Introdução
Muitas obras de arte têm o poder de tocar em registros psíquicos profundos, podendo provocar um interesse por quem assina essa produção que tanto nos comunica acerca de nós mesmos. É como se o (desconhecido) artista conhecesse algo do nosso íntimo e o revelasse de uma forma tão bela que nos causa espanto e fascínio, simultaneamente. Freud (1908/1996), em Escritores criativos e devaneio, declara que o escritor criativo desperta fortes emoções em seu leitor; desperta também, por conseguinte, uma curiosidade intensa acerca da fonte de inspiração de seu trabalho. No entanto, mesmo que soubéssemos quais são suas inspirações, isso não seria suficiente para nos tornar artistas.
A arte se tornou um dispositivo cultural muito apreciado, pelos psicanalistas, para pensar a psicanálise; ela possibilita a abertura de um campo de reflexão e diálogo. Poderia esse interesse em dialogar com a arte se transformar numa tentativa de dominá-la? E esse ímpeto poderia estender suas garras para além da produção artística e alcançar o artista? A obra de arte nos leva ao artista, mas o artista, e a admiração que desperta no público, também conduz à sua produção. Nesse campo em que obra e autor constantemente se cruzam, como não os confundir? Como não criar entre ambos uma equivalência?
Nesse sentido, este artigo tem como objetivo propor uma discussão sobre distintas formas de pensar a arte e o artista (mais especificamente, a literatura e o autor), a partir da psicanálise, por meio de uma revisão bibliográfica que não tem a pretensão de ser exaustiva. Usamos como disparador dessa discussão uma reflexão metodológica acerca de dois textos escritos por Freud sobre literatura: Dostoievski e o parricídio e Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. A partir dessa discussão metodológica, é possível pensar como a psicanálise pode, através do seu método – atenção flutuante e livre associação –, escutar uma obra literária sem incorrer na aplicação de conceitos à obra ou ao autor. A escuta psicanalítica de uma obra literária permite uma abertura mediante a qual literatura e psicanálise podem dialogar.
Em seguida, com o intuito de enriquecer essa discussão metodológica, propomos uma reflexão sobre a obra de uma das escritoras mais consagradas da história: Virginia Woolf. Ao escolhermos essa autora do grupo de Bloomsbury, acreditamos na força que sua obra tem e nos efeitos que gera em seus leitores; tal força convoca nossa escuta e instiga nossos pilares teóricos, removendo-nos de uma posição de conforto e nos colocando num movimento constante de (re)pensar a psicanálise frente à cultura e suas produções. Muitos foram os psicanalistas que, ao se deixarem tocar pelos escritos e história de vida de Virginia Woolf, propuseram interpretações acerca de sua biografia e obra. Ao longo dessa produção, encontramos duas tendências: uma pensa a obra como efeito de vivência; a outra, como vivência de efeito. É à reflexão sobre essa diferenciação que este artigo se dedica.
A psicanálise, o autor e a obra
Ao ler um livro de um autor instigante, é fácil cair na tentação, na condição de psicanalistas, de aplicar ao livro e ao autor o entendimento psicanalítico da clínica; é necessário estar atento para não cair em tal armadilha. É importante lembrar que, diferentemente do analisando, que se coloca numa posição de investigação sobre si próprio e convida o analista a acompanhá-lo durante o percurso, o autor e sua obra literária não estão ali, na prateleira – e muito menos no divã –, solicitando interpretações acerca de seus conteúdos recalcados. No entanto, é possível, até mesmo provável, que, ao ler um livro, um bom livro, o recalcado do leitor seja tocado. Cristina Marcos (2007) salienta a importância de abandonar o caráter decifrador do psicanalista diante da arte, para poder pensar a arte como aquilo que coloca questões ao psicanalista. É relevante atentar para o caráter ativo da obra, como ato interpretante, e não como objeto passível (e passivo) de interpretação. Humphrey (1976) nos lembra que o autor do romance do fluxo de consciência apresenta a consciência do personagem que cria, não a sua própria, por mais autobiográfica que possa ser a obra; caso assim não fosse, o autor não seria responsável por uma criação artística, mas pela produção de um relato automático. Mas como pensar a escuta psicanalítica de uma obra literária?
Freud, em Dostoievski e o parricídio, parece fazer uma interpretação psicanalítica do escritor russo, a partir de dados biográficos do autor e de sua renomada obra Os irmãos Karamassovi. No entanto, já no início do texto, Freud (1928/1996, p. 183) adverte: “diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas”. Essa frase nos põe a pensar que Freud não se propõe a desvendar, por meio da psicanálise, a faceta criativa de Dostoievski. Talvez, com essa afirmação, Freud esteja assumindo a impossibilidade de alcançar uma verdade última acerca do autor que revele algo a respeito do conteúdo latente à obra. A tentativa de Freud de formalizar a psicanálise como uma ciência, cujo objeto é o inconsciente, lhe permitiu utilizar o método psicanalítico para, também por meio da literatura, formular conceitos fundamentais à psicanálise como disciplina e terapêutica. Freud tenta formular a psicanálise como ciência com o apoio da cultura, da arte, do texto literário, mesmo que essa relação possa ser, muitas vezes, de estranhamento.
Em Dostoievski e o parricídio (1928/1996), o fundador da psicanálise infere quatro facetas da personalidade do autor: o neurótico, o moralista, o pecador e o artista. Sobre o moralista, Freud salienta que não alcançou a mais elevada moralidade aquele que, após pecar, atinge o alto grau da moral, mas aquele que renuncia à tentação do desejo; assim, a moralidade de Dostoievski, pelo que entendemos do que Freud enuncia, é posta em questão. Acerca da faceta pecadora ou criminosa, Freud enuncia que Dostoievski dirigiu essas tendências, ou seja, sua pulsão destrutiva, para dentro de si mesmo, um destino pulsional conhecido como retorno contra si próprio; essa faceta encontraria expressão, portanto, no masoquismo e no sentimento de culpa. Sobre o aspecto neurótico, Freud sugere que as crises epiléticas de Dostoievski seriam manifestação de uma histeria grave. Mas como Freud aproxima essa imagem de Dostoievski de sua produção artística? O que na obra do autor russo poderia indicar tais aspectos de sua vida mental?
Freud (1928/1996) supõe que a epilepsia assumiu um caráter neurótico após o décimo oitavo ano de vida de Dostoievski, ano no qual seu pai foi assassinado. Nesse ponto, Freud (1928/1996, p. 187) estabelece o que chama de uma “inequívoca vinculação existente entre o assassínio do pai em Os irmãos Karamassovi e a sorte do próprio pai de Dostoievski”. A partir disso, Freud retoma sua teoria da neurose calcada no complexo de Édipo e no desejo parricida que se encontra por trás dele. A castração, de acordo com Freud (1928/1996, p. 190), “é essa chave, então, que temos de aplicar à chamada epilepsia de nosso autor”.
No romance russo, afirma Freud (1928/1996, p. 194), o parricídio não é cometido pelo herói, mas por outro:
esse outro, contudo, está, para com o assassinado, na mesma relação filial que o herói, Dimitri; no caso desse outro, o motivo da rivalidade sexual é abertamente admitido; trata-se de um irmão do herói e constitui fato digno de nota que Dostoievski lhe tenha atribuído sua própria doença, a suposta epilepsia, como se estivesse procurando confessar que o epiléptico, o neurótico nele próprio, era um parricida.
Conforme Freud, para a psicanálise não interessa saber quem cometeu o crime, mas quem o desejou e se satisfez com a sua execução. Há uma empatia pelo criminoso; por ter cometido o crime que outros desejavam cometer, deixa esses outros livres do crime – no entanto, não livres da culpa. Freud (1928/1996, p. 195) entende que Dostoievski escolhe o material de seu romance baseado no próprio romance familiar: “ele tratou primeiramente do criminoso comum (cujos motivos são egoístas) e do criminoso político e religioso, sendo somente ao fim de sua vida que retornou ao criminoso primevo, ao parricida, e utilizou-o, numa obra de arte, para efetuar sua confissão”. Deixemos esse escrito de lado, por um instante, para pensarmos sobre outro texto de Freud, publicado duas décadas antes.
Na análise realizada em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, Freud opera de um modo diferente. Nesse texto, Freud não traz Jensen para a análise, mas escuta a sua obra. Salienta que, no que concerne ao conhecimento da mente, o escritor criativo se encontra à frente da ciência. Freud (1907/1996), mediante citações de Gradiva: uma fantasia pompeiana, faz conversar a teoria psicanalítica com a obra de Jensen e percebe na construção do romance elementos caros à teoria que se empenhava em criar, tais como recalcamento e trabalho do sonho. Além disso, destaca que evita fazer uma interpretação tendenciosa da obra e, para tanto, escolhe expor a maior parte da história nas palavras do próprio autor. São muitas as homenagens que Freud vai prestando ao autor de Gradiva ao longo da análise de sua obra, salientando o talento com que Jensen cria, artisticamente, os complexos movimentos intrapsíquicos de seu herói, sem sequer saber se o autor disso tinha consciência ou intenção.
Freud (1907/1996) vai tecendo sua escrita a partir de uma leitura atenta da obra de Jensen; parece que o fundador da psicanálise lê o romance com uma atenção flutuante semelhante à que dedica a seus pacientes, atentando às pistas que podem lançar luz sobre as sombras dos conflitos psíquicos do protagonista. Freud destaca, para o leitor de seu ensaio, citações que lhe parecem pertinentes e elucidativas, mesmo que tais citações ganhem sentido só depois, no desenlace da leitura. Antoniazzi e Weinmann (2018) problematizam o método proposto por Freud nesse trabalho, associação livre e atenção flutuante, para pensá-lo além da prática clínica strictu sensu. Os autores afirmam que Freud propõe uma torção que possibilita a transposição do método clínico para a leitura de uma obra literária; e faz isso por meio de pontes verbais. Ao analisar o sonho do protagonista de Gradiva, o fundador da psicanálise não renuncia a um trabalho de preparação, ou seja, de considerar as vivências que se relacionam ao sonho. Nesse sentido, Freud disseca os elementos do romance para relacioná-los aos sonhos do protagonista, como se fossem associações. “Dessa forma, são realçados no texto os elementos que se remetem uns aos outros – as pontes verbais –, de modo a permitir uma interpretação” (Antoniazzi & Weinmann, 2018, p. 69).
Após uma explanação do romance, Freud (1907/1996) inicia a discussão dos elementos linguísticos da obra que, ao se repetirem e se referirem entre si, possibilitam interpretações. Freud funda um método clínico baseado na escuta; é ali, na palavra, que o inconsciente se manifesta, no lapso, no ato falho, na narrativa do sintoma ou do sonho – na formação de compromisso entre consciente e inconsciente. Na palavra escrita do texto de Jensen, Freud reconhece a formação de compromisso, como apontam Antoniazzi e Weinmann (2018): Bertgang (sobrenome de Zoe) significa Gradiva, aquela do andar resplandecente. Conforme os autores, o romance de Jensen é composto por elementos que se relacionam, sem que essa relação esteja evidente num primeiro momento; a meticulosa análise da narrativa que Freud opera possibilita, a posteriori, o reconhecimento da conexão existente entre elementos que compõem o sonho e o restante da trama. Segundo os autores, essas conexões são decorrentes da premissa da equivocidade da palavra, ou seja, a palavra dita é também, como o sintoma, uma formação de compromisso entre consciente e inconsciente:
As associações linguísticas entre os distintos elementos do texto, decorrentes da homofonia ou homografia, dos trocadilhos e ditos populares, etc. – enfim, as pontes verbais, cujos pilares repousam sobre a equivocidade da palavra –, constituem o fulcro da análise freudiana de um texto. (Antoniazzi & Weinmann, 2018, p. 72)
Durante essa discussão dos elementos da obra, Freud (1907/1996, p. 45) dialoga, constantemente, com o leitor:
Meus leitores sem dúvida terão ficado surpresos ao notar que até aqui tratei todas as atividades e manifestações mentais de Norbert Hanold e Zoe Bertgang como se os dois fossem pessoas reais e não criações de um autor, e como se a mente do autor não fosse um instrumento capaz de deformar ou obscurecer, mas um instrumento totalmente límpido.
E refere-se inúmeras vezes ao autor, inferindo quais seriam suas intenções ao escrever este ou aquele trecho: “é muito fácil estabelecer analogias e atribuir sentido às coisas, mas acaso não teremos emprestado a essa encantadora e poética história um significado secreto bastante distanciado das intenções do autor?” (Freud, 1907/1996, p. 46). Destaca os aspectos ocultos da mente do autor, que o tornam capaz de criar outra mente cheia de obscuridades. Essas referências conferem um caráter de alteridade ao escrito freudiano, como se ele escrevesse pressupondo seu leitor e, arriscamos sugerir, talvez pressupondo que o autor de Gradiva se tornasse também leitor de sua análise.
Freud (1907/1996) afirma que o escritor criativo e o psicanalista compartilham um campo: a mente humana. Portanto, percebe válido ocupar-se de textos literários, bem como considera muito importante que os escritores criativos concedam um tratamento poético aos temas da psicanálise. Que psicanálise e literatura compartilhem um campo, dialoguem e potencializem suas produções nessas trocas nos parece profícuo. O risco surge quando a psicanálise visa colonizar a produção artística, tentando extrair dela uma comprovação irrefutável de suas teorias. O Freud que concede todo respeito a Jensen e sua produção, sugerindo que seus conhecimentos artísticos são tão sensíveis e acurados quanto os científicos (e muitas vezes, inclusive, os antecedem), soa muito diferente do Freud que, mediante dados biográficos, produções ficcionais e escritos de terceiros, traça um caráter para Dostoievski. No entanto, em ambos os textos, compreendemos a tentativa freudiana de, a partir da obra literária e da mente do escritor, fundamentar a psicanálise como um corpo teórico e prático.
Por que Virginia Woolf?
Virginia Woolf é uma escritora que merece ser lembrada. Sua existência, sua dedicação à escrita, seu interesse no papel social da mulher vitoriana e sua luta, por meio de sua escrita, pelos direitos das mulheres, são de uma enorme potência. Senão por outros motivos, porque foi uma das primeiras mulheres a assinar sua obra.
Segundo Sara Beatriz Guardia (2013), as transformações sofridas pela Europa entre os séculos XVII e XVIII, que culminaram na Revolução Industrial e na Revolução Francesa, criaram um ambiente propício para repensar o lugar da educação feminina (as meninas começam a frequentar a escola, regularmente, apenas no século XVIII), permitindo a presença de mulheres na literatura. Revistas passaram a ser escritas e dirigidas por mulheres, clubes literários foram criados com o intuito de debater os problemas das mulheres da época. Toda uma vertente da literatura romântica, encabeçada por Madame Bovary, de Flaubert, é direcionada ao público feminino. No fim do século XIX, nasce Virginia Woolf, filha de Julia Prinsep Stephen e Leslie Stephen, um importante escritor e editor britânico.
Adeline Virginia Stephen nasceu em 25 de janeiro de 1882, em Kensington, um distrito do condado de Middlesex, na Inglaterra; e suicidou-se em 28 de março de 1941, na cidade de Lewes, no condado de Sussex, aos 59 anos de idade. Em 1905, Virginia mudou-se de Kensington para Bloomsbury; ali, ela e os irmãos organizavam encontros às quintas-feiras para discutir assuntos de caráter intelectual; fundou-se, então, o Grupo de Bloomsbury, composto por artistas e cientistas. Em 1912, Virginia casou-se com Leonard Woolf, passando a se chamar Adeline Virginia Woolf. Em 1917, o casal Woolf fundou a editora britânica Hogarth Press, que publicou, contando com a colaboração de Anna Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (1956-1974).
O cenário em que Virginia viveu e no qual concebeu sua escrita se configurava pelo domínio dos homens na esfera pública e pela limitação das mulheres à vida privada. Maud Mannoni (1999) salienta o caráter de combate à exclusão das mulheres das questões públicas – políticas, sociais e morais – na escrita de Virginia Woolf. Rosália A. Cavalcanti e Ana Lúcia Francisco, no texto Virginia Woolf e as mulheres, afirmam que Virginia, ao levantar importantes discussões, assinalou para seus leitores demandas feministas dos anos 1920, cujas reivindicações se relacionavam à luta por direitos equivalentes aos dos homens nos campos da educação, emprego, remuneração, estatuto social e voto. Por esses motivos, Woolf, através da sua literatura, teve grande destaque nas reflexões sobre o papel social da mulher do início do século XX, o que aponta para a dimensão política existente na sua obra.
Virginia conta que quando um tema é muito controverso não se pode pretender dizer a verdade, mas apenas revelar a forma como se chegou a uma possível opinião que se tenha sobre o assunto. Assim foi a forma como ela tratou o sexo e o feminino, sem a busca de uma verdade única sobre eles, revelando as diversas faces que a mulher e o feminino puderam assumir no decorrer de sua obra. Entretanto, o fato de não existir uma verdade acerca do tema proposto ou de essa forma de crença em uma verdade única a ser descoberta não impediu a autora de fazer, em muitos momentos, de forma irônica ou até mesmo bem-humorada, uma crítica feroz ao patriarcado e ao lugar de exclusão que por ele era dado ao feminino. Sua obra denunciou – sejam em seus romances, contos ou ensaios – sua preocupação com os lugares e espaços que a sociedade vitoriana destinava à mulher. (Cavalcanti & Francisco, 2016, p. 46-47)
As autoras afirmam ser Virginia Woolf muitas mulheres numa só; quando falava de si, falava também das outras mulheres que, assim como ela, encontravam-se aprisionadas ao seio familiar e condicionadas aos ideais patriarcais. Virginia apresentou um apreço, em vida e obra, pelas mulheres e um interesse pelo feminino. As mulheres que a rodeavam serviam de inspiração para seus escritos. Os espaços reservados às mulheres, na virada do século XIX para o XX, eram, de acordo com Cavalcanti e Francisco (2016), estabelecidos pela cultura e endossados pela ciência. A obra de Virginia não ficou isenta de tal influência; ao mesmo tempo em que apresentava personagens mulheres confinadas aos cuidados maternos, do lar e aos compromissos de esposa, sustentava uma posição de força, dando voz às mulheres, por meio de sua escrita. Em seus textos, combatia a opressão vivida pelas mulheres; para ela, a mulher deveria se desenvolver juntamente com a sociedade. Sua escrita impeliu as mulheres a entrar no espaço público: “através de seus textos, ela deu voz aos problemas vigentes, deixando transparecer uma sociedade que sofria as consequências da guerra, bem como apontou para os problemas de senso comum, como as relações afetivas e as questões econômicas de Estado” (Cavalcanti & Francisco, 2016, p. 38).
Segundo Diana Corso (2015), Virginia Woolf era esperançosa, como ensaísta e feminista. Ela viu inúmeras possibilidades para as mulheres e imaginou que seu acesso à educação daria fim às desigualdades: “passados mais de 70 anos da sua morte, creio que ela ficaria orgulhosa do que conquistamos, embora ainda haja tanto por fazer” (Corso, 2015, p. 264).
[Não] psicanalisando Virginia Woolf
Peter Gay (2002), em On not psychoanalyzing Virginia Woolf (Não psicanalisando Virginia Woolf), aponta Virginia Woolf como a romancista moderna mais suscetível à curiosidade psicanalítica. Relatos de abusos sexuais sofridos na infância por um ou dois de seus meios-irmãos, um casamento sem sexo, um envolvimento amoroso homoafetivo: segundo o autor, é tentador transformar a vida da escritora num caso clínico. Poucos foram os biógrafos que resistiram à tentação de fazer uma conexão entre o trabalho e a vida de Virginia Woolf; dentre esses, Gay cita Sonya Rudikoff e Hermione Lee. Para Gay, nosso conhecimento acerca da vida de Virginia Woolf é muito menor do que nos faz crer a maioria dos biógrafos, e talvez um dos méritos de Lee seja admitir tal pobreza de conhecimento acerca da vida da consagrada romancista. Segundo Gay, apesar de Woolf ter visitado muitos especialistas ao longo de sua vida, em busca de alívio para seus sofrimentos psíquicos, ela não concordou em se fazer objeto de uma análise e deitar-se num divã. Gay pergunta: deveríamos, nós, tentar analisá-la? E perguntamos: nós, quem? Analistas? Autores? Biógrafos? Pesquisadores? Todos aqueles que se apropriam, de alguma forma, de sua obra e sua história?
Gay (2002) cita o trabalho de Louise De Salvo Virginia Woolf: the impact of childhood sexual abuse on her life and work. De acordo com Gay, a autora afirma que Virginia cresceu num lar incestuoso onde ou o abuso sexual, ou a violência faziam-se sempre presentes. Gay critica o trabalho, afirmando que, nele, uma respeitável família vitoriana é exposta como um ninho de cobras, que transformou Virginia Woolf em um nervous wreck (naufrágio nervoso, em tradução literal).
Gay (2002) observa que o perigo de analisar escritores a partir de sua obra é óbvio. Tal análise acaba por reduzir a ligação associativa entre a vida interior do sujeito e seu trabalho publicado, ou seja, a relação de causalidade entre as emoções, dores, traumas do escritor e sua obra fica muito estreita. Ademais, afirma que uma compreensão psicanalítica de um grande artista não explica em nada a grandeza de sua produção artística, tal como afirma Freud, ao escrever sobre a infância de Leonardo Da Vinci. Para Gay (2002), a aproximação da psicanálise à biografia é uma tentativa de compor um retrato do artista da forma mais completa e profunda que é possível traçar. Que a vida invade o trabalho artístico não se pode duvidar. O autor conclui escrevendo que o sofrimento psíquico pode produzir falência artística, assim como importantes criações; pessoas com sofrimentos psíquicos há muitas no mundo, que fazem arte como Virginia Woolf fez, não tantas.
Segundo Cavalcanti e Francisco (2016), muitos são os textos que tentaram analisar Virginia Woolf, alguns apresentando-a como depressiva, assexuada, obcecada por suicídio; seu nome, após o suicídio, ficou vinculado à melancolia. De acordo com Gay (2002), alguns intérpretes precipitados criaram com facilidade uma relação entre os problemas mentais de Virginia Woolf e seus romances. Seria essa busca por um diagnóstico, ou compreensão da personalidade da escritora, uma busca pelo combustível do talento artístico? A tristeza potencializa a escrita? E por que isso importaria? Compreender a fonte do talento artístico não revela os mistérios da arte. Como disse Freud, em Escritores criativos e devaneio, compreender os determinantes da escolha do artista e a natureza de sua arte em absolutamente nada contribui para nos tornarmos artistas.
No livro Elas não sabem o que dizem: Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise, de Maud Mannoni (1999), a autora declara que os livros de ficção de Virginia Woolf parecem uma face outra do discurso teórico psicanalítico. Embora Virginia estivesse empenhada em publicar as obras de Freud, temia que a psicanálise pudesse fazer do campo literário sua colônia, pois, para ela, toda obra literária poderia vir a ser tratada, por uma grade doutrinal, como história de caso. Não desejava fazer estudo de caso de seus personagens, como os analistas fazem de seus analisandos, mas buscava descrever emoções e suscitá-las no leitor. Por vezes, a leitura de sua obra se torna mais intensa, mais uma experiência emocional desconfortável do que propriamente prazerosa. Aplicar a psicanálise ao autor ou à obra pode ser uma forma de resistir ao efeito da leitura.
Literatura: efeito de vivência ou vivência de efeito?
Uma obra literária reserva um espaço para a fantasia, o imaginário se fantasia para não denunciar demais a realidade. A fantasia é uma concessão que o princípio de realidade faz ao princípio de prazer. Entretanto, algumas obras tocam em algo que está mais além do princípio de prazer, um aspecto traumático e destrutivo, inassimilável ao psiquismo e, portanto, indizível. Alguns autores aqui citados usarão o conceito Real; aproximamos esse conceito do trauma em Freud (1920/1996), do que está mais além do princípio de prazer.
Em sua escrita, Virginia Woolf tenta definir o lugar de onde se origina a arte; uma participação íntima do autor e do espectador cria algo semelhante a um espaço transicional, reconstruído na escrita (Manonni, 1999). Segundo Ana Maria Valle (2007), uma das funções da arte consiste em abalar o sujeito de suas garantias, rotinas e significados. Apontar para um algo a mais, que até então não havia sido percebido. Talvez a arte – ao menos certa arte – não seja feita para apaziguar tensões, mas para criá-las; ela está para além do registro do princípio do prazer: inquieta, fascina, causa horror e estranheza. Talvez essa arte aponte para um resto pulsional, um impossível de ser dito, mas que produz efeito e movimenta.
Na apresentação à edição brasileira do livro de Mannoni, citado acima, escrita por Sônia Carneiro Leão (1999, p. 8), encontra-se o seguinte trecho: “o que faz de Virginia Woolf uma escritora, segundo Maud Mannoni, é o fato de que sua escrita vem do inconsciente, do desejo de comunicar um impossível de ser dito”. A autora ainda afirma que Virginia Woolf teria estudado Freud e tinha interesse pela psicanálise; contudo, discordava da teoria falocêntrica, a qual, segundo ela, punha as mulheres numa posição infantil. Tal posição, para Virginia, não era consequência do complexo de Édipo, mas do fato de as mulheres terem permanecido à margem da sociedade dos homens.
A veemência de V. Woolf em reivindicar a existência de dois sexos, quando a psicanálise fala apenas de uma só e mesma libido fálica, só se iguala à sua luta para que a mulher deixe de servir de espelho para os homens. É uma ética feminina que ela tenta promover, para que o mundo masculino evolua. (Mannoni, 1999, p. 53)
Peter Gay (2002) nos traz a ideia de que Virginia não absorveria os grandes textos de Freud até a década de 1930, momento no qual o fundador da psicanálise começa a pensar de forma mais pessimista a alma humana, apresentando seu aspecto destrutivo, para além do sexual. Para Gay, se Woolf rejeitou a psicanálise foi por seu profundo desejo de não ser encaixada, rotulada e estereotipada. Ela não queria ser identificada como um caso, mas como uma escritora. Para Virginia Woolf, escrever e ter sua palavra escrita respeitada era um desafio, mas ela foi bem-sucedida na transmissão escrita de suas ideias; afinal, a alma de sua produção ainda ecoa, em nosso tempo.
Mannoni (1999) observa que, no mundo em que Woolf vivia, regido por homens, à mulher restaria criar um mundo interior enriquecido por sons, perfumes, percepções. Virginia era sensível, em sua escrita ficcional, às percepções que atribuía às suas personagens. Segundo Mannoni (1999, p. 15), a força e aventura da vida da mulher encontrar-se-ia ali, nessa doçura de viver, que “[…] se destaca, sobre um fundo de violência, de um mundo absurdo em que as exigências austeras são codificadas de maneira imutável”. Virginia Woolf, de acordo com Mannoni, era sensível à escrita de algumas autoras, como Jane Austen e Emily Brontë, pois entendia que elas escreviam como mulheres.
Freud se ocupou de como alguém se torna mulher. Mannoni (1999, p. 19) afirma que, no caso de Virginia Woolf, caberia a pergunta: “como alguém se torna mulher fora dos esquemas sexuais estabelecidos pelos homens?”. Muitas vezes, as analistas mulheres adotaram uma explicação biologizante para a feminilidade, repetindo o discurso dos homens. Romancistas, como Virginia Woolf, descreveram o feminino de outras formas.
Segundo Mannoni (1999), o que faz de Virginia Woolf uma escritora é sua capacidade de pôr em cena, em seus livros, os dramas que a invadem; ela não descreve a tristeza, mas a induz no seu leitor: “sua escrita surge do inconsciente com a dimensão do desejo de comunicar e a de um impossível de ser dito, ou mesmo de um desejo impossível” (Mannoni, 1999, p. 20). Como autora, expõe à luz o recalcado da cultura. Sua escrita desvela. Além disso, ela expressaria o horror em palavras. Porém, a escrita tem um limite, não pode dizer tudo, há sempre algo de indizível. Assim como na escrita do testemunho, sempre falta uma palavra, impedida de ser escrita pela resistência intensa do inominável: “Virginia tenta perseguir, evoca o real de um encontro faltoso, aquele que, na história da psicanálise, se revelou sob a figura do trauma” (Mannoni, 1999, p. 27). Marcos (2007) afirma que a escrita tem relação com algo indizível, com uma parte não sabida, que não foi recalcada ou banida da consciência, mas esteve sempre fora dela. Há um excesso na vivência traumática, que não é passível de ser “digerido” pelo aparelho psíquico; tal excesso invade o psiquismo e ali permanece, desorganizando o que encontra pela frente.
Cavalcanti e Francisco (2016) sugerem uma forma artística de superar o trauma, que resultaria num encontro com o desamparo inicial da existência do sujeito. As autoras convidam a pensar Virginia Woolf como um ser que não conseguiu libertar-se do trauma, daquilo que foi destruído num momento muito precoce de sua existência, repetindo-o, sempre, através da sua escrita. Se o trauma é de Virginia como ser, na condição de escritora, não se sabe; afinal, construir uma relação de proporção entre a quantidade de trauma – como se fosse mensurável – do autor e o que disso passa para sua escrita pode ser um ato interpretante e, como toda interpretação, corre o risco de errar o alvo. O ouro aqui é a indagação que nasce: a escrita convoca o leitor à experiência da fantasia ou pode, às vezes, ir além e perturbá-lo em suas certezas por sua potência traumática?
Valle (2007, p. 123) também se ocupa dessa questão:
Uma pergunta insiste: como transmitir o impossível? Com relação à transmissão do Real, este não é passível de transmissão por si mesmo, sendo sempre necessária a entrada do simbólico para que isto parcialmente ocorra. A escrita poderá representar uma tentativa de significar o indizível quando realizada em contato íntimo e avassalador com o sentimento causador da vertigem que leva a escrever.
Seria a escrita de Virginia Woolf uma moldura simbólica para o indizível que a impulsiona a escrever e que transpassa sua escrita? Essa escrita possibilitaria a elaboração – evidentemente, não toda – do traumático da experiência das mulheres na sociedade vitoriana? Valle (2007) alega que o simbólico atuaria aos pedaços no campo do inefável; afinal, o simbólico é caracterizado pelo furo, pelo parcial, pelo pedaço; fragmenta e divide, para poder organizar. A escrita, como transmissão do inefável em pedaços, afirmaria a parcialidade; a nomeação implicaria um recorte.
Maria de Fátima Ferreira e Ilka F. Ferrari (2017, p. 81), no artigo A escrita e Virginia Woolf: vida e morte, afirmam que a escrita criativa põe o autor diante de uma escolha entre escrever ou morrer, o que seria indicativo de “forças destrutivas no horizonte do processo criativo”. As autoras indagam o que, na escrita de Virginia Woolf, não a teria salvado de um suicídio. Pergunta difícil de ser compreendida. Como se houvesse uma função salvadora na escrita, ou na arte em geral. E do que ela se salvaria, da condição de desamparo inerente ao sujeito? Forças destrutivas encontram-se no horizonte do processo criativo, ou quem sabe imbricadas nele do início ao fim?
Ferreira e Ferrari (2017) prosseguem salientando a função que a escrita de Virginia Woolf teria para a autora, função de borda para experiências traumáticas e de tratamento, por meio da palavra, de um resto inominável. Ressaltam que, por mais célebre que possa ser a escrita de Virginia Woolf, fracassou, ao não lhe permitir alcançar a verdade de seu ser e a não auxiliar na criação de uma borda para seu sintoma. As autoras entendem que Virginia Woolf se põe a escrever com o intuito “de conter um real que a invade e desestabiliza” (Ferreira & Ferrari, 2017, p. 86). Não estariam as autoras fazendo uma psicanálise aplicada?
Se, para Lacan, o real não cessa de se escrever, em Virginia isso se apresenta de uma maneira muito clara. Com ela, um acontecimento é reescrito inúmeras vezes, e isso se refere não somente à aflição vivida, de forma atormentada, pelo indizível, mas também pela necessidade de aplacar o risco de desabar sobre si mesma. (Ferreira & Ferrari, 2017, p. 88)
Se Virginia escrevia para dar borda àquilo que não pode ser circunscrito psiquicamente, se fazia uma tentativa de elaboração de um trauma, não sabemos. Indagamos, contudo, o quanto desse indizível ela teve o talento de expressar em texto escrito: “é porque falta o saber sobre o real, no momento em que este surge, que se procura explicá-lo. E a autora passou a vida buscando esse saber” (Ferreira & Ferrari, 2017, p. 88). Seria a escrita de Virginia Woolf uma tentativa de saber sobre o traumático? Não seria toda escrita uma tentativa de saber sobre, ou dar borda, àquilo que se encontra para além do princípio do prazer? A potência de sua escrita não seria, justamente, a de dispensar uma compreensão e tensionar o compreendido?
Ao fim do texto, as autoras respondem à indagação anteriormente feita: o que, na escrita de Virginia, não a salvou do suicídio? No seu entendimento, diante do furo do traumático, as palavras são insuficientes. Virginia tentava, freneticamente, escrever tomada pela pulsão de morte; a escrita a arruinou. Sua escrita consistiria numa vã tentativa de dar borda ao que não pode ser circunscrito; depois de inúmeras tentativas fracassadas, ela se suicida. É impossível não indagar: como essa escrita, que “fracassa” em manter viva sua autora, sobrevive por um século? Talvez sua potência e “função” fossem outras.
Enquanto Mannoni (1999), Valle (2007) e Marcos (2007) apontam a escrita de Virginia Woolf como capaz de comunicar o incomunicável e evocar o traumático do encontro faltoso, Cavalcanti e Francisco (2016) e Ferreira e Ferrari (2017) parecem sugerir que a escrita de Virginia Woolf tinha por função a elaboração de traumas vividos pela autora. A primeira perspectiva é a que nos convoca neste trabalho; é por pensar a escrita, a produção artística, como capaz de fazer furo em um discurso e abalar suas estruturas – ao evocar o lapso, a falha, a lacuna, o trauma – que percebemos a potência da arte diante do discurso psicanalítico. O discurso psicanalítico não é absoluto e completo. A produção artística que puder apontar sua incompletude muito lhe é importante, pois o põe em movimento, o faz crescer, evoluir, construir, desconstruir, reconstruir suas bases. A segunda perspectiva parece apontar para um discurso psicanalítico soberano, que a tudo e a todos interpreta, extrapolando um limite sutil, mas essencial à prática psicanalítica: interpretar apenas a quem se puser, ativamente, na posição de ser interpretado. Escutar uma obra de arte envolve não a tomar como objeto de uma interpretação, mas como ato interpretante que desvela o não dito e, mais além, expressa o indizível da subjetividade de sua época.
Trazemos agora Virginia Woolf, para que a autora fale por si, onde ela permite avançar a psicanálise freudiana, em sua experiência como mulher escritora. Em Um teto todo seu, a autora disserta sobre o feminino e a arte da escrita. Ela nos conta da escrita como uma conquista: árdua, paciente e persistente. O escrito versa sobre dinheiro, espaço, independência. Temas que fazem aparição em vários dos ensaios feministas escritos por Virginia. Coisas tão importantes e, às vezes, inacessíveis para uma mulher, ainda mais uma mulher da virada do século XIX para o XX. Diferenças entre os gêneros aparecem sob a forma de diferenças de direitos, espaços, reconhecimento, possibilidade de criação. Woolf (1929/2014, p. 41) questiona: “por que os homens bebem vinho e as mulheres, água? Por que um sexo é tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tem a pobreza sobre a ficção? Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte?”.
Um teto todo seu é sobre a possibilidade, ou melhor, a impossibilidade de escrita das mulheres. Mulheres que não têm tempo, estudo, recursos financeiros, mulheres que têm que trabalhar para dar conta de sua existência, porque somente quando a autoconservação está apaziguada é que o sexual, em sua forma sublimada (literatura), ganha vez, como notava Freud. Woolf (1929/2014, p. 64) escreve que o trabalho imaginativo, a ficção, é como uma teia de aranha:
[…] quando a teia é puxada meio de lado, enganchada pela borda, rasgada na metade, é que se lembra que elas não são tecidas em pleno ar por criaturas incorpóreas; essas teias são o resultado do sofrimento de seres humanos e estão inteiramente presas a coisas materiais, como saúde, dinheiro e a casa onde se mora.
O que é preciso para que uma mulher, para que qualquer pessoa, possa escrever? Um teto todo seu. Um quarto todo seu. No original, A room of one’s own. Um espaço todo seu.
Em Orlando, Virginia Woolf (1928/2014) escreve sobre um corpo ora feminino, ora masculino, sobre desejos femininos e masculinos, sobre a mulher e o homem que coabitam cada sujeito. Por vezes, um toma a frente; por vezes, outro. A obra tem um caráter um tanto mítico; exprime, na vida de Orlando, aproximadamente 350 anos. Na primeira “metade” de sua vida, Orlando é um homem, mas um homem que carrega consigo características que podem ser vistas (ainda mais na época em que a história se passa e na época em que o romance foi escrito) como femininas. Orlando preza mais a escrita de seus poemas do que as batalhas de suas (não tão suas) guerras. Amante da contemplação, costuma passar horas deitado sob as rígidas raízes de um carvalho a contemplar sua casa; trata-se, na verdade, de um vilarejo: Orlando é um nobre. Na segunda “metade” de sua vida, após um sono de uma semana, Orlando acorda mulher. A mudança em seu sexo, em seu gênero, não a alarma; no entanto, passa a ter que encarar o desafio de ver o mundo sob… uma perspectiva feminina? Não, parece seguir vendo o mundo sob sua própria perspectiva. Sua, de seu ser, de seu sujeito. Mas esse sujeito passa a se posicionar no discurso de maneira diferente, antes como homem, agora como mulher, mas ontem, hoje e sempre como masculino e feminino. O desafio talvez fosse então ver o mundo desde um corpo de mulher.
O livro nos convoca a pensarmos sobre questões, tão atuais, de gênero e sexualidade. Homens em corpos de mulheres, mulheres em corpos de homens, sujeitos de desejos independentes da anatomia: “em todos os demais aspectos, [Orlando] continuava a ser precisamente como era antes” (Woolf, 1928/2014, p. 142). E segue Woolf (1928/2014, p. 179):
Apesar de diferentes, os sexos se misturam. Em cada ser humano ocorre uma vacilação entre um sexo e outro, e frequentemente são apenas as roupas que sustentam a aparência masculina ou feminina, enquanto, por baixo delas, o sexo é o oposto do que se vê na superfície.
Enquanto a psicanálise se ocupava em entender a sexualidade humana, Woolf trazia sua contribuição literária ao assunto. Podemos “despsicanalisar” Virginia Woolf circunscrevendo um ponto onde ela permite um olhar literário que amplia um olhar psicanalítico.
Considerações finais
É tempo de concluir. Ao longo deste artigo, propomos uma discussão metodológica acerca da escuta psicanalítica de obras artísticas.
Dentre as distintas formas de arte, escolhemos a literatura e, dentre inúmeros escritores, escolhemos Virginia Woolf. Por quê? Virginia Woolf lutou, por meio de sua escrita, por um espaço para as mulheres de seu tempo, inclusive um espaço para que pudessem escrever. Ao escreverem, as mulheres ganhavam voz, espaço público e liberdade de se expressar, conquistas preciosas para as mulheres da sociedade patriarcal vitoriana. Virginia Woolf atrai nossa atenção por escrever sobre mulheres, para mulheres, como mulher, na mesma época em que o fundador da psicanálise se debate com as dificuldades impostas pela tarefa de criar uma teoria psicanalítica sobre a feminilidade. Enquanto Freud aconselha seus leitores a recorrer aos escritores em busca de respostas sobre a feminilidade, Virginia Woolf publica sobre o tema. Com isso, não estamos afirmando que Woolf responde aos questionamentos levantados pela psicanálise, mas possibilita, através de sua produção, que a psicanálise vá além em suas reflexões acerca da sexualidade feminina.
Mas, ao procurar respostas a questões científicas na arte, mais especificamente na literatura, a psicanálise pode correr o risco de se repetir, de usar a literatura e o artista para comprovar aquilo que já sabe, para, mediante um dispositivo cultural, confirmar aquilo que sua teoria afirma e sua clínica supostamente apresenta. Propomos, então, uma reflexão teórica que visa ponderar como o método psicanalítico criado por Freud – associação livre e atenção flutuante – pode operar na escuta de uma obra de arte “sem que os fundamentos da escuta psicanalítica se extraviem” (Antoniazzi & Weinmann, 2018, p. 68). Em seu texto Sonhos e delírios na Gradiva de Jensen, Freud parece escutar a obra, fazer de sua leitura algo flutuante, deixar-se aberto para receber indícios, pistas do que está presente na obra de forma latente. É por meio da linguagem que tal leitura flutuante se torna possível; Freud escuta, ou melhor, lê, o modo como Jensen brinca com as palavras em seu romance Gradiva: uma fantasia pompeiana. Jensen imbui seu protagonista, Norbert, de um psiquismo, a palavra fantasia no título já nos indica isso, e Freud é sensível a esse psiquismo ficcional. Os ditos são sintomas, as pontes verbais são formações de compromisso entre consciente e inconsciente; Jensen constrói isso e Freud consegue escutar. Não é apenas por meio de uma análise do conteúdo da obra que Freud faz dialogar o romance com os pressupostos psicanalíticos, mas também pela utilização do método clínico em sua leitura. Freud percebe palavras e sentidos que se repetem, expressões que se equivalem, frases ambíguas, trocadilhos, a relação entre as diferentes línguas; é à linguagem do romance que a psicanálise escuta.
Virginia Woolf e suas questões pessoais foram alvo de interpretação de muitos psicanalistas, mesmo sem seu consentimento. Sua obra tem uma potência incrível, toca e sensibiliza seus leitores; associar sua produção, diretamente, a suas vivências pessoais pode resultar numa simplificação da autora como sujeito e numa redução de sua obra a relatos biográficos carregados de efeito estético. Talvez interpretar sua obra como resultado imediato de suas vivências seja uma maneira de resistir aos efeitos que sua escrita provoca, como se fosse algo só dela, e não, de certa maneira, compartilhado por seus leitores. É por meio de seu talento como escritora, da forma como emprega a linguagem em sua produção textual, que a psicanálise pode escutar sua obra.
Contudo, não queremos com isso afirmar que a produção artística independa da vida do artista. Isso seria uma forma de negar as vivências daquele sujeito singular e o quanto tais vivências e seus efeitos contribuem para aquele sujeito ser quem é e produzir o que produz. Talvez o material literário de um escritor possa estar estreitamente ligado às suas experiências e estas serem a matéria bruta de sua escrita; apenas indagamos que direito temos de construir essa ligação e usá-la para demonstrar nossos pressupostos. Entendemos, também, que mesmo num texto como Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen há uma interpretação da obra, mas o tom é diferente, bem como o método; o autor não é interpretado, é considerado uma alteridade e Freud frequentemente infere as intenções e impressões do autor; qualquer possível projeção da vida do autor no conteúdo do romance é posta de lado; o conteúdo da obra, em si, não é o aspecto principal da análise, mas os códigos de linguagem, as pontes verbais, tanto que Freud trabalha, na maior parte do escrito, com citações diretas do romance original.
Arte e ciência, literatura e psicanálise se construindo, paralelamente, se delineando, mutuamente, se influenciando, se mesclando, se diferenciando, trocando: essa interação resulta em riqueza teórica e artística.