Introdução
Atualmente, nossa cultura está bastante atravessada por questionamentos a respeito de gêneros e da distinção entre o que seria “ser homem” e “ser mulher”. Estes questionamentos se manifestam de variadas formas: na mídia, avolumam-se as notícias sobre jovens transexuais, sobre incidentes de LGBTfobia e sobre a importância da representatividade nas produções culturais; na política, o debate acerca da educação sexual nas escolas tomou um lugar proeminente nas últimas eleições. Mas, nos divãs, isso não é nenhuma novidade. A obra freudiana traz um testemunho de como a relação do sujeito com o sexo sempre foi controversa, o que fica demonstrado tanto pela função do sintoma enquanto substituto para a satisfação sexual, quanto pela questão da escolha de objeto e pela regulação edípica da identificação sexual (Freud, 1920/2011).
Para investigar esse assunto sob o viés psicanalítico, deixaremos de lado o conceito de gênero, que poderia ser considerado como antropológico ou mesmo político, em prol daquele de sexuação, ou mesmo de posição sexuada, termo para o qual Lacan (1972-1973/1985) transporta a problemática dos sexos. E ele assim o faz pela escrita enigmática de famosas fórmulas quânticas da sexuação (Figura 1), um quadro que representaria as posições sexuadas: homem e mulher. Nessas fórmulas, embora seja claro o recurso à matemática e à filosofia, o sentido de seus desenvolvimentos não é evidente. Afinal, como algo de ordem eminentemente subjetiva, como o pertencimento a um sexo, poderia se articular mediante pequenos símbolos lógicos ou até mesmo por reduções conceituais matemáticas?
Localizamos essa conexão num momento bem preciso, durante o seminário do ano letivo anterior, quando Lacan enuncia sua tese a respeito da diferença dos sexos. Diz ele: “O homem, a mulher, é isto que chamamos de valores sexuais. Que exista, de início, o homem e a mulher é um negócio de linguagem” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 39). Como vemos neste trecho, Lacan associa os sexos, homem e mulher, a valores. Mas não devemos entender valor como mera referência às duas possibilidades entrevistas em nosso idioma: ou se é homem ou se é mulher, masculino ou feminino. Valor é um conceito extraído da obra de Friedrich Ludwig Gottlob Frege, considerado um dos fundadores da lógica moderna.
Nos seminários paralelos desse ano, … ou pior e O saber do psicanalista, Lacan apresenta o conceito de valor a partir de uma alusão ao sistema lógico fregeano. Numa clara referência ao matemático, Lacan afirma: “A verdade sendo tomada como valor que faz a denotação [Bedeutung] de uma certa proposição” (Lacan, 2011, p. 55, grifo nosso). Aqui encontramos um eco da definição de Gottlob Frege para a ideia de “verdade”, que não deveria ser compreendida como uma propriedade inerente a uma proposição lógica, mas que seria um valor que lhe serve como referente (Frege, 1897/1997). É por meio dessa analogia com o valor de verdade que poderemos encontrar o núcleo dos desenvolvimentos lacanianos a respeito do que ele nomeia como valor sexual.
Prolegômenos lógicos
Dentro do campo das matemáticas, Friedrich Ludwig Gottlob Frege se distingue como um dos pioneiros da lógica formal, ao criar uma nova linguagem para tratar dos enunciados lógicos, chamada de conceitografia, e ao romper com o modelo proposicional aristotélico de sujeito e predicado (Haack, 2002). Dentre suas contribuições mais importantes para o assunto, temos seus avanços a respeito do conceito de verdade, tema controverso e longamente debatido na literatura lógica. Sua tese é fruto de uma argumentação crítica para com outras teorias veritativas; em especial, a vertente ontológica aristotélica e a vertente correspondencista.
Para Aristóteles, a verdade tinha um cunho metafísico, pois para definir o que é verdade e falsidade bastaria “dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro” (Aristóteles, 2012, p. 125). Em sua obra, a verdade é reflexo de uma posição essencialista, pois, para o filósofo, a essência seria caracterizada como “aquilo que algo é”, ou seja, como compreendendo os aspectos dos quais todas as suas outras características dependem. A verdade, portanto, deveria ser compreendida como efeito de uma verificação da legitimidade de certa proposição junto a uma essência. Isto é, podemos considerar a proposição “A é B” como verdadeira somente se o predicado B corresponder à essência de A. Para a lógica aristotélica, portanto, a definição de verdade se assenta na essência dos objetos e no próprio verbo “ser”, que fundamenta essa relação.
Contudo, o verbo εἶναι, “ser” em grego, remete a uma pluralidade semântica que facilmente negligenciamos:
Neste verbo acham-se fundidas, e confundidas, três, ou quatro, acepções de “ser”: a predicativa (como em “Sofia é bonita”); a identitativa (como em “a beleza é bela”); e a existencial (como em “os deuses são”: eisin = existem), além de outra, que afeta apenas o discurso, a veritativa. (Santos, 2013, p. 66)
Ao sobrepor as dimensões identitativa e essencialista, este verbo promove a impregnação de um determinismo ontológico; tal como pode ser percebida, no português, pela diferença dos verbos copulativos “estar” e “ser”. Afirmar que “Sócrates está velho” ou que “Sócrates é velho” leva a duas significações completamente distintas; enquanto que o primeiro verbo indica um estado momentâneo, o segundo indica uma propriedade estática. Tal diferença é de grande importância para Aristóteles, uma vez que a verdade é, dessa feita, definida como uma propriedade intrínseca, a de ser verdadeiro.
Frege objeta que, enquanto propriedade, a verdade seria algo redundante; pois declarar que “A ideia de que ‘5 é um número primo’ é verdadeira” é o mesmo que declarar “5 é um número primo”, tornando supérflua a introdução da discussão de verdade. Segundo Frege (1897/1997, p. 328), “É valido notar que a sentença ‘Sinto o cheiro de violetas’ tem o mesmo conteúdo da sentença ‘É verdade que sinto o cheiro de violetas’”. Em ambos os casos, a propriedade “ser verdadeiro” não acrescentaria nenhuma significação nova a esse enunciado. Por outro lado, existiam correntes filosóficas que tomavam a verdade não como uma propriedade, mas sim como uma relação.
Na visão correspondencista, a verdade é avaliada por seu paralelismo aos fatos; ou seja, uma proposição P é verdadeira se, e somente se, corresponde a um fato F do mundo. Existiria, portanto, um espelhamento verificável entre o conjunto F, dos fatos reais, e o conjunto P, das proposições (Haack, 2002). Quanto a isso, Frege (1897/1997) argumenta que um fato só poderia corresponder a uma proposição se tivessem a mesma natureza, sendo impossível realizar uma comparação entre um enunciado lógico, unidade linguística, e um fato do mundo. Podemos exemplificar essa objeção por meio do problema da legitimidade das cédulas de dinheiro, que poderia ser assim colocado: Considerando-se uma cédula suspeita P, como verificar se P é verdadeira?
A única forma de certificar-se disto, esclarece Frege (1897/1997), seria comparar a cédula P com uma segunda cédula, chamada de P’, que sabemos ser verdadeira. De nada adiantaria compará-la com uma moeda de ouro verdadeira, por exemplo. De mesmo modo, não poderíamos comparar uma sentença lógica a um evento da realidade. Contudo, esse modo exclusivo de verificação apresenta graves problemas, uma vez que, para saber se uma cédula P é verdadeira, precisaríamos ter certeza da autenticidade da segunda cédula P’, o que implicaria, por sua vez, a verificação desta por meio de uma terceira cédula, e por uma quarta etc. Assim, qualquer referência à verdade exigiria uma definição prévia de algo já sabido ser verdadeiro, o que renova a questão.
Dessa feita, Frege chega ao entendimento de que tal modo de verificação desencadearia uma cadeia infinita de correspondências, e assim é levado a considerar que “o conteúdo da palavra ‘verdade’ é sui generis e indefinível” (Frege, 1897/1997, p. 327). A partir de tal conclusão, Frege formula uma nova concepção de verdade, que não deve ser encarada como uma propriedade objetal nem como uma relação com o mundo, mas que toma a verdade em si como um objeto, nomeadamente o “valor veritativo”. Esse valor apareceria como o referente, Bedeutung, de uma proposição. Por exemplo, a proposição “Esta cédula P é verdadeira”, possui certo sentido, ou valor conceitual, que Frege denomina “Sinn”; nesse caso, o sentido é de que foi verificada a autenticidade de uma dada cédula de dinheiro. Em contraposição, o referente da proposição, seu valor veritativo, seria o próprio fato de essa proposição se colocar como verdadeira na medida em que ela é afirmada.
Sigamos com outro exemplo. Na asserção “A soma de 2 mais 3 equivale a 5”, temos o valor conceitual, que seria soma dos números especificados; e também o valor veritativo, isto é, assevera-se que seja verdade que a soma de 2 mais 3 equivale a 5. E, lançando mão desses dois tipos de valores, Frege conclui que: “É realmente através da utilização da forma de uma sentença assertórica que asseveramos a verdade, e, para tanto, não precisamos da palavra ‘verdade’” (Frege, 1897/1997, p. 229). Isso significa que a verdade é um ato discursivo; ela se coloca na enunciação do sujeito. Podemos encontrar ecos dessa fórmula na obra lacaniana: “A função da fala, há muito eu introduzi isto, é a única forma de ação que se coloca como verdade” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 69).
Observamos, assim, que a noção de “valor veritativo”, em Frege, englobaria três aspectos distintos: primeiro, ele se divide em valor falso ou verdadeiro, ou seja, é bivalente; segundo, ele possui uma qualidade sui generis, ou seja, tem uma natureza indefinível; e terceiro, tem uma ancoragem discursiva, uma força assertórica que convoca sua denotação. É a partir desses três elementos que se torna possível estabelecer uma analogia com os valores sexuais da obra lacaniana; afinal “se encontrássemos na lógica um modo de articular isto que o inconsciente demonstra como valor sexual, não deveríamos ficar surpresos” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 39).
Articulações psicanalíticas
Em primeiro lugar, o valor veritativo da lógica fregeana só admite duas categorias: uma proposição é verdadeira ou é falsa. Dentro dos sistemas clássicos da lógica não pode existir meia verdade, pois a verdade precisa ser completamente verdadeira ou é uma falsidade, não existindo uma terceira opção (Frege, 1891/1997). Esse princípio é conhecido como a lei do terceiro excluído. Podemos, a partir daí, traçar um paralelo entre a bivalência do valor veritativo e o que Lacan apresenta como valores sexuais, já que existem dois e apenas dois sexos, estando excluída a possibilidade de um terceiro. Foi o que defendeu Freud ao referir-se aos homossexuais:
Pela boca de seus porta-vozes científicos, apresentam-se como uma variedade particular do gênero humano, como um “terceiro sexo”, a mesmo título que os outros dois […]. Certamente, eles [os homossexuais] não são, como gostariam de se proclamar, uma “cepa seleta” da humanidade […]. (Freud, 1916-1917/2014a, p. 278)
Essa afirmação pode soar ligeiramente hostil; porém, ela se insere num quadro mais amplo de debate sobre as sexualidades. Os porta-vozes aos quais Freud parece se referir são, principalmente, Magnus Hirschfeld e Karl Heinrich Ulrichs, que defendiam que a homossexualidade seria um efeito de certas alterações na gestação e no processo embriogenético (Mancini, 2010). Freud, por sua vez, recusa tais explicações segregacionistas e organicistas. Na sua 20ª Conferência: A vida sexual dos seres humanos (1916-1917/2014b), Freud assegura que não se pode localizar nenhum traço específico para distinguir os homossexuais como uma classe apartada da população, sendo essa apenas uma ramificação regular da vida sexual, e apontando que, mesmo em heterossexuais manifestos, existem vínculos homossexuais: “Os que se denominam homossexuais são, de fato, apenas os invertidos conscientes e manifestos, e seu número é insignificante, se comparado ao dos homossexuais latentes” (Freud, 1916-1917/2014b, p. 326). Para Freud (1905/2016), a homossexualidade não configura um terceiro sexo, mas apenas uma maneira de viver a pulsão sexual, e é precisamente porque a pulsão sexual não traz consigo nenhum objeto predeterminado que escolhas são possíveis, resultados de múltiplas influências sobre o desejo inconsciente.
Mas também podemos encontrar uma analogia para a bivalência do valor veritativo em Lacan: nas fórmulas quânticas só existem duas possibilidades de habitar a linguagem, como homem ou como mulher. No entanto, esses termos não aparecem aí com o mesmo significado que apresentam no senso comum. Lacan é muito claro ao afirmar que seus valores sexuais não se referem à anatomia nem ao código genético do indivíduo: “O cromossomo em sua combinação XY ou XX […] não tem absolutamente nada a ver com […] as relações do homem e da mulher” (Lacan, 1971/2007, p. 31).
A discussão sobre a definição dos sexos sempre esteve no âmago da teoria psicanalítica. Em um de seus últimos escritos, 33ª Conferência: A feminilidade (1933/2010), Freud descarta muitas das definições que ele mesmo havia proposto ao longo dos anos para responder a essa questão, descartando a oposição ativo-passivo, desarticulando sexo e escolha de objeto, invalidando as coordenadas sociais de identificação e rejeitando a biologia como referência última para os sexos. Em vez de injetar uma significação, Freud operou pela via de levare, como um escultor, esvaziando os termos “homem” e “mulher” de toda sombra de sentido. Cada sujeito define a si próprio como ser sexuado.
Em um estudo clínico do caso conhecido como “a jovem homossexual”, Freud (1920/2011) apresenta um quadro permutativo de variáveis para a sexualidade: a identidade sexual, isto é, a consideração quanto ao próprio sexo; a escolha de objeto, relativa à identidade sexual do parceiro; e o caráter sexual somático, ou seja, o genótipo sexual. Freud então declara que pode haver diversas combinações dessas variáveis, constituindo maneiras sempre singulares de sexualidade: objeto sexual feminino, sexo feminino, identidade feminina; ou qualquer permutação semelhante. Lacan (1973-1974/2018) trabalha a mesma questão, não com base em variáveis definidas, mas a partir de uma concepção de que a sexualidade, no ser falante, é vivida a partir de um furo.
Diferentemente dos animais, que são programados por seus instintos, nos quais já existe toda uma codificação entre estímulo e resposta, entre instinto e objeto, o ser falante, ou falasser, é acossado por pulsões, em suas exigências constantes de satisfação. Os objetos pulsionais, que são encontrados como resposta, são apenas substitutos ineficientes de uma perda original que se funda na entrada do mundo simbólico, e que resta como aquilo que não pode ser traduzido e transmitido por meio dos significantes (Lacan, 1964/1988). Essa perda, esse furo – “trou”, em francês – está na raiz daquilo que Lacan (1973-1974/2018) chamou de troumatismo, ou seja, o furo do sexual traumático. Sem ter as diretivas para obedecer às suas pulsões sexuais, frente a esse furo, resta ao ser falante inventar sua sexualidade.
Tal posicionamento, encontrado tanto em Freud quanto em Lacan, reflete uma concepção da sexualidade enquanto sui generis, isto é, particular, de seu próprio gênero ou de sua própria classificação, tal como a verdade em Frege. As posições sexuadas, que Lacan desenvolve a partir dos anos 70, são precisamente formas de invenção para esse furo, pois não há nenhum referente para os significantes “homem” e “mulher”, que são indefiníveis. Portanto, as únicas definições que seriam possíveis para os sexos se constituem a partir de suas tomadas enquanto posições discursivas: valores que se configuram apenas como atos de fala (Lacan, 1972-1973/1985). Ao nascer, alguns são ditos homens, outros, mulheres; e, num segundo tempo, cada um lidará com esse pronunciamento oracular da sua maneira, reafirmando o primeiro dito ou não.
Como se vê, toda a questão dos sexos fica referida ao discurso, assim como o terceiro aspecto da verdade, em Frege. É na própria asserção, na própria afirmação, que se localiza o valor de verdade para uma determinada relação. Para a lógica fregeana, a verdade está fora de qualquer referência ao mundo metafísico ou dos sentidos, onde seria refém de correspondências inverificáveis (Frege, 1897/1997). De mesma feita, a psicanálise sustenta que a sexualidade está livre das mesmas referências e engodos correspondencistas, comparecendo, tanto a verdade quanto a sexualidade, então, como atos de discurso. Ao tomar a asserção como forma de conceder verdade à posição sexuada, não nos referimos a uma afirmação consciente, vocálica, disto. Não é dizer “sou homem” ou “sou mulher”. A força assertórica dos valores sexuais está na tomada de posição inconsciente no discurso, definida pela posição subjetiva frente à castração e ao falo, como vemos nas fórmulas da sexuação.
Valores sexuais
A partir do Seminário, livro 18 (1971/2007), um seminário consagrado à escrita, Lacan emprega mais sistematicamente os quantificadores lógicos para tratar da diferença dos sexos. Em suas fórmulas, encontramos as notações modernas das afirmações proposicionais, ∀x Φ(x) e ∃x Φ(x), e das negações correspondentes, fazendo menção ao projeto de formalização concebido por Frege. O logicismo lacaniano para demarcar os valores sexuais de “homem” e “mulher” é decorrente da impossibilidade de desvendar o enigma dos sexos pelo viés simbólico. Frege havia defendido que a linguagem era muito pobre, muito inepta, para descrever qualquer conteúdo conceitual, privilegiando uma orientação matemática para tal tarefa (Haack, 2002), e Lacan concordara.
Para Freud (1933/2010), o falo restara como o último determinante da diferença dos sexos: as mulheres são castradas e os homens não; portanto, o falo restava como um atributo exclusivo do homem. Mas, nas fórmulas de Lacan, o falo comparece nas proposições lógicas de ambos os lados. Na parte superior, o falo é transposto para uma função, a função fálica, Φ(x), que aparece em quatro proposições, em seu caráter positivo e negativo; assim, Lacan se esquiva da distinção sexual em termos da pura posse fálica. Com efeito, Φ, o falo simbólico, é “o significante da própria perda que o sujeito sofre devido ao esfacelamento acarretado pelo significante” (Lacan, 1966/1998, p. 715).
Nesse sentido, a ordem simbólica impõe o falo como exercendo uma função de castração, de limitação, permanecendo diferente do órgão peniano. E nem mesmo a referência ao falo é suficiente para delimitar o que é ser homem, como Lacan (1968-1969/2008, p. 322) mesmo objeta: “é curioso que depois de 70 anos de psicanálise, ainda não se formulou nada sobre o que é o homem”, revelando que nem a referência ao falo poderia definir esse valor sexual. A castração não é um privilégio das fêmeas, como uma leitura rasa de Freud suporia afirmar; ela é, antes, índice de uma perda primordial: “[…] que seja do homem ou da mulher. Nos dois casos, a falta fálica – que nós chamamos castração, em um caso, ou Penisneid, no outro – é o que simboliza a falta essencial” (Lacan, 1966-1967, aula do dia 08/03/1967).
Assim, toda a diferenciação entre os lados “homem” e “mulher” se coloca a partir da modalização da função Φ(x) e não a partir da mera posse de Φ. Como a lógica fregeana assume, para essa função temos a possibilidade de submeter vários valores como argumento, inseridos no lugar de x, que designa o lugar de um significante: “Um significante, isto pode ser cada um de vocês, cada um de vocês precisamente ao nível medíocre que vocês existem como sexuados” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 32). O argumento da função de castração é o ser falante, em sua condição de habitante da linguagem, único que tem relação com o falo, Φ.
Portanto, a partir dessa leitura lógica do processo de sexuação, o que define os sexos já não é o status castração, mas a relação do ser falante com ela, uma vez que todo neurótico já se encontra castrado pela operação da linguagem. A distinção se daria na medida em que o lado homem seria aquele totalmente referido à norma fálica, à lei da castração; enquanto que o lado mulher teria uma subpartição que escapa a essa norma. E, assim, percebemos que existe outro valor além do “não castrado” e “castrado” de Freud. Lacan o chama de “não todo castrado”, ou pas tout. E, com isso, consegue reafirmar a posição de Freud sobre a universalidade do falo e de seu lugar referencial para os assuntos sexuais, ao mesmo tempo que inclui aí uma nuance: os sexos não se diferenciam por um monopólio do atributo fálico, mas pela incidência desse falo enquanto função.
O lado homem se caracteriza pelo fato de que a função da castração está presente de tal maneira que, para todo x, x obedece a Φ(x). Isto é, todo homem está submetido à lei da castração, é o que enuncia a segunda proposição do lado esquerdo. Mas há uma exceção para esta regra, expressa pela proposição acima, que remonta ao pai primevo de Totem e tabu, que é um x que não obedece a Φ(x). Segundo Freud (1913/2013), num tempo mítico, a sociedade teria sido organizada por um tirano que conservara para si o direito de gozar de todas as mulheres e que expulsara todos os outros homens de sua tribo, para que eles não ameaçassem sua autocracia. Ele encontrara a sustentação de seu mito original na leitura de A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo (Darwin, 1871).
Em seu livro, Darwin aborda a evolução do homem por meio da seleção natural. Utilizando uma metodologia comparativa, toma como objeto as espécies simiescas, e afirma que os machos que exercem maior atrativo sexual são aqueles que se mostram mais fortes e, portanto, exibem-se como mais hábeis na proteção das fêmeas e de sua prole, favorecendo sua escolha como pares sexuais. E, uma vez estabelecida sua tese de que os homens são descendentes de um tipo ancestral, comum à linhagem dos macacos, fica evidente que:
olhando atrás na corrente do tempo, e julgando pelos hábitos sociais do homem, como ele existe hoje, o ponto de vista mais provável é que ele primitivamente vivia em comunidades pequenas com uma única esposa ou, se poderoso, com várias, as quais ele guardava ciumentamente de outros homens. (Darwin, 1871, p. 591)
Esse pai gorila é onipotente e pode dispor de todas fêmeas do seu grupo, além de reinar sobre o conjunto dos outros machos. O mito freudiano supunha a existência de um ser que não estaria limitado por nenhuma lei; a lei da castração, para ele, está negada (Lacan, 1972-1973/1985).
Em contrapartida, não há nada em Totem e tabu a respeito de uma mãe da horda. Lá Freud se rende ao fato de que, escreve ele: “Não posso sugerir em que ponto desse processo de evolução é possível encontrar lugar para as grandes deusas-mães” (Freud, 1913/2013, p. 150). É necessário salientar que a existência real do pai da horda também não é comprovável; ele existe apenas logicamente. Podemos encontrá-lo na teoria lacaniana como um equivalente para a função Nome-do-Pai, que instaura a significação fálica para todos os neuróticos por meio da metáfora paterna (Lacan, 1957-1958/1999).
O falo que surge nessa operação metafórica tem a função de delimitar um campo específico numa vastidão enigmática onde não há barreiras, conhecida como o desejo da mãe. Só existe referência ao falo, não como pênis, mas como barra que impede a complementaridade imaginária entre o Outro cuidador, o Nebenmensch, e a criança. É exatamente porque o falo tem essa função de barra, que ambos os sexos são constrangidos a vincular sua sexualidade ao seu primado; daí ele ser encontrado nos dois lados das Fórmulas: o lado chamado “mulher” não se condiciona por outra função; suas proposições ainda se pautam em Φ(x).
Passemos agora à segunda proposição do lado mulher, onde se apresenta uma negação para o quantificador universal, ¬∀x. Tal negação é uma operação proposta por Lacan que repercute sobre as significações do termo “todo”. Esse significante apresenta uma “nuance linguística na qual a função oposta do πᾶς ou do πάντες, em grego, opõe-se à função do ὅλος, assim como omnis se opõe ao totus” (Lacan, 1967-1968, aula do dia 13/03/1968).
O todo, o universal, é empregado na lógica de Aristóteles a partir do termo πᾶς e seus derivados. O grego πᾶς se aplica, basicamente, ao sentido de conjunto, como em “todos aqueles” (πάντες ὅσοι) (Liddel & Scott, 1996). Mas existe outro termo, ὅλος, que traz uma significação distinta, como em “o bolo inteiro”, ἄρτος οὖλος. Em português, essas dimensões ficam mascaradas sob nosso uso corrente do significante “todo”, que pode ser empregado tanto no sentido de “todo o conjunto” quanto no sentido de “inteiramente, integralmente”.
Essa diferença no grego também é achada no latim. O πᾶς se traduz por omnis e o ὅλος por totus. Tomemos seguinte sentença em latim: “Omnes milites strenue pugnaverunt”, que se traduz como “Todos os soldados lutaram bravamente”; a ela, contrapomos a frase “Totam Italiam vidi”, ou “Vi a Itália inteira”. Em cada frase o “todo” é empregado com uma conotação diferente, aparecendo nas respectivas traduções.
Sabendo disso, pode-se sugerir duas leituras para a segunda proposição do lado mulher, ¬∀x Φ(x): Non omnes feminae castratae sunt, isto é, as mulheres não são todas castradas, indicando algumas do grupo não o são; ou Non totas feminae castratae sunt, ou seja, as mulheres não são inteiramente castradas, haveria uma parte delas que escapa à norma fálica.
Ao lermos Lacan, fica evidente que ele emprega a terminologia pas tout, “não todo”, como non totus; ou seja, a mulher não está inteiramente, em sua integridade, condicionada ao significante fálico, o que escapa a ele é entrevisto nas formas do gozo Outro, da qual temos o gozo místico como exemplo, como nos arrebatamentos de Santa Tereza d’Ávila.
Considerações finais
A leitura lógica do processo de sexuação permite a Lacan formalizar uma resposta à problemática dos sexos, em psicanálise. Com suas letrinhas matemáticas, Lacan definiu o lado homem como o lado do totus, do todo da norma fálica; enquanto que o lado mulher apresenta uma fragmentação, um além-fálico, é o lado do non totus. Essas definições, que Lacan salienta como “possíveis”, são escritas em linguagem lógica, por sua capacidade de transmissão sem necessitar de referências imaginárias ou de ancoragens morfológicas. Esvaziadas de sentido, em forma pura de escrita, suas fórmulas quânticas da sexuação reafirmam a característica sui generis do sexo para o ser falante, inclusive de sua posição sexuada. A verdade de sua sexualidade é, para Lacan, leitor de Frege, uma construção sobre o furo traumático do real do sexo, manifestando-se em sua relação com a função da castração, constrangendo o neurótico a colocar-se do lado totus ou non totus.