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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.34 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2022  Epub 02-Ago-2024

https://doi.org/10.33208/pc1980-5438v0034n03a07 

Seção Temática – Reflexões contemporâneas sobre a clínica psicanalítica e a parentalidade

A PSICOLOGIA NAS VARAS DE FAMÍLIA: (IM)POSSIBILIDADES DA GUARDA COMPARTILHADA

PSYCHOLOGY IN FAMILY COURTS: (IM)POSSIBILITIES OF SHARED CUSTODY

PSICOLOGÍA EN LOS TRIBUNALES DE FAMILIA: (IM)POSIBILIDADES DE LA CUSTODIA COMPARTIDA

Camila Valadares da Veiga(1) 

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil.

Laura Cristina Eiras Coelho Soares(2) 

Fernanda Hermínia Oliveira Souza(3) 

Psicóloga clinica e jurídica. Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ e pela Université Paul Sabatier (Toulouse III), France. Especialista em Psicologia Jurídica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

(1)email: camilav.veiga@gmail.com

(2)Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. email: laurasoarespsi@yahoo.com.br

(3)Integrante do Núcleo de Pesquisa em Psicologia Jurídica (NPPJ). Pesquisadora autônoma. Atalaia, Aracaju, SE, Brasil. email: psifernandaherminia@gmail.com


RESUMO

Este estudo aborda, sob a perspectiva da psicologia social jurídica, a atuação de psicólogos em varas de família, tendo como enfoque a temática da guarda compartilhada, seu uso pelo poder judiciário, as práticas psicológicas executadas e seus efeitos nas relações familiares. Buscou-se analisar como as mudanças legislativas e sociais afetam as demandas de guarda dos filhos e como psicólogos lidam com esses processos que chegam ao judiciário, quais modificações aconteceram, quais as principais solicitações e as dificuldades encontradas. Como estratégia metodológica, foi realizada análise de conteúdo de entrevistas semiestruturadas com dez psicólogos de um tribunal do sudeste do Brasil. No saber-fazer da psicologia, observou-se como necessário distinguir conjugalidade de parentalidade, bem como esclarecer sobre os modelos de guarda fixados no ordenamento jurídico brasileiro. Os lugares parentais e de gênero hegemônicos continuam a influenciar as relações familiares, e as alterações legislativas tendem a afetar a subjetividade dos envolvidos e promover uma judicialização da vida. Assim, é preciso que o psicólogo adote em sua atuação uma postura crítica, ética e interventiva, compreendendo que, a partir da psicologia social jurídica, tal trabalho deve ser voltado para a desconstrução de paradigmas tradicionais sobre a parentalidade, a fim de auxiliar as famílias na condução do pós-divórcio.

Palavras-Chave: relações familiares; separação conjugal; parentalidade; psicologia forense; custódia das crianças

ABSTRACT

This article considers, from the perspective of social forensic psychology, the role of psychologists in family courts. The focus was on the practice of joint custody, its use by the courts, the attendant psychological practices and their effects on family relations. The aim of the work was to analyze how legislative and social changes have affected custody demands and how psychologists assigned to family courts deal with these suits. As methodology, a content analysis was carried out on interviews with ten psychologists in a court in the Brazilian Southeast. The need to distinguish conjugality from parenthood was noticeable, as well as clarifying the custody models established in the Brazilian legal system. Hegemonic modes of parenting and gender expression still influence family relationships, and legislative changes tend to affect the subjectivity of those involved and encourage a judicialization of life. Thus, it becomes necessary to adopt a critical, ethical and interventional stance to stimulate the deconstruction of traditional conservative paradigms regarding the exercise of parenthood, in order to help families handle the post-divorce.

Key words: family relations; divorce; parenthood; forensic psychology; custody of children

RESUMEN

Este artículo aborda, desde la perspectiva de la psicología social jurídica, la actuación de los psicólogos en los tribunales de familia, centrándose en el tema de la custodia compartida, su utilización por parte de la justicia, las prácticas psicológicas realizadas y sus efectos en las relaciones familiares. El objetivo fue analizar cómo los cambios legislativos y sociales afectan a las demandas de custodia de los hijos y cómo los psicólogos manejan estos procesos que llegan a la justicia, qué cambios se han producido, cuáles son las principales solicitudes y las dificultades que se encuentran. Como estrategia metodológica, se realizó un análisis de contenido de entrevistas semiestructuradas con diez psicólogos de un tribunal del sudeste de Brasil. En el saber-hacer de la psicología, se observó la necesidad de distinguir la conyugalidad de la paternidad, así como aclarar los modelos de custodia establecidos en el ordenamiento jurídico brasileño. Los lugares parentales y de género hegemónicos siguen influyendo en las relaciones familiares, y las alteraciones legislativas tienden a afectar la subjetividad de las personas y promover una judicialización de la vida. Así, es necesario adoptar una postura crítica, ética y de intervención en el trabajo del psicólogo, entendiendo que, desde la psicología social jurídica, este trabajo debe centrarse en la deconstrucción de los paradigmas tradicionales sobre la parentalidad, con el fin de ayudar a las familias en el proceso postdivorcio.

