Introdução
A pesquisa em psicoterapia contemporânea tem se voltado cada vez mais para a análise das interações narrativas entre terapeutas e clientes, visando a aprimorar a compreensão das habilidades do terapeuta de responder eficazmente às necessidades do cliente (Friedlander et al., 2019). Embora as diversas abordagens psicoterapêuticas apresentem diferenças significativas em termos de perspectivas epistemológicas e práticas, a maioria delas compartilha um objetivo central, que consiste em promover uma transformação na maneira pela qual o cliente percebe seus conflitos, lida com eles e, principalmente, os comunica por meio de narrativas (Locher et al., 2019). Estudos recentes (Aleixo et al., 2021; Friedlander et al., 2019; Gallagher & Zahavi, 2020; Muntigl et al., 2023) destacam que essa mudança na percepção/interpretação do cliente sobre o próprio sofrimento não se limita a “estados mentais internos”. Portanto, essas investigações buscam ilustrar como os processos narrativo-emocionais são configurados, influenciados e respondidos no desenrolar da interação entre cliente e terapeuta, momento a momento (Friedlander et al., 2019).
Inspirados pelo trabalho de Jerome Bruner (1915-2016) sobre a construção narrativa da realidade, Gonçalves, Machado, Korman e Angus (2002) apontam para o reconhecimento progressivo do papel da linguagem como um processo central de construção de significado no contexto psicoterápico. A psicoterapia, em suas mais variadas formas e abordagens teóricas, fornece um contexto privilegiado de construção narrativa, dando assim a oportunidade ao cliente de produzir novos sentidos para seus conflitos e sofrimento (Frank, 1986). Os processos de ordenação narrativa produzidos em sessão permitem que o cliente transforme experiências e emoções aparentemente distintas, caóticas e aleatórias em estruturas narrativas coerentes e significativas (Gonçalves et al., 2002).
O termo “narrativa” é frequentemente aplicado à descrição de eventos ou histórias individuais que os clientes contam durante as sessões de terapia. Entretanto, essa terminologia restringe a compreensão necessária e mais ampla do intercâmbio dialógico que se desenvolve na sessão psicoterápica. Por essa razão, como apontam Angus e Hardtke (1994), é mais adequado, para a compreensão e análise dos processos psicoterápicos, utilizar o termo “processos narrativos”. Esse termo descreve melhor os elementos que estão em jogo na interação comunicativa da dupla terapêutica, que engloba não só as dimensões cognitivas, emocionais e afetivas, mas também uma dimensão experiencial-relacional. A forma e o significado dos sentimentos vividos pelo cliente como “seus” depende também de um contexto compartilhado com o terapeuta (Angus, 2012; Fuchs, 2013). Gallagher e Zahavi (2020) afirmam que a narrativa não versa sobre o que está “acontecendo dentro da cabeça de uma pessoa”, mas sim sobre o que está acontecendo em nosso mundo compartilhado. Essa narrativa, que por vezes parece algo individualmente experienciado pelo cliente, na verdade pressupõe a construção de uma experiência conjunta – uma experiência que se constitui “de” e “com” as narrativas do outro (Gallagher & Zahavi, 2020). O que pode parecer um diálogo interno é originariamente constituído e derivado da dialogicidade (Fuchs, 2013), um processo contínuo, dinâmico e participativo de construção de sentido e incorporação mútua (Fuchs & De Jaegher, 2009).
Desde a perspectiva dos processos narrativo-emocionais em psicoterapia (Angus et al., 2017) a narrativa do cliente é produto de uma construção coparticipativa de sentido (Gallagher & Zahavi, 2020). Os novos sentidos de si e da história pessoal do cliente são construídos por meio do diálogo e da dialética entre cliente e terapeuta. Por essa razão, as intervenções terapêuticas devem ser sensíveis à capacidade de expressão, articulação e organização narrativa dos estados emocionais do cliente (Angus & Greenberg, 2011). Angus et al. (2017) sugerem que a narrativa de uma história pessoal integrada e coerente é produto dos processos reflexivos dialógicos, onde a tomada de decisão clínica e as intervenções terapêuticas exercem também um papel relevante na organização e simbolização da experiência emocional.
A análise de processos narrativos é hoje um campo emergente de pesquisa em psicoterapia e tem sido um dos principais focos de estudos que investigam as contribuições dos processos psicoterapêuticos ocorridos dentro da sessão para os resultados gerais do tratamento (Angus et al., 2017). Pesquisas empíricas contemporâneas que fazem uso de dados de ocorrência natural, como de sessões psicoterápicas gravadas, buscam analisar os processos sequenciais microanalíticos da interação por meio da análise dos processos comunicacionais, narrativos e linguísticos (Elliott, 2010). Conforme Angus et al. (2015), em estudo de revisão da produção internacional em pesquisa na abordagem humanista, a qualidade do processamento emocional e narrativo dos clientes tem sido um foco importante de investigação para compreender o processo de mudança do cliente ao longo do tratamento, bem como o nível de aliança terapêutica e os resultados terapêuticos positivos.
Os sistemas de codificação narrativa e a mudança psicoterapêutica
O termo Change Process Research (CPR), em português conhecido como investigação sobre o processo psicoterápico (Sousa, 2006), ou pesquisa de processo de mudança em psicoterapia, foi introduzido há mais de 20 anos para se referir à pesquisa que supera a antiga dicotomia processo-resultado (Elliott, 2010). Segundo Elliott (2010), a CPR concentra-se em identificar, descrever, explicar e prever os efeitos dos processos ocorridos em psicoterapia que levam o cliente a mudanças terapêuticas. Os diferentes modelos de investigação sobre o processo psicoterápico envolvem o uso de diferentes tipos de instrumentos de pesquisa (Zuanazzi et al., 2021), que podem tanto partir de uma perspectiva de primeira pessoa – autorrelatos em que o próprio cliente avalia seu progresso terapêutico – quanto de instrumentos de investigação que visam a uma análise em terceira pessoa, em que observadores externos (juízes) avaliam a interação entre terapeuta e cliente por meio de sessões psicoterápicas gravadas ou ocorridas em sala de espelhos. Esta última pode envolver a investigação do processo sequencial microanalítico de interação narrativa turno a turno entre cliente e terapeuta que visam a codificar as falas da díade em categorias ou escalas de classificação, buscando correlações entre o processo relacional e os resultados psicoterápicos.
O interesse na pesquisa microanalítica de sessões terapêuticas e sua relação com os processos de mudança psicoterápica fez surgir os sistemas de codificação de processos narrativos. Tais sistemas de codificação permitem, por meio de comparações qualitativas e quantitativas, investigar empiricamente as contribuições da narrativa na identificação e expressão da emoção, nos processos de criação de sentido e na mudança terapêutica produtiva (Angus, 2012). Segundo Angus (2012), à medida que as histórias pessoais se organizam no diálogo com o terapeuta, mesmo quando desconexas, elas fornecem uma forma e uma estrutura às experiências e memórias. Para a autora, a narrativa representa uma a complexa interação de sentimentos, ações, crenças e intenções que foram diretamente vivenciadas pelo cliente e fornecem um tipo de “verdade” evidencial.
Foi na década de 1990 que se iniciaram alguns estudos relativos aos processos narrativos em psicoterapia, mas somente a partir de 2014 se estabeleceu uma ligação mais estreita entre processos narrativos e processos emocionais (Aleixo, 2018). Sabe-se, por meio de pesquisas recentes (Angus et al., 2017), que o significado de uma emoção é melhor compreendido quando analisada dentro de uma estrutura narrativa que revela “o que”, “sobre quem” e “em relação a quê” tal emoção é sentida. As lembranças e eventos autobiográficos podem ser melhor compreendidas e ressignificadas quando experiências emocionais essenciais como dor, mágoa ou tristeza podem ser situadas no contexto narrativo de uma sessão psicoterápica, pois a expressão de um sentimento emocional é o indicador-chave do significado de uma história pessoal (Angus et al., 2017). Em sua forma bem-sucedida, a psicoterapia envolve uma melhor articulação, elaboração e transformação da história de vida, bem como um maior reconhecimento e atribuição de sentido por parte do cliente aos sentimentos e emoções (Angus et al., 1999). Por essa razão, clientes com piores desfechos psicoterápicos evidenciam uma flexibilidade narrativa diminuída, quando comparados a clientes recuperados. Comparações feitas entre fases iniciais e tardias do processo psicoterápico também evidenciam maior transformação narrativa nas fases finais (Aleixo et al., 2021).
Um estudo de revisão sistemática recente, conduzido por Aleixo et al. (2021), demonstrou que pesquisas baseadas em narrativas, abrangendo uma ampla variedade de abordagens e modelos teóricos, assim como diferentes tipos de amostras clínicas, contribuem significativamente para uma compreensão mais profunda das mudanças clínicas no contexto da psicoterapia. A revisão enfatiza a importância de avaliar os padrões narrativo-emocionais para uma compreensão mais aprofundada dos resultados da psicoterapia, encorajando a aplicação desses instrumentos na pesquisa do processo terapêutico. Como relatam Gonçalves e Angus (2017), diferentes modelos de tratamento baseados em pesquisas empíricas sobre o processo psicoterápico – incluindo psicanálise, abordagem humanista, cognitiva-comportamental e sistêmica –, enfatizam que a mudança do cliente na psicoterapia é facilitada por meio da revelação da história pessoal, do envolvimento emocional e da reflexão.
Narrative-Emotion Processes Coding System (NEPCS 2.0)
O Narrative-Emotion Processes Coding System 2.0 (NEPCS 2.0) (Angus Narrative-Emotion Marker Lab, 2015), desenvolvido por Lynne Angus e colaboradores, é um dos modelos de codificação e análise narrativa mais conhecidos internacionalmente. Os marcadores narrativo-emocionais servem como uma espécie de “mapa diagnóstico” do processo psicoterápico, que podem ser úteis tanto para a pesquisa de processo, que visa à compreensão da mudança psicoterápica, quanto como um guia para terapeutas e pesquisadores na implementação de estratégias terapêuticas mais eficazes. Segundo Angus et al. (2017), os marcadores e indicadores de processo auxiliam o pesquisador na identificação de dificuldades dos clientes em revelar memórias autobiográficas dolorosas, no engajamento das tarefas terapêuticas, na adesão ao tratamento, no acesso às emoções adaptativas e na construção reflexiva de sentido para a experiência.
O modelo passou por diferentes versões. Na primeira fase de estudos, os idealizadores da proposta desenvolveram um sistema de codificação baseado exclusivamente em transcrições de fala produzidas pela díade em sessões psicoterápicas, o que deu origem a um manual de codificação chamado Narrative-Emotion Integration Coding System (NEICS). O manual de codificação NEICS foi inicialmente derivado de uma análise exploratória intensiva de duas sessões psicoterápicas de fases iniciais, duas intermediárias e duas fases selecionadas de dois clientes de terapia experiencial: dois pacientes recuperados e dois não recuperados (Angus et al., 2017). Na segunda fase do projeto, que deu origem à primeira versão do Narrative-Emotion Process Coding System 1.0, os autores desenvolveram um sistema de codificação baseado em vídeo (Angus et al., 2017), pois perceberam que havia uma ampla gama de indicadores não verbais e paralinguísticos de emoções do cliente que não eram capturados pelas transcrições de sessões. A partir dessa constatação da segunda fase dos estudos, a análise de vídeos de sessões gravadas foi incorporada para que elementos não verbais pudessem ser sistematicamente usados por avaliadores para identificar de forma mais acurada os subtipos de marcadores de narrativa NEPCS.
A versão final do Narrative-Emotion Process Coding System 2.0 compreende dez marcadores narrativos, subdivididos em três categorias de análise e seus respectivos subtipos: (1) Problem Markers (Marcadores de Problema): Same Old Story (Mesma Velha História); Empty Story (Narrativa Vazia); Unstoried Emotion (Emoção sem História); Superficial Story (Narrativa Superficial); (2) Transition Markers (Marcadores de Transição): Competing Plotlines (Narrativas Concorrentes); Inchoate Story (Narrativa Incipiente); Experiential Story (Narrativa Experiencial); Reflective Story (Narrativa Reflexiva); e (3) Change Markers (Marcadores de Mudança): Unexpected Outcome (Narrativa com Desfecho Inesperado) e Discovery Story (Narrativa de Descoberta). Conforme Angus et al. (2017), esses marcadores visam a identificar a qualidade e a forma como o cliente acessa os seguintes elementos narrativo-emocionais: memórias autobiográficas específicas; simbolização da experiência corporal sentida; expressão das emoções; reflexão sobre suas próprias ações e histórias; integração coerente entre as ações, emoções e significados pessoais; e articulação entre as experiências de mudança emocional, comportamental e interpessoal. Tais elementos integram e indicam graus/níveis das três principais dimensões narrativo-emocionais expressas em sessões psicoterápicas: o envolvimento emocional do cliente (ou seja, a consciência da emoção, a expressão da emoção e a excitação emocional); a organização narrativa (ou seja, o conteúdo da narrativa, a estrutura da narrativa e a coerência narrativa); e o grau de criação de significado e envolvimento experiencial do cliente (Angus et al., 2017).
A codificação do NEPCS 2.0 é feita por observadores externos (heteroavaliação), que buscam um consenso na identificação dos marcadores narrativos do cliente em sessões de psicoterapia gravadas em vídeo. Os grupos de juízes externos, ou seja, os codificadores, devem ser compostos, no mínimo, por um codificador mais experiente (pesquisador) e um codificador menos experiente, que atua como assistente de pesquisa. Conforme as diretrizes do instrumento original desenvolvido por Angus et al. (2017), estabelece-se que ambos os codificadores, o mais experiente e o menos experiente, devem chegar a um acordo em suas codificações após revisar aproximadamente de 12 a 16 sessões de terapia gravadas em vídeo. Isso garante um nível satisfatório de concordância entre eles, com uma média do coeficiente de kappa de Cohen igual ou superior a 0,78.
A sessão a ser analisada deve ser registrada em vídeo e posteriormente dividida em unidades de um minuto. Isso pode ser feito manualmente ou com o auxílio de software específico, como o Observer XT (Noldus Information Technology, 2015), por exemplo. Segundo Angus et al. (2017), os procedimentos são os seguintes: cada sessão de terapia gravada em vídeo é segmentada em intervalos de tempo de um minuto. Num segundo momento, os codificadores assistem ao segmento completo de um minuto e, em seguida, codificam o marcador NEPCS do cliente que ocorreu por mais de 40 segundos naquele segmento. Se dois marcadores estiverem igualmente presentes em um determinado segmento (por exemplo, 30 segundos de Emoção sem História e 30 segundos de Narrativa Vazia), o marcador considerado mais “saliente”, de acordo com o julgamento dos juízes, é codificado. Em caso de desacordo entre os codificadores, cada discordância é resolvida assistindo novamente ao segmento de tempo e discutido até que um consenso seja alcançado. Conforme mencionado anteriormente, níveis muito bons de concordância entre os avaliadores, com um kappa de Cohen de 0,78 ou superior, foram estabelecidos para a aplicação do NEPCS em diversas abordagens terapêuticas e amostras clínicas (Angus et al., 2017). No processo de codificação, considera-se “no client marker” (nenhum marcador de cliente) quando o terapeuta fala mais de 30 segundos do segmento de um minuto, ou quando a conversa não está relacionada à narrativa do cliente, como, por exemplo, segmentos em que predominam comentários sobre a terapia.
Os estudos empíricos relativos ao desenvolvimento do NEPCS em múltiplas abordagens psicoterapêuticas e com diferentes amostras clínicas foram minuciosamente conduzidos e descritos por Angus et al. (2017). Nessa publicação, os autores evidenciam que, embora o NEPCS tenha tido sua origem no contexto das abordagens humanistas-experienciais (Angus et al., 2015), ele foi extensivamente aplicado e validado com consistência em múltiplas abordagens terapêuticas, incluindo a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), Terapia Focada nas Emoções (TFT), Entrevista Motivacional, Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), Terapia Psicodinâmica e Psicoterapia Experiencial (Angus et al., 2017). Num estudo subsequente de revisão sistemática conduzido por Aleixo et al. (2021), o NEPCS 2.0 demonstrou sua eficácia ao ser aplicado a diversas amostras clínicas abrangendo condições como depressão, ansiedade generalizada e trauma complexo. Esses resultados reforçam a utilização do instrumento como uma ferramenta de pesquisa valiosa para a investigação de processos psicoterapêuticos transdiagnósticos, apresentando aplicabilidade em diversas modalidades de tratamento psicoterápico.
Num recente artigo de revisão sobre instrumentos empregados na análise de processos em psicoterapia, Zuanazzi et al. (2021) destacam a carência de avanços na pesquisa de processos no cenário nacional. Dos 157 artigos incluídos na revisão, apenas 11 eram de origem brasileira, enquanto a pesquisa de processos psicoterapêuticos prevalece principalmente nos Estados Unidos, com um total de 110 artigos. No que se refere à adaptação para o contexto brasileiro das medidas de avaliação identificadas na revisão, os autores mencionam que, dos cinco instrumentos mais frequentemente mencionados nos estudos, o Psychotherapy Process Q-Set é o que mais aparece nas pesquisas nacionais e foi adaptado para utilização no Brasil. Os autores ressaltam que, apesar da escassez de publicações nacionais, há um movimento crescente de pesquisadores brasileiros no sentido de conduzir mais estudos na área, estabelecer um diálogo mais abrangente com a literatura internacional e direcionar uma atenção crescente para a avaliação dos processos terapêuticos.
Em consonância com esse aumento de interesse na pesquisa de processos, o objetivo deste estudo foi realizar a adaptação transcultural do Narrative-Emotion Processes Coding System 2.0 (NEPCS 2.0) (Angus et al., 2017) e seu manual de codificação, considerando a validade semântica e de conteúdo e visando à adaptação transcultural à língua portuguesa para a utilização do instrumento na pesquisa em psicoterapia no Brasil. Apesar de ser amplamente utilizado internacionalmente (Alexio et al., 2021), não existem ainda estudos brasileiros que utilizem o NEPCS 2.0 como ferramenta de pesquisa para análise de processo psicoterápico.
Método
Este estudo foi realizado com base nas etapas metodológicas sugeridas por Borsa et al. (2012) para tradução e adaptação de instrumentos para o português brasileiro. O modelo foi adaptado conforme as necessidades da pesquisa e características do processo de codificação narrativa, conforme ilustrado na Figura 1.
Procedimentos éticos
Primeiramente, foi solicitada a autorização para a tradução da versão original em inglês do NEPCS 2.0 à Profª Drª Lynne Angus, idealizadora do sistema de codificação. O projeto “Processos narrativo-emocionais em psicoterapia: Tradução e adaptação transcultural do sistema de codificação NEPCS 2.0 para o português” foi submetido à Comissão de Pesquisa da universidade onde o estudo foi realizado, sob o Parecer 18/2022. A Profª Drª Lynne Angus participou de várias etapas do estudo – conforme será descrito a seguir –, colaborando e aprovando a versão final da tradução.
Etapas 1 e 2: tradução e síntese das traduções
Na primeira etapa do estudo foi realizada uma tradução inicial do NEPCS 2.0 por duas pessoas de forma independente, com domínio bilíngue: um tradutor profissional com título de bacharel em Literatura de Língua Inglesa e sem conhecimento prévio sobre o sistema de codificação; e uma tradutora não profissional, porém com conhecimento do sistema de codificação, com título de mestrado e doutorado em Psicologia. Na segunda etapa, foram comparadas as duas versões, com o intuito de discutir e identificar incoerências ou discrepâncias sintáticas e consequentemente realizar reformulações, preservando sempre o sentido original dos marcadores narrativo-emocionais. A partir dessa segunda etapa, foi elaborada uma versão preliminar sintetizada do instrumento traduzido para o português, para a realização das etapas posteriores.
Etapa 3: estudo piloto
A terceira etapa compreendeu um estudo piloto de aplicação do sistema de codificação numa sessão simulada gravada, realizada pela equipe de pesquisa, com a participação da idealizadora do instrumento. Como a idealizadora do instrumento não domina a língua portuguesa, foi necessária uma primeira tradução reversa da versão sintetizada na segunda etapa, conforme ilustrado na Figura 1. Além da tradução reversa do instrumento, também foi necessário traduzir todo o material empírico para o inglês, incluindo a sessão psicoterápica utilizada para o estudo piloto.
Para esse estudo piloto, foi selecionada uma única sessão que faz parte de um banco de dados de um projeto maior intitulado “Habilidades terapêuticas interpessoais simuladas em roleplay: uma pesquisa-ação com alunos de graduação em psicologia”, aprovado pelo Comitê de Ética (CEP/UFCSPA) sob o Parecer 4.275.991 em 23/10/2020. O caso é de uma cliente com nome fictício “Mariana” com sintomas depressivos, que passava por dificuldades financeiras por ter sido demitida do trabalho e que vivenciava grandes dificuldades de atravessar o período de isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19.
A sessão escolhida para o estudo piloto foi transcrita na íntegra e posteriormente segmentada minuto a minuto por um membro do grupo de pesquisa. A análise de dados compreendeu três subetapas, conforme a Figura 1. A primeira subetapa do estudo piloto foi constituída por três grupos de trabalho, perfazendo um total de 12 pessoas envolvidas na codificação da sessão. Cada grupo de trabalho foi composto por quatro membros: um psicólogo/psicoterapeuta, um estudante de pós-graduação em psicologia (envolvido na temática do estudo) e dois alunos de graduação em psicologia. Os três diferentes grupos receberam a versão preliminar do NEPCS 2.0 traduzida na segunda etapa, a gravação da sessão piloto e a transcrição segmentada minuto a minuto. Para fins de confiabilidade, cada grupo analisou a sessão piloto de forma independente.
A inclusão de um grupo grande e diversificado, diferentemente do que é comum em processos de tradução e adaptação de instrumentos, foi necessária devido à natureza do instrumento (um sistema de codificação e não uma escala de avaliação) e à complexidade da tarefa de tradução. Além de realizar a codificação dos marcadores na sessão piloto, a equipe também desempenhou um papel fundamental no esclarecimento e resolução de dúvidas relacionadas às etapas anteriores da tradução, especialmente no que se refere à compreensão dos significados desses marcadores na língua portuguesa. Essa decisão de mesclar grupos com terapeutas mais experientes, capazes de avaliar os marcadores com base em julgamento clínico, e assistentes de pesquisa, mais familiarizados com as definições fornecidas pelo sistema de codificação, segue o modelo sugerido por Rogers et al. (1967).
Na segunda subetapa dessa análise da sessão piloto, foi feita uma verificação cruzada dos códigos do NEPCS 2.0, comparando os resultados anteriores derivados independentemente pelos diferentes grupos. Para tanto, foi formado um novo grupo de juízes, composto por um representante de cada um dos três grupos da primeira etapa, com a seguinte configuração: coordenadora de pesquisa, um aluno de pós-graduação e dois alunos de graduação. Para resolver as discrepâncias de análise da primeira etapa, cada segmento de diálogo da sessão foi lido e acompanhado pela sessão gravada e foram tomadas decisões que resultaram numa codificação sintetizada.
Posteriormente, foi feita uma tradução reversa da versão sintetizada da codificação para a língua inglesa, bem como uma tradução da sessão piloto na íntegra (tradução da sessão transcrita e aplicação de legenda em inglês para o vídeo da sessão). De posse desse material, a terceira e última fase de codificação da sessão piloto foi realizada pelas duas autoras deste artigo, que revisaram a análise da sessão transcrita e traduzida para o inglês, produzindo a codificação final da sessão.
Etapa 4: análise de juízes especialistas
A quarta etapa, que visava à avaliação do sistema de codificação por um comitê de juízes especialistas externos ao grupo de pesquisa, foi dividida em duas subetapas de análise, com a utilização de dois diferentes recursos: aplicação de um questionário e realização de um grupo focal. Num primeiro momento, a equipe de pesquisa fez contato com 30 psicoterapeutas de diferentes abordagens e formações psicoterápicas, dos quais 22 concordaram em participar da pesquisa. A caracterização dos participantes (dados sobre prática clínica e treinamento) pode ser encontrada na Tabela 1.
Dados dos juízes | N | % |
---|---|---|
Área da Graduação | ||
Psicologia | 20 | 91,0 |
Medicina | 1 | 4,5 |
Pedagogia | 1 | 4,5 |
Orientação teórica | ||
Humanista | 5 | 22,7 |
Psicanalítica | 5 | 22,7 |
Cognitivo-Comportamental | 3 | 13,6 |
Sistêmica | 2 | 9,1 |
Existencial | 2 | 9,1 |
Outras orientações* | 5 | 22,8 |
Experiência clínica | ||
Menos de 5 anos | 7 | 31,8 |
De 5 a 10 anos | 5 | 22,7 |
De 10 a 15 anos | 1 | 4,5 |
De 15 a 20 anos | 3 | 13,6 |
Mais de 20 anos | 6 | 27,4 |
Nota: Humanista-experiencial; Gestalt-terapia; Integração Sistêmica; Psicologia Analítica; Sistêmico-cognitivo (um juiz de cada orientação).
Primeiramente, o grupo de 22 voluntários recebeu individualmente, por e-mail, a tradução do NEPCS 2.0 sintetizada na segunda etapa, juntamente com um questionário no Google Forms. No questionário, os juízes foram solicitados a realizar uma avaliação quanto à abrangência e adequação das expressões contidas nos itens. As perguntas do questionário englobavam as seguintes questões: (1) Os nomes escolhidos para os marcadores narrativo-emocionais estão claros?; (2) Os indicadores de processo são claros e úteis para a codificação da narrativa do cliente?; e (3) Você acha que as falas exemplificadas são bons exemplos para os indicadores de processo? Os juízes também foram convidados a escrever de forma livre suas sugestões sobre a tradução e a compreensão geral do sistema de codificação. Posteriormente, foi realizada uma discussão no formato de grupo focal com cinco voluntários colhidos da amostra maior de 22 juízes que já haviam respondido ao questionário. Na condução do grupo focal, a equipe de pesquisa forneceu explicações teórico-práticas sobre o NEPCS 2.0 e apresentou o exemplo de codificação da sessão simulada piloto. Dessa forma, foi possível explorar de forma mais aprofundada as sugestões dos juízes, a partir do exemplo de codificação apresentado oriundo do estudo piloto.
Etapa 5: retrotradução
A quinta etapa envolveu a retrotradução do sistema de codificação NEPCS 2.0, ou seja, um outro profissional com domínio bilíngue, sem conhecimento prévio do sistema de codificação, traduziu o NEPCS 2.0 para a língua original (inglês), numa segunda tradução reversa. Na sexta e última etapa, esta tradução reversa foi discutida com a idealizadora do instrumento, quando então foi aprovada a versão do NEPCS 2.0 para o português brasileiro.
Resultados e discussão
As modificações e alterações dos marcadores durante o processo de adaptação foram realizadas na seguinte ordem: versão sintetizada em português; estudo piloto; sugestões dos juízes externos; discussão com a idealizadora do instrumento sobre as incompatibilidades entre o significado contido na versão original e na versão reversa; e, por fim, a tradução final. Os resultados das etapas serão discutidos de forma conjunta.
Etapas de tradução e sugestões dos juízes
As sugestões dos juízes externos foram comparadas, e uma medida qualitativa e subjetiva foi adotada para avaliar a concordância entre os avaliadores. A concordância observada também envolveu a contagem direta de com quantos marcadores os juízes concordaram ou discordaram, oferecendo uma abordagem transparente e acessível para avaliar o alinhamento de suas opiniões. A Tabela 2 ilustra o processo de tradução por meio de dois exemplos de marcadores e indicadores de processo que necessitaram de reformulação.
Etapas | Same Old Story | Unstoried Emotion |
---|---|---|
1ª e 2ª Etapas (Tradução para o português) | Marcador: Mesma Velha Narrativa Indicadores do processo: Expressando visões dominantes, desadaptativas e gerais de si mesmo e dos relacionamentos, marcados pela falta de ação e estagnação | Marcador: Emoção Não Narrada Indicadores do processo: Experimentando excitação emocional de forma indiferenciada, sub ou sobrerregulada, sem narração coerente com a experiência |
3ª Etapa (Estudo piloto) | Na codificação cruzada nas diferentes subetapas do estudo piloto, não houve discrepâncias de codificação entre grupos. Marcador identificado com mais facilidade pela equipe de pesquisa. | Modificação do segmento cinco: classificado na 1ª subetapa como “Unstoried Emotion” e corrigido na 3ª subetapa para “Inchoate Story”. Marcador identificado com mais dificuldade pela equipe de pesquisa. |
4ª Etapa (Sugestões dos juízes) | Juiz 1: A expressão “visões dominantes” em Mesma Velha Narrativa não está clara. Juiz 2: Mesma Velha Narrativa poderia ser chamada de Narrativa Recorrente ou Narrativa Reincidente. | “Narrativa Desconectada da Emoção” ou “Narrativa Desfocada da Emoção”. |
5ª e 6ª Etapas (Discussão da tradução reversa) | Modificação do nome do marcador para “Mesma Velha História”. Substituição da expressão “dominante” por “reincidente” e “recorrente” nos indicadores do processo. | Sugestões rejeitadas pela idealizadora do instrumento, pois revelam incompreensão do sentido fundamental do marcador narrativo-emocional. Foram feitas modificações no nome e nos indicadores do processo. |
Tradução final do NEPCS 2.0 para o português | Marcador: Mesma Velha História Indicadores do processo: Expressando visões gerais de si mesmo e dos relacionamentos de forma reincidente, recorrente e desadaptativa. Narrativa marcada pela falta de ação e estagnação. | Marcador: Emoção sem História Indicadores do processo: Experimentando excitação emocional de forma indiferenciada, sub ou sobrerregulada, sem conexão coerente com a experiência ou com a memória autobiográfica. |
De forma geral, os nomes dos marcadores narrativo-emocionais em português foram bem compreendidos pelo comitê de juízes. A concordância observada foi de 90% nos marcadores de transição e de mudança. Em contrapartida, os nomes dos marcadores de problema foram os mais questionados: 12 dos 20 juízes (54,55%) questionaram a primeira tradução do marcador “mesma velha narrativa” e quatro (18,18%) não julgaram claros os marcadores “narrativa vazia” e “emoção não narrada”.
Com relação ao marcador “mesma velha narrativa”, foi sugerido no questionário por um dos juízes o nome “narrativa reincidente ou recorrente”, por se tratarem, segundo o participante, de expressões mais técnicas do que a tradução realizada. No grupo focal, esse foi o marcador mais questionado, pois a tradução foi considerada “muito coloquial”. Na discussão com a idealizadora do instrumento na sexta etapa da pesquisa, esta relatou que, na época da construção do instrumento, o mesmo questionamento foi feito com relação ao termo em inglês “same old story” e que os pesquisadores optaram pelo termo por se tratar de uma expressão que ilustra bem o sentido e a experiência emocional do cliente. Conforme Angus e Greenberg (2011), “same old story” é um termo que ilustra narrativas e histórias que já foram usadas e contadas muitas vezes, em muitas outras ocasiões, e que se caracterizam por serem expressas pelo cliente num tom de voz monótono e repetitivo. Segundo os autores, esse marcador evidencia fortes sentimentos de “emperramento” experiencial. Indicadores linguísticos como “nunca” e “sempre” podem ser utilizados, transmitindo uma ideia de que se trata de algo que o cliente recorrentemente sente não ser capaz de influenciar, controlar ou suportar.
No português brasileiro, a expressão “mesma velha história” também tem esse sentido, de algo que alguém conta que produz “cansaço” em quem escuta, sem trazer qualquer elemento novo para o discurso. Dessa forma, a solução encontrada foi trocar nesse marcador o termo “narrativa” por “história”, garantindo assim a equivalência entre a versão original e a versão traduzida do instrumento e mantendo o sentido original do instrumento original. Também se optou por modificar os indicadores do processo para contemplar as sugestões dadas pelos juízes de inclusão dos termos “recorrente” e “reincidente”, conforme ilustrado na Tabela 2.
Outro nome de marcador que gerou dúvidas tanto nos juízes quanto na equipe de pesquisa durante a realização do estudo piloto foi o marcador “emoção não narrada”, que no inglês é descrito por “unstoried emotion”. Segundo Angus e Greenberg (2011), o marcador “unstoried emotion” expressa estados emocionais indiferenciados que não estão inseridos num contexto narrativo. Conforme Macaulay e Angus (2019), esse marcador narrativo-emocional é bastante comum em casos relacionados a trauma complexo, em função da dificuldade desse tipo de cliente em acessar sua memória autobiográfica, que em geral encontra-se ausente ou fragmentada, e pela natureza não verbal característica de experiência do trauma.
As sugestões dos juízes revelaram uma falta de compreensão do sentido geral do marcador, pois eles sugeriram nomes tais como “narrativa desconectada da emoção” ou “narrativa desfocada da emoção”. Tais sugestões foram rejeitadas pela idealizadora do instrumento na quinta etapa do estudo, pois o sentido teórico do marcador indica justamente o contrário. A narrativa não está desfocada ou desconectada da emoção. Na verdade, o cliente está “dominado” pela emoção e não consegue expressá-la em palavras. Conforme Angus e Greenberg (2011), o cliente se vê dominado por estados emocionais desregulados e sente-se incapaz de identificar uma causa específica, uma situação, um contexto ou um evento que explique a resposta emocional; ou seja, a emoção está presente sem uma “história”, sem “palavra” e sem uma memória autobiográfica ou uma situação que possa vinculá-la a um contexto narrativo. Para esclarecer o sentido do marcador, foram feitas as modificações ilustradas na Tabela 2, que envolveram a mudança do nome do marcador para “emoção sem história”, bem como foram feitas modificações nos indicadores do processo. Tais modificações foram consequências das discussões com a idealizadora do instrumento tanto na terceira quanto na sexta etapas do estudo.
Ainda com relação aos marcadores de problema, os juízes identificaram uma dificuldade em diferenciar os marcadores “narrativa vazia” e “narrativa superficial”, fazendo sugestões de mudança na descrição dos indicadores do processo que foram acatadas na sexta etapa. Segundo os juízes, na “narrativa vazia” parecia ser esperado que o cliente se refira a alguma resposta afetiva ao evento ou à condição que relata, mas, em vez disso, apega-se a “detalhes externos ou do seu comportamento”. Já no caso da “narrativa superficial”, o que parece existir, segundo um dos juízes, é um foco interno limitado, ou seja, um caráter mais especulativo e impreciso do relato oferecido pelo cliente. Trata-se de “superficial” não porque esteja necessariamente desprovido de impressões afetivas, mas porque obriga o terapeuta a questionar o cliente sobre a ordem, natureza ou importância dos acontecimentos e informações narradas. Segundo escreve um dos juízes no questionário: “É como se, na narrativa vazia, o terapeuta se perguntasse ‘certo, mas qual foi a sua experiência disso tudo? Como se sentiu, ou o que pensou?’; e na narrativa superficial, é como se o terapeuta se perguntasse ‘o que você está tentando me dizer, ou porque isso é importante para você? Pode me explicar melhor?’”.
A idealizadora do instrumento concordou com a diferenciação apontada e, para esclarecer a diferença entre os marcadores e contemplar a sugestão dos juízes, foram feitas modificações nos indicadores do processo de ambos os marcadores. As modificações envolveram a inclusão das expressões “significativo ou impactante” para narrativa vazia; e, para o marcador narrativa superficial, foram incluídas as palavras “descrevendo ou explicando”, bem como foram feitas modificações na estrutura da frase.
No grupo focal realizado na quarta etapa, os marcadores de transição e de mudança não foram questionados. Já no questionário aplicado, predominaram sugestões relacionadas ao marcador “inchoate story”, que foram discutidas também na sexta etapa e que produziram modificações na tradução. Os outros marcadores (narrativas concorrentes, experiencial e reflexiva) foram compreendidos por 95% dos juízes.
Com relação ao marcador “inchoate story”, dois juízes relataram não julgar clara a tradução “narrativa incipiente”. Esse marcador narrativo-emocional caracteriza-se por um discurso que evidencia a exploração de padrões de sentimentos e ações centradas no presente, demonstrando uma tentativa do cliente para articular algo novo (Angus & Greenberg, 2011). Os juízes relataram certa confusão desse marcador com a “narrativa reflexiva”. Um dos juízes inclusive sugeriu o nome “narrativa emergente”, para poder diferenciar o fato de que na “inchoate story” o cliente parece estar tomando contato com algo novo, que ainda está tentando articular e simbolizar. Entretanto, após a discussão com a idealizadora do instrumento, tanto na terceira etapa quanto na sexta etapa, ficou claro que o que está no centro não é uma experiência nova, mas sim um exercício ainda incipiente e rudimentar de reflexão. Como é dito em Angus Narrative-Emotion Marker Lab (2015), o cliente começa a focar sua atenção “para dentro”, a fim de classificar, juntar ou dar sentido a uma experiência e procurar pela simbolização apropriada na linguagem. Entretanto, a narrativa carece de começo, meio e fim claros. O cliente não consegue articular claramente a história e por vezes faz uso de metáforas para tentar simbolizar a experiência.
Por outro lado, na “narrativa reflexiva” o cliente está imerso num discurso mais coerente, muitas vezes apresentando uma natureza explicativa mais clara para a memória autobiográfica, evento, ou padrão de comportamento (Angus Narrative-Emotion Marker Lab, 2015). Na narrativa reflexiva, o cliente pode fornecer um “porquê” ou “como” para algo que naquele momento considera importante. A narrativa reflexiva é contada de uma perspectiva pessoal e pode incluir os detalhes dos sentimentos, reações, motivos, objetivos e suposições do cliente; características ausentes na narrativa incipiente, pois nesta o cliente ainda está “tentando” articular a experiência interna. Dessa forma, optou-se por manter o nome do marcador “narrativa incipiente” e acatar as sugestões dos juízes modificando somente os indicadores do processo. Para tanto, a expressão “nova experiência emergente” foi incluída, de forma a deixar a diferença com relação ao marcador “narrativa reflexiva” mais clara, evidenciando que se trata de um discurso centrado na reflexão interna, mas ainda rudimentar, marcado principalmente pela luta do cliente para articular e simbolizar algo novo.
Com relação aos nomes escolhidos para os marcadores de mudança “narrativa com desfecho inesperado” e “narrativa de descoberta”, estes foram considerados claros por quase 100% dos juízes. Um juiz sugeriu o nome “incerto ou alternativo” em vez de “inesperado”. Entretanto, a sugestão não foi acatada na sexta etapa, pois o marcador “unexpected outcome storytelling”, conforme Angus et al. (2017), evidencia mudanças positivas acompanhadas justamente de expressões de surpresa e excitação. O termo “inesperado” é essencial, pois trata-se de algo com que o cliente se surpreende ao tomar contato.
Foram feitas pequenas modificações nos exemplos das falas dos marcadores, conforme sugestões dos juízes. No caso do marcador “narrativa com desfecho inesperado”, um dos juízes relatou que a expressão “não ser convidado para o mundo” soava estranha em português. Optou-se por modificar a expressão para “não me sentir parte do mundo” (conforme Tabela 3). Outro exemplo de pequenos ajustes nas falas que ilustram os marcadores foi um ajuste relacionado à narrativa reflexiva. Um dos juízes relatou que a palavra “sentir” em português não deveria estar solta, dissociada de um “algo”. Optou-se então por colocar a expressão entre aspas: “parei de sentir”. Acredita-se que, tanto na versão original do inglês, como na tradução para o português, o exemplo tenta ilustrar um estado mais apático, em que o cliente se revela desprovido de sentimento, como se estivesse privado do “sentir”. A Tabela 3 ilustra a tradução final do NEPCS 2.0 para o português, que contempla os nomes dos marcadores traduzidos, os indicadores do processo e os exemplos de falas para cada um dos indicadores.
Marcador | Indicadores do Processo | Exemplos | |
---|---|---|---|
Problema | Mesma Velha História | Expressando visões gerais de si mesmo e dos relacionamentos de forma reincidente, recorrente e desadaptativa. Narrativa marcada pela falta de ação e estagnação. | Ela nunca se preocupou comigo, só se preocupava consigo mesma. “Se comporte, seja bom, não me cause problemas”. |
Narrativa Vazia | Descrevendo um evento significativo ou impactante com foco em detalhes externos ou no seu comportamento; falta de referentes internos ou excitação emocional. | Eu estava chorando no chão. A mulher da porta ao lado, a filha era nossa babá, ela tinha 16 anos. Ela fez para mim alguns ovos com queijo por cima. | |
Emoção sem História | Experimentando excitação emocional de forma indiferenciada, sub ou sobrerregulada, sem conexão coerente com a experiência ou com a memória autobiográfica. | C: Triste, tão triste. [pausa de 25 segundos, o cliente olha para o teto] T: Você está se segurando agora? C: Sim. Pois eu tenho que pegar um ônibus mais tarde. Não posso entrar no ônibus com os olhos cheios de lágrimas. | |
Narrativa Superficial | Descrevendo ou explicando situações, hipotéticas ou não, sobre si ou sobre outros, utilizando referentes imprecisos, de maneira vaga, abstrata, com foco interno limitado. | O jeito que ela falou comigo e me tratou na frente dos amigos e da família. Mesmo com minha irmã e meu pai, as coisas que ela diz e faz. | |
Transição | Narrativas Concorrentes | Surge uma alternativa para uma visão, crença, sentimento ou ação predominante, gerando tensão, confusão, curiosidade, dúvida, protesto. | Tenho três filhos saudáveis, uma casa, não somos ricos, mas estamos bem, e eu meio que fico… por que eu não sou… mais feliz? Não sei. |
Narrativa Incipiente | Entrando em contato com uma nova experiência emergente; focando no interior; buscando uma forma de simbolizar a experiência por meio de palavras ou imagens. | … de fora, parecia que estava tudo bem. Mas, de dentro, tem… [fecha os olhos, franze a testa] um, tipo um [silêncio] buraco negro ou um vácuo, ou… | |
Narrativa Experiencial | Narrando um evento ou se envolvendo numa tarefa como se estivesse reexperimentando uma memória autobiográfica ou esquema interpessoal. | Eu caminhei, caminhei e caminhei como se estivesse numa neblina. Estava escuro e chuvoso, e eu me senti nervoso, e eu tive que caminhar para ver se aquilo passava. Eu estava todo encharcado, mas não me importei. | |
Narrativa Reflexiva | Explicando um padrão geral ou evento específico em termos de seus próprios estados internos ou de outros (pensamentos, sentimentos, crenças, intenções). | Ninguém se importava, então, em algum momento, eu acabei deixando de mostrar como eu me sentia. Em algum ponto, entre aquele momento e agora, acho que eu “parei de sentir”. | |
Mudança | Narrativa com Desfecho Inesperado | Descrevendo um comportamento novo, adaptativo (ação, pensamento, sentimento, resposta) e expressando surpresa, orgulho, alívio, contentamento. | Eu estava tão ansioso, mas em vez de ficar remoendo, como de costume, pensei “o que posso fazer?” Então eu fiz aquele troço do relaxamento muscular… foi tão bom. Depois, me senti uma outra pessoa. |
Narrativa de Descoberta | Reconceitualizando ou articulando um novo entendimento de si mesmo, dos outros, eventos-chave, padrões de comportamento ou processos de mudança. | Tenho pensado sobre o fato de não me sentir parte do mundo. Eu acho que isso nunca foi consciente, mas percebo que me vi por um bom tempo como um intruso, e… |
C – cliente
T – terapeuta
Estudo piloto
O objetivo do estudo piloto foi realizar um exercício de codificação em conjunto com a idealizadora do instrumento para poder identificar elementos de maior dificuldade de compreensão da primeira tradução sintetizada. Entretanto, o estudo piloto revelou-se também como um exercício essencial para melhor embasar a equipe de pesquisa no processo de tradução como um todo. A aplicação efetiva do modelo NEPCS 2.0 numa sessão gravada tornou possível uma discussão mais aprofundada do sentido e significado de cada marcador, bem como auxiliou a equipe no treinamento do modelo para análise de futuras amostras de sessões psicoterápicas.
Inspirado no modelo de apresentação do estudo de Friedlander et al. (2019), a Figura 2 exibe a análise final da sessão piloto, ilustrando a progressão dos marcadores narrativo-emocionais ao longo da sessão. Cada quadrado na Figura 2 corresponde a um minuto da sessão, como previamente mencionado, dado que os marcadores devem ser analisados minuto a minuto. Os quadrados escuros representam marcadores de transição, enquanto os quadrados claros indicam marcadores de problema. As siglas referem-se aos tipos de marcadores conforme a legenda do NEPCS 2.0 traduzido para o português. As descrições referem-se às falas do cliente nos diferentes segmentos de um minuto e seus respectivos marcadores codificados no estudo piloto.
A sessão se caracterizou por trocas constantes entre marcadores produtivos (nove trocas de marcadores de problema para marcadores de transição: MP→MT) e improdutivos (nove trocas de marcadores de transição para marcadores de problema: MT→MP). Nenhum Marcador de Mudança (MM) ocorreu na sessão, como pode ser observado na Figura 2. Foram poucos os momentos em que a cliente se engajou numa narrativa de marcador único (máximo de três minutos em marcadores narrativo-emocionais de transição). Predominaram os marcadores de transição, em detrimento dos marcadores de problema.
A análise dos indicadores de processo resultou em 19 MT, 10 MP e um segmento “nenhum marcador de cliente” (NMC). Dos marcadores de transição, houve 11 segmentos de Narrativas Concorrentes (NC), seis de Narrativas Reflexivas (NR) e dois de Narrativas Incipientes (NI). Dos 10 MP, oito são de Mesma Velha História (MVH) e dois segmentos de Narrativa Superficial (NS).
Ao longo da análise da sessão piloto foi possível perceber que a tomada de decisão clínica e as opções do terapeuta por intervenções específicas produziram mudanças narrativas. Numa futura publicação do projeto maior, também será feita uma análise das intervenções terapêuticas nos moldes do estudo de Friedlander et al. (2019). Num estudo futuro poderá ser explorada de forma aprofundada a complexidade da análise realizada no estudo piloto. No entanto, é importante destacar que a narrativa da cliente, caracterizada por uma maior incidência de padrões problemáticos, é típica no início da terapia. De acordo com Angus et al. (2017), os Marcadores de Mudança são pouco comuns nos estágios iniciais da terapia, mesmo quando comparando clientes recuperados com aqueles que não apresentaram melhoras nas primeiras sessões. No entanto, segundo a autora, à medida que a terapia avança, surgem diferenças significativas. Nas sessões intermediárias, os clientes recuperados tendem a exibir uma proporção mais alta de Marcadores de Mudança em comparação com os clientes não responsivos, e essa diferença se mantém significativa nas sessões finais da terapia.
Especificamente sobre os efeitos do estudo piloto sobre a tradução do instrumento, alguns marcadores foram mais fáceis de compreender pela equipe de codificadores. O marcador Mesma Velha História (MVH) foi o considerado o de mais fácil compreensão, e nenhuma correção foi feita nas subetapas de codificação cruzada, o que significa que, em todos os segmentos da sessão piloto em que marcadores narrativo-emocionais foram julgados pela equipe como MVH, eles foram considerados corretos pela idealizadora do instrumento na terceira etapa da pesquisa. O marcador Narrativas Concorrentes (NC) também obteve uma boa concordância observada nas subetapas de codificação cruzada.
Um marcador de difícil compreensão na etapa piloto, e que surtiu maior modificação nessa etapa, foi o marcador Emoção sem História (ESH), por uma dificuldade de compreensão da primeira tradução. Na primeira e na segunda subetapas do estudo piloto, a equipe de pesquisa classificou o segmento cinco da sessão como ESH. O segmento, ilustrado na Figura 2, contém a seguinte fala: “Eu não sei, eu me sinto uma… uma coisa descartável, sabe? Uma peça que está lá a mais para… enfim, por estar, sabe. Não faria diferença se eu estivesse ou se eu não estivesse, eu seria facilmente substituída”. Na terceira subetapa do estudo piloto, a idealizadora do instrumento esclareceu que se tratava de uma Narrativa Incipiente (NI), demarcando diferenças essenciais que qualificaram a tradução de ambos os marcadores (emoção sem história e narrativa incipiente) na etapa final.
Esses exemplos demonstram que a tradução e adaptação de instrumentos psicológicos de uma língua para outra requerem uma série de cuidados, e que o estudo piloto foi fundamental para a tradução final. A simples tradução de uma expressão em inglês pode não apresentar uma correspondência perfeita no português brasileiro (Carvalho et al., 2007). Foi somente com o exercício de codificação realizado no estudo piloto que foi possível identificar discrepâncias de compreensão da tradução que puderam ser esclarecidas e incorporadas na tradução final.
Considerações finais
O estudo apresentado disponibiliza a tradução para o português do NEPCS 2.0, um instrumento de codificação narrativa que tem como objetivo a descrição de unidades interacionais turno a turno entre cliente e terapeuta ocorridas em sessões de psicoterapia, colaborando para a análise de processos psicoterápicos em diferentes abordagens terapêuticas. As etapas do estudo demonstraram a complexidade do processo de tradução e adaptação do instrumento e a fundamental participação da idealizadora do modelo NEPCS 2.0 nos processos decisórios da tradução do sistema de codificação para o português. Apesar de o processo de tradução ter demonstrado significativo consenso entre os julgamentos dos diferentes avaliadores/juízes, ficou evidenciado que algumas sugestões de modificação dadas pelos participantes alteravam significativamente o sentido original do instrumento. O extenso trabalho de treinamento da equipe de pesquisa, realizado de forma conjunta com a idealizadora do instrumento na realização do estudo piloto, demonstrou ser esse um procedimento essencial para a compreensão e manejo adequado do NEPCS 2.0.
Salienta-se que, para a utilização do instrumento para fins de pesquisa, é necessário um estudo aprofundado da teoria de base relacionada às abordagens humanistas e experienciais, bem como de toda a literatura internacional referente ao modelo NEPCS, como as citadas e referenciadas neste artigo. Algumas dificuldades de compreensão da tradução foram observadas, principalmente por parte dos juízes psicoterapeutas externos durante a quarta etapa, os quais não estavam familiarizados com o uso do instrumento. Neste estudo, os juízes terapeutas na quarta etapa estavam principalmente focados na tradução. No entanto, observa-se que o desconhecimento desses participantes em relação à literatura científica relacionada ao modelo de codificação, tanto em termos de treinamento empírico quanto teórico, destaca a importância de contar com uma equipe de codificadores de marcadores narrativos devidamente treinada.
Futuros estudos empíricos brasileiros, baseados no modelo apresentado no estudo piloto, são necessários. Embora a pesquisa brasileira tenha tradição em procedimentos de análise de narrativas no contexto psicoterápico, o modelo NEPCS 2.0 ainda não é amplamente conhecido e não tem sido usado em pesquisas empíricas por pesquisadores brasileiros. Como é evidenciado pela literatura estrangeira (Aleixo et al., 2021), o uso do NEPCS 2.0 com diferentes amostras clínicas, que acompanhe díades terapêuticas em momentos distintos do processo psicoterápico, é indicado para consolidação deste tipo de estudo também no Brasil. Acredita-se que investigações empíricas locais com essas características, tanto no âmbito da formação quanto da prática clínica, auxiliarão no processo de compreensão e investigação do instrumento traduzido. Espera-se, portanto, que este estudo tenha contribuído para abrir novas perspectivas nos estudos brasileiros de pesquisa de processos que buscam analisar as interações comunicativas e microanalíticas no processo terapêutico.