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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.35 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2023  Epub 26-Ago-2024

https://doi.org/10.33208/pc1980-5438v0035n01a07 

Seção Livre

A DESAUTORIZAÇÃO DO PROCESSO PERCEPTIVO EM MÃES DE VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL

THE DISAVOWAL OF THE PERCEPTUAL PROCESS IN MOTHERS OF SEXUALLY ABUSED CHILDREN

LA DESAUTORIZACIÓN DEL PROCESO PERCEPTIVO EN MADRES DE VÍCTIMAS DE ABUSO SEXUAL INFANTIL

Simone Paula Aparecida Rodrigues(1) 

Angela Maria Pires Caniato(2) 

Marcos Leandro Klipan(3) 

(1) Mestranda no programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), PR, Brasil. email: simone32551942@gmail.com

(2) Professora doutora do programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), PR, Brasil. In memoriam.

(3) Professor doutor do programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), PR, Brasil. email: mlklipan@uem.br


RESUMO

O objeto do presente artigo consiste na compreensão do descrédito/desautorização produzido por algumas mães de filhos vítimas de abuso sexual, à luz da teorização e do método psicanalítico. Para tanto, apresentamos o conceito de desautorização em seus aspectos conceituais, sociais e intrapsíquicos. Em um percurso histórico-conceitual, estudamos o descrédito desde as perspectivas freudiana da Verleugnung e ferencziana do desmentido até sua compreensão e tradução atual: a desautorização. Em seguida, são contextualizados os processos coletivos de desautorização por forças repressoras, que submetem os sujeitos a um lugar de coisa abjeta e de marginalidade. Destacamos que, em estado de desautorização, a experiência e a percepção se tornam desautorizadas e/ou invalidadas para evitar uma conclusão traumatizante. Alinhando esse conceito ao descrédito materno diante de revelações de abusos, conclui-se que desautorizar a eficácia de uma percepção para poder então suportá-la é uma possibilidade no contexto deste estudo.

Palavras-Chave: psicanálise; abuso sexual infantil; mães; descrédito; desautorização

ABSTRACT

The purpose of this article consists in understanding the discredit/disavowal produced by some mothers of children victim of sexual abuse, in light of the theorizing and the psychoanalytical method. For such purpose, the concept of disavowal in its conceptual, social and intrapsychic aspects is presented. The concept of discredit is studied within a historical and conceptual framework, from Freudian perspectives on Verleugnung and on denial by Ferenczi, up to its understanding and current expression: disavowal. Then, the collective processes of disavowal by repressive forces are contextualized, which subject the victims into a place of abjection and marginality. We highlight that, in a state of disavowal, experience and perception become unauthorized and/or invalidated to avoid a traumatizing conclusion. Aligning this concept with maternal discredit in face of revelation of abuse, it is concluded that deauthorizing the effectiveness of a perception to be able to bear it is a possibility in the context of this study.

Key words: psychoanalysis; sexual abuse of children; mothers; discredit; disavowal

RESUMEN

El objeto del presente artículo consiste en la comprensión del descrédito/desautorización producido por algunas madres de hijos víctimas de abuso sexual, a la luz de la teorización y del método psicoanalítico. Para ello, presentamos el concepto de desautorización en sus aspectos conceptuales, sociales e intrapsíquicos. En un recorrido histórico conceptual, estudiamos el descrédito desde las perspectivas freudiana de Verleugnung y ferencziana del desmentido hasta su comprensión y traducción actual: la desautorización. Luego, son contextualizados los procesos colectivos de desautorización por fuerzas represoras, que someten a los sujetos a un lugar de cosa abyecta y de marginalidad. Resaltamos que, en estado de desautorización, la experiencia y la percepción se vuelven desautorizadas y/o invalidadas para evitar una conclusión traumatizante. Este concepto, en línea con el descrédito materno ante revelaciones de abusos, conducen a la conclusión que desautorizar la eficacia de una percepción para poder entonces soportarla es una posibilidad en el contexto de este estudio.

Palabras-clave: psicoanálisis; abuso sexual infantil; madres; descrédito; desautorización

Introdução

O presente estudo é parte de uma dissertação de mestrado e tem por objetivo primordial a compreensão da desautorização/descrédito de algumas mães diante dos relatos de abuso sexual trazidos pelos filhos, segundo a teorização psicanalítica. A temática da violência sexual contra crianças e adolescentes vem ganhando destaque, sobretudo a violência sexual que ocorre no interior da família, e as preocupações com a gravidade e complexidade do fenômeno justificam as pesquisas e reflexões nessa seara.

Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (2018), entre 2011 e 2017, as notificações de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes aumentaram 83%, em especial no âmbito das relações domésticas e familiares. Corroborando esses dados, durante levantamento realizado no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS1) de Londrina, em julho 2018, constatou-se um total de 630 casos de violência física e sexual, dos quais 228 casos são de violência física intrafamiliar; coincidentemente, 228 casos são de violência sexual intrafamiliar e os 174 restantes, de violência sexual extrafamiliar (SMAS, 2018).

Na escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual intrafamiliar, para além do sofrimento psíquico decorrente das violências às quais são submetidas, chamam a atenção a dor e a decepção em face da não proteção por seus familiares, especialmente a mãe. Isso muitas vezes acarreta tentativas malogradas de superação das violências, como situações de risco pessoal, silenciamentos, negações, agressões e autoagressões, (re)produção da violência sexual, envolvimento com a exploração sexual comercial infantojuvenil e outros agravos, que demandam atenção diferenciada das políticas públicas de saúde, educação, assistência social e de justiça.

Nesse enquadre, a questão fundamental da presente pesquisa consiste em saber: como se estabelece o processo de descrédito/desautorização de mães frente ao abuso sexual sofrido pelos filhos? Partindo dessas considerações, o senso comum, a visão de profissionais e até mesmo a literatura têm demonstrado insuficiências e contradições acerca dessa realidade, vez que reduzem a problemática das mães a uma visão naturalista e simplista, ora compreendida como passiva e submissa ao companheiro, ora julgada como perversa e cúmplice desse agressor, o que tem se delineado na prática corrente até os dias atuais. Para França e Matos (2014), essas mães denotam prévias fragilidades emocionais e se acham tão aprisionadas em suas próprias necessidades psíquicas que isso as impede de supor e de garantir as demandas de afeto e cuidado dos filhos.

A tentativa de compreender e de aprofundar essa indagação traz à tona o conceito de desautorização de Luís Claudio Figueiredo (2018). Para o autor, a desautorização do processo perceptivo consiste num mecanismo de defesa a partir do qual o sujeito – neste estudo, as mães de vítimas – desautoriza o reconhecimento de uma percepção traumatizante que venha ferir a sua constituição subjetiva. Ressaltamos tratar-se de um conceito bastante complexo e aberto a muitas pesquisas.

Para Fuks (2010), algumas mulheres, quando submetidas a um relacionamento abusivo e de dominação por seus companheiros, nem sempre reconhecem essa dinâmica. A autora completa que o abuso emocional é subjacente a todas as outras formas de violência e implica uma distorção da realidade subjetiva que afeta as convicções acerca das próprias percepções, de modo que a mulher geralmente passa por longos períodos de dúvidas em relação às suas percepções. A investigação clínica e a atuação no contexto da violência também têm indicado que algumas mães não desconhecem totalmente a ocorrência de abusos sexuais contra os filhos, visto que a própria criança já tentou verbalizar ou sinalizar. Contudo, num nível inconsciente, embora suspeitem de algo, não reconhecem nem acreditam nessas percepções, ou seja, as renegam – as desautorizam.

“Assim, a eficácia de que uma percepção é privada ao ser desautorizada é a sua capacidade de remeter-se e de engendrar outras percepções, ou de levar, em uma dada sequência perceptiva, a certas conclusões ou, ainda, de reativar certas lembranças” (Figueiredo, 2018, p. 65). Nesse processo, a experiência real vivenciada é desautorizada, tornada ineficaz, de maneira que a percepção é então privada da autoridade para gerar outras percepções, decisão ou conclusão, mantendo-se a parte do processo perceptivo em estado de desligamento e desautorização. Em síntese, a lógica da desautorização é a evitação de uma percepção, lembrança ou conclusão traumatizante, tal como a constatação dos abusos sexuais contra os filhos nos casos de violência.

Segundo as séries complementares de Freud (1916-1917/1996) em Conferências introdutórias sobre Psicanálise, a combinação de uma série de fatores internos (pulsionais) e externos (vivenciais) resulta numa condição final – neste escopo de pesquisa, o descrédito/desautorização materna em casos de abusos sexuais. Dos fatores externos, destacam-se os processos psicossociais que preparam o campo da desautorização materna – que não se restringe às mães de vítimas – vez que coexiste na sociedade uma atitude coletiva de silêncio e banalização no entorno das violências, a partir de sistemas de crenças e preconceitos que não reconhecem a experiência dos sujeitos, seu sofrimento e sua percepção da realidade (Fuks, 2005). Dos fatores internos, sobressaem os processos intrapsíquicos de defesa, como os de desautorização, sobretudo.

Isso posto, nossas hipóteses acerca do descrédito materno apontam para a constituição psíquica de mães vinculada ao uso de mecanismos arcaicos de defesa, como a desautorização, por exemplo. A desautorização, portanto, é debatida neste artigo tanto em seus aspectos conceituais e sociais como no que tange às mães de vítimas de abuso sexual infantil.

Do descrédito à desautorização: um percurso histórico-conceitual

Diversas terminologias têm sido associadas para conceituar o descrédito materno. Apesar de a palavra negação ser amplamente utilizada no contexto dos abusos, desmentido é um termo bastante disseminado em psicanálise. Há quem prefira a palavra recusa e, nesse sentido, a renegação é empregada como se fosse uma dupla negação, a partir da Verleugnung, em alemão. As noções de descrédito e não reconhecimento também são visões propostas. Atualmente, a ideia de desautorização têm sido a melhor tradução para descrédito, à luz de Figueiredo (2018).

Em seu trabalho intitulado Verleugnung: A desautorização do processo perceptivo, esse autor argumenta que a Verleugnung deve ser compreendida enquanto uma desautorização. Nessa perspectiva, por desautorização compreendemos o processo de defesa intrapsíquica, que consiste em tornar desautorizada ou ineficaz uma experiência real vivenciada, de maneira que a percepção é então privada da autoridade para gerar outras percepções, decisão ou conclusão, mantendo-se a parte do processo perceptivo em estado de desligamento e desautorização (Figueiredo, 2018)2. Assim, o que é registrado no nível sensorial e perceptivo não é integrado de forma a transformar a relação com o outro e com a Lei.

Nesta revisão, o descrédito é estudado numa perspectiva histórico-conceitual, desde as noções relativas à negação até sua atual tradução por desautorização. Embora a palavra negação seja comumente utilizada para explicar o descrédito no contexto de abuso sexual, do ponto de vista conceitual, esse uso é equivocado. Negação em alemão se traduz por Verneinung e, para Laplanche e Pontalis (1982/2001), refere-se à negação de uma realidade interna. Enquanto isso, o verbo verleugnen, no pensamento freudiano, significa “renegar, denegar, retratar, desmentir” (p. 293) e designa a recusa da percepção de uma situação que se impõe no mundo externo a partir de uma divisão no ego. Com esse sentido, o substantivo Verleugnung foi traduzido por recusa em português e, tal como o descrédito da mãe, incide sobre a percepção de uma realidade externa insuportável.

Incialmente, a ideia de renegação em Freud (1923/2011), no texto A organização genital infantil, surge vinculada ao mecanismo psicótico, em oposição ao recalque, próprio da neurose. Porém, no texto Fetichismo, Freud (1927/1996) define a renegação como um mecanismo perverso, em que o sujeito concebe a coexistência de duas realidades contraditórias: a constatação da ausência do pênis na mulher e a recusa. Logo, uma cisão do ego não resultaria somente em psicose, mas também em perversão.

Nos desenvolvimentos ulteriores de Freud (1938/2018), o mecanismo da recusa e as duas atitudes fetichistas (reconhecer e recusar) são apontadas como uma divisão do ego. Contudo, esse tipo de cisão do ego, entre duas atitudes contrárias – reconhecimento e recusa da realidade externa –, deve ser diferenciado da divisão que se opera no recalque neurótico. À luz da ótica de Freud, Figueiredo (2018) alega que as cisões/clivagens, bem como as repressões ou recalcamentos, são expressões distintas para lidar com o insuportável da vida. Nas clivagens, a divisão no ego é vertical, conservando lado a lado a realidade objetiva e a vivência interna; nos recalcamentos, as barreiras psíquicas são horizontais, sendo as vivências expulsas da consciência e soterradas. Diferentemente das repressões, as cisões/clivagens são formas mais primitivas para enfrentar o traumático, impedindo a instalação do conflito psíquico e suas tensões.

Ao final de sua obra, Freud (1938/2018) reconhece a noção de divisão do ego para além dos quadros de fetichismo e psicoses, demarcando sua presença nas neuroses de um modo geral:

Não se deve crer que o fetichismo represente um caso excepcional no tocante à cisão do Eu. … Tais recusas acontecem com muita frequência, não só em fetichistas [ênfase adicionada], e, sempre que podemos estudá-las, revelam-se meias-medidas, tentativas incompletas de desprender-se da realidade. A cada vez a rejeição é complementada por um reconhecimento, sempre nascem duas atitudes opostas e independentes entre si, que produzem o fato da cisão do Eu. (Freud, 1938/2018, p. 268-269)

Para o autor, as ocorrências relativas a essa divisão do ego são uma característica universal das neuroses na vida mental do sujeito: frente a uma situação peculiar, duas atitudes mutuamente contrárias e independentes se formam. Nas neuroses, uma dessas atitudes cabe ao ego e a contrária, a que é reprimida, é de domínio do id: um processo intrapsíquico, portanto. Nessa seara, Figueiredo reforça que “O contato com a ‘realidade’ – ao menos no que concerne a certas dimensões da realidade – fica extremamente comprometido, embora esses não sejam necessariamente pacientes perversos ou psicóticos” (2018, p. 62). Assim, a ligação com a realidade é mantida apenas em partes, pois uma outra dimensão é recusada, o que pode ocorrer em todas as estruturas, a saber: psicose, perversão e neurose.

Em outra visão face ao mecanismo da Verleugnung, traduzida posteriormente por desmentido, ela passou a ser associada ao campo do trauma, segundo o pressuposto ferencziano. Nesse ponto de vista, o desmentido consiste no segundo momento do trauma (o primeiro seria a vivência violenta em si), o que se traduz por uma resposta inapropriada do meio a um sujeito que tenta relatar uma vivência violenta que sofreu (Osmo & Kupermann, 2017). Para esses autores, há desmentido quando as pessoas próximas de quem sofreu a experiência traumática denotam incompreensão, silêncio ou agem como se nada houvesse ocorrido e a vivência não fosse importante, desautorizando a fala do sujeito que tenta testemunhar o que viveu. Nas palavras de Ferenczi (1931/1992), o pior é realmente o desmentido, “a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento …; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico” (p. 91). Nessa leitura, uma resultante do desmentido é a perpetuação do trauma, uma vez que o descrédito/não reconhecimento da violência traumática é o que torna o trauma desestruturante.

Para ilustrar o poder traumático do desmentido, Ferenczi (1933/1992) apresenta seu modelo teórico no artigo Confusão de língua entre os adultos e a criança, destacando uma perspectiva relacional e social do traumático entre pelo menos três pessoas – o agressor, a vítima e um outro adulto que não reconhece a violência: por esse modelo, a criança dirige-se ao adulto em sua linguagem infantil e perverso-polimorfa, mas recebe desse adulto uma resposta erotizada para a qual não está pronta. É nesse ponto que se estabelece a confusão de línguas: tentando simbolizar a experiência vivida, a criança se reporta ao segundo adulto, que, por sua vez, reage de forma perplexa à criança, desacreditando e desautorizando a experiência e a própria criança enquanto sujeito. Nesse sentido, uma dimensão interpessoal é associada ao conceito da Verleugnung:

… indicando que o não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma ‘desautorização’ da sua experiência (e do seu testemunho) no campo social, sendo esta ‘desautorização’, ela mesma, primordial na constituição do trauma. Nesse sentido, enquanto o trauma sexual freudiano implicava, em última instância, uma operação intrapsíquica própria ao sujeito – ainda que originada por uma intrusão externa –, o trauma social, formulado por Ferenczi, explicitaria uma fratura na operação de reconhecimento no campo das relações sociais e políticas. (Kupermann, 2015/2016, p. 1)

Ainda no contexto das relações sociais, numa releitura do desmentido ferencziano, Gondar (2012) propõe a noção de não reconhecimento enquanto não validação perceptiva e afetiva do trauma sofrido, o que significa um descrédito da percepção, do sofrimento e da condição de sujeito daquele que vivenciou a violência. Portanto, aqui não só o evento é desmentido, mas o próprio sujeito.

Osmo e Kupermann (2017) reportam que Ferenczi utiliza o conceito da Verleugnung de forma diferente de Freud: enquanto, em Freud, o desmentido denota um mecanismo de defesa, sendo, portanto, um mecanismo intrapsíquico, em Ferenczi, a expressão descreve uma situação que se dá entre as pessoas, isto é, o desmentido pertence ao campo das relações e, por isso, não seria um mecanismo interno. Para os autores, “se em Freud a Verleugnung diz respeito à recusa perversa da castração, em Ferenczi há uma dimensão relacional, indicando um não reconhecimento pelo outro de uma narrativa de sofrimento de um sujeito” (Osmo & Kupermann, 2017, p. 479-480).

Miranda (2012), nesse sentido, concebe o desmentido em sua operação consciente no âmbito das relações, o que suscita debates teóricos imprescindíveis quanto à consciência da mãe que põe em descrédito os abusos sexuais relatados pelos filhos. Questionando o mecanismo de defesa derivado de uma percepção da realidade externa, a autora propõe o termo descrédito, em virtude de ser mais próximo ao contexto da experiência e denotar uma ação mais consciente e observável.

Contudo, pensando o descrédito não apenas num plano consciente, consideramos que, no interior da “confusão de língua”, a participação de algumas mães, no contexto dos abusos, é de ordem inconsciente e, portanto, intrapsíquica. Para Figueiredo (2018), a desautorização consiste no mecanismo de defesa intrapsíquico, a partir do qual o sujeito desautoriza o reconhecimento de uma percepção traumatizante que venha ferir a sua constituição subjetiva. A percepção não deixa de existir, mas é desautorizada e tornada ineficaz, assim como segregada do restante do psiquismo. Diferentemente do que ocorre na psicose, a realidade externa é preservada para o sujeito que desautoriza o outro mediante uma cisão/clivagem no psiquismo. Em complemento e com base no mecanismo de defesa da Verleugnung apontado por Freud (1927/1996), que consiste numa recusa do sujeito em reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, Figueiredo (2018) ainda expõe que ocorre a desautorização do processo perceptivo em razão de se evitar uma realidade insuportável e, assim, entende a recusa como a desautorização do processo perceptivo.

Alinhando essa perspectiva da desautorização – na qual uma experiência real vivenciada é desautorizada – à percepção dos abusos contra os filhos, concluímos que a desautorização do processo perceptivo nas mães de vítimas ocorre em virtude de ser essa percepção uma constatação insuportável, semelhante a um trauma. À luz dessas considerações e de todos esses significados (negação, renegação/recusa, desmentido, descrédito, não reconhecimento e desautorização) atribuídos à Verleugnung, admitimos que a desautorização consiste na concepção que mais se aproxima de nossas percepções, dado que abrange o psiquismo em sua condição cindida, incluindo tanto a percepção da realidade como a desautorização dessa percepção. Diferentemente de apenas recusar uma realidade, a desautorização implica a perda da autoridade de uma percepção sobre determinada realidade. Para além do desmentido, descrédito e não reconhecimento atrelados ao campo das relações interpessoais, e ponderando a relevância do fator interno em uma série complementar, a desautorização expressa um mecanismo intrapsíquico que destitui de autoridade a percepção.

Dos fatores históricos e sociais presentes nos processos de desautorização

… é provável que as condições socioculturais contemporâneas [ênfase adicionada]… tendam a produzir modos de funcionamento mental em que a Verleugnung tenha uma presença marcante. (Figueiredo, 2018, p. 62)

As considerações a seguir propõem um resgate teórico, enfatizando a relevância dos fatores externos/vivenciais – os aspectos históricos e sociais, a conjuntura sociocultural contemporânea e as repercussões da violência estrutural em sua interligação com atos de desautorização – que integram a série complementar (Freud, 1916-1917/1996) dos motivos que favorecem a desautorização materna do abuso da criança.

A desautorização retira da percepção a “autoridade para ensejar outras percepções e outros processos psíquicos, vale dizer, é mantida isolada do processo perceptivo e das suas conexões naturais com os processos mnêmicos e de simbolização” (Figueiredo, 2018, p. 64). Sob o efeito da desautorização, a percepção não perde significado, mas perde sua importância. Tais percepções indigeríveis e não metabolizadas em estado de quase coisas são segregadas do processo perceptivo no inconsciente invalidado.

Segundo a visão de Labaki (2018), o conceito de desautorização, sugerido por Figueiredo (2018), aplica-se muito bem à compreensão dos processos pelos quais forças repressoras e conservadoras subjugam populações, minorias sociais e grupos a uma posição de marginalidade, de exclusão social ou de coisa abjeta3. Em complemento, e tendo em vista os estudos de Gondar (2012), Lebrun (2008) e Žižek (2017), podemos estender o sentido da desautorização ao campo da cultura, das relações sociais, do direito e, ainda, da macropolítica.

Nessa lógica, Lebrun (2008) argumenta que, para o nosso mundo tornar-se mais suportável, ocorre uma massificação da atitude de recusa, de modo que, frente à pobreza, à injustiça social e à iniquidade, muitas vezes produzimos um tipo de resposta que é própria da Verleugnung. Ou seja, nós frequentemente desmentimos ou desautorizamos uma realidade externa insuportável e comportamo-nos como se nada houvesse se passado, tal como o descrédito/desautorização de algumas mães frente ao relato de abuso sexual de seus filhos.

Nessa direção e considerando a fundamentação ferencziana, Gondar (2012, p. 207-208) alega que “longe de reduzir-se a uma história familiar, o desmentido expõe, tanto na criança traumatizada pela hipocrisia dos adultos quanto no sujeito traumatizado pela violência social, uma mesma vivência de aniquilamento”. Segundo a autora, não acolher ou responsabilizar um sujeito traumatizado, não reconhecer sua queixa sobre uma injustiça sofrida ou sua necessidade de reparação, seja no âmbito individual ou coletivo, consiste em um reconhecimento recusado.

Žižek (2017) aponta que nossas atitudes no universo das trocas ideológicas e sistemas totalitários assumem um formato fetichista no sentido da desautorização de uma difícil realidade que se impõe e dão continuidade ao desmentido social. Para Fuks (2005), as formações sociais sustentam discursos e dispositivos defensivos que minimizam a relevância dos fatos de violência, os quais se tornam objeto de uma “complacência recusatória conhecida como banalização” (p. 66). Segundo a autora, diante de um incesto, por exemplo, ocorre muitas vezes uma atitude ou pacto coletivo de silêncio e negação.

Numa perspectiva histórica, consideramos que toda a ação de desapropriação e desqualificação dos sujeitos traduz formas sociais de desautorização: desde a transição da barbárie para a civilização já podemos vislumbrar a presença dos modos de dominação entre homens e mulheres, ou melhor, de homens sobre mulheres. Vimos também, na Idade Média, a mulher num lugar de submissão e sujeição ao homem e a criança, enquanto pequeno adulto, submetida à intimidade e à precariedade de cuidados dos adultos (Ariès, 1978/1986).

Segundo Birman (1999), na Modernidade, tanto as figuras da mulher-mãe como a da mulher-objeto interditaram boa parte da sexualidade feminina, num processo de degradação do feminino, levando a mulher a fazer do seu corpo um símbolo fálico e do seu desejo um aspecto congelado, em estado de recusa. Nesse cenário, a sedução, em sua versão perversa, a cumplicidade do seduzido e a passividade enclausurante reduzem a mulher-mãe a uma condição de aniquilamento e de assujeitamento – ou uma desautorização, na ótica de Figueiredo (2018).

Conforme a teorização ferencziana destacada por Pinheiro (1995), a mulher deixou-se capturar por uma cultura dominada pelo homem numa lógica fálica e patriarcal, como se tivesse sido invadida pela lei estabelecida, tal como o agressor invade o ego da criança. Embora não se reconheça nessa posição, a mulher é, então, capturada pela violência perversa de seu parceiro agressor, sendo, ao mesmo tempo, vítima e reprodutora desse modelo de dominação. Como consequência, sob a forma de desautorizações, não consegue proteger a si própria e nem à prole, considerando o momento histórico e a configuração social dominante.

A partir de 1960, a família tradicional vem sendo gradativamente substituída por novas configurações familiares, nas quais o poder paterno não é tão predominante e as funções parentais são compartilhadas. A mulher é, muitas vezes, a provedora e a referência da família, enquanto o pai a auxilia (ou não) nos cuidados com a prole, o inverso da família patriarcal e tradicional. Entretanto, mesmo nessas novas configurações, algumas mulheres, ainda que sejam as provedoras, caminham submissas e desautorizadas no enlace com o parceiro agressor, tal como na antiga tradição patriarcal, mantendo, portanto, uma postura de desautorização em relação à violência incestuosa anunciada pelos filhos.

No mundo contemporâneo, segundo Figueiredo (2018), é difícil imaginar um sujeito humano que não recorra às cisões, aos desligamentos e às dissociações para se livrar de experiências nocivas e não metabolizáveis. Por esta razão, segundo Lebrun (2008), a conjuntura sociocultural atual tende a produzir uma forma perversa (Verleugnung) de funcionamento mental que tem sido marcante na sociedade. Por esse ângulo, Figueiredo (2018) e também Maireno (2019) reforçam que o Zeitgeist contemporâneo aponta para um modo de funcionamento mental individual e social mais favorável à perversidade, à esquizoidia e à sociopatia, decorrentes do predomínio do desmentido ou desautorização (Verleugnung).

No atual regime político brasileiro reverberam, enquanto processos de desautorização:

… naturalização de condutas violentas e anuladoras da alteridade; desculpabilização dos agentes de tais condutas; desqualificação das evidências perceptivas que, a priori, seriam plenamente suficientes para responsabilizar/denunciar/incriminar tais agentes; ampliação dessa tendência sociopática ou antissocial para além das esferas individual e privada, alcançando as coletividades. (Maireno, 2019, p. 15)

Nesse cenário, o autor assinala a naturalização, a cronicidade e até mesmo certa harmonização das violências tanto extra como intrafamiliares e domésticas, que são diariamente encaminhadas aos Conselhos Tutelares, CREAS, Varas da Infância e Adolescência e outros serviços de garantia de direitos. Junto a isso, ocorre o aumento das violências em nível macrossocial, constantemente desautorizadas, desqualificadas, renegadas e não reconhecidas pela sociedade, resultando em graves consequências psicossociais, que requerem atenção.

Para Minayo (1994), a violência que se aplica aos sistemas culturais, econômicos e políticos, às estruturas institucionalizadas e organizadas da família, que “influenciam profundamente as práticas de socialização, levando os indivíduos a aceitar ou a infligir sofrimentos …, de forma ‘naturalizada’” (p. 8), configura violência estrutural, ou seja, uma forma de desautorização. Caniato (2017) deduz que a violência estrutural reflete uma forma perversa de violação de direitos pelo Estado, sendo, pois, anterior à violência intrafamiliar que, muitas vezes, dá entrada nos serviços de acompanhamento familiar. Para a autora, essas formas perversas de sedução advindas das relações de dominação veiculadas pela ideologia da indústria cultural, a serviço do poder econômico, engendram sujeitos fragilizados que, assim, sucumbem na apatia e no conformismo da violência social internalizada sob a forma de desautorizações.

Considerando a naturalização das violências, tanto na sociedade como na tríade familiar, torna-se pertinente destacar a pesquisa de Mandelbaum (2012) sobre incestualidade familiar, que consiste num clima de sedução e trocas erotizadas entre membros de diferentes gerações, sem que haja, necessariamente, indícios de incesto consumado. Esse estado de coisas pressupõe uma desautorização das diferenças no interior da família, tal como alguns modos de existência típicos da contemporaneidade. Em acordo com essa visão, Birman (2008) ressalta que o aumento da violência sexual contra crianças e adolescentes, perpetrada inclusive pelos pais, é um problema pós-moderno, de modo que a criança se tornou objeto de gozo imediato dos adultos4, visto o apagamento/desautorização das diferenças geracionais. Assim, para Birman (2008) e Mandelbaum (2012), a sociedade contemporânea é incestuosa, sobretudo no sentido de um apagamento das diferenciações, incluindo-se aí a erotização precoce de crianças e a infantilização de adultos.

Por fim, sobre a desautorização materna do incesto da criança, sublinhamos que tal transgressão fere tão intensamente o laço civilizatório social que se torna difícil para o adulto acreditar nela. São diversos os aspectos de ordem social que favorecem o descrédito, como o medo de não conseguir sobreviver financeiramente, o medo da denúncia, do rompimento familiar e de repercussões sociais presentes na mãe vinculada ao homem em um enlace abusivo ou perverso. Ainda, a ausência de modelos de proteção na família e a possibilidade de a mãe ter sido também vítima de violência na infância reduzem ainda mais as possibilidades de percepção da realidade e reforçam atos de desautorização, numa série de fatores que se complementam. Dessa feita, concluímos que muitos adultos não acreditam na palavra e nas percepções da criança, fazendo prevalecer, em nossa sociedade adultocêntrica, o descrédito e a desconsideração pela criança, além da desautorização da complexa e traumatizante situação de violência relatada.

Sobre a desautorização e as mães de vítimas de abuso sexual infantil

De um lado, são capazes de registrar e armazenar aspectos importantes da realidade externa e interna em que evoluem; da mesma forma, conseguem comunicar com clareza o que puderem captar nos outros e em si mesmos ao longo de diversas situações de vida em que se viram envolvidos, em especial nas situações mais complexas, difíceis e dolorosas. De outro lado, tendem a não tirar consequências desses elementos e a não ser capazes de ligá-los uns aos outros para uma visão mais ou menos integrada e conclusiva da realidade própria e alheia. (Figueiredo, 2018, p. 61)

Neste artigo ressaltamos os impactos da Verleugnung na organização psíquica da mãe que desautoriza a vivência e, consequentemente, a alteridade dos filhos, enquanto fator interno relevante na série complementar (Freud 1916-1917/1996) para pensarmos a desautorização materna. Figueiredo (2018), assim, destaca do modelo freudiano, que: “Normalmente, o mundo externo governa o ego por duas maneiras: em primeiro lugar, através de percepções atuais e presentes, sempre renováveis” (Freud, 1924/1996, p. 89). Nessa sequência, Figueiredo (2018) define, portanto, uma percepção atual por sua capacidade de renovar-se, transitar e dar lugar a outras.

Por desautorização, esse autor enfatiza um caráter relevante que se refere ao rompimento da natureza transitória da percepção. Nessa ótica, a desautorização não afeta a percepção propriamente dita, mas sua possibilidade de transitar em direção a outras, de modo a preservar alguma continuidade: “O que é contestado na Verleugnung é a autoridade que uma percepção detém de propiciar e mesmo exigir outros passos na cadeia psíquica” (Figueiredo, 2018, p. 65). Em outros termos, a desautorização de uma percepção interdita os elos transitivos que conduziriam a uma constatação, bem como as consequências dessa constatação – como a constatação dos abusos pelas mães de vítimas. Logo, a não eficácia transitiva de um dos elos obstrui um processo perceptivo.

A percepção sob o impacto da desautorização não perde seu significado, mas, sim, a importância. Assim, a percepção não é recusada completamente e nem exatamente desmentida. Ocorre que a percepção sobre a qual incide a Verleugnung não detém autoridade para predispor outras percepções. A percepção em si não é desautorizada, mas o que vem ou viria após ela: outra percepção, a chance de uma simbolização, uma dedução lógica ou a reativação de uma lembrança. Não é o significado da percepção que é desautorizado, mas a significância, a importância, o que se poderia inferir dessa percepção. Logo, para as mães de vítimas de abuso sexual, não se trata de negar o que é visto e seu próprio sentido, mas impedir o que o psiquismo possa inferir daquilo que foi visto. Nessa visão, a percepção permanece, diz Figueiredo (2018), e o esforço da defesa é no sentido de limitar ou invalidar a autoridade da percepção. A percepção, então, é privada de autoridade para gerar outras percepções e outros processos psíquicos, mantendo-se à parte do processo perceptivo e da simbolização, bem como de suas relações com os processos mnêmicos. É uma percepção que não pode ser simbolizada, um saber que não se integra ao restante do psiquismo.

Para auxiliar nossa compreensão desse processo, Figueiredo (2018, p. 62) recorre à admirável expressão “eu sei, mas mesmo assim…” de Octave Mannoni (1991), esclarecendo que o significado da percepção não é desmentido, mas conservado. Nessa formulação de Mannoni, o “eu sei” diz respeito à percepção desconfortante e desautorizada da mãe frente aos abusos contra os filhos, e o “mesmo assim” revela-nos a posição subjetiva materna, que não pôde ser alterada, frente a essa realidade sabida, percebida, mas, mesmo assim e ao mesmo tempo, desautorizada, destacando a presença do mecanismo de defesa da Verleugnung na atitude da mãe.

Quando aquilo que possui significado (a mãe, muitas vezes, mesmo de posse da percepção, não a valida) é destituído de valor e isolado do conjunto de associações, a fim de ser conservado num estado de quase coisas, esses itens formam apenas uma série de lembranças vívidas e completamente inúteis, que não se integram no fluxo de associações psíquicas, por terem malogrado em sua competência de simbolização, segundo Figueiredo (2018). Portanto, não há uma total obstrução do processo de simbolização, mas a perda de importância implica um estado de quase coisas que, segundo o autor, mantêm-se endurecidas, dissociadas e segregadas verticalmente do restante da psique, em estado de desautorização. As percepções em estado de quase coisas não transitam e não geram reações, tornando-se invalidadas, assim como nas mães que desautorizam os relatos de abusos dos filhos vítimas.

Tais percepções são “afetos não suportados, e por isso insuportáveis, os que podem produzir efeitos traumatizantes, desintegradores e mortíferos. Formam-se dessa maneira os elementos dissociados (dejetos) que compõem o … ‘inconsciente invalidado’” (Figueiredo, 2018, p. 27). Essa noção de inconsciente invalidado preconiza a presença de estados afetivos não assimilados pela subjetividade, em que seus componentes não são integrados numa extensão de sentido, conservando-se a parte da dinâmica psíquica normal ou neurótica que se constitui a partir dos estados de conflito. O inconsciente invalidado, assim, compreende aquelas vivências afetivas muito intensas que não foram legitimadas ou autorizadas no contexto social5.

Figueiredo (2018) ressalta ainda que a percepção desautorizada detém um potencial traumático enorme e, ao mesmo tempo, tem abolida sua significância ou eficácia transitiva. Essencialmente, o que justifica a desautorização é a evitação de uma percepção, de uma lembrança ou de uma conclusão traumatizante. Então, as quase coisas em estado de desautorização retornam incompreensíveis e fora de controle, gerando uma opacidade de informações que, desligadas umas das outras, produzem uma espécie de confusão que os pacientes relatam sentir continuamente. Como as quase coisas não se integram para uma conclusão, ocorre uma experiência traumática e de difícil elaboração. Embora as mães relatem experiências de violência, algumas não puderam integrar esses afetos não aptos à simbolização em estado de semicoisas, de forma a dar sentido às experiências e relatos de abusos dos filhos vítimas.

Ainda que esses elementos sejam preservados, condensados e regressem aos pensamentos com insistência avassaladora, eles são desprovidos de certa competência. Tal é a posição subjetiva que Figueiredo (2018, p. 62) descreve, fundamentado em Mannoni (1991): “eu sei, mas mesmo assim”. Mesmo que saibam, esse parece ser um saber invalidado e sem utilidade, que torna esses sujeitos desconfiados e sem esperança e, ao mesmo tempo, ingênuos e sem experiência. Tal inexperiência e ingenuidade torna-os constantemente vulneráveis a novas situações traumáticas. Segundo Figueiredo (2018), na posição subjetiva que caracteriza um sujeito que desautoriza o outro, por um lado, a inteligência e a capacidade de ligar e discriminar são preservadas e operam com eficiência; por outro lado, não são capazes de montar relatos dotados de passado, presente e futuro que deem sentido à vida e ao seu sofrimento. Por fim, não permitem que os elementos percebidos resultem em tomadas de decisões e de posição – como a denúncia do abuso pela mãe.

Para o autor, nesses casos, o contato com a realidade é seriamente comprometido, apesar de não serem pacientes perversos ou psicóticos. Esse contato prejudicado com a realidade é representado pela concretude de uma imagem fixada da realidade, que pode ser uma patologia da realidade. Nesses casos concretos operam os processos de clivagem, e os sujeitos são fixados ao que se apresenta como real, e por isso são considerados pacientes difíceis ou concretos. Eles não suportam a dúvida e a diferença, sendo completamente aderidos ao que se mostra como real, o que consiste numa defesa contra o reconhecimento da alteridade. Do outro lado da cena de violência, tal como esses pacientes concretos, algumas mães de vítimas também dinamizam mecanismos psíquicos de defesa, de modo que apenas acreditam nos relatos dos filhos ao flagrarem o abuso sexual da criança pelo companheiro. O apego à realidade concreta desautoriza e impede a transitividade das percepções nesses casos.

Portanto, as cisões/clivagens e a Verleugnung correspondem a uma defesa mobilizada pelos simultâneos reconhecimento e recusa da diferença e do traumático. Ou seja, uma defesa contra os processos de diferenciação que caracterizam a natureza em geral e a própria natureza subjetiva, segundo Figueiredo (2018). Disso decorre que certa patologia da realidade é inerente à vida psíquica, sendo a defesa contra a diferença e contra o trauma uma condição anterior da vida mental. Ao mesmo tempo que garantem a sobrevivência, reduzem os sujeitos a formas repetitivas que obstruem os caminhos da vida6. Logo, “a desautorização é justamente o que interrompe os processos transitivos e as diferenciações em curso” (Figueiredo, 2018, p. 77, grifo do autor), ocorrendo em toda e qualquer constituição psíquica: neurose, psicose e perversão. Nesse sentido, o modelo da desautorização nos permite considerar a mãe independentemente de sua configuração psíquica.

Por outro lado, destacamos, de uma passagem de Figueiredo (2018), a incapacidade ou a má-fé por parte dos adultos em reconhecer e acolher o fato da violência, que é então desautorizado. Apesar de já termos debatido sobre a incapacidade e a fragilidade da mãe sob a luz da desautorização – tendo em vista o recorte deste estudo –, torna-se relevante também pensarmos a perversão materna7 enquanto uma possibilidade. Desta feita, reforçamos a noção de que manifestações perversas se acham relacionadas a qualquer constituição subjetiva (Figueiredo, 2018; Freud, 1938/2018), o que nos permite pensar a Verleugnung sem a preocupação em delimitá-la como estrutura ou não, uma vez que a perversão consiste numa dupla posição de reconhecimento e recusa de uma percepção traumatizante. Por essa razão, não devemos atribuir às mães de vítimas – não em todos os casos – a estrutura perversa ou mesmo a perversidade num sentido moral, mas sim a emergência dessas manifestações perversas, na dinâmica psíquica da mãe, muitas vezes em decorrência de sua captura em um enlace perverso ao companheiro, o que nos parece muito frequente. Nesses enlaces subjetivos marcados pela objetalização e aniquilamento do sujeito, algumas mulheres se ligam às relações transgressoras, anulando-se enquanto sujeitos; dessubjetivando-se, portanto.

Em face dessas considerações e no interior das séries complementares, há que se ponderar as duas possibilidades: tanto a da perversão enquanto tal como a de um funcionamento ou manifestações perversas na mãe, conforme temos abordado até aqui. Portanto, pensamos que as mães de crianças vítimas de abusos sexuais na família podem lançar mão desse mecanismo de defesa psíquica, a desautorização, comumente presente nos quadros de perversões, a fim de suportar uma realidade traumática, que lhe é também perversa, a da violência sexual. Posto isso, desautorizar a significância ou a transitividade de uma percepção para poder então suportá-la é uma possibilidade que temos vislumbrado ao longo deste estudo.

Considerações finais

Resgatando a visão das séries complementares de Freud como estratégia de compreender a desautorização de mães frente aos relatos de abusos sexuais dos filhos, constatamos que as formas sociais de desautorizações enquanto fator externo numa série, junto aos processos de desautorização no psiquismo de mães, como o fator interno nessa mesma série, facilitam a desautorização da criança vítima. A fim de se evitar uma constatação traumática e suas repercussões, para algumas mães de vítimas, as próprias percepções acerca dos abusos sexuais vivenciados e sinalizados pelos filhos se tornam desautorizadas e relegadas ao estatuto das semicoisas. Isso posto, são também desautorizadas/invalidadas as percepções maternas relativas à validação da palavra da criança, ao reconhecimento da alteridade e da proteção dos filhos.

Segundo Labaki (2018, p. 5), “o antídoto para a desautorização é o reconhecimento”. Na medida em que essas mães de vítimas têm suas percepções autorizadas e sua alteridade validada, torna-se possível a elas também reconhecerem sua criança vítima. Nossa atuação, portanto, deve ir ao encontro do reconhecimento do sujeito em sua singularidade, considerando as dimensões intrapsíquicas e sociais dos processos de desautorização. À luz dessas considerações, concluímos ser imprescindível a atuação da psicologia contra esses sofridos processos de desautorização, que aniquilam e desconstituem os sujeitos de sua condição de alteridade. Para tanto, é fundamental conhecer e, assim, poder atuar sobre tais processos de forma a reverter essas posições desautorizadas a partir de seu oposto; ou seja, é mediante o reconhecimento que um sujeito pode ter suas percepções validadas, ter a coragem para se deparar e permitir a continuidade das diferenciações, bem como a validação do outro e da experiência alheia.

Nessa perspectiva, encerramos este nosso escrito enfatizando a grandeza do reconhecimento na luta contra as percepções desautorizadas de mulheres-mães de vítimas de abuso sexual infantil. Por fim, destacamos a relevância de pensar as formas de atuação profissionais face aos processos de desautorização dos sujeitos enquanto futuros desenvolvimentos de pesquisas.

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Notas

1 O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é uma unidade pública da Assistência Social que atende pessoas que vivenciam situações de violações de direitos ou de violências (SNAS, 2011).

2 Cabe destacar que a noção de desautorização de Figueiredo (2018), nesse sentido de cisões, desligamentos e dissociações, se aproxima também do conceito de forclusão (Verwerfung).

3 Diversos movimentos totalitários exterminaram sujeitos (comunistas, homossexuais, judeus, ciganos, deficientes físicos e mentais, entre outros) pelo mundo. No Brasil, o regime agrário escravocrata também refletiu formas sociais de desautorização dos sujeitos e posições de exclusão no laço social.

4 O sofrimento nesses casos é ainda maior, visto o apagamento das diferenças geracionais e a desconsideração da alteridade da vítima, bem como de seu lugar na família. Acrescenta-se a isso o sentimento de culpa oriundo da sua participação na dinâmica incestuosa, além do sofrimento de não ser acreditada por seus familiares, geralmente a mãe, sobretudo, quando ela se sente ambivalente e, assim, desautoriza a experiência da criança.

5 Na metáfora de Stolorow (2000), diferentemente dos afetos recalcados que, num plano mais dinâmico e horizontal, estariam no porão da casa, os afetos não aptos à simbolização – em estado de semicoisas, para Figueiredo (2018) – seriam semelhantes à matéria-prima como blocos, cimentos e areia que, não sendo aproveitada na construção da casa, encontra-se espalhada em seu entorno, tal como na divisão vertical proporcionada pela clivagem, lado a lado. Origina-se, então, no psiquismo, um tipo de compartimento quase coisificado, incluindo elementos desintegrados e potencialmente traumáticos pela incapacidade de se ligarem a um domínio de significância ou importância.

6 A recusa da diferença opera tanto nas intensas angústias de separação nos sujeitos que não aguentam a distância, como nas profundas angústias de engolfamento daqueles que não suportam a proximidade da presença invasiva e excessiva do outro. São angústias típicas dos adoecimentos esquizoides, narcisistas e borderline (Figueiredo, 2018).

7 Considerando que o tema da perversidade materna, embora relevante, ultrapassa o escopo de pesquisa deste artigo, indicamos a dissertação de mestrado intitulada Sedução, perversão e perversidade nos cuidados maternos, de Lima (2019).

Não se declararam fontes de financiamento.

Recebido: 23 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Dezembro de 2022

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