Palabras-clave: relaciones familiares; separación conyugal; parentalidad; psicología forense; custodia de los hijos

Introdução

As relações familiares contemporâneas têm passado por diversas modificações, principalmente no que diz respeito aos lugares conjugais e parentais. As mutações sociais resultantes da evolução histórica das sociedades modernas incluem diferentes transformações no modelo de socialização familiar. Tais alterações foram provocadas pela emancipação das mulheres, aumento do número de divórcios, do número de crianças criadas por apenas um dos pais, e das que convivem com padrastos e madrastas, além das inúmeras possibilidades de concepção proporcionadas pelas tecnologias reprodutivas e muitos outros movimentos, que passaram a suscitar incertezas no que concerne às famílias. Essas mudanças são produto e produtoras de novos modos de ser, de subjetividades emergentes no que se refere às relações familiares e seus atravessamentos sociais. A fabricação social e histórica de produções subjetivas tem sido objeto de estudo da psicologia social e, mais recentemente, da psicologia social jurídica. No contexto de judicialização da vida e, mais especificamente de judicialização das relações familiares, destaca-se que debates sobre a parentalidade ganharam força nos últimos tempos (Souza, 2018).

As modificações das relações familiares podem ser observadas nas demandas endereçadas às varas de família, consideradas, aqui, como um espaço tanto jurídico quanto social que “constituem um campo de análise privilegiado para vermos em pleno funcionamento o exercício de poderes normalizadores” (Reis, 2010, p. 18), principalmente, levando-se em conta a construção de identidades vinculadas a um determinado sexo ou gênero. A presença do profissional psicólogo no âmbito judicial torna-se, nesse contexto, cada vez mais demandada. A Lei nº 11.698/2008 (Brasil, 2008), que implementa a guarda compartilhada no Brasil, pode ser entendida como um avanço no campo das responsabilidades parentais, uma vez que convoca não somente ao exercício da maternidade, mas também ao da paternidade, privilegiando o direito ao convívio familiar.

Desse modo, foi com o objetivo de analisar como essas mudanças afetam os processos a respeito de guarda de filhos que chegam às varas de família de um tribunal de justiça do sudeste brasileiro que se construiu a presente investigação. Após a instituição da guarda compartilhada na legislação brasileira, o que mudou na práxis psicológica de quem trabalha nesse campo? Quais os desafios e encaminhamentos que os profissionais psicólogos identificam nesses processos? Abarcando o processo de judicialização da vida, conforme entendido por Oliveira e Brito (2013), e permeando os dispositivos de guarda presentes no ordenamento jurídico brasileiro, buscou-se explicitar como esses conceitos se relacionam e como eles têm afetado a prática dos profissionais no âmbito das varas de família.

Metodologia

O estudo foi realizado por meio de entrevistas semiestruturadas individuais com dez psicólogos atuantes nas varas de família de um tribunal de justiça do sudeste brasileiro. A utilização da entrevista tem, como condição essencial, “a compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de grupos sociais especificados” (Gaskell, 2003, p. 65), fornecendo, dessa forma, elementos para a compreensão das relações sociais. A entrevista semiestruturada permite maior maleabilidade da interação entrevistador-entrevistado, e tal flexibilidade possibilita maior liberdade a ambas as partes envolvidas no trabalho.

A análise dos dados foi qualitativa, por meio de análise de conteúdo, em categorias (Minayo, 2001), focando a discussão em mudanças legislativas e guarda compartilhada. Cada categoria foi analisada de modo a explicitar as semelhanças e divergências em seu conteúdo, possibilitando o agrupamento de opiniões convergentes, assim como o destaque das informações divergentes (Minayo, 2001).

Para tanto, foi feita pesquisa teórico-bibliográfica acerca da temática da guarda compartilhada e das relações de gênero, focalizando fontes técnico-científicas sob a perspectiva da psicologia social jurídica (Soares & Moreira, 2020; Sampaio et al., 2020). Nesse momento, também foram analisados textos legislativos, como a Constituição Federal (Brasil, 1988), o Código Civil (Brasil, 2002), a Lei da guarda compartilhada (Brasil, 2008, 20, 2014) e o atual Código de Processo Civil (Brasil, 2015). De forma a preservar o sigilo dos profissionais, serão utilizados nomes fictícios. Pesquisa submetida e aprovada pelo Comitê de Ética, conforme protocolo nº CAAE – 38882014.8.0000.5149.

Resultados e discussão

Lugares parentais e o mito do amor materno

Com o intuito de analisar as consequências das mudanças legislativas para os profissionais psicólogos das varas de família, optou-se por investigar os mitos relacionados à dinâmica familiar. Para tanto, tornou-se necessário um levantamento acerca dos lugares parentais e de gênero, pois conforme demonstrou Sousa (2010), os processos que envolvem a guarda de filhos no pós-divórcio e o comportamento dos sujeitos que os compõem são fortemente influenciados pelas concepções de gênero socialmente construídas.

No contexto social atual, ainda é possível encontrar discursos que defendem um instinto materno, isto é, de que a mulher teria uma predisposição à maternidade e aos cuidados infantis. Essa ideia denota resquícios do século XVIII, quando entra em cena uma nova ordem econômica e o Estado, visando produzir riqueza, passa a ter como imperativo a sobrevivência das crianças, isto é, da mão de obra. Especificamente no Brasil, a medicina higienista do século XIX ditava formas e condutas que visavam à normalização social, fixando uma série de características específicas para homens e mulheres, tidas como naturais e direta e intrinsecamente associadas a uma série de competências e responsabilidades sociais (Sousa, 2010; Reis, 2010).

