Introdução
Pesquisas no campo da psicologia das famílias contribuem na direção das possibilidades de repensar a instituição familiar, mostrando suas transformações, dando visibilidade, inclusive, às famílias homoparentais (Lomando et al., 2011). Arranjos familiares constituídos por pais e mães do mesmo sexo deixaram de ser invisíveis nos estudos dedicados à família e às relações de parentesco nas sociedades contemporâneas desde há alguns anos. Nessa perspectiva, o campo midiático tem contribuído para tornar o fenômeno da paternidade gay mais visível na contemporaneidade (Cavalcante, 2015; Booth, 2017).
No âmbito acadêmico, a temática “família” também vem ganhando cada vez mais ênfase. Âmbito que tem produzido debates, confrontado discursos até então institucionalizados, e trazido à tona diálogos polêmicos e complexos. No entanto, a família, como aborda Teruya (2016) em sua revisão teórica, é uma instituição responsável pela mediação do indivíduo com a sociedade, que sofre influências econômicas, sociais, culturais e demográficas e tem a capacidade de influenciar mudanças sociais e culturais.
O modelo de família nuclear, cisheteronormativo, patriarcal tornado hegemônico vem sofrendo alterações decorrentes de eventos marcantes ao longo da história. Entre tais eventos estão a urbanização e modernização das cidades, novas formas de organização do trabalho, mudanças no lugar e papel da mulher, reconhecida na condição de cidadã, a construção da concepção de infância, ressignificando a posição das crianças na sociedade e assim por diante. Esses acontecimentos possibilitaram o questionamento de modelos tradicionalmente construídos, trazendo à tona novas visões e “novas formas” de família, promovendo e visibilizando sua diversidade. Tal questionamento, de acordo com Santos et al. (2013), tem potencial para impulsionar a legitimação da homossexualidade e a elucidação acerca de sua naturalidade. Dentre as novas formas de arranjo familiar estão aquelas constituídas por pais e mães homossexuais.
Família e sexualidade não eram termos que apareciam juntos com frequência (Uziel, 2004; Fonseca, 2005), apesar de sua relação intrínseca. A relação estabelecida por Santos et al. (2013) entre esses dois conceitos refere-se a tais categorias como fruto de uma construção social, carregando consigo memórias e traços de um estilo de vida considerado como exemplar perante a sociedade. Santos e Gomes (2016) atentam para as dificuldades enfrentadas por pais e filhos, na condição de família homossexual, na tentativa de legitimar esse modo de vida. A formação da paternidade gay afeta e é afetada pelo contexto social em que se insere, evidenciando que as experiências de pais homossexuais ainda são moldadas pelo discurso heteronormativo vigente (Tsfati & Ben-Ari, 2019). Ainda que ter filhos não signifique procriar, como a prática da adoção demonstra, a cisheteronormatividade naturaliza práticas sexuais entre pessoas de sexos diferentes como produtoras de filiação e parentalidade. Nessa perspectiva, a pesquisadora Martine Gross evidencia a necessidade de distinguir procriação e filiação, como um caminho que busca “abrir espaço para a possibilidade de inscrever a pluralidade de formas familiares na realidade legal e social” (Gross, 2006, p. 19).
Numa pesquisa com o termo homoparentalidade no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES1 em agosto de 2020, aparecem 48 dissertações e 18 teses, totalizando 66 trabalhos. Desses, 42 foram defendidos nos últimos 5 anos. São pesquisas realizadas com famílias homoparentais, bem como trabalhos que abordam a perspectiva de grupos diversos sobre a homoparentalidade. Certamente esse número não retrata o universo de trabalhos realizados no Brasil sobre esse tema, visto que as palavras-chave utilizadas para se referir a famílias compostas por adultas lésbicas ou adultos gays e sua prole, quer oriundos de relações heterossexuais anteriores, quer por adoção ou reprodução assistida, podem ser muitas outras. Isso significa dizer que cada vez mais essa temática tem despertado a atenção de pesquisadoras e pesquisadores em todo o país e certamente há uma vastidão de temáticas a explorar, como a deste estudo, que pretende pensar na constituição, especificidades e vivências de pais gays em cidades do interior.
Mediante pesquisa cartográfica, que se faz com o caminhar da pesquisa, um procedimento que produz a realidade, que mapeia movimentos de deriva (Hur, 2021), vivemos a experiência de inserção e convivência com famílias homossexuais constituídas por mulheres e por homens. Além desse compartilhamento de momentos cotidianos, fomos conhecer cenários de convivência escolar de filhos e filhas de pais gays e mães lésbicas, por meio de visitas às escolas e conversas com professores(as) e gestores(as) escolares. Conhecemos as histórias e vivências de nove casais homossexuais de cinco municípios do interior do Rio Grande do Sul, especificamente da região central do estado, que variam desde uma população de 120.000 habitantes (o maior deles) até um pequeno município de 14.000 habitantes. No total, estavam envolvidos 18 adultos em homoconjugalidades, 16 filhos, além dos parentes da família estendida. As idades dos filhos variavam desde 2 anos até aqueles com mais de 20 anos, e alguns pais e mães entrevistados já eram avós.
De acordo com Gomes (2019), não há uma definição precisa, por parte de organizações oficiais, tais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA), sobre “cidades do interior”. No entanto, este autor utiliza os pressupostos do Dicionário Michaelis (2015) para o desenvolvimento de seu estudo, referindo-se ao interior como: “posição ocupada por determinada região na relação com fronteiras ou a costa de um país, ou então na localização externa tomada diante da capital de um estado”. Gomes destaca que, para além da definição generalizante do termo em questão, as particularidades do contexto observado devem ser consideradas. Somente assim será possível compreender as marcas que emergem a partir do fluxo e dos encontros dialógicos.
O interesse em investigar o universo homoparental em contextos do interior se deve, em parte, à ausência de pesquisas com esse recorte (Lira & Morais, 2016), e também por reconhecer que a presença de famílias homossexuais no cenário social, para uma significativa parcela da população brasileira, representa ameaça concreta às normas sociais e de gênero vigentes. Dentre os motivos associados ao caráter visto como ameaçador, que ousamos compreender como desestabilizador, está o abalo da ideia que associa heterossexualidade, casamento e filiação (Arán & Corrêa, 2004) como um caminho ou destino normal, natural, da essência dos gêneros. Ou melhor, da complementaridade entre os sexos. De modo geral, tal aspecto é denominado pela pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus (2013) como heterocentrismo, no qual está inserida uma crença simbólica negativa relacionada à população homossexual. A filiação seria o resultado esperado do encontro entre as diferenças das identidades sexuais caracterizadas como heterossexuais, e apenas delas. Estudos destacam o preconceito atávico ainda vigente, acirrando o sentimento de desigualdade dos homossexuais perante os heterossexuais (Prado & Machado, 2008; Corbett, 2009; Cowell & Saunders, 2011; Hollekim et al., 2012; Jesus, 2013), uma vez que a homoparentalidade desafia esse modelo conjugal e parental binário normalizador (Gross, 2015).
Metodologia: tecendo encontros
Como cartógrafos, acompanhamos processos de produção (Kastrup, 2015) e de constituição (Barros & Kastrup, 2015) dessas parentalidades, algo que se traduz por conhecer a realidade e que só pode ser realizado por meio de uma imersão no plano da experiência (Passos & Barros, 2015). O método cartográfico propõe um trabalho de análise que visa descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade. Nesse processo, destacamos duas etapas fundamentais, a produção de dados (em vez de coleta de dados) e a escrita do texto com os resultados da inserção e análise da implicação e da experiência de investigação.
Conforme Barros & Kastrup (2015), tais atividades cartográficas têm uma perspectiva construtivista e visam apontar a dimensão coletiva dessa construção, prezando por um conhecimento produzido na prática, onde pesquisador(a) e seu objeto de estudo são, ao mesmo tempo, construtores e efeitos do processo. Além disso, não existe neutralidade na produção de conhecimentos, algo que requer a suspensão do a priori do(a) pesquisador(a), assemelhando-se a uma redução fenomenológica (Passos et al., 2015).
Ainda que as cidades que integram a pesquisa sejam de portes diferenciados, compartilham um certo ethos, uma atmosfera interiorana que se expressa em maior convivência entre as pessoas, circulação nos mesmos espaços, participação na vida alheia, ainda que sem consentimento, por meio de fofocas (Fonseca, 2004) que julgam condutas e encerram concepções sobre honra. Talvez por serem cidades do interior, tenha sido possível compor percursos dos(as) pesquisadores(as) que acompanharam seus entrevistados em vários dos locais que frequentam, além de suas próprias casas, com direito a convite para almoçar, permitindo a convivência.
Imbuídos dessa perspectiva, a escrita deste artigo está voltada para a construção dos cenários de vivências e experiências de homens pais gays, construção que se deu por inserções, observações, escutas e teorizações. Os participantes dessa pesquisa foram selecionados a partir dos critérios: homens gays, assumidamente gays ou não, que vivem relações homoconjugais e que ocupam a posição de pais. A localização dos participantes se deu em efeito bola de neve, no qual os entrevistados indicavam outros possíveis casais, a partir da sua rede pessoal, que poderiam ter interesse em participar da pesquisa (Vinuto, 2014).
No trabalho de campo convivemos com três casais masculinos, seis homens na faixa etária entre 25 e 45 anos, residentes em municípios do interior da região central do estado do Rio Grande do Sul (as demais características são apresentadas na Tabela 1). Os entrevistados se autodeclaram brancos, com grau de escolaridade que varia entre ensino médio completo e graduação completa, todos trabalhadores autônomos, assumidamente gays, vivendo em relações homoconjugais. Neste artigo serão identificados por nomes fictícios: Sílvio e Vítor, Hugo e César, Vini e Rogério.
César | Hugo | Vitor | Silvio | Vini | Rogério | |
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Idade | 29 anos | 34 anos | 34 anos | 44 anos | 29 anos | 25 anos |
Escolaridade | Superior completo | Superior completo | Médio completo | Médio completo | Superior completo | Superior completo |
Filhos | — | 1 filho: 10 anos | 2 filhos: 5 anos 2 anos | 3 filhos: 24 anos 20 anos 14 anos | 2 filhos em processo de adoção: 4 anos 2 anos | |
Tempo de casamento hétero | 2 anos | 1 ano | 10 anos | 23 anos | — | — |
Tempo de casamento homo | 2 anos e seis meses | 4 anos | 7 anos |
Resultados
Das famílias não convencionais
Os estudos realizados pela pesquisadora Anna Paula Uziel (2007) apontam que, em relação à estrutura familiar, sujeitos homossexuais ocupam tanto as posições de filhos quanto de pais. Não se trata de uma grande novidade, e sim de maior visibilidade dessas possibilidades, o que contribui para transformações na concepção de “entidade familiar”, ou de família, dando condições de emergência para configurações que vêm sendo chamadas de “famílias homossexuais” (Grossi, 2004; Teperman, 2014), as quais podem ser compreendidas também por meio da terminologia “famílias homoparentais”. Homoparentalidade remete a “qualquer situação em que uma pessoa que se identifique como homossexual crie pelo menos um filho” (Gross, 2006, p. 1).
Esses contextos familiares ressignificam experiências, tanto parentais quanto de filiação, e reinscrevem, simbolicamente, os sujeitos na relação com a sociedade, com a cultura, e com os códigos normativos. Isso porque a homoparentalidade resulta de “configurações familiares em que pais do mesmo sexo criam filhos adotados ou concebidos em uma união heterossexual derrotada, recorrendo a um terceiro doador, pela GPA2 ou dentro da estrutura de um projeto de coparentalidade” (Gross, 2015, p. 4).
A família é a instituição primordialmente encarregada da transmissão de atitudes e valores compatíveis com aqueles almejados por determinado sistema social, principalmente pela socialização das crianças. Por essa razão, quando o assunto se volta para os filhos nos arranjos homoeróticos (Uziel, 2007), as questões se tornam polêmicas, pois remetem imediatamente ao imaginário familiar-parental, aos modelos de filiação alicerçados no discurso psicológico familialista edipianizado, desenvolvimentista e moral.
Para Domínguez de la Rosa & Montalbán (2016), o entendimento social acerca desse novo modelo familiar “está sujeito a profunda ignorância” (p. 89, tradução livre), o que desencadeia o fortalecimento de preconceitos e de julgamentos. De acordo com os autores, a razão principal para tal desconhecimento é o fato de que a família é a instituição que carrega a missão de reproduzir as normas socioculturais, políticas e econômicas vigentes. Para alguns dos sujeitos que foram nossos interlocutores ao longo desta pesquisa, “família é aquela que cuida um do outro, independente de quaisquer outros fatores. Não importa se é uma família com dois pais, duas mães, uma mãe ou um pai. Onde há amor pode sim existir uma família” (Vini e Rogério).
Apesar de você, amanhã há de ser outro dia: sobre sair e “ser saído” do armário
Consagrada por Sedgwick (2007) em 1993, a referência ao armário como regulação da vida de gays e lésbicas continua sendo uma metáfora importante para essa população, que precisa, com frequência, guardar segredo sobre sua orientação sexual. Sobretudo, ainda hoje, apesar de todas as mudanças, por um medo social de contaminação de crianças e adolescentes, sobretudo se forem filhos e filhas.
Pode um sujeito homossexual (homem ou mulher) exercer a parentalidade sem sair do armário3? Sim. Entretanto, quando se deseja exercer essa parentalidade desde o lugar de pai gay ou mãe lésbica, as barreiras de um “armário” precisam ser superadas. Nesse contexto, o movimento de saída do armário está intimamente relacionado à revelação da homossexualidade perante seus familiares, filhos, amigos e comunidade. Tal revelação contribui para melhorar aspectos da saúde mental de pais gays (Shenkman & Shmotkin, 2020). Para os nossos entrevistados Vini e Rogério, que nos receberam em sua casa, “[…] foi bem estranho… não tínhamos ideia de que teríamos coragem de sairmos do armário (risos). Mas como se diz: o amor sempre prevalece. Não foi nada fácil. Hoje estamos fazendo o nosso melhor para sermos respeitados”.
Vini e Rogério, como tantos outros casais de pessoas de mesmo gênero, precisam revelar que são um casal, mesmo que as evidências o mostrem. Tal revelação, quase uma confissão, vira peça chave na construção de uma idoneidade que precisam conquistar para obter respeito social, como dizem. Ainda hoje, o amor, o afeto, o respeito mútuo, um projeto de vida em comum não são suficientes para o reconhecimento do casal, se forem pessoas de mesmo gênero.
Para Sílvio, que o processo de saída do armário foi um pouco mais traumático, pois se viu, praticamente, “arrancado” do armário:
[…] meu filho mais velho me pegou nas redes sociais e jogou no ventilador, nunca vou esquecer aquele dia. Foi uma briga difícil, meu pai estava lá, eu e minha família toda. Minha filha mais nova estava na escola. Naquele momento foi difícil para mim, mas uma semana depois… duas, já me senti aliviado e senti que isso precisava ter acontecido antes.
Silvio e Vitor são casados há quatro anos. Eles nos receberam em seu lar, onde permanecemos durante aproximadamente três horas, realizamos as primeiras aproximações na sala de estar, acompanhamos o preparo do almoço e o partilhamos.
Passados mais de 40 anos desde as primeiras pesquisas psicológicas sobre a influência da sexualidade dos pais homossexuais no desenvolvimento dos filhos (Robinson & Skeen, 1982; Bozett, 1987), o tema ainda é presente e recorrente no âmbito acadêmico. Vários artigos que se dedicaram a fazer revisões sistemáticas da literatura científica sobre pesquisas com famílias homossexuais, ou sobre adoção por casais homossexuais, paternidade gay, maternidade lésbica, nos últimos 10 anos, nas principais bases de dados, SciELO, LILACS, PePsic, Index Psi, PsycINFO, Oxford, Wilson, mostraram que ainda persiste a dúvida se a homossexualidade dos pais poderá interferir no desenvolvimento emocional, psíquico, sexual e social dos filhos (Lira & Morais 2016; Araldi & Serralta, 2016; Cecílio et al., 2013; Nascimento et al., 2015), e de que formas.
Essas mesmas revisões demonstraram que há significativa produção científica que afirma não existir prejuízos no desenvolvimento emocional, social, sexual de filhos de pais homossexuais em relação aos filhos de pais heterossexuais, ou seja, que a orientação sexual e afetiva dos pais, por si só, não é responsável por problemas no desenvolvimento emocional dos filhos, e sim a qualidade da dinâmica relacional familiar entre pais e mães e seus filhos (Araldi & Serralta, 2016; Doussa et al., 2016). Filhos de pais homossexuais apresentam dificuldades tais como filhos de pais heterossexuais. Esses resultados reforçam aqueles que já haviam surgido em pesquisas da década de 70, conforme descrito por Roudinesco (2003).
Quando se articulam questões de parentalidade com conjugalidade, produções científicas já indicavam, anos antes do reconhecimento brasileiro pelo STF em 2011, os efeitos positivos da legalização do casamento para a vida dos casais homossexuais, afirmando que tais efeitos relacionam-se com o bem-estar físico e psicológico dos cônjuges (Arán & Corrêa, 2004; Rios, 2007). O aumento do reconhecimento legal da união entre homossexuais em diversos países (Fernández & Lutter, 2013) contribui para que os casais busquem a parentalidade de maneira conjunta, assumindo publicamente seus relacionamentos afetivos.
Mesmo assim, a discriminação, o preconceito e a homofobia ainda são muito presentes no contexto social e atingem os principais envolvidos (Hollekim et al., 2012; Baiocco et al., 2013). As falas de Sílvio e Vitor são representativas, quando afirmam: “[…] acho que é esse tipo de coisa que as pessoas precisam tirar da cabeça, que os casais homoafetivos são pessoas que não possuem vínculos fortes para criar um filho.” Destacamos a importância do reconhecimento jurídico das uniões homossexuais, bem como da legitimidade do contexto familiar homoparental, como formas institucionais que contribuem para o enfrentamento do estigma e do preconceito que ainda atingem tal população. O estigma e a discriminação continuam sendo temas de destaque em pesquisas científicas na literatura nacional e internacional (Araldi & Serralta, 2016). Casais homossexuais continuam a ser estigmatizados em função de sua condição de minoria sexual (Lomando et al., 2011). A homofobia ostensiva, a ocultação da orientação sexual e o que alguns autores nomeiam como homofobia internalizada são, reconhecidamente, fatores estressores das minorias sexuais, afetando negativamente a vida dos casais e das famílias, que diminuem os níveis de satisfação conjugal, com repercussões no bem-estar e na saúde mental dos envolvidos (Henderson et al., 2009).
Além disso, a homofobia pode ser considerada um indicador importante nos índices de saúde física e mental dos pais e mães e dos filhos (Goldberg & Smith, 2009). Ainda na mesma linha, nosso entrevistado relata ter cometido tentativa de suicídio, pois sentia que “não tinha para quem falar, para revelar essas coisas, conversar.” Sentia-se sozinho, com medo da forma como os outros reagiriam diante da sua sexualidade revelada.
Ao cotejarmos dados da literatura acadêmica sobre estigma e preconceito com nossa vivência com pais gays em contextos do interior do estado do Rio Grande do Sul, questionamo-nos e questionamos os sujeitos entrevistados sobre o peso de tais preconceitos e as respectivas formas de ser e viver em meio aos costumes e tradições “heterodefinidoras”. Sílvio e Vítor, num encontro ocorrido na casa do casal, almoçando juntos, nos disseram:
[…] o preconceito é bem forte, mas aos poucos estamos conseguindo o nosso espaço. O fato de todos se conhecerem [cidade do interior] é mais complicado para os gays, lésbicas, bis e trans, pois essa proximidade traz o preconceito, ao mesmo tempo estamos mostrando que somos um casal, uma família tão boa quanto as outras, consideradas “normais”.
Com uma fala que expressa de forma muito semelhante a rigidez do contexto do interior, Hugo nos contou que em sua cidade de origem, interiorana, sentiu muita dificuldade em se assumir gay; por essa razão, manteve relacionamentos heterossexuais durante a adolescência e juventude, período em que se tornou pai e se casou com uma garota. Passados alguns anos, sua (atualmente ex-)esposa o compreendeu e o apoiou durante o processo de saída do armário: “nós sempre fomos muito amigos e somos até hoje.” Hugo e César foram os primeiros entrevistados; são casados há 2 anos e seis meses e nos receberam em seu apartamento. Enquanto conversávamos, César preparava um chimarrão, bebida tradicional do Rio Grande do Sul, e a partilhamos em estilo de roda. Permanecemos dialogando durante aproximadamente duas horas.
A concretização de um casamento heterossexual foi e continua sendo uma estratégia nada incomum entre homens, pais (gays) que não saíram ou não querem sair do armário, nos contextos que percorremos, tão marcados pela homofobia. A terminologia homofobia refere-se ao medo irracional da homossexualidade, produzindo reações irracionais e o desejo de destruir o estímulo da fobia (Nardi & Quartiero, 2012). Além disso, pode significar aversão, discriminação, preconceito. Referindo-se a esses aspectos, Vítor nos relata o que já experimentou:
[…] o preconceito, às vezes, a gente não sente diretamente, mas a gente sabe onde é bem-vindo e onde não é. Tu vais a um restaurante e as pessoas ficam te olhando… nós somos muito espontâneos, a gente se chama de “amor” e “mor” e os outros já se viram para ver quem é esse “mor”.
As experiências desses homens enriquecem nosso entendimento acerca da construção de pais gays nos dias atuais. O preconceito ainda existe, persiste e se apresenta de forma mais ou menos sutil, dependendo da situação, exacerbando as diferenças de olhares entre pais homo e heterossexuais. Em contrapartida, um campo de renovação social é alicerçado por nossos entrevistados à medida em que desafiam o contexto sociocultural patriarcal vigente, na busca de legitimidade para suas experiências homoconjugais e de paternidade gay.
Paternidade gay
Autores como Carneiro et al. (2017) resgatam análises de literatura acerca da parentalidade em casais homoafetivos, as quais constataram que as particularidades da paternidade gay têm sido pouco abordadas nas pesquisas sobre o tema. Além disso, são poucos os estudos que incluem pais gays e bissexuais em suas investigações (Anderssen et al., 2002; Crowl et al., 2008; Fedewa et al., 2015).
Os primeiros estudos sobre a parentalidade de gays e lésbicas foram realizados nos Estados Unidos e datam do final da década de 1970, tendo acompanhado avanços na igualdade de gênero conquistados por movimentos feministas e de libertação gay, tais como a retirada da homossexualidade como transtorno mental do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) da American Psychiatric Association, em 1973 (Carneiro et al., 2017). Os autores apontam que tais estudos, inicialmente, foram realizados com o objetivo de verificar os efeitos da parentalidade gay e lésbica sobre os filhos, uma vez que se constatou, no período mencionado, um aumento do número de pais e mães que se revelaram gays ou lésbicas, gerando tensões nas batalhas de custódia de seus filhos. Durante a década de 90, o avanço das técnicas reprodutivas – mais especificamente, a inseminação artificial – gerou um expressivo aumento do número de casais de mulheres com filhos e de mães lésbicas e bissexuais, em especial nos Estados Unidos, fenômeno que foi denominado como “lesbian baby boom” (Carneiro et al., 2017, p. 1), ou seja, uma “explosão de bebês” entre as mulheres lésbicas e bissexuais.
Mundialmente, ainda há restrições à homoparentalidade, a exemplo da Europa, onde a maioria dos países proíbe a cessão de útero e a adoção – permanente ou temporária – para casais do mesmo sexo (Carneiro et al., 2017). Há diferenças geracionais nos caminhos para a paternidade adotados por homens gays, de modo que grande parte dos homens gays mais velhos se tornaram pais em relacionamentos heterossexuais, antes de revelarem sua homossexualidade, ao passo que homens gays mais jovens tendem a fazê-lo por outros meios (Tarnovski, 2017).
Homens gays têm se tornado pais de modos bastante diversificados, dentre eles: contribuindo com o sêmen em situação de coparentalidade com mulheres lésbicas; buscando cessão de útero; exercendo a coparentalidade de filhos de seus companheiros; abrindo processos de adoção. Dos casais masculinos com os quais convivemos, todos se tornaram pais em relações heterossexuais anteriores ao “assumir-se”, ou seja, a sua parentalidade não foi construída numa conjugalidade gay, o que talvez seja uma marca do interior, que levantamos como uma suposição.
Seus filhos têm idades variadas, os mais novos continuam morando com as mães e os mais velhos morando nas suas próprias casas, na grande maioria em conjugalidades heterossexuais. Ressalta-se o fato de que nenhum dos filhos morou com os pais após seu processo de separação e da saída do “armário”. Nosso entrevistado comenta, quando questionado sobre a convivência com seus filhos:
O meu filho mais novo ficou sempre do meu lado nesse aspecto, sempre me apoiou. O filho do meio sempre foi na dele […] ele virou a cara no começo, um mês… dois. Hoje ele vive normal comigo, nos visita, quando ele vem de São Paulo sempre vem aqui. A mais nova sempre foi minha, ela aceitou e também vem aqui com nós uma vez por mês.
Não localizamos casais masculinos com filhos oriundos da construção do projeto de parentalidade conjugal. Dos três casais masculinos entrevistados, dois relataram perspectivas de construção de projeto de parentalidade conjunta por meio de adoção. Nosso interlocutor comenta que “Eu sempre quis ter filhos. Desde sempre me imaginava como pai […]”. Levantamos alguns questionamentos: o desejo de parentalidade se funde com a ideia de construção de uma família decorrente daquela união? O fato de um deles já ser pai despertou o desejo de paternidade no outro componente do par? A espera e a chegada de um filho comum tem preponderância na marcação de posição de que se trata de outra família agora?
Embora esses casais não reflitam essa tendência, talvez por se tratar de cidades mais conservadoras, há que se destacar uma notável diferença geracional entre aqueles homens que se tornaram pais no contexto de uma relação heterossexual e uma “nova” geração de homens que se tornaram pais já tendo “saído do armário”, assumidos (Tarnovski, 2017; Saraiva, 2007). A diferença é percebida no processo de integração da identidade sexual à parental. A presença, pela construção, de um projeto de parentalidade na conjugalidade gay pode ser considerada um indício dessa integração.
Quando comparadas as percepções sociais acerca de pais gays e mães lésbicas, nota-se que elas diferem significativamente entre si. Conforme evidenciado por Carneiro et al. (2017), tal aspecto relaciona-se ao fato de que casais de homens com filhos desafiam expectativas de gênero relacionadas ao exercício da parentalidade e ao modelo hegemônico de masculinidade, com o que tendem a ser julgados negativamente mais do que casais de mulheres, uma vez que, culturalmente, vincula-se a feminilidade ao cuidado e às responsabilidades parentais.
Segundo um estudo realizado por Jenkins (2013), citado por Carneiro et al. (2017), tanto homens gays que tornaram-se pais em relacionamentos heterossexuais quanto aqueles que constituíram “famílias intencionais” (p. 3, tradução livre), alinhando-se ao que temos chamado em nossa pesquisa de projeto de parentalidade – filhos gerados ou adotados no contexto de relações homoafetivas em condição de conjugalidade, a partir do desejo de cada casal de constituir uma família a partir de sua relação –, identificam como um dos maiores impasses em suas vidas a falta de reconhecimento da legitimidade dos relacionamentos homoafetivos (Carneiro et al., 2018, p. 3). E esses processos são diferentes entre homens e entre mulheres.
Quando observado o número de investigações voltadas ao cenário homossexual feminino, Gato & Fontaine (2014) as apontam como muito superiores se comparadas aos estudos com famílias homoparentais masculinas. Para os autores, algumas das razões estão associadas aos preconceitos em relação à parentalidade gay. Tais preconceitos se iniciam nas representações sobre masculinidade, pois pairam dúvidas relacionadas ao exercício da parentalidade sustentadas por crenças nas quais a representação da imagem do homem é construída por estigmas que o caracterizam como “predador de bebês” ou como “doentes sexuais” (Laguna Maqueda, 2018). Logo, a prática do cuidado é considerada como natural apenas quando é conduzida por mulheres. Quando homens, heterossexuais ou gays, exercem a parentalidade de forma exclusiva, sem mulheres, violam expectativas tradicionalmente construídas em torno do gênero masculino (Gato & Fontaine, 2014). Essa “pressão social” e “estigma institucional” aos quais a paternidade gay é condicionada atuam como fatores de risco para o bem-estar dessas famílias (Carneiro et al., 2018).
Além das representações tradicionais sobre masculinidade, estereótipos da homossexualidade masculina corroboram para pôr em questão a capacidade parental dos gays. Um dos estereótipos se apoia na associação entre gays e pedófilos, como se gays fossem propensos ao abuso sexual de crianças (Gross, 2015). Além dessa, persistem crenças de que gays não vivem em relações conjugais estáveis, o que prejudicaria o exercício da parentalidade. Tais preconceitos, além de se tornarem argumentos contra a parentalidade gay, também podem ser internalizados pelos próprios gays, comprometendo a motivação e o desejo pela parentalidade, impedindo-os de considerar a possibilidade de construir uma família com filhos (Laguna Maqueda, 2018), mesmo que assim o desejem.
Discussões: reflexões para um desfecho temporário
Nossa experiência na forma de pesquisa e convivência com casais gays confirmou alguns dados oriundos da literatura específica sobre parentalidade gay. Todos os entrevistados tornaram-se pais em relações heterossexuais; além disso, sofreram diante da possibilidade de assumir-se gay. Em suas narrativas de vida, principalmente nas lembranças de juventude, a homossexualidade aparece nebulosa, pouco vivida e afirmada. O “assumir-se” ocorreu na vida adulta, passados os 20 anos de idade e depois de experiências amorosas e conjugais com mulheres. Tornaram-se pais nesses arranjos heterossexuais, em que conseguiram firmar parcerias, casamentos e projetos de parentalidade.
As experiências de desejo e atração por outros homens eram percebidas como exclusivamente sexuais, e eram evitadas. A perspectiva de relação ou envolvimento sentimental não era considerada viável. Ou seja, o processo que culminou na saída do “armário” foi precedido de angústia, negação e sofrimento. O sofrimento era associado com assumir a homossexualidade, mas também com urgências relacionadas à separação das companheiras e às incertezas em relação aos filhos quando ficassem sabendo da existência do “pai gay”.
Seria a combinação parentalidade e homossexualidade percebida como incompatível para esses sujeitos? Quais as razões para essa incompatibilidade? Essa sensação ou ideia de incompatibilidade não é percebida somente pelos sujeitos da pesquisa, mas também por muitos homens gays ou bissexuais, e tem raízes históricas relacionadas com discursos sobre homossexualidade masculina. Nossos sujeitos tornaram-se pais, conviveram com seus filhos e após um tempo iniciaram o processo de saída do armário. Estariam tais experiências relacionadas a essa cronologia, como se pensassem “já sou pai, cumpri minhas obrigações sociais, agora posso viver plenamente minha homossexualidade!”?
Todos reportam uma vivência da sexualidade na adolescência muito marcada pela busca por relações com meninas, mesmo que pudessem estar sentindo alguma forma de atração por meninos. Suas infâncias e adolescências foram vividas em contextos de cidades do interior, nos quais mecanismos do preconceito estão presentes e, embora dissimulados, se fazem perceber. Preconceitos existem em todos contextos sociais, mas nas cidades do interior a vigilância sobre o outro é muito presente, todos olham tudo e todos a qualquer momento. “Todos se conhecem”, expressão muito comum entre aqueles que vivem ou viveram em contextos interioranos, algo que exprime muito bem as formas de vigilância e controle exercidas nesses contextos.
Não podemos, apressadamente, afirmar que esses homens se tornaram pais para testar suas masculinidades ou dar provas de virilidade. No entanto, também não podemos afirmar que todos desejavam se tornar pais. Todos, atualmente, falam com muito amor sobre a experiência paterna, sem arrependimentos. Mas a convivência com os filhos nos espaços públicos e privados, nas suas atuais residências, ainda é restrito. Esse aspecto pode ser observado na fala de Vini: “Os filhos dele [o companheiro] já vieram aqui em casa e os dois dormem com o Silvio e eu fico em outro quarto.” Também destaca que “a gente não demonstra afeto entre si enquanto as crianças estão aqui em casa”. Pairam, nas sutilezas das falas, algumas inseguranças que não estão relacionadas com intensidade de vínculo afetivo com os filhos, mas com modos de vida publicamente visíveis e afirmativos.
Um de nossos interlocutores, Hugo, relata a conversa que teve com seu filho quando ele ainda era criança, e por meio dessa conversa revela conteúdos associados ao entendimento acerca da incompatibilidade entre ser pai e ser gay presente nas narrativas sociais. Hugo nos contou que uma vez seu filho o questionou: “é verdade que tu me teve sem querer, porque tu é gay?” O que ele quis dizer com isso? Que a relação sexual com uma mulher acabou gerando filho, o que normalmente um gay não espera ter? Que a gravidez foi indesejada e, por constrangimento, o pai teve que assumir?
Tal colocação também nos instiga a pensar sobre o entendimento acerca da legitimidade instituída no vínculo parental: seria a parentalidade gay passível de reconhecimento de si mesmo e do outro, e de bem estar social, somente quando for resultado de ações sistematicamente planejadas? Nosso entrevistado complementa afirmando que a pergunta surgiu a partir de um comentário de um colega de classe do filho, na escola. Levantando algumas hipóteses, acreditamos que as narrativas de pais gays podem demonstrar maior ou menor sofrimento e frustrações, na medida em que se cruzam com características de classe, raça, idade, educação e emprego. Nesse caso, especificamente, o pai destaca o potencial da escola como mediadora do desenvolvimento social, cultural e intelectual das crianças, pois “ajuda a manter a mente aberta”, na medida em que suas práticas evidenciam a aproximação entre família e escola.
Sobre o projeto de parentalidade construído na conjugalidade gay, ele não apareceu entre os nossos entrevistados porque a própria experiência do “assumir-se” não estava dada, fortalecida internamente ou na dimensão de um projeto de vida. Ou seja, assim como a homossexualidade não estava no horizonte como projeto de vida, a parentalidade como projeto de uma conjugalidade homossexual, muito menos. Essa reflexão nos leva a outra questão, relacionada à afirmação de um modo de vida assumidamente gay: para alguns sujeitos, homossexualidade é somente uma expressão fragmentada de uma atração sexual por alguém do mesmo sexo ou por partes do corpo de alguém do mesmo sexo. Para outros, homossexualidade diz de um modo de ser e viver, o que inclui atração sexual, sentimental e repertórios de vida diversos. A viabilidade de um projeto de parentalidade homossexual requer a viabilização e reconhecimento de seu próprio modo de ser e estar no mundo.
Propor, construir e exercer a parentalidade com outro homem mostra a intenção da construção de uma família, socialmente ainda vista como possível e desejável para um casal de gêneros diferentes. Derruba a ideia tão presente no imaginário social de que o foco dos homens é o sexo, que as relações duradouras, como mencionamos, são raras.
Conclusão
A possibilidade de vivência da paternidade gay está rodeada de desafios e tabus; no entanto, já evidenciamos um avanço sociocultural que deve ser considerado. Homossexuais, sejam homens ou mulheres, “aprenderam”, de acordo com Laguna Maqueda (2018), a resistir às formas de exclusão produzidas pela homofobia e conquistaram o direito de criação e cuidado de filhos. As narrativas dos entrevistados elucidam que a presença ativa e legítima de pais gays e de seus filhos ainda sofre com as tentativas de invisibilização produzidas em contextos do interior. O “sair do armário” e o “assumir-se gay” só foi possível mediante anos de trabalho emocional e de conquista de direitos legais, processos amparados, na maioria das vezes, pelos próprios envolvidos.
Via de regra, o caminho para a legitimidade da parentalidade gay, baseada no cuidado e criação de seus filhos, ainda é longo, pois muitos desafios continuarão existindo, e um deles é a resistência de alguns contextos sociais-tradicionais que não reconhecem as variadas formas de estrutura familiar e acabam por discriminar famílias homoparentais e outras configurações que provocam o “tradicional”.