Introdução
Em 1954, foi publicado na Alemanha um selo postal em homenagem a Bertha Pappenheim, na série “Benfeitores da humanidade” – Lacan (1964/1998) o menciona – e, em 1997, uma das salas do lar Neu Isenburg, que ela fundara, recebeu seu nome. Ela nasceu em Viena, em fevereiro de 1859, e faleceu em Frankfurt, em maio de 1936, cidade em que foi enterrada ao lado de sua mãe, no cemitério judeu. Sua grande amiga Hannah Karminski, trinta e oito anos mais nova, foi assassinada, junto com tantos outros, em 1943, em Auschwitz-Birkenau, tendo vivido todos os horrores daquela época, que Bertha não acompanhou em função do câncer que a acometeu e que a levou antes. Se toda família de Hannah conseguiu refugiar-se na Suíça, Hannah permaneceu em Berlim como uma das lideranças da Associação para judeus na Alemanha, até ser presa; nas cartas que conseguia enviar para a família, se mostrava muito mais necessária ali, acolhendo os judeus que passavam todo tipo de necessidades. Além disso, Hannah perdeu para a Shoah – o nome dado em hebraico ao Holocausto ocorrido ao longo da Segunda Guerra Mundial – a companheira de vida e aliada no trabalho, Paula Fürst, presa um ano antes dela. Os laços que a ligaram a Bertha, que sobre ela disse certa feita “Hannah é a jovem mulher que eu esculpi” (Maierhof, 1999), foram como os de uma filha, os mesmos que sustentaram todo o trabalho de Bertha com as mulheres judias relegadas, no pouco espaço que tinham na estrutura misógina da época e com cujos cuidados Bertha se ocupou desde que se restabelecera dos sintomas que levaram sua mãe a procurar a ajuda do Dr. Josef Breuer.
O início da vida de Bertha Pappenheim não fora fácil. Nascera em uma família da alta burguesia judaica, com valores ortodoxos. A mãe de Bertha, Recha, de família judia alemã, tinha 18 anos quando se casou com o bem-sucedido comerciante de trigo Siegmund Pappenheim, de Pressburg (hoje Bratislava), um homem que apoiava a ortodoxia judaica com sua fortuna. A comunidade judaica de Pressburg tinha como rabino Solomon Spitzer, genro do ultraortodoxo Moses Sofer, militante de uma cultura iídiche contra o aculturamento alemão, do qual o pai de Bertha, no entanto, não era alheio (Loentz, 2007, p. 28). Que o aculturamento na sociedade capitalista ocidental tinha forte influência sobre esse Siegmund podemos intuir a partir das próprias questões vividas por Bertha em sua neurose, a partir do relato de Breuer. Era, digamos, um homem forte, com posições muito definidas e, provavelmente, ele também misógino. A doença que o matou em 1881, quando Bertha tinha 21 anos de idade, foi uma peripleurite com abscesso – uma inflamação em torno da pleura – e que, antes da descoberta da penicilina, foi fatal. A partir do relato feito pelo Dr. Josef Breuer em Studien über Hysterie [Estudos sobre histeria1], livro publicado em parceria com Sigmund Freud (Breuer & Freud, 1893-1895/1996), nos primeiros meses em que já se encontrava acamado, foi sua filha Bertha quem mais dele se ocupou, ficando a seu lado, o que deixa de ter relação com o adoecimento dela; pelo contrário.
Recha, por sua vez, era da família Goldschmidt, banqueiros em Frankfurt, cujos ramos chegam a ser associados a grandes nomes, como o do poeta Heinrich Heine (Brenzel, 2004). Além disso, Goldschmidt era um dos nomes do primeiro marido de Glikl bas Judah Leib, primeira mulher alemã a escrever uma autobiografia – entre 1691 e 1719, como observa Richarz (2001) –, que Bertha viria a traduzir do iídiche para o alemão, aos cinquenta anos de idade. A história de Glikl é bastante fascinante, como se pode ler na genealogia on-line (Hohenems Genealogie, s/d), uma mulher forte que auxiliava o marido no comércio e bancou e melhorou seus negócios quando ele faleceu, isso no final do século XVII. Bertha tem um quadro pintado pelo polonês Leopold Pilichowski (1869-1933), no qual está vestida de Glikl, a quem admirava como mulher judia que venceu as atribulações da vida cotidiana, “apesar do peso no coração que experimentou [com a viuvez], apesar dos golpes do destino que suportou, permaneceu de pé” (Pappenheim, apudSchütte, 2011).
Recha também é descrita como uma mulher-dragão, de personalidade forte, como uma daquelas “que não se adaptam ao molde de uma mulher propriamente burguesa” (Boyarin, 1997, p. 349) – maneira como também Martin Freud, filho de Sigmund Freud, descreveu sua própria avó paterna, típica judia de origem ashkenazi. Ela “não era exatamente uma lady, tinha um temperamento vivo e era impaciente, com vontade própria e altamente inteligente” (Martin Freud, apudBoyarin, 1997, p. 349). Na literatura a que pudemos ter acesso, a mãe de Bertha também era assim, e não são raras as observações segundo as quais as relações da jovem Bertha com sua mãe são descritas como difíceis, quando não intratáveis. Apesar de uma mãe com tais características de mulher forte, quando Bertha nasceu – segundo Dora Edinger, sobrinha de Bertha e escritora –, a notícia foi dada sem entusiasmo: “É somente uma menina” (Edinger, 1963, p. 119); esperava-se um filho homem. Na realidade, Bertha era a terceira filha: a segunda faleceu aos dois anos e, quando Bertha tinha oito anos, sua irmã mais velha também teve o mesmo destino. O filho homem veio apenas um ano e meio depois; ele, sim, teve todo o apoio para uma formação intelectual que o levou a se tornar um importante advogado.
Biógrafos supõem que Bertha aprendeu o iídiche com uma governanta (Loentz, 2007), que também lhe ensinou as tradições judaicas. Segundo a própria observação de Bertha, no contexto em que cresceu, “acreditava-se que uma boa educação para meninas deveria mantê-las na escuridão do que acontecia fora da vida familiar. A relação entre a pobreza, a doença e o crime eram totalmente desconhecidas para as meninas, que eram ensinadas a ver o mundo através de lentes cor de rosa” (Pappenheim, apudJensen, 1984, p. 19), coisa que Bertha viria a combater quando esmerou-se na tarefa de modernizar a educação das moças judias (Fogel & Staszewski, 2006), passagem dos escritos de Bertha que atesta o que Freud observara em 1932: não é possível subestimar a influência dos costumes sociais, que impõem a inibição da agressividade e favorecem o desenvolvimento de poderosas forças masoquistas (Freud, 1932/1974).
Escolas judaicas para meninas não existiam naquela época. Apesar – e também em consequência – da ascendência judia tradicional e de sua alta classe, Bertha teve que estudar numa escola particular católica, pois a Viena daqueles tempos ainda sofria com as proibições imperiais que impediam os judeus de sustentarem seus próprios colégios. Além disso, escolas com o segundo grau eram raras na cidade; somente em 1864 o bairro mais judeu de Viena abriu seu primeiro ginásio, o então chamado Leopoldstädter Realgymnasium, que Sigmund Freud cursou de 1865 a 1873 (Bader, 2007), o que ocasionou ser convidado para participar dos festejos dos cinquenta anos do colégio e o levou à redação de “A psicologia do ginasiano” (Freud, 1914/1972). Em 1938, muitos de seus alunos e professores foram afastados, e em 1944 o colégio não foi apenas fechado como seu arquivo foi destruído. Em 1989, o ginásio passou a se chamar Sigmund Freud (Bader, 2007).
De todo modo, aos seis anos, Bertha entrou para a escola particular católica já sabendo ler e escrever, e lhe atribuíram uma inteligência admirável no aprendizado de línguas: não apenas as falava, mas também já lia tanto o iídiche quanto o hebraico (Brenzel, 2004). Esta atribuição se manteve, pois anos mais tarde também Breuer retrataria sua paciente como uma jovem culta, encantadora e frágil, com cabelos castanhos e brilhantes olhos azuis. Apesar da inteligência e da vivacidade, aos 16 anos a jovem foi retirada do colégio e obrigada a voltar-se exclusivamente aos afazeres domésticos e a auxiliar a mãe no preparo dos ritos religiosos familiares (Magalhães, 2020).
A imposição dessa vida monótona acabou levando-a a se entregar ao que ela própria viria a chamar de seu teatro privado, quando do tratamento com Breuer, a talking cure. Ao acompanhar o entusiasmado ensaio de Magalhães (2020) sobre Breuer, reaviva-se a experiência do primeiro tratamento de Bertha, quando esta literalmente afirmou a seu médico que seu tratamento era pela fala. A expressão é dela mesma, e o dizia em inglês. John Huston (1962) também o enfatiza em seu filme, Freud: The secret passion, no qual a paciente consegue se livrar da impossibilidade de beber água de um copo, determinada pela lembrança da cena de ter assistido a um cãozinho bebendo água de um copo na casa de uma amiga e sobre o que, no momento, se vira forçada a ficar calada. Foi porque Anna O. pode dizê-lo a Breuer que se viu libertada do impedimento. Mas, como escreve Magalhães (2020, p. 284), “com a ajuda da paciente [Breuer], descobriu um método para [a] superação [da doença]” e começou a fazê-la relatar “as condições específicas nas quais tinham surgido os sintomas” (Magalhães, 2020, p. 285). Para o espanto do médico, relatar, sob hipnose, tanto as histórias que a paciente criava em sua fantasia, ou mesmo aquelas efetivamente vividas, e que produziram sintomas, varria estes, o que os levou a cunhar a outra metáfora para esse tratamento: chimney sweeping.
A maneira puritana com que foi educada, ou seja, para casar, o que impunha que tivesse uma visão “cor de rosa” da vida, se associou à difícil relação com a mãe, levando inclusive alguns biógrafos a lhe atribuírem uma esquizofrenia (Bram, 1973) ou, ao menos, supor que, a partir dessa relação, Bertha “aprendeu a depreciar a feminilidade e o papel das mulheres” (Bram, apudBoyarin, 1997, p. 349). Tal posição, aliás, já estava depreciada de início, tendo em vista a decepção familiar no momento de seu nascimento com o fato de ela ser uma menina. Nas anotações feitas por Guttmann (2001), eminente pesquisadora sobre a vida de Bertha Pappenheim, encontramos resultados da pesquisa de Evans (1977/2014) sobre o quão retrógrada era a sociedade alemã e austríaca quanto à posição da mulher e, em particular, quanto à proibição legal de atingirem níveis superiores de estudo. Não é de estranhar que, no início de seu relato clínico, seu médico mencionasse o contraste da sua inteligência e vitalidade diante da monotonia que vivia no cotidiano, e a importância que foi tomando sua atividade de sonhos diurnos, a criação de um mundo fantasiado que contribuiu para seu adoecimento, que, como se sabe, originou-se no momento em que passou a cuidar do pai. Em oposição à relação de Bertha com a mãe, ela endeusava o pai, de modo que, quando ele ficou acamado por conta da peripleurite, inicialmente foi ela quem se ocupou dele.
Para uma melhor compreensão do que visamos debater, iniciemos com o tratamento com Breuer.
Em julho de 1880, quando Anna O. tinha 21 anos de idade, seu pai adoece, e ela cuida dele “com toda a energia de seu ser” (Breuer, 1895/1996, p. 16). Tal dedicação a enfraqueceu, até que surgiu uma tosse nervosa que a obrigou a afastar-se do pai. Foi quando Breuer foi chamado pela primeira vez. Em abril de 1881, quando Siegmund Pappenheim falece, os sintomas que ela então apresentava já haviam se multiplicado enormemente, e Breuer a visita diariamente em consultas domiciliares. Os sintomas eram conversivos em sua maioria, e testemunhavam uma divisão do eu (Freud, 1938/1975), mas também apresentavam fenômenos de fala: de início começaram a faltar palavras, depois aparecerem distúrbios gramaticais, de sintaxe, ou mesmo surgiram momentos em que ela só falava em outra língua – testemunhando, aliás, seu domínio de várias. Foi possível a Breuer identificar as sobredeterminações de cada um desses sintomas, o que nos confirma, ainda hoje, apesar de algumas suposições em contrário, a hipótese diagnóstica de histeria. Com a talking cure, “quão não era grande a libertação de sua psique depois de cada vez em que ela conseguia reproduzir e me relatou [ausgesprochen], tomada de angústia e horror, as imagens aterrorizantes” (Breuer & Freud, 1893-1895/1996, p. 22) que alucinara. Breuer utiliza a palavra “ausgesprochen”, que se traduz, literalmente, por abreagidas pela fala, ou ainda “wegerzählt”, abreagidas pelo relato.
Por falta de espaço, contentemo-nos em registrar alguns fatos. Em 07 de junho de 1881, Breuer transfere Anna O., contra a vontade da paciente, para o moderníssimo sanatório de Inzersdorf, ao sul de Viena, em consequência do risco de suicídio em seu apartamento de Viena, onde morava no terceiro andar. Esse translado dificultou a Breuer suas visitas diárias, de modo que, para compensar, passou a alongar muito sua permanência nas noites em que a visitava.
Enquanto isso, além da preocupação com o estado da filha, a mãe, Recha, vivia o luto pela perda do marido, ao mesmo tempo em que se deparou com questões burocráticas e de herança que, para a viúva de um comerciante de trigo bem sucedido, não deviam ser poucas. Certamente ela tampouco pôde contar muito com a ajuda do filho que, na época, ainda não se formara advogado. Enquanto Anna O. permanecia internada em Inzersdorf, doente, afastada e abandonada ali, tinha por único consolo as visitas de Breuer, que lhe testemunhavam a dedicação do médico. O que fora o tratamento antes da morte do pai, ou seja, a talking cure e as abreações pela fala, agora se complexificava: não só Anna O. precisava abreagir as associações em relação ao que acontecera durante aquele dia, mas também com relação ao que ocorrera no mesmo dia um ano antes.
Quando se lê com mais atenção o texto de Breuer, é possível observar que, durante o último ano do tratamento, as sessões noturnas se estendiam cada vez mais. É possível levantar a hipótese de Anna O. ter encontrado uma maneira de fazê-lo permanecer cada vez mais tempo com ela quando vinha visitá-la depois de um dia de trabalho, como que reatualizando as Mil e uma noites, observação que retoma a de Kraß (2010, p. 50). É possível nos perguntarmos até que ponto Anna O. não tinha produzido o que Breuer chamou de “segundo estado”, quando, no inverno de 1881-82, passou a reviver também o do ano anterior, para prolongar essas sessões, pois proceder à talking cure com as associações em relação ao que acontecera durante o dia e também com relação ao que ocorrera no mesmo dia um ano antes exigia um tempo muito maior de permanência de Breuer junto a ela. Não podemos deixar de levantar a hipótese de que havia aí o intuito inconfesso de fazer o médico permanecer mais tempo ainda com ela, enquanto a Sra. Breuer provavelmente perdia a paciência de esperá-lo para jantar…
Na época, Freud ainda não escrevera sobre a transferência erótica, o que faria apenas trinta anos depois (Freud, 1912/1996), mas certamente a situação estava longe de testemunhar a “espantosa falta de desenvolvimento do elemento sexual” de sua paciente referida por Breuer. Não há dúvida de que o médico se dedicava muito à inteligente paciente de cabelos castanhos e olhos azuis brilhantes. Justificar-se-ia, assim, a preocupação do médico com o anonimato que levara à crise de ciúmes de sua esposa, pois: “Por mais pudico ou inconveniente que seja o véu que hoje está em parte levantado sobre aquele acidente inaugural que impediu o eminente Breuer a dar sequência à primeira experiência, no entanto sensacional, da talking cure, [… que] essa história de amor não existiu somente do lado da paciente em nada é duvidoso” (Lacan, 1960-1961/1992, p. 12). Como observa Guggenheim (2018): “Curiosamente, só passados alguns anos após ter abandonado o caso, Breuer revela a Freud o episódio da ‘gravidez de Bertha’ e pede que ele não conte nada a Martha até eles se casarem. Martha, então noiva de Freud, era amiga de Bertha Pappenheim”.
No texto de Breuer, lemos que ela estaria curada em junho de 1882, enquanto Jones (1979), biógrafo de Freud, trouxe a público a história da gravidez histérica e alguns autores, por exemplo Guttmann (2001), se referem à pseudociese como tendo ocorrido quando ela estava na Alemanha e que por isso Breuer, avisado às pressas de seu estado, fez um encaminhamento para Bellevue, sanatório suíço situado na divisa entre a Áustria e a Alemanha. De todo modo, sabemos também o quanto Breuer refutava a ideia que Freud vinha construindo, segundo a qual a neurose histérica é determinada por questões de alcova, como o explicitaria a Freud em uma conversa informal (Rabêlo, 2011, p. 404). Em 1895, quando Breuer e Freud publicam o caso, Bertha já estava curada e ativa como feminista e trabalhadora incansável pelo cuidado com mulheres judias empobrecidas e abandonadas. Havia construído um nome do qual, ainda por cima, dependiam as instituições que ela viria a criar. Teria sido bastante perturbador para sua carreira se, por algum motivo, os detalhes do caso fossem divulgados e sua identidade desvelada.
Uma questão pouco tratada
Para além da talking cure que fazia com Breuer, a paciente também necessitava de cuidados neurológicos em consequência de dores faciais, que levaram até mesmo a uma proposta cirúrgica da intervenção no trigêmeo, conforme o relato de Skues (2006, p. 170). Não encontramos relatos confirmados de que ela tenha, efetivamente, se submetido a essa cirurgia, mas não é de todo descartável a hipótese, posto que Anna O. se curou dos sintomas propriamente neurológicos, o que lhe devolveu sua capacidade de viver uma vida normal e, como sabemos, lhe trouxe a capacidade para o trabalho.
Segundo Borch-Jacobsen (2012), além do hidrato de cloral, Breuer também já administrava alguma dose de morfina para combater a neuralgia facial de que sua paciente se queixava cada vez mais. É surpreendente “a longa lista de medicamentos prescritos à paciente” (Rosa, 2020, p. 84), como também observou Ramos (2003). Nossa hipótese é de que tais medicações, tão comuns na época, tivessem sido os principais provocadores das alucinações e ainda de outros sintomas graves, relatados por Breuer, que levaram inclusive autores a levantar posteriormente outras hipóteses psicodiagnósticas.
Há hoje inúmeras versões sobre os anos que se seguiram ao fim do tratamento com Breuer e a mudança definitiva de Bertha para Frankfurt. Decidimos nos fiar naquela divulgada por Hirschmüller (1978) e nos apoiar na cronologia construída por Skues (2006) a partir da leitura deste do texto de Hirschmüller, biógrafo de Breuer, particularmente porque os estudos realizados por eles são a base de muitos dos textos que aprofundam as questões sobre o caso Anna O.
Anna O. foi internada no sanatório de Bellevue, em Kreuzlingen, em 12 de julho de 1882, porque estava em Karlsruhe visitando seus primos, membros da família materna, Fritz Homburger e Anna Ettlinger. Em 19 de junho de 1882, após notícias recebidas de Karlsruhe, que se referiam à pseudociese, Breuer escreve para Robert Binswanger verificando a possibilidade da internação. E ela ocorre. No sanatório de Bellevue, o tratamento administrado a Anna O. não passava de um tratamento medicamentoso, apesar dos protestos do primo. Foi durante esse período que ela se recusou a ver sua mãe e seu irmão (Guttmann, 2001, p. 79). Tornava-se uma dependente química.
Mas o que fazia Anna O. em Karlsruhe, justamente após o término do tratamento com Breuer? Na realidade, começava ali a grande virada em sua vida, o que, evidentemente, ainda não se sabia. Mas a decisão de ir visitar a família materna, muito menos retrógrada do que o contexto que ela conhecia de sua cidade natal, foi fundamental para transformar Anna O. na Bertha Pappenheim de renome internacional. Anna Ettlinger, sua prima, já era escritora e professora de literatura quando Bertha passou a frequentá-la, e tinha inúmeros contatos intelectuais e políticos na cidade. Frequentavam sua casa, por exemplo, Clara Schumann e Johannes Brahms. A família em Karlsruhe havia cedo integrado a Haskala, que, a partir de 1831, é identificada como o iluminismo judaico, cujas origens eram alemãs, datando do final do século XVIII (Schulte, 2000), mas cuja força política fora adquirida antes, quando a Assembleia Constituinte da Revolução Francesa atribuiu aos judeus plena cidadania, em setembro de 1791. Um século depois, aproximadamente, a igualdade de direitos pelos quais se lutava incluía, também, a causa feminista, e Anna Ettlinger era um de seus expoentes: militava pelo direito de a mulher ter uma vida independente, razão pela qual não se casou e se sustentava ministrando aulas particulares, conferências e escrevendo para jornais. Neles defendia a igualdade das mulheres na família e no trabalho e, ao avesso de qualquer proposta paternalista, observava que apenas elas saberiam do que precisavam (Bender, 1988, p. 490). Anna Ettlinger apoiou o projeto de criação da Associação de Mulheres de Baden, fundada em Karlsruhe, no ano do nascimento de Bertha. Originalmente, a Associação fora criada para fortalecer a cidade na guerra contra a França (entre 1870 e 1871, que terminou com a definitiva anexação da Alsácia-Lorena à Alemanha e com a queda de Napoleão III). Quando Bertha chegou em Karlsruhe, onze anos depois de finda essa guerra, a Associação já desenvolvia uma série de trabalhos. Anna Ettlinger inspirou e incentivou a prima a tomar a vida nas próprias mãos, incorporando seus valores, além de apoiá-la a escrever seus contos. Após a alta de Bellevue, em 29 de outubro de 1882, apesar de cada vez mais morfinômana, Bertha também iniciou um curso de auxiliar de enfermagem na Associação.
Há um lapso de tempo na cronologia de Hirschmüller. Se, em janeiro de 1883, as coisas pareciam ir bem, não há novas notícias sobre o que Bertha estaria fazendo, nem onde estaria ao longo de todo o primeiro semestre daquele ano. Em 22 de janeiro de 1883, ela já estava de volta a Viena, sem ter terminado o curso de auxiliar de enfermagem. É fato que ela abusara da hospitalidade de seus primos, tendo ficado lá de 19 de junho até meados de janeiro, e a drogadição provavelmente não ajudava na convivência.
Não há relato de novas visitas de Bertha à família materna desde então, apenas de novas internações, agora sempre em Inzersdorf, ao sul de Viena, na tentativa de tratar sua neuralgia e agora também sua toxicomania. Na realidade, Bertha passou o segundo semestre de 1883 inteiro ali internada, de 30 de julho até 17 de janeiro do ano seguinte. É dessa época também a troca de cartas, referida por alguns autores, entre Freud e sua então noiva Martha, entre esta e a irmã, correspondência da qual é possível inferir a grande preocupação de Breuer com o estado da paciente e a grande preocupação de Martha de que seu noivo se dedique tanto às suas pacientes quanto Breuer – ao que, segundo Skues (2006, apêndice cronológico), Freud teria respondido com algo como “sou diferente dele”. Mas Freud conta, numa carta a sua noiva, Martha, que encontrou Breuer atordoado com o estado de Bertha, a qual “fora envenenada com morfina, para se livrar das dores” (Freud, 1883, apudGuttmann, 2001, p. 95).
Teria sido a preocupação de Breuer com Anna O. o que levou Freud a se interessar pelos efeitos de redução de danos da cocaína para pacientes morfinômanos? Por três anos, Freud sustentou essa ação, baseado nas notícias que leu e “que em grande parte vêm da Detroit Therapeutic Gazette” (Freud, 1884/2003, p. 107), corroborando ingenuamente a propaganda do único laboratório norte-americano que a fabricava para fins medicinais e que publicava a referida Gazette. Por que Freud teria insistido tanto nesses efeitos da cocaína, sem nem mesmo questionar o engodo no qual caía, mordendo a isca do laboratório, fazendo propaganda para ele e provocando prejuízo ao seu nome que, na época, apenas começava a ter algum reconhecimento no campo da pesquisa científica? Isso explicaria, em parte, o tempo e investimento que Freud dedicou ao estudo da droga. Será que pensou em utilizá-la com Anna O.?
Fato é que, durante o meio ano em que ficou internada em Inzersdorf, de junho de 1883 a janeiro de 1884, Anna O. melhorou muito, tanto das dores quanto da morfinomania, e por mais de um ano ficou livre de internações. Em março de 1885, houve nova internação, por quatro meses, e nova recuperação, que perdurou por dois anos, pois não há referência de recaídas até a data de 30 de junho de 1887, quando, por 18 dias, esteve internada pela última vez. Um ano e meio depois, em 14 de novembro de 1888, Bertha e sua mãe tinham se mudado para Frankfurt. Ali viveram juntas até o falecimento da mãe, em 1905 (Morashá, 2009).
Sem dúvida, a gravidade do estado de Anna O., entre 1880 e 1888, tinha uma etiologia psíquica, mas não só. O tratamento psicológico se deu na talking cure, mas associou-se à ingenuidade do médico quanto ao fenômeno da transferência, e o comprometimento do trigêmeo, cuja etiologia não ficou clara em toda pesquisa que pudemos fazer. Mas foi tal comprometimento que levou à adição às drogas, numa época em que eram lícitos os usos da morfina e da cocaína. O tratamento da cronicidade do comprometimento do trigêmeo ainda hoje é cirúrgico. Ele foi cogitado pelo Dr. Robert Binswanger, mas Recha, a mãe de Anna O., não autorizou a cirurgia, com a justificativa de que a etiologia da neuralgia era psicológica, segundo Skues (2006, apêndice cronológico). Foram necessárias todas as internações em Inzersdorf, entre 1883 e 1887, para uma definitiva desintoxicação. Eis o que nos leva à nossa hipótese: de um lado, houve a psicologização da etiologia – o que, já na época, se provava como engano, diante da falha do saber médico – e, de outro lado, ao mesmo tempo, isso sustentou uma drogadição por iatrogenia, no caso de Anna O.
Loentz (2007) sustenta a hipótese de que Bertha Pappenheim quis apagar todos os vestígios de suas internações e problemas de saúde, corroborando Edinger (1963), que sustenta que, quando ela visitou Viena em 1935 – já com o câncer que a levaria a óbito no ano seguinte –, destruiu todos os documentos referentes àqueles tempos. Foi tão bem sucedida nisso que as primeiras biografias publicadas sobre ela contavam que sua mudança para Frankfurt se deu logo após a morte do pai, em 1881, suprimindo os sete anos que se passaram entre uma coisa e outra.
Como dito, quando Freud e Breuer publicam o caso pela primeira vez, na década de 1890 (Carone, 2012), já surgia a Bertha Pappenheim que se tornaria famosa por sua obra na assistência social, na luta pelos direitos da mulher, no trabalho incansável junto a instituições com o intuito de sustentá-las, contrastando enormemente com toda a sua vida pregressa.
Ao chegar em Frankfurt, Bertha havia incorporado tudo o que aprendera com sua prima, inclusive a decisão de, como esta, se manter solteira. Também publicou seu primeiro livro, em Karlsruhe – não sem alguma ajuda de Anna Ettlinger, para quem as lera quando, seis anos antes, estivera em sua casa (Loentz, 2007): as Kleine Geschichten für Kinder [Pequenas histórias para crianças] (Pappenheim, 1888).
Em Frankfurt, a writing cure
A edição de seu primeiro livro foi novo divisor de águas na vida de Bertha Pappenheim. Não seremos os primeiros a observar que os contos infantis ali publicados remetem ao período da talking cure com Breuer e que, provavelmente, o médico já conhecia em parte essas histórias, pois em seu relato testemunha que Anna O. lhe contava histórias “à moda de [Hans Christian] Andersen” (Breuer, 1895/1996, p. 22). Com efeito, Kraß (2010) demonstra as semelhanças entre o conto “A pequena sereia”, de Andersen – no qual se baseou a produção dos Estúdios Disney (1989) – e “Die Weihernixe”, a ninfa do lago, o conto de Pappenheim. Kraß, professor de literatura na Universidade Goethe, em Frankfurt, desenvolveu o tema em Sereias – Histórias de um amor impossível, monografia na qual analisa histórias de sereias desde Homero que, numa interpretação lacaniana, universalizam a impossibilidade da relação sexual, o que a parte peixe da sereia apenas configura (Gournel, 2018). Mas Kraß também nota que, se as histórias de Andersen foram escritas para crianças, o que inspirou e repetiu Pappenheim, há pequenas passagens no texto dela que não seriam encontráveis nos do autor famoso, como por exemplo a de um príncipe com barba – seria ele substituto do pai ou de Breuer? Essas passagens sugerem que o texto de Pappenheim inclui uma elaboração do tratamento com seu médico. O que mais chamou a atenção de Kraß foram dois fatores na história de Bertha: primeiro, a seguinte frase no meio do conto: “Movida quase que inconscientemente por seu desejo, todavia ainda indecisa, a ninfa aproximou-se da margem [da água] e […] sem pensar duas vezes, abandonou seu reino” (Pappenheim, apud Kraß, 2010, p. 47). A frase “movida quase inconscientemente por seu desejo” não é uma frase de conto de fadas – acrescentaríamos, ela inclui uma relação com a teoria psicanalítica. O espantoso, no entanto, é que esse conto de Bertha foi publicado em 1888, ou seja, bem antes de as bases da teoria psicanalítica terem sido formuladas! Mais uma dica de que Anna O., para muito além de ter sido o primeiro caso da psicanálise, como muitos autores a consideram, de certa forma a criou e talvez tenha tido um papel muito mais fundamental na gestação dessa teoria do que até hoje se cogitou. Como diz Lacan: “O inventor da psicanálise não é Freud, mas Anna O., e por trás dela, muitos outros: nós todos” (Lacan, 1961-1962/2014, p. 190). As questões que Anna O. formulava, as observações que fazia, da conversão histérica à associação livre, da talking cure à relação transferencial, quando Sigmund Freud ainda terminava seus estudos em medicina, foram absolutamente fundamentais para o surgimento da psicanálise.
O segundo fator acima mencionado diz respeito, ainda, à relação transferencial, “nascida da espontaneidade do inconsciente de Anna O.” (Lacan, 1964/1998, p. 150). Poderíamos levantar a hipótese de que o tratamento com Breuer, procurado pela mãe de Anna O. em consequência da tosse nervosa da filha, foi verdadeiramente a primeira neurose de transferência relatada, sobre o que Freud (1914/1975) pôde mais tarde escrever quando se ocupava com o processo do tratamento analítico. Associou a neurose de transferência com uma espécie de “artifizielle Krankheit” (Freud, 1914/1975, p. 214) – uma doença artificial – que, ao mesmo tempo em que é profícua para a repetição e as rememorações, é também “ein Stück realen Erlebens” (Freud, 1914/1975, p. 214), ou seja, uma porção de experiência real, momento no qual o sujeito produz uma neurose em função da própria relação com o analista. Breuer não era analista de Anna O., é importante lembrar. Breuer se interessou pelo que sua paciente dizia, mas não tinha ainda a formação analítica, que sequer existia na época.
Acompanhemos Kraß, quando associa o relato de Breuer, de 1895, com o conto de Bertha. Ele estranha o fato de o médico, ao se referir a Hans Christian Andersen, especificar o nome do livro do contista ao qual Breuer associa as histórias que Anna O. lhe contava à noite: não propriamente os seis volumes de Contos, lançados por Andersen entre 1835 e 1842, mas um outro livro, publicado em 1840, Billedbog uden Billeder (Livro de imagens sem imagens). Por que Breuer teria associado este, e não aqueles contos de Andersen mais conhecidos, questiona Kraß? O livro citado por Breuer, Billedbog uden Billeder, é sobre um pobre pintor que, noite após noite, fita da janela de seu quarto a Lua, que, penalizada pela sina do pintor, se propõe a lhe contar o que vê em suas viagens em volta da Terra, para que ele fizesse delas um livro de imagens – um Billedbog – que pudesse vender para ganhar seu próprio sustento. O termo Billedbog equivoca da tradução literal “livro de imagens”, para “livro de contos infantis”. Tal equivocação decorre, provavelmente, do fato de os livros infantis serem, usualmente, editados com imagens. Também Anna O., “a Scheherazade da psicanálise”, contava, noite após noite, histórias para Breuer (Kraß, 2010, p. 50). A Lua/Anna O. de O livro de imagens sem imagens de Breuer, a ninfa que ensaia sair do lago das águas paradas de um cotidiano monótono ao encontrar Breuer, que, por sua vez, literalmente nega a sexualidade dela, mas se encanta com seu luar gelado, faz jus à acepção figurada da palavra Lua por Antônio Houaiss: “algo inacessível”.
Bertha Pappenheim é hoje no mínimo tão conhecida como a primeira paciente da psicanálise, como a feminista, pioneira na assistência social e fundadora, em 1904, da Associação Judia de Mulheres, que liderou até sua morte. Em 1929, a Associação já tinha mais de cinquenta mil membros, tendo aberto várias filiais nas quais se incentivava mulheres a se tornarem independentes, a partir de uma orientação vocacional (Borch-Jacobsen, 2012).
Em 1907, Bertha criou o que, segundo Fogel & Staszewski (2006), identificou como tendo sido a obra de sua vida, o Heim des Jüdischen Frauenbundes, em Neu-Isenburg, lar para mulheres solteiras e seus filhos ilegítimos.
Nossa hipótese é que toda a transformação – da paciente Anna O. à ativista Bertha Pappenheim – se deu em função da possibilidade de escrever, atividade que nunca mais deixou de exercer, e que terminou por notabilizá-la pelos textos que pôde construir a partir de seu trabalho na assistência social junto a mulheres judias pobres, como era pobre o pintor do conto de Andersen, Billedbog uden Billeder, ao qual se referira Breuer como tendo inspirado Anna O. Na época em que criou o lar, já havia muitos lares para mulheres na Alemanha, mas nenhum judeu. O Heim de Pappenheim foi particular, respondendo ao que Lacan observa quanto à sublimação: “é às expensas de suas satisfações sexuais que os autores, quaisquer que sejam” produzem suas obras que apreciamos e que “assumem valor social – valor sublinhado pelo próprio Freud” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 368). A sublimação é característica da pulsão sexual, “pois tem o poder de substituir seus objetos originários por outros de valor mais elevado que não são sexuais” (Freud, 1910/1955, p. 145). Não simplesmente a sublimação do Seminário VII, em que Lacan (1959-1960/1997) a conceitua como ato que eleva o objeto ao nível da Coisa – transformando-o ao desconsiderar seu valor de uso, inclusive o sexual, de modo a permitir que adquira nova função fundamentalmente estética, como as caixas de fósforo com que Jacques Prevert criou uma figura em sua própria residência –, e sim, de um lado, sublimação no sentido em que permite o investimento da libido em uma atividade cujo alvo não é exatamente o sexual (Freud, 1915/1975) e, de outro, a sublime-ação de Bertha, que busca atribuir dignidade à mulher, tão objetificada.
“O tratamento pela escrita parece ter sido muito mais terapêutico do que o tratamento pela fala”, escreve Borch-Jacobsen (2012). Apesar de não concordarmos com a radicalidade dessa observação – aliás, ainda em 1917, Freud é explícito ao afirmar que a talking cure “de Breuer, ainda é o fundamento da terapia psicanalítica” (Freud, 1917/1999, p. 289) –, não somos avessos à ideia de que à talking cure seguiu-se uma writing cure, cujo resultado inicial foi o livro de contos. No texto de Kraß (2010, p. 49) lê-se: “As histórias das sereias e ninfas contam sobre a impossibilidade do amor, mas também sempre sobre as possibilidades da literatura”, comentário que nos serve muito em destaque, por nos permitir corroborar, ao menos inicialmente, que no trabalho de escrita de Bertha houve uma sublimação da sua vida erótica, e no lugar de permanecer enamorada pelo seu pintor, como é possível verificar nas análises retomadas por Segal e Barros (2014, p. 121) e Soler (2005, p. 83), Bertha foi ao encontro de uma sublime-ação, quando o foco de seus textos passou a produzir informações sobre a situação social de refugiados judeus e do tráfico de mulheres, na busca de salvá-las disso. O pseudônimo escolhido por Bertha foi o de Paul Berthold, um político contemporâneo seu, condecorado em 1905 por seus feitos no campo da política social. Provavelmente julgando ser mais provável que seus textos fossem publicados se assinados com um pseudônimo masculino, Bertha von Pappenheim escolheu um nome que já era conhecido como ativista na política social e, ao mesmo tempo, cujas iniciais espelhavam perfeitamente as dela: P.B./B.P. Que Bertha e Berthold também equivocam não deixa de testemunhar o que Freud (1908/1993) viria a identificar como a fantasia bissexual do sujeito histérico.
Em 1924, Bertha publicou seu texto mais importante, Trabalho de Sísifo (Pappenheim, 1924), no qual estuda o tráfico de mulheres e sua prostituição. Como observou Soler (2005, p. 11): Bertha Pappenheim soube sublimar sua feminilidade sacrificada, tornou-se mãe dos órfãos que acolhia como advogada e defensora dos direitos da mulher. É o que aqui nos permite associar sua sublimação e sublime-ação na luta contra a segregação não apenas sionista, mas também das mulheres. E se Bertha, como dizem tanto Freud como Lacan, fundou a psicanálise, então concluímos que o compromisso desta para com a causa de uma política social lhe é, na realidade, intrínseca, ou seja, fundadora.
Do mesmo modo como podemos associar o nome de Goethe, unificador da língua alemã, à escrita gotisch, marca do significante que determina o destino do autor ao qual Freud tanto se referiu, também podemos associar a obra de Bertha Pappenheim, o Heim des Jüdischen Frauenbundes, à marca que encontramos inscrita em seu nome. A escrita, para Goethe, funcionava como ponto de amarração frente à angústia do encontro com o real, sempre que o véu do engano se desfazia (Alberti, 2016). Goethe sabia que o amor é engano quando não se sabe impossível e que “Os desejos do amante realizam-se no artista” (Goethe, 1811-1833/1944) que, como Bertha, manteve vivos com a própria constante força da pulsão, cada um com seu particular movimento da sublimação. Vejamos o de Bertha, em 1911 (apudTitze, 2016)2:
Bertha Pappenheim: “Mir ward die Liebe nicht”
Mir ward die Liebe nicht – | O amor não foi para mim |
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Drum leb ich wie die Pflanze, | Por isso vivo como a planta, |
Im Keller ohne Licht. | no porão sem luz. |
Mir ward die Liebe nicht – | O amor não foi para mim |
Drum tön ich wie die Geige, | Por isso soo tal violino, |
Der man den Bogen bricht. | cujo arco lhe é partido. |
Mir ward die Liebe nicht – | O amor não foi para mim |
Drum wühl ich mich in Arbeit | Por isso me enfio no trabalho |
Und leb mich wund an Pflicht. | e em obrigações vivo me ferindo. |
Mir ward die Liebe nicht – | O amor não foi para mim |
Drum denk ich gern des Todes, | Por isso gosto de pensar na morte |
Als freundliches Gesicht. | como amável semblante. |
Esse poema retrata o porão sombrio de Bertha, que certamente contrasta com a demanda de Goethe, nos últimos instantes de sua vida, por “mais luz!”, mas nem por isso deixa de testemunhar o trabalho incansável que a levou à sua sublime-ação.