Dessa forma, a ideia de amor materno como algo natural e instintivo é uma construção sociocultural que visa à permanência da mulher no espaço privado das relações, isto é, na esfera doméstica (Scheenebeli & Menandro, 2014), caracterizando-a como frágil e destinada a cuidar dos filhos, cabendo ao homem prover a família moralmente (Reis, 2010). Ao colocar a mulher-mãe como guardiã da moral e da religião – onde caberia a ela a educação dos filhos e o cuidado do lar – o homem ficaria distanciado da condução da criação dos filhos, visto que, do ponto de vista cultural, não possuiria predisposição natural para isso.

Os lugares parentais, seguindo a tradição patriarcal, posicionam o homem como provedor econômico familiar, sendo-lhe atribuídas, geralmente, funções de chefia, coordenação e de prestígio profissional. À mulher, por sua vez, por sua imagem de mãe e dona de casa, são destinadas funções tais como de cuidados domésticos e educacionais. De acordo com Sousa (2010), “esses papéis, tidos no imaginário social como naturais, permanecem sendo, até hoje, estruturados e reproduzidos nas relações sociais” (p. 61), e assimilados desde a socialização familiar.

Na infância, as mulheres são associadas ao mundo doméstico, quando lhes são dados brinquedos que fazem referência à casa e aos cuidados infantis. Desse modo, são capacitadas para serem mães, dando um tom de destino natural e realização individual. Já os homens devem aprender a ser fortes, agressivos, competitivos, afirmar sua virilidade e ocultar suas emoções. Conforme demonstrou o estudo de Pereira e Oliveira (2016), há uma clara relação de gênero no modo como os adultos endereçam brinquedos às crianças, produzindo e reproduzindo relações e identidades, masculinidade e feminilidade. Assim, o brincar com bonecas é geralmente atribuído apenas ao gênero feminino (Elian, 2013), sem dar aos meninos a oportunidade de treinar e valorizar a paternidade, como demonstra Sousa (2010): “além de não ser visto como portador de um ‘instinto paterno’, ou seja, marcado pela lei da natureza, não lhe é permitido aprender a ser pai, pois ele não é socializado para isso” (p. 62).

Souza (2012) analisa que o trabalho remunerado da mulher, somado ao advento da pílula anticoncepcional e às tecnologias reprodutivas, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro, contribuíram para desestabilizar a associação da família com o mundo natural. Nessas novas famílias, o exercício da parentalidade foge aos padrões da família nuclear, questiona a dimensão de natureza como determinante do parentesco e inclui as dimensões do afeto e da escolha.

O binarismo de gênero limita a possibilidade de existência dos sujeitos, aprisionando-os. Conforme Thürler & Soares (2015), “a performatividade será, justamente, a prática de reiteração dos discursos produzidos pelas normas regulatórias” (p. 60). Essas práticas exercem seu poder regulando e normatizando todo o corpo social, e, para que essas normas exerçam plenamente seu papel, são necessárias instituições que legitimem os discursos e padronizem a performance.

Tais discursos normativos se refletem na construção das leis, assim como no modo como o direito tende a resolver as questões que lhe são demandadas. Nos casos que perpassam a vara de família, vemos uma forte tendência ao modelo de guarda unilateral, onde o guardião geralmente é a mãe – 62,4% dos casos segundo as Estatísticas do Registro Civil de 2019 (IBGE, 2019) –, que se torna responsável pela criança. O pai, na condição de não guardião, acaba tendo um papel de fiscal, dependente da estipulação de um regime de visitas, que geralmente é estabelecida como de quinze em quinze dias somente.

Assim, é possível observar que a ideia de homem como um coadjuvante no cuidado dos filhos é ainda muito presente nas instâncias jurídicas brasileiras. Ainda segundo as Estatísticas de Registro Civil do IBGE de 2019, os homens pais apenas detêm a guarda dos filhos em aproximadamente 30% dos casos (26,8% em casos de guarda compartilhada e aproximadamente 4,1% em casos de guarda unilateral). Isso acaba resultando em discursos relacionados à ideia da compulsoriedade da maternidade em contraposição à eletividade da paternidade, o que põe a “mulher no lugar de principal cuidadora” (Bianca).

Essa visão pode fragilizar os vínculos parentais entre pais e filhos, como mostrou o estudo de Brito (2008), no qual “a redução na convivência com aquele que não permaneceu com a guarda foi a queixa mais evidenciada por pais e filhos” (p. 43). Apesar da permanência desse olhar sobre a família pautado no mito do amor materno, atualmente percebe-se que as relações familiares têm se modificado, com maior participação do homem nos cuidados domésticos e infantis, pondo em questão os papéis parentais e de gênero tradicionais e gerando novas dinâmicas e arranjos familiares (Sousa, 2010). A entrevistada Leila relata esse cenário de modificações sociais adentrando aos tribunais: “As mudanças na sociedade desaguam aqui, são situações novas, o próprio campo de pesquisa está se construindo, construindo o conhecimento. As temáticas processuais foram se diversificando mais” (Leila).

