Introdução
A adolescência é considerada um período de transição marcado por transformações físicas, neuroquímicas, cognitivas, emocionais e comportamentais que podem favorecer a instalação de sintomas psicopatológicos, dentre os quais se destacam a depressão e a ansiedade (Grolli et al., 2017; Lopes et al., 2016). O Transtorno Depressivo Maior (TDM) tem sido subdiagnosticado e subtratado durante a adolescência, estimando-se que 70% dos adolescentes com depressão não recebem qualquer tratamento (Bonin & Moreland, s.d.). No estudo com adolescentes brasileiros de Munhoz et al. (2015), a depressão foi observada em 17% dos participantes investigados. Adolescentes também têm predisposição para o desenvolvimento de algum subtipo de Transtorno de Ansiedade. Estima-se que 4% a 25% dos indivíduos em idade escolar apresentarão um quadro de ansiedade patológica ao longo de seu percurso de maturação (Fernandes et al., 2014).
Ademais, não é incomum o envolvimento de adolescentes em brigas e interações violentas. Por questões do desenvolvimento neurológico humano, ainda não têm a região pré-frontal do cérebro propriamente mielinizada, dificultando a regulação emocional, a antecipação das consequências de suas ações e, principalmente, o exercício do controle inibitório (Arain et al., 2013; Strenziok et al., 2011). Não obstante, o conflito, a discussão e o enfrentamento são positivos para o desenvolvimento quando estimulam o aprendizado e ajudam o indivíduo a compreender as sutilezas da convivência social (Branje, 2018; Laursen & Collins, 1994).
Dentre os tipos de violências cometidas por adolescentes há o bullying, que se refere a um comportamento intencional repetido que visa a machucar e isolar determinada pessoa ou grupo (Olweus, 1993). O agressor se aproveita da ausência de recursos socioemocionais da vítima para exercer controle por meio de torturas psicológicas, humilhações, xingamentos, lesões físicas e outros tipos de agressão (Olweus, 1994). No Brasil, o percentual de jovens que admitem participar ativamente da prática do bullying está entre 19,2% e 20,3%, e a região sudeste do país é onde mais ocorre essa forma de violência (Silva et al., 2019).
Com o advento das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs), muitas condutas humanas têm sido adaptadas ao contexto cibernético, dando origem a novas estratégias comportamentais que visam a usufruir das particularidades do ambiente digital (Costa-Fernandez & Donard, 2016). Assim, compreende-se o cyberbullying como uma agressão intencional, facilitada por meio de ferramentas tecnológicas, em especial a internet, cujo objetivo é atacar, expor ou humilhar um determinado grupo ou indivíduo (Slonje et al., 2013; Wendt & Lisboa, 2013).
Usualmente, essa forma de violência se manifesta pelo envio de mensagens com conteúdo ofensivo, divulgação não autorizada de fotos e vídeos, criação de páginas e websites difamatórios, adulteração de imagens e insultos públicos em redes sociais, salas de bate-papo e jogos online (Faria, 2015; Zuin, 2017). O tipo de agressão depende diretamente das habilidades cibernéticas do agente provocador, já que, por exemplo, o conhecimento técnico requerido para a criação de um website é maior do que o necessário para o envio de uma mensagem de texto.
Apesar de ocorrerem de forma semelhante, nem todas as características do bullying tradicional são imitadas no cyberbullying. Em particular, o caráter repetitivo da agressão presencial não é obrigatório em sua versão digital (Dooley et al., 2009). Nos casos em que o agressor envia várias mensagens inapropriadas à vítima, observa-se diretamente a repetição da conduta inadequada. Contudo, o mesmo não ocorre quando um website é criado para depreciar um alvo ou fotos íntimas são expostas sem autorização prévia. Nesses cenários, um único ato de ciberagressão acarreta consequências devastadoras, pois o conteúdo difamatório fica exposto por tempo indeterminado e pode ser acessado inúmeras vezes (Ferreira & Deslandes, 2018).
Outra característica única da agressão cibernética diz respeito às particularidades do mundo online, que, por permitirem a transposição do espaço e do tempo, levam o agressor a não assumir o caráter danoso de suas ações, pois não há contato imediato com o sofrimento produzido. A ambiguidade e o anonimato inerentes às trocas virtuais possibilitam disfarçar condutas reprováveis na forma de brincadeiras ou trolling (Fragoso, 2015; Suler, 2004). Ainda, a ausência de pistas sociais e emocionais dificulta a ativação dos recursos empáticos, facilitando o desengajamento das autossanções morais. Dessa forma, o confronto com os valores internos é diminuído, impedindo o surgimento da dissonância cognitiva e, consequentemente, evitando a autorreprovação (Romera et al., 2021).
Caetano et al. (2017) tentaram explorar as motivações por trás das agressões cibernéticas numa amostra de 3.525 adolescentes (M=13,6 anos; DP=2,3). Em sua maioria, as justificativas apresentadas eram de cunho hedonista e estavam relacionadas à percepção da violência digital como uma forma de brincadeira inofensiva (34,1%), como diversão (28,8%) e/ou como uma tentativa de escapar do tédio cotidiano (17,4%). Havia também, ocasiões em que os perpetradores atuavam de forma reativa, usando a internet como ferramenta para vingança (21,2%).
Alguns estudos já conduzidos demonstram ocorrência concomitante de bullying e cyberbullying. Vieira et al. (2019) verificaram que vítimas das variadas formas de bullying tradicional, como agressão física, insultos verbais e manipulação social, estão setes vezes mais suscetíveis a se tornarem vítimas de uma agressão online. Mesmo assim, numa amostra composta por 669 adolescentes (M=13,06 anos; DP=0,10), os autores encontraram baixa prevalência de cyberbullying (1,9%) e prevalência moderada de bullying tradicional (21,9%). A pouca incidência de agressões cibernéticas foi atribuída à condução do estudo numa região de baixa renda.
Wendt e Lisboa (2020) constataram que o envolvimento com o cyberbullying está positivamente correlacionado à idade e ao tempo de uso de internet (r=0,178, p<0,01 e r=0,273, p<0,01 respectivamente). Também averiguaram a relação entre depressão e cyberbullying numa amostra de 367 adolescentes (M=14,76 anos; DP=1,40), e concluíram que os indivíduos que desempenhavam simultaneamente os papéis de vítima e de agressor apresentavam níveis mais elevados de sintomas depressivos. Em termos de prevalência, identificaram que cerca de 75% da amostra foi vítima de pelo menos um ataque cibernético no passado recente.
A alta prevalência de cyberbullying também foi encontrada por Magalhães et al. (2019). Parte significativa de uma amostra composta por 668 universitários portugueses (M=22 anos; DP=5) havia recebido pelo menos uma mensagem de cunho ofensivo recentemente, além de um terço ter sido alvo de campanhas difamatórias baseadas em boatos falsos espalhados por meios eletrônicos. Ao todo, 67% dos respondentes afirmaram ter sido vítima de cyberbullying e 34% confessaram tê-lo perpetrado.
Portanto, o cyberbullying é um fenômeno de difícil compreensão e sua ocorrência está relacionada a questões sociais, econômicas, regionais e emocionais. Nesse sentido, esta pesquisa teve por finalidade explorar a associação entre sintomas depressivos e ansiosos e eventos de cyberbullying na adolescência de indivíduos pernambucanos. Ainda, objetivou-se verificar se havia diferenças para cibervitimização quanto às variáveis sociodemográficas, além de estimar a prevalência do fenômeno. As hipóteses investigadas foram de que os adolescentes que disseram já ter sofrido cyberbullying teriam um índice maior de ansiedade e depressão; que a cibervitimização seria mais predominante nas meninas e nos adolescentes mais velhos; e que tanto a cibervitimização por mensagens quanto a cibervitimização por fotos estariam relacionados a maiores sintomas psicopatológicos e à vitimização por bullying tradicional.
Método
Esta pesquisa faz parte de um levantamento multicêntrico que está sendo realizado em cinco estados brasileiros e tem como objetivo final a adaptação brasileira do Health Behavior in School-aged Children (HBSC/OMS), disponível em https://hbsc.org (WHO, 2020). Esse protocolo de pesquisa foi desenvolvido em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e tem sido aplicado sistematicamente em adolescentes de 43 países da Europa e da América do Norte.
O estudo atual foi realizado no Recife, capital de Pernambuco, que tem aproximadamente 1,5 milhão de habitantes e apresenta o melhor IDH do estado, 0,772 (IBGE, 2010). Para a composição da amostra estratificada foi adotada a tipificação municipal, que divide a cidade em seis Regiões Político-Administrativas (RPAs). Inicialmente foi estabelecido o contato com a Secretaria de Educação da Cidade do Recife com a finalidade de realizar o levantamento das escolas estaduais da cidade e solicitar autorização para o desenvolvimento da pesquisa. Após autorização, das seis RPAs contatadas, foram autorizadas coletas nas RPAs I, II, III e VI.
Participantes
A amostra foi composta por 501 adolescentes de 13 e 15 anos de idade, estudantes de escola pública da cidade do Recife. As escolas foram selecionadas aleatoriamente a partir do contato com a Secretaria de Educação do estado e com as próprias instituições. Dentre as 11 escolas selecionadas, foram sorteadas as turmas convidadas para participar da pesquisa, obedecendo a faixa etária do estudo.
Instrumentos
Protocolo de Pesquisa HBSC – versão brasileira: O protocolo HBSC (WHO, 2020) é um questionário que abrange uma gama de indicadores de saúde e de comportamentos, bem como das circunstâncias de vida dos adolescentes de 11, 13 e 15 anos de idade. Os eixos temáticos das perguntas se pautam em fatores demográficos, origem social, contexto social, problemas de saúde, comportamentos de saúde e comportamentos de risco. O questionário padrão tem três dimensões que são usadas para confeccionar instrumentos de pesquisa nacional: questões fundamentais que cada país é obrigado a incluir para a criação de um banco de dados internacional; questões opcionais sobre tópicos específicos que cada país pode escolher; e questões de importância nacional. A adaptação linguística da versão portuguesa deste protocolo (Matos & Equipa Aventura Social, 2018) para a realidade brasileira foi realizada por Maltoni et al. (2019). O instrumento é autoaplicável, pode ser administrado em salas de aula e demora aproximadamente 45 minutos para ser completado.
No que tange à cibervitimização, o HBSC questiona se nos últimos dois meses “Alguém te enviou mensagens instantâneas (por exemplo, através do chat do Facebook), fez publicações no seu mural, mandou e-mails para você, mensagens de texto maldosas ou criou um site para debochar/zoar você?” e/ou “Alguém tirou fotos suas, inconvenientes ou em situações constrangedoras, e publicou elas on-line sem sua permissão?”. As alternativas de resposta são: “Não fui provocado nos últimos dois meses”; “Aconteceu uma ou duas vezes”; “Duas ou três vezes”; “Cerca de uma vez por semana”; ou “Diversas vezes por semana”. Para a vitimização por bullying tradicional, o instrumento indaga “Quantas vezes você foi provocado na escola, nos últimos dois meses?”. Igualmente, as alternativas de resposta são: “Não fui provocado nos últimos dois meses”; “Aconteceu uma ou duas vezes”; “Duas ou três vezes”; “Cerca de uma vez por semana”; ou “Diversas vezes por semana”.
Children’s Depression Inventory (CDI): Esse instrumento foi adaptado para o português por Gouveia et al. (1995) a partir do instrumento original Children’s Depression Inventory (CDI) (Kovacs, 1983). É baseado no Inventário de Depressão de Beck e pretende detectar a presença e a gravidade de sintomas da depressão na infância e na adolescência. É utilizado em indivíduos dos 7 aos 17 anos, compõe-se de 27 itens, com três opções de resposta cada, e pode ser aplicado coletivamente. Os escores foram baseados nas análises de Wathier et al. (2008).
Spence Children’s Anxiety Scale (SCAS): A escala original (Spence, 1998) foi adaptada para o português por DeSousa et al. (2014). Contém 44 itens dispostos em seis subescalas, referentes a ansiedade de separação, fobia social, obsessão compulsiva, pânico e agorafobia, ansiedade generalizada e medo de agressões físicas. A escala contém questões positivas a fim de reduzir o viés negativo, e cada pergunta abarca apenas uma resposta, que pode variar entre nunca, às vezes, muitas vezes ou sempre. A avaliação é feita a partir de uma comparação com dados normativos.
Procