogas, ao sexo etc. Como salientei alhures (Quintella, 2016), essa lógica visa desesperadamente à introjeção que, de outra feita, seria ancorada no ideal do eu. Diante do pai negado como ideal, há nesses casos o desmentido da privação, num movimento defensivo que tem como objetivo último desviar-se da castração. As impulsões/compulsões aparecem como uma resultante sintomática da defesa em questão.4
É notável a forma como o desmentido da privação transforma a maneira como o sujeito lida hoje com o excesso: diferentemente do sujeito que se pune em função da renúncia ao desejo e do ideal do eu calcado na figura do pai, hoje, ainda que referenciado na inscrição da lei simbólica, o sujeito age como se pudesse tudo – o que o faz “parecer-se” com um sujeito perverso. Há um impulso à fruição, como se a satisfação absoluta estivesse à mão, diretamente disponível nos círculos sociais, ou acessível numa vitrine. É como se o sujeito pudesse sair pelos espaços sociais e realizar cada um de seus anseios pulsionais. Contudo, não o faz sob o cálculo perverso, mas o faz impulsivamente, ou mesmo compulsivamente; por exemplo, impele-se ao sexo sem implicar-se com o outro, ou droga-se sem encontrar o limite entre o prazer e o gozo, entrando num circuito compulsivo e por vezes violento, num movimento que extrapola a experiência do prazer. Na nova defesa contemporânea – desmentido da privação – o sujeito atira-se a um imperativo que implica outro tipo de relação subjetiva com a questão do limite, diferente daquela que preponderava na época de Freud.5
O desmentido da privação está de cabeça implicado na lógica da sociedade de consumo, especialmente aquela do final do século XX e início do século XXI. O declínio dos ideais evidencia de forma patente essa defesa contemporânea: é o pai privador que abre caminho para o ideal do eu. Como salientei anteriormente, hoje os ideais se acham cada vez mais evanescentes, fugazes. A velocidade com que a realidade social se modifica, implicada também na velocidade das informações midiáticas, se relaciona com essa dificuldade do sujeito contemporâneo em fixar um ideal de eu. Quando se constrói um ideal respaldado na figura de alguém capaz de representar um lugar de autoridade, ela rapidamente evanesce, e o sujeito se desnorteia quanto à aplicação de suas posições sexuais e desejantes. A saída, muitas vezes, é o desmentido da privação que leva o sujeito a tomar como único modelo ideal o gozo de objetos. Isso tem consequências cruciais quando falamos de sujeito contemporâneo.
Para avançar sobre a relação entre consumo e privação desmentida, passaremos ao estudo de um autor contemporâneo – Byung-Chul Han – que aborda com veemência alguns efeitos subjetivos da sociedade de consumo. O principal deles: a ideia de que vivemos um “inferno do igual”. A relação disso com o desmentido da privação e o imperativo superegoico será abordada adiante.
Inferno do igual na lógica do consumo
Antes de entrar diretamente na discussão sobre o lugar que o desejo do analista ocupa no seio dessas questões, é fundamentalmente necessário que as articulemos com os modos pelos quais a subjetivação de hoje se situa perante a sociedade de consumo – sem o que os resultados desta pesquisa não poderiam se realizar.
Em seu livro Agonia do Eros, Byung-Chul Han (2017) afirma que vivemos hoje um “inferno do igual”. Han suscita ali a reflexão sobre as implicações de um “sujeito do desempenho” na conjuntura neoliberal, desatado da possibilidade de viver a radicalidade da experiência amorosa, seu atopos. Trata-se da exterioridade/alteridade do outro como condições de possibilidade de viver efetivamente a experiência amorosa, que tende a ser posta “em suspenso” na sociedade de consumo. O atopos do amor6, tal como Sócrates o concebia – a exterioridade radical do outro que fascina no amor –, fica retraído na sociedade de consumo (Han, 2017). O autor toma de Sócrates a ideia de atopia para pensar sobre a alteridade conflagrada numa dialética da negatividade, inspirada em Hegel. Para Han, a cultura atual não admite essa negatividade atópica do amor. Ele afirma que “estamos constantemente comparando tudo com tudo, e com isso nivelamos tudo ao igual, porque estamos perdendo de vista justamente a experiência da atopia do outro” (Han, 2017, p. 9).
Isso que ele denomina outro atópico é uma “negatividade” – no sentido de “não ser igual ao eu”. Esse não-eu, fundamental na dialética, se retrai frente ao consumismo de massa. “Hoje a negatividade está desaparecendo por todo lado. Tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo.” (Han, 2017, p. 9)
O outro que fascina no amor “se retrai à linguagem do igual” (Han, 2017, p. 9). Para que haja amor é preciso que, como amante (erastes), eu negativize meu próprio ser no outro amado (eromenos): o amor implica o desejo e sua relação com a falta; como indagava Sócrates em seu diálogo com Agatão no Symposium de Platão, o amor é amor de alguma coisa. E o desejo, na medida em que se articula com o que não se tem, implica uma falta fundamental.
É o que Jacques Lacan exalta como sendo o cerne da constituição desejante e das ressonâncias disso na experiência amorosa. Se, por um lado, no amor o sujeito tenta no outro uma resposta sobre o seu próprio ser, narcisicamente, por outro lado no amor tomado em sua radicalidade, tal como colocado por Han, há algo que ultrapassa o narcisismo: confronta a própria negatividade – não-eu, outro atópico. Do ponto de vista de Lacan, trata-se do amor que permite eticamente a via do desejo: não se trata na experiência amorosa somente da visada narcísica, mas de algo que a ultrapassa (Amaral & Costa, 2020).7 Da mesma forma que não há vida sem morte, não há amor sem castração, sem alteridade, sem diferença – tal como afirma Badiou em seu livro Elogio ao amor (Badiou & Truong, 2013). E apesar de Freud (1915/1996) inicialmente pensar que o ódio coincide com a “exterioridade”, deixando a Narciso a fecundidade de Eros, foi o próprio Freud (1930/1996), na segunda teoria pulsional, quem observou que a primeira fascinação – condição fundamental do amor – é dirigida a um objeto externo – o seio. Essa satisfação siderada e infantil permite que, para além da introjeção do objeto no eu, algo dessa externalidade negativa não-eu desperte o sujeito na direção da construção de laços amorosos. Como diz Badiou (op.cit.), o amor se constitui mais além da identidade, no campo da diferença.
Indo mais longe, podemos ainda dizer que a sustentação da vida e do amor não são efeitos simplesmente da libido, mas da intrincação entre pulsão de vida e pulsão de morte. Segundo Freud, a libido é capaz de tornar inócuo o caminho direto para a morte (Freud, 1923/1996). Ou seja, é a libido de objeto a condição para que o aparelho psíquico retenha a força destruidora, produzindo, mediante uma dose de masoquismo, os laços amorosos e sociais. Mas não é apenas a pulsão de vida em si, com suas forças para a agregação, que entra no jogo dos laços amorosos, e sim o fusionamento entre as pulsões de vida e de morte.
Se apenas a pulsão de morte opera, entra em jogo o caminho direto para a destruição; da mesma forma, se há apenas ligação (pulsão de vida), a própria vida também não se sustenta: estanca e mortifica. No fusionamento entre as duas pulsões há a barreira do caminho direto para a morte, e ao mesmo tempo as forças de desligamento daquilo que está ligado. A pulsão de vida vem, a partir de sua fusão com a pulsão de morte, produzir novas ligações, movimento para a vida e para o desejo. A condição transitória e desejante do ser falante suspende toda e qualquer “positividade”, no sentido dado por Han a respeito do igual, da padronização, de uma força dirigida ao consumismo pronto a “colocar para dentro” objetos-mercadoria produzidos pela tecnociência.
Na contemporaneidade o sujeito vive um “conflito entre o desmentido da privação e a busca por relações amorosas duradouras que implicam uma cota de privação”. A fugacidade dos ideais hoje implica muitas vezes que o sujeito experimente encontros sexuais em relações positivadas no sentido de Han, uma afirmação pelo igual que tem como horizonte abolir toda negatividade e toda alteridade: visa fazer desaparecer o atopos do amor. Na linha de ponderação desse autor, cabe destacar a afirmação de Lacan (1923/2011, p. 96) de que “toda ordem, todo discurso semelhante ao capitalismo deixa de lado o que nós chamamos simplesmente de as coisas do amor”. A pornografia aparece, na compreensão de Han como exato contraposto de eros, pois “ela aniquila a sexualidade” (Han, 2017, p. 55). Leitor de Baudrillard, Han destaca nesse autor que “A sexualidade não se desvanece na sublimação, na repressão e na moral, mas muito provavelmente naquilo que é mais sexual que o sexual: na pornografia” (Baudrillard, 1991, citado por Han, 2017, p. 55). Assim, a tentativa de extirpar a atopia e rechaçar o próprio jogo da sexualidade é, segundo o autor, um fenômeno resultante da sociedade de consumo: uma “pornografização do mundo” (Han, 2017).
Do ponto de vista da psicanálise, esse fenômeno da “pornografização” concerne tanto o desmentido da privação quanto o supereu – lembrando que o supereu não se reduz a uma moral nem ao ideal do eu. É a figura obscena e feroz do supereu pensada por Lacan como uma lei insensata que, com seu sadismo, empurra o sujeito para o gozo nesse processo de abolição da sexualidade e do desejo.
Lacan denomina as fontes desse imperativo superegoico na cultura do consumo como latusas, objetos-mercadoria, “objetos pequenos a”. Na mesma medida em que causam desejo eles são fontes primárias do imperativo guloso e devorador do supereu. Alomo (2014) destaca que as latusas tornam seus possuidores os próprios objetos da operação capitalista. Somos possuidores-objeto dessas produções. Lacan salienta a tecnociência como sustentação sumária dessa lógica: mais do que possuidores, somos objetos desse discurso. A latusa pensada por Lacan seria o resultado da operação tecnocientífica. O pensador joga com as palavras, dizendo que nelas encontramos apenas o vento, e não substâncias: o vento da voz humana que obriga ao gozo dos objetos, na ordem imperativa do supereu.8
A latusia ou latusa em Lacan traz consigo a ideia grega de ousia, uma imprecisão na língua grega sobre a ideia de ser, ou uma imprecisão sobre a ideia de substância/essência. A latusa pensada por Lacan não é bem um ser, ela é insubstancial; está entre o Outro e o ente, mas não é nenhum dos dois, e sim o “pouco de ser” característico do objeto a. As latusas levam os sujeitos a se esquecerem e ignorarem de que são objetos da operação científica: os sujeitos se esquecem disso como se fossem os agentes da operação. São na verdade “possuidores-objeto” na experiência, ou seja, os possuidores são os próprios objetos gozados pelo Outro. Esses objetos são mercadorias que, por trás das vitrines, carregam em si o imperativo de gozar.
Com efeito, penso que o desmentido da privação é cada vez mais alimentado por essa engrenagem que tem na latusa sua expressão mais radical. O neoliberalismo eleva à máxima potência a lógica da sociedade de consumo, regulada muito mais pelo livre mercado do que pelo Estado. O consumismo desenfreado no sistema neoliberal se torna uma obrigação para a sustentação do sistema, pondo o sujeito numa condição em que o empuxo ao objeto-mercadoria se torna aparentemente inelutável. É como se a satisfação direta como objeto derradeiro da pulsão fosse possível. Alomo (2014) enfatiza que a latusa é “um artefato na mão do sujeito para que ele não se encontre com a castração […], a latusa está a serviço do não querer saber sobre a castração” (p. 107).
Hoje o massacre do supereu se atualiza na forma de um imperativo de consumir: é um novo modo neurótico de “não querer saber da castração” – não se trata de um “desmentido da castração” perverso, mas um desmentido da privação neurótico (Quintella, 2018). Na época de Freud, o supereu massacrava o eu em função de seu próprio ideal; na atualidade, o sadismo do supereu, alimentado pela engrenagem da sociedade de consumo, se dirige a objetos-mercadoria como forma de infligir sua força, dado que a imago paterna declina hoje, aparecendo como um ideal do eu evanescente e fugaz. A compulsão moral agressiva sobre o eu parece ser substituída (ou reatualizada na contemporaneidade) por uma compulsão a objetos de consumo, numa tentativa desesperada de introjeção no lugar do ideal do eu.
As consequências psicopatológicas disso são, por excelência, as denominadas patologias do ato ou impulsões (Rabinovich, 2004). O sujeito se atira de forma impulsiva a objetos como drogas, internet, alimentos, corpo do outro, jogo etc. São formas sintomáticas de resposta a tal força superegoica. Cumpre ressaltar, entretanto, que os objetos da impulsão não são exatamente as latusas, mas objetos da urgência infantil. Eles funcionam na experiência contemporânea como se fossem objetos da necessidade, aos quais Lacan (1956-1957/1999) denominava “objetos reais”. O sofrimento impulsivo-compulsivo deve ser entendido como uma resposta sintomática a essa engrenagem imperativa da sociedade de consumo e do “vento da voz humana” (superegoica). Não é uma simples relação de continuidade com o consumo de mercadorias. Nas impulsões, não se trata de um “consumismo”, mas de uma resposta sintomática ao imperativo de gozar via consumo.9
O fracasso desse massacre superegoico implica ali mesmo que o desejo possa se levantar a prumo e fazer barreira ao gozo exigido pelo supereu; a castração, logicamente, não desaparece, pois é estruturante da neurose. É nesse ponto que devemos situar a mirada ética que permite, em âmbito clínico, trabalhar esse desmentido contemporâneo.
O desejo do analista: operador de uma resistência?
Cabe a nós pensar o lugar da clínica nessa engrenagem em que a experiência de excesso passa a tomar novos desenhos no laço social contemporâneo. Conforme os estudos aqui expostos sobre o desmentido da privação e o imperativo de gozo na sociedade de consumo, o desejo do analista aparece como uma interrogação no que concerne à função da clínica no âmbito dessa problemática.
Várias são as passagens sobre a noção de desejo do psicanalista no pensamento de Lacan. Como vimos, o que um analista faz é fundamentalmente desejar, mas seu desejo não é um desejo qualquer. Ele se dirige pela lógica da diferença – não da identidade ou do igual. Esse caminho nos leva a pensar o desejo do analista como uma espécie de resistência.
Na acepção mais comum do campo psicanalítico, o conceito de resistência aparece especialmente quando Freud descobre as forças do recalque e as vincula aos empecilhos que o ego erige quando se aproxima do material recalcado na fala associativa. Essa aproximação faz emergir o conflito, e cabe ao analista buscar manejar o trabalho da análise na direção de fazer com que o sujeito se aproxime do seu fantasma fundamental, confrontando essa resistência à causa de seu desejo. Cabe, portanto, diferenciar essa resistência egoica daquilo que estamos tomando como resistência relativa ao desejo do analista.
Vejamos: A causa do desejo, produzida como resto da operação entre os significantes, opera no sentido da diferença absoluta, irrepresentável, não apreensível ao nível da simbolização. Como dizia Lacan, “o significante serve para conotar a diferença no estado puro” (Lacan, 1961-1962/n.d.). Trata-se da diferença absoluta pensada por Lacan como diferença entre os significantes.
Na dialética do significante, Lacan evidencia que ele não representa nada em si mesmo, mas assume potência de sentido na articulação com uma cadeia. Cumpre assinalar nessa lógica que esse efeito de sentido daí decorrente só pode se dar na medida em que há algo que permanece não dotado de sentido: a pura diferença entre os significantes que marca o caráter inalienável da falta-a-ser.
Podemos aqui localizar a diferença absoluta como aquilo mesmo que se produz na indução significante – na medida em que esta diferença real impede o “caminho mais rápido para a morte”. Ao nível do real, localizamos esse impossível de simbolizar implicado na diferença, no ponto mesmo em que incide a compulsão à repetição. Ao nível do imaginário, localizamos esse impossível como a própria resistência a qualquer tipo de padronização na experiência do desejo.
Pensar sobre a função do analista e seu desejo num processo de análise é pensar sobre os efeitos disso na polis, na medida em que esses efeitos não se reduzem apenas à experiência do sujeito, mas implicam essa experiência nos laços sociais que constituem as engrenagens superegoicas ligadas ao modus operandi da própria sociedade – aqui a destacada sociedade de consumo, sustentada hoje pela engrenagem neoliberal.
O desejo do analista, como veremos adiante, opera uma resistência de caráter ético, diferente do conceito de resistência do ego pensado por Freud. Trata-se de uma resistência que fura o saber e afasta o sujeito do igual, da identidade imaginária e do empuxo do supereu, cuja visada é a morte, a anulação do sujeito e sua diferença constitutiva mais radical.
A resistência à atração do sacrifício e o desejo do analista na polis contemporânea
Intervém aqui uma aposta clínica. A livre associação de ideias permite fazer com que as forças para a morte sucumbam à aquiescência ou ligação pulsional, fazendo da perda de gozo um caminho de esvaziamento dos imperativos superegoicos. Pensar sobre a os efeitos da escuta nessa conjuntura, eis um dos principais desafios da psicanálise contemporânea frente ao desmentido da privação e a sociedade de consumo. O desejo do analista é o que faz emergir, como dissemos, a diferença absoluta, a singularidade radical e sua consequente potência para a invenção.
Sobre isso, cabe avançar com Slavoj Žižek (2013). Esse pensador retoma a discussão sobre a política contemporânea resgatando autores como Hegel e Lacan. No rol das suas perquirições, Žižek articula a própria clínica psicanalítica como um dos eixos de seu pensamento. Ele faz uma afirmação que toca no cerne da questão sobre a psicanálise como função de uma resistência. Suas ponderações implicam a discussão sobre o objetivo último de uma análise. Segundo esse pensador, a análise mobiliza não apenas a aceitação da castração, mas faz operar essa resistência. Destaquemos sua valiosa contribuição:
[…] o objetivo último da psicanálise não é permitir que o sujeito assuma o sacrifício necessário (aceitar a castração simbólica, renunciar a vínculos imaturos e narcisistas), mas resistir à terrível atração do sacrifício – atração que, claro, não é outra senão aquela do supereu10 (p. 40).
Essa passagem de Žižek é crucial para pensarmos a função da clínica, especialmente aqui, perante a sociedade de consumo. Referindo-se ao sacrifício superegoico, Žižek introduz uma discussão sobre a psicanálise como um dispositivo que possibilita esse tipo de resistência. Para além da ideia de superar as resistências do eu no processo de análise, trata-se da mobilização ética do sujeito a uma resistência à captura contínua do supereu que atrai o sujeito à ribanceira mortífera do gozo. Psicanaliticamente, estamos falando da condição desejante – inelutável do ser falante, como abordamos no item anterior.
Ora, na atração do sacrifício superegoico, o sujeito aliena sua condição de falante à repetição do mesmo como mirada do gozo – repetição impossível11 –, fazendo dos efeitos imaginários da identidade de um “sujeito do consumo” o ponto de mira da injunção superegoica. Ou seja, o supereu se alimenta das forças imaginárias e reais do consumismo social para infligir seus imperativos na atualidade. Como vimos, o empuxo ao consumo de objetos se torna o novo alvo do supereu, de maneira mais intensa na atualidade. Nesse sentido, a mercadoria passa a ser cada vez mais o padrão do modo como os sujeitos gozam, o que acirra mais o desnorteamento em torno da sexualidade, do desejo e da experiência amorosa.
A clínica psicanalítica emerge como uma ética que inverte esse ponto de mira: ela incide sobre o próprio imperativo de gozo, na medida em que opera uma resistência à atração do sacrifício superegoico.
Não residiria aí a direção de uma psicanálise implicada na radicalidade da diferença? Tal direção não opera a emergência dessa resistência ao inferno do igual e à atração superegoica? Não é esse o desejo do psicanalista – desejo de obter a diferença absoluta?
Na esteira dessas observações, proponho com este artigo pensar o desejo do psicanalista como operador de uma resistência à atração do sacrifício – atração do supereu tal como Žižek (2013) aponta, imposta hoje pelo desmentido da privação na sociedade de consumo. Com efeito, o desejo do analista opera uma resistência à própria lógica do consumismo no sistema neoliberal. Consumismo guloso do supereu na experiência do sujeito contemporâneo.
Dito de outra forma, o analista suporta o lugar de um espaço vago para que o desejo do sujeito se articule como desejo de desejo, possibilitando a emergência da fantasia e sua travessia (Lacan, 1960-1961/2012). É o lugar de uma perda, de uma suspensão, que dirige o sujeito para a travessia de seu fantasma e permite que a fala promova perda de gozo conforme o trabalho em torno do desejo inconsciente num processo de análise (Lacan, 1970/1992). A psicanálise produz, neste ponto impossível da relação do sujeito com o Outro, um gozo a menos, pautado num processo que não é o de consumo, mas de obtenção da diferença absoluta que marca, de maneira definitiva, a sustentação da castração e a constante resistência aos imperativos do supereu, pensada por Žižek. Nunca livre de ser tomado pelo empuxo superegoico, dado que a estrutura é furada e o supereu não deixará de estar lá, a subversão do sujeito faz do desejo o próprio ponto de insurgência do embarreiramento ao gozo, mais além das obrigações internas de consumir mercadorias. Isso pode produzir efeitos na própria polis, na medida em que a atração ao consumo de objetos produzidos pela tecnociência se subtrai como resistência política à engrenagem capitalista e à lógica do imperativo de consumir alimentada pelo imaginário social no contemporâneo.
Essa diferença absoluta visada pelo analista – constitutiva da falta de significante no Outro S(Ⱥ) – move o sujeito na direção da produção singular, sem garantia de qualquer grande Outro, como uma invenção de um novo modo de lidar com o gozo. Trata-se da própria diferença introduzida pela articulação significante, como algo que não se escreve, não se pode simbolizar. Essa diferença absoluta, indizível, faz resistência ao “inferno do igual” no imaginário consumista, bem como ao imperativo de gozo no real do massacre insensato do supereu. “É o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise” (Lacan, 1964/1998, p. 868). Ele faz operar uma resistência à própria engrenagem do gozo do consumo no neoliberalismo. Para além de qualquer terapêutica, a psicanálise é ética, porque visa à sustentação do desejo insatisfeito; e é política, na medida em que conduz à inelutabilidade da falta-a-ser, proporcionando que o sujeito resista à atração do consumo na lógica capitalista neoliberal que promete a abolição da castração.
Considerações finais
Para concluir, é importante que se evidencie o lugar do desejo do analista na polis contemporânea, dado que, se há um trabalho na análise de fazer com que o sujeito sacrifique a parte de si que completaria o Outro, a perda de gozo leva o sujeito a lidar de uma forma outra com a privação real – em última análise a privação de um significante que responda pelo ser do sujeito – S(Ⱥ) – significante da barra no Outro. A falta de um significante que complete o conjunto dos significantes implica que algo resta na operação da linguagem e se perde – objeto a – causando desejo. Essa é a via mesma pela qual um analista faz semblante de objeto a, causando a análise.
O desejo do analista como operador clínico é, portanto, uma aposta nesse processo capaz de produzir não apenas efeitos importantes para o sujeito e aqueles de seu entorno, mas também efeitos na polis capitalista, ensejando ao sujeito a possibilidade de um basta na lógica aparentemente inelutável do consumismo na atualidade.