Logo, torna-se indispensável sublinhar a existência plural, dinâmica e multifacetada de masculinidades e feminilidades (Junqueira, 2012). Ao levar-se em conta a diversidade de significados e experiências que estas possam trazer para a sociedade atual, contrariam-se os discursos hegemônicos e universalizantes e torna-se possível a abertura a toda uma construção social que permeia as várias possibilidades de expressão de gênero e lugares parentais como um todo.

Mudanças legislativas e temáticas processuais

No começo do século XX, segundo a legislação civil brasileira, o matrimônio era entendido como a base da família, e o homem como o único responsável pela união conjugal. Dessa forma, “o casamento era tido como vínculo indissolúvel e a família seria constituída, unicamente, por meio desse” (Sousa, 2010, p. 78), e cabia somente ao homem decidir sobre as questões do casal. Conforme apontado por Barbosa (2001), a mulher era considerada como relativamente incapaz, e deveria ser total e completamente submissa às decisões do marido, a quem competia o pátrio poder, tendo inclusive o direito de autorizar ou não a vida profissional de sua esposa. Com relação à prole, cabia ao homem “reger a pessoa e os bens dos filhos menores” (p. 67), sem que estes fossem sujeitos de direito, mas sim objetos de relações jurídicas. Assim, até a metade do século XX, os filhos eram tidos como legítimos apenas se concebidos na constância do casamento, de forma a preservar a instituição familiar.

Ainda segundo Barbosa (2001), são três as alterações legislativas consideradas prenúncios das mudanças que viriam com a Constituição Federal de 1988. A primeira delas se dá em 19491, com o reconhecimento dos filhos adulterinos, dando-lhes direito à herança. Em 19622 acontece a segunda alteração, marcada pelo Estatuto da Mulher Casada, que passa de incapaz a colaboradora do marido. Apesar de manter uma tendência patriarcal na ideia de família, esse estatuto foi considerado um grande avanço para o direito da mulher, pois ela passa a ter igualdade para a prática dos atos da vida civil. A terceira alteração foi a Lei do Divórcio3, aprovada em 1977, que regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento.

Em 1988, foi promulgada a Constituição Federal, que estabelece a isonomia entre os cônjuges: homem e mulher têm igualdade de direitos e deveres decorrentes da sociedade conjugal. Crianças e adolescentes passam a ser responsabilidade não somente da família, mas também do Estado e da sociedade. As garantias se estendem a todos os filhos, independente de concebidos ou não na constância do casamento ou adotados, determinando-se a igualdade, de forma a evitar quaisquer condutas discriminatórias (Barbosa, 2001; Farias & Rosenvald, 2015).

Em 13 de junho de 2008, a Lei nº 11.698 alterou os arts. 1583 e 1584 do Código Civil de 2002, para instituir e disciplinar a guarda compartilhada. Anteriormente, havia somente a guarda unilateral e os critérios para melhor exercê-la (Brito & Gonsalves, 2013). Essa lei, em seu texto original, traz a guarda compartilhada como uma modalidade legítima e possível de guarda dos filhos menores, caracterizando-a por manter a “responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns” (Brasil, 2002, a, art. 1583, §1º). A igualdade da chefia da sociedade conjugal pressupõe igualdade de direitos e deveres entre aqueles responsáveis pelos seus filhos, sejam homens ou mulheres. Desse modo, a finalidade social da lei é promover a convivência familiar com as famílias maternas e paternas de modo isonômico. Contudo, o campo social não acompanha na mesma medida a mudança legal, e ainda há no imaginário social a tendência a acreditar que somente mulheres podem se ocupar do cuidado de crianças.

Além disso, a lei determina, em seu art. 1.584, §2º, que a aplicação desse modelo de guarda deve ser priorizada, em detrimento da guarda unilateral, quando não houver consenso entre os responsáveis. Insta salientar, entretanto, que somente com sua reformulação, em 2014 (Brasil, 2014), é que se deixou de utilizar a ideia de melhores condições para definir quem ficará com a guarda, o que antes contribuía para a permanência do litígio, criando um verdadeiro “palco da discórdia” (Brito, 2002, p. 3) entre os pais, na tentativa de desmerecer o outro frente ao juiz. Pode-se dizer que essa mudança ocorre em convergência ao art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), que compreende a convivência familiar como direito, que deve ser assegurado pela família, pelo Estado e pela sociedade.

Por fim, mais recentemente, em 2016, passou a vigorar o novo Código de Processo Civil, que trouxe grandes avanços para o direito de família (Pereira, 2016; Pedrozo, 2015; Crippa, 2016). Uma das principais mudanças é a disposição de um capítulo específico para assuntos relacionados a essa área, que abarca os arts. 693 a 699. Nesse capítulo, uma das inovações trazidas pelo legislador é a aplicação de esforços para solucionar as causas consensualmente, isto é, sem contribuir ou colaborar para um aumento do litígio, por meio de atuação multiprofissional. Tal atuação não se resume à mediação nem à conciliação, e sim ao uso de técnicas psicológicas que corroboram a fala do desembargador Sérgio Verani (1992) de que “o direito não resolve conflitos: ele, no máximo, apazigua alguns conflitos existentes e, quase sempre, os dissimula e os encobre. Mas eles – os conflitos – permanecem aí, latentes, vivos, apenas submetidos a uma determinada ordem, que é a ordem jurídica” (p. 14). Nesse sentido, o conflito que leva ex-casais a buscar o judiciário não se encerra com a sentença, e há, consequentemente, a rejudicialização por meio da instauração de novos processos que visam buscar uma solução para o mesmo conflito que a sentença anterior não deu conta de solucionar. Essa é uma resolução importante, pois, no contexto do pós-divórcio, é muito comum encontrar superprocessos, isto é, uma mesma família com diversos processos diferentes, como indica uma das entrevistadas: “guarda, regulamentação de visitas, notificação de guarda, separação, divórcio litigioso. Às vezes é um divórcio inteiro que vem para ser regulamentado, não exatamente uma questão específica” (Bárbara). Por esses argumentos pode-se refletir sobre a justiça em números e na efetividade e nos desdobramentos das decisões jurídicas sobre a vida das pessoas.

Guarda compartilhada: conjugalidade e parentalidade em questão

No modelo de guarda compartilhada, permanecem com a autoridade ambos os pais, caracterizando uma responsabilização conjunta. Dessa forma, é priorizada a convivência, horizontalizando o poder familiar e mantendo as relações antes estabelecidas.

O que acontece é que muitas vezes as pessoas confundem muito guarda compartilhada com guarda alternada. Compartilhar não é alternar moradia, isso não é compartilhar. […] compartilhar é dividir as responsabilidades, os deveres, ter participação garantida nas decisões envolvendo o filho, é por aí. Não necessariamente a criança precisa ficar três dias e meio na casa de um e três dias e meio na casa de outro durante a semana. E as famílias chegam aqui com essa ideia de dividir o tempo. E não é por aí. (Cecília)

Como este é um dos principais pontos levantados pelos entrevistados, faz-se necessário, portanto, explicitar essa distinção. É importante ressaltar de antemão que, conforme o art. 1.583 do Código Civil Brasileiro, apenas são abarcados pelo legislador dois modelos de guarda: unilateral e compartilhada (Brasil, 2002). Isso implica dizer que a guarda alternada não está prevista na legislação brasileira vigente. Dito isso, a guarda alternada caracteriza-se, principalmente, por uma divisão de tempo pré-determinada, com o genitor que detém a guarda por aquele período exercendo-a unilateralmente. Conforme sinalizado pelo Conselho Federal de Psicologia: “[…] a guarda alternada está inserida na modalidade monoparental, havendo preocupação de uma igualdade estrita das horas que cada responsável passa com a criança” (CFP, 2019, p. 55).

A guarda compartilhada, por sua vez, implica a corresponsabilização de ambos os pais, e é igualitária no sentido em que ambos participam ativamente e decidem conjuntamente sobre todos os aspectos da vida de seus filhos. Isso não significa dizer que a criança ou adolescente deverá passar igual período de tempo com cada um de seus pais, mas busca-se garantir a manutenção equilibrada do contato, assim como dos vínculos afetivos.

O Código Civil, no §3º de seu art. 1.584 (Brasil, 2014), dispõe que: “para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do ministério público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe” (Brasil, 2014). Conforme Brito e Gonsalves (2013), a aprovação da lei “representa um grande avanço no sentido de desmembrar conjugalidade de parentalidade” (p. 300). A tentativa, nesse caso, é de evitar que uma separação conjugal implique, necessariamente, uma separação parental. Assim, para atender ao melhor interesse da criança ou adolescente, a lei traz a possibilidade de reequilíbrio dos lugares parentais e assegura a convivência e os vínculos familiares (Alves et al., 2015). Dessa forma, torna-se possível ao profissional psicólogo ir além da perícia e trabalhar de forma a entender as dinâmicas e relações familiares, assim como seu cotidiano. Contudo, cabe ressaltar que o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2019), em publicação a respeito da atuação de psicólogos em varas de família, assinala que: “[…] a preocupação dos profissionais deve estar centralizada na manutenção do convívio da criança com cada um dos pais e não na organização de um calendário de visitas” (p. 55).

Ainda hoje, entretanto, é possível observar certa resistência por parte não somente dos pais, que geralmente não conhecem por completo o dispositivo, mas também por parte dos profissionais da área do direito. Ainda que, desde 2014, tenha ocorrido um aumento considerável4, os casos em que é instituída a guarda compartilhada compõem apenas 26,8% do total (IBGE, 2019). Soares (2015) aponta que “no Brasil, a guarda compartilhada tem sido contraindicada por alguns profissionais do Direito, que utilizam como base argumentações atribuídas às Ciências Humanas” (p. 53), tais como: quebra de rotina da criança e possível confusão de referências, ou casos que envolvem crianças em tenra idade aliados a questões sobre desenvolvimento infantil. A entrevistada Bianca observa: “quando começou, percebi uma resistência dos juízes, porque era algo novo. A guarda compartilhada está mais difundida, tem-se um entendimento maior sobre ela”.

Mesmo que esse dispositivo traga dúvidas e preocupações, cabe ressaltar que a diferença entre conjugalidade e parentalidade, isto é, “distinguir os aspectos que dizem respeito ao casal e à relação entre pais e filhos” (Sousa, 2010, p. 23) é importante, pois caminha em conjunto com o melhor interesse da criança, que é posta como foco, propiciando a permanência e manutenção de laços entre pais e filhos. O fim da relação conjugal não implica o rompimento do laço parental. A liberdade no que concerne a possibilidade de ter diferentes parceiros, casar-se e separar-se não é sinônimo de liberdade da responsabilidade parental. Tem-se direitos e deveres para com os filhos independentemente da situação conjugal.

Apesar de estar mais difundida no judiciário e na sociedade de modo geral, a guarda compartilhada ainda é vista como um dispositivo que só seria indicado quando há um bom relacionamento entre as partes; assim, analisa-se caso a caso, sem de fato priorizar o modelo, conforme demonstra uma das psicólogas entrevistadas:

Eu acho que é meio dividido, a guarda compartilhada tem pontos polêmicos e todo mundo tem ideias diferentes. Tem pessoas que você vê que defendem a guarda compartilhada independente de qualquer coisa, se tem conflito, se não tem, que é o que diz a lei. E tem gente que vê que não é bem assim, tem que ver se tem entendimento entre os pais. Então tem quem ache que dá a guarda e os pais vão se entender e tem quem ache que assim vai gerar mais conflitos e quem vai perder é a criança. É uma situação que ainda está sendo testada na prática. (Beatriz)

Recentemente, o STJ, caminhando nessa direção, negou pedido de um pai que lutava pela guarda compartilhada de sua filha. Segundo a decisão, “a sentença da Justiça mineira concluiu que ambos os pais têm condições de exercer suas funções, mas não em conjunto. O julgado estabeleceu que os dois não demonstram possibilidade de diálogo, cooperação e responsabilidade conjunta” (STJ, 2016). Entretanto, uma das psicólogas entrevistadas comenta sobre casos em que trabalhou, envolvendo contextos de divórcio litigioso em que a guarda compartilhada foi aplicada satisfatoriamente: “já peguei casos em que as famílias não têm comunicação, são pouco cordiais, mas arranjaram maneiras de resolver a situação, utilizando agendas, WhatsApp” (Bianca).

Essa decisão do STJ vai na contramão do §2º do art. 1.584, que determina a instituição da guarda compartilhada mesmo quando não há consenso entre os responsáveis. A relação entre pais e filhos deve ser preservada, independente da relação entre os ex-cônjuges, enfatizando-se a corresponsabilização. Esse dispositivo é importante, pois, num contexto litigante, uma atribuição equilibrada do poder parental pode ser uma aliada na atenuação do litígio e pode auxiliar a prevenir diversas futuras situações, como os superprocessos citados anteriormente. Se os pais têm dificuldades de comunicação, um viés de trabalho poderia ser possibilitar um diálogo que favoreça os infantes e não que enfoque o ex-casal. O que se observa, por vezes, é uma supervalorização do ex-casal e seus conflitos em detrimento das crianças e adolescentes.

A atuação da psicologia social jurídica se faz necessária justamente nesse momento. A guarda compartilhada é um direito de todas as crianças e adolescentes, que têm proteção integral e prioridade absoluta determinadas no ECA (Brasil, 1990). Se os pais não conseguem dialogar, trabalha-se para que tenham algum contato dentro de suas limitações, oferecendo-lhes um leque de possibilidades de entendimentos e de caminhos para um arranjo de guarda possível, que atenda, em especial, aos filhos.

Insta salientar também que a guarda compartilhada não é sinônimo de ampliação de visitas ou visitação livre. Existem casos nos quais, em lugar de decretar a guarda compartilhada, o judiciário determina a guarda unilateral com visitação livre, reduzindo esse dispositivo de guarda somente à ideia de maior acesso entre pais e filhos. Portanto, cabe novamente esclarecer que a guarda compartilhada se diferencia da unilateral, principalmente no que diz respeito à responsabilidade e à autoridade parental, bem como à convivência familiar, de forma a “romper com essa lógica da convivência fracionada” (Leila), ou seja, reduzida a visitas quinzenais. Não é a rotina estabelecida pela família que diferenciará cada modelo – pois na guarda unilateral, independente do regime de visitação, o não guardião continua tendo o mesmo caráter de fiscal e visitante –, mas sim a ideia de responsabilidade conjunta, convocando ambos os pais a exercer cuidado, deveres e direitos relacionados aos infantes. Por exemplo, se antes da separação era o pai quem levava para a escola e a mãe quem buscava, o sistema não precisa mudar em função do regime de conjugalidade. A guarda compartilhada prevê que esse modelo pode continuar, sem prejuízo para os infantes.

Outro ponto levantado, conforme a fala de uma das entrevistadas, é de que há uma certa confusão sobre de quem é o direito relacionado ao modelo de guarda: “eles acham que é direito dos pais, a guarda compartilhada, e não é, é dos filhos, de ter ambos os pais cuidando dele” (Beatriz). Isso é essencial se considerarmos a diferenciação entre parentalidade e conjugalidade. O descolamento entre o conjugal e o parental evita que a criança vire uma moeda de troca no litígio entre os responsáveis. Uma das entrevistadas comenta sobre essa situação em seu cotidiano laboral:

No momento da separação, as pessoas querem seus filhos, elas não concebem a possibilidade de que o outro cuide bem do seu filho, é como se elas dissessem “eu posso sempre cuidar melhor” é uma luta e é um exercício de poder muito grande. […] O fim do relacionamento homem e mulher não interfere na relação parental, não se pode transferir o rompimento conjugal para a filiação, essa tem que permanecer intacta. (Esther)

O modelo da guarda compartilhada convoca ambos os pais a exercerem a parentalidade, diferentemente da guarda unilateral, que geralmente corrobora o mito do amor materno, sobrecarrega as mães e limita o contato da criança com a família paterna. Na análise das entrevistas, foi possível observar que, frequentemente, nos casos que envolvem a definição de guarda, o esclarecimento dos modelos previstos em lei não é feito pelo juiz, contribuindo para interpretações dúbias e resistências. Tais mal-entendidos aparecem como demandas endereçadas aos psicólogos, que acabam por ter mais essa função no decorrer do processo: “é uma parte educativa” (Beatriz). Numa das entrevistas realizadas, a psicóloga Cibele comenta sobre a falta de definição de uma rotina familiar, que acaba gerando um retorno do caso à justiça.

No geral a equipe do TJ, eu como psicóloga, vejo muita cautela em relação à prática da guarda compartilhada; a gente já tem visto casos que retornaram por isso, cautela especialmente dos psicólogos. Retornam porque na prática não definem, as partes optam por guarda compartilhada, mas não definem a pensão, a residência da criança, as questões práticas, e depois de um tempo vem a necessidade de definir. Ou as crianças ficam sem definição, sem rotina e elas sofrem. Então os pais retornam para modificar isso. (Cibele)

Cabe ressaltar que, no modelo da guarda compartilhada, permanece a possibilidade do estabelecimento do pagamento de pensão, a depender do acordo estabelecido e da rotina construída. Alguns pais que chegam às varas de família solicitando guarda compartilhada o fazem por compreender que estarão isentos desse pagamento, como demonstra uma das entrevistadas:

Eles querem menos dividir responsabilidade e mais alternar no sentido de domicílio. E isso tem refletido inclusive no pagamento dos alimentos, porque os pais tão querendo se abster de pagar os alimentos, já que eles acreditam que, por estar assumindo despesas igualmente e o tempo estar dividido igual, então não é necessário. (Bárbara)

Visto que esse modelo não se baseia numa divisão de tempo, mas sim de responsabilidades, pode-se definir uma residência fixa para a criança, mesmo que ela tenha amplo e livre acesso aos domicílios de ambos os pais. A pensão não pode ser entendida como sinônimo de cuidado e nem substituir a convivência familiar. Uma das formas possíveis de divisão dos custos é o pagamento das despesas dos infantes diretamente na fonte, por exemplo arcando com os custos da escola ou do plano de saúde. Trata-se da pensão in natura. Como pode ser observado, ainda há o entendimento de que a obrigação paterna pode ser resumida ao pagamento de pensão alimentícia, realidade que persiste na contemporaneidade a despeito dos debates e incentivo à convivência parental por meio de uma paternidade presente. Tal dado apoia a discussão sobre a delimitação de papéis sociais por uma divisão de gênero, segundo a qual a mulher se ocupa do lar e dos infantes e o homem é o provedor. Essa ideia apenas fortalece a eletividade da paternidade, construída socialmente. Cabe destacar, também, que a pensão é para custeio de despesas no filho e não do genitor, respeitando o binômio necessidade-possibilidade, ou seja, o que a criança necessita e o que o genitor pode custear.

Conforme anteriormente explicitado, é preciso lembrar também que esses homens não foram ensinados ou valorizados na condição de pai cuidador e “às vezes, depois do divórcio a relação entre eles melhora porque aí o pai vai ter que construir uma relação, vai ser só ele e os filhos”, como explica a entrevistada Esther. Portanto, valorizar a manutenção dos laços entre pais e filhos pode ser uma forma, também, de construir novas relações, lugares e vínculos parentais, equalizando maternidade e paternidade.

Ao analisar a instituição da guarda compartilhada, Lelis (2017) argumenta que esse modelo de guarda não estaria sendo exercida, ainda, em sua plenitude. Na visão da autora, no contexto atual, esse dispositivo estaria assegurando aos pais uma maior interferência no exercício da autoridade parental materna, sem que necessariamente eles cumpram, em sua totalidade, as obrigações para com seus filhos. Entretanto, é preciso levar em conta que o mito do amor materno (Badinter, 1985) perpassa a vida, não somente dos homens, como das mulheres também. Como levantado anteriormente, é assimilado por todos os integrantes da sociedade, sem que as mulheres estejam alheias a isso, como explica a entrevistada Bianca: “muitas mulheres também preferem que o pai não interfira na criação da criança”. Como pontua Côté (2016): “Não se pode associar a guarda compartilhada à igualdade de gêneros de modo automático” (p. 197). A autora indica que, apesar de representar um avanço na direção da igualdade, sua aplicação precisa ser analisada de forma cuidadosa, para que não se torne mais um mecanismo de opressão e de violência contra as mulheres. Assim, é importante o cuidado ético ao avaliar os casos de definição de guarda e do campo da família, atentando-se para as construções sociais que os permeiam, sem que se generalize ou rotule, de alguma forma, os atendidos e a situação familiar.

Brito (2012), ao discutir as demandas endereçadas ao judiciário na contemporaneidade, reitera a frequência com que são divulgados o aumento de processos que tramitam no judiciário, bem como a diversidade de problemáticas que os compõem. Dentre elas, pode-se citar a rejudicialização de processos de direito de família que se iniciam como processo cível de regulamentação de guarda e visita, mas que são, paulatinamente, atualizados com pedidos de revisão de alimentos, de regime de guarda, acusações de alienação parental e, no limite, acusações de abuso sexual, transformando-se em processo cível e criminal. A liga entre conjugal e parental parece de difícil separação. Conforme aponta Esther:

Tudo vira fonte de conflito no pós-divórcio. Então assim, o que as partes achavam normal durante a vigência do casamento passa a ser inaceitável no pós-divórcio. Então se o pai ou mãe costumava fazer alguma coisa com os filhos dentro do casamento e isso era tranquilo, depois do divórcio passa a ser completamente inaceitável.

A sobreposição do ex-casal em detrimento dos filhos é, muitas vezes, evidente. O foco do conflito recai quase sempre sobre os ex-cônjuges e a quebra de seus ideais de família, de relação, de parceria, como se esses elementos não fossem passíveis de mudanças e de transformações. A compreensão equivocada é que se, durante a relação conjugal, aquele homem não exerceu sua função paterna, não poderá exercê-la fora da relação conjugal. Como se o comportamento das pessoas fosse sempre o mesmo, cristalizado e imutável. Só é possível ser pai e mãe dentro de uma relação conjugal?

Esse foco no ex-casal é apontado pelos profissionais como um desafio, constituindo um trabalho psicológico a tentativa de “construir com os pais a importância da presença de ambos na vida da criança. Nesse sentido, tentamos fazer intervenções” (Bianca). Essa fala demarca a importância e a atribuição profissional da psicologia jurídica na resolução e no encaminhamento de conflitos pertinentes ao direito de família, nos quais um entendimento interdisciplinar se faz urgente. Se o conflito não se encerra com a sentença, é preciso encará-lo e trabalhá-lo com diálogo e com a utilização de técnicas que favoreçam a comunicação e o entendimento de que o acirramento do litígio traz prejuízos tanto financeiros, quanto psicológicos para todos os envolvidos.

Considerações finais

Como pode-se observar, apesar de, na atualidade, haver maior envolvimento de homens nos cuidados domésticos e infantis, o mito do amor materno permanece a influenciar na construção social das masculinidades e feminilidades e dos lugares parentais. As demandas e as decisões que permeiam os casos que chegam às varas de família também refletem a presença desse mito. Por exemplo, ao privilegiarem a guarda unilateral para a mãe, reafirma-se a ideia de um pai coadjuvante no convívio familiar, sem convocá-lo a ocupar um novo espaço. Entretanto, tanto na literatura acadêmica, quanto no discurso dos psicólogos entrevistados, constata-se uma maior diversidade de dinâmicas e de arranjos familiares que passam a adentrar os tribunais.

Como se pôde observar, historicamente, a mulher tem ocupado o lugar de mãe independentemente da configuração conjugal, enquanto o homem tende a ocupar o lugar de pai apenas dentro de uma relação conjugal. Onde estaria, então, a igualdade da responsabilidade parental? O presente estudo demonstra a necessidade de ampliação dos debates sobre o descolamento necessário entre a conjugalidade e a parentalidade em um contexto de determinação de regime de guarda. Contudo, para além do momento específico da lide processual, sinaliza-se a importância da mudança social na construção das parentalidades.

Nesse cenário, a psicologia era demandada pelo sistema de justiça, num primeiro momento, para a tarefa de escolher quem seria o mais apto a permanecer com a guarda de seus filhos, escolha que parte de uma demanda jurídica que pouco dialoga com as atribuições do psicólogo e os limites éticos e técnicos da psicologia como ciência e profissão. Com a fixação legal da guarda compartilhada e os novos arranjos familiares, a demanda direcionada aos psicólogos pelos operadores de direito muda de roupagem, passando a possibilitar uma atuação mais ampla com essa família. Observa-se que as diferentes possibilidades de estruturação familiar têm sido disciplinadas pelo sistema de justiça, o que impõe novos desafios para os psicólogos que atuam na interface com a justiça. Tais desafios incluem não aceitar demandas de qualquer ordem, delimitando o que é atribuição da atuação profissional e o que pode ou não ser avaliado pela ciência psicológica. Isso implica promover espaços de escuta e de problematização dos efeitos de decisões judiciais na vida de adultos, crianças e adolescentes.

Destarte, concordamos com Coimbra (2001) quando ela afirma que as práticas psi produzem poderosos efeitos no mundo, sendo, assim, políticas. Nesse sentido, a superação das dicotomias vítima/agressor, alienador/alienado, normal/anormal pode ser o primeiro passo para evitar a individualização e a patologização dos temas que perpassam as relações sociais e familiares, de forma a avaliar o litígio conjugal em sua dimensão sócio-histórica e relacional. Para que isso possa ser concretizado, um dos encaminhamentos possíveis é a psicologia se ocupar da discussão necessária sobre as diferenças entre conjugal e parental, focando na manutenção dos laços entre as crianças, os adolescentes e os adultos envolvidos nos processos de separação e de disputa de guarda.

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Notas

3 Lei nº 6.515, de 26/12/1977. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6515.htm

4 Segundo as Estatísticas de Registro Civil, a porcentagem no ano de 2014 era de 7,5% dos casos (IBGE, 2015).

As autoras agradecem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) para a realização da presente pesquisa, por meio do Edital FAPEMIG 01/2015 Demanda Universal, que contemplou a primeira autora com bolsa de iniciação científica.

Recebido: 23 de Julho de 2021; Aceito: 19 de Agosto de 2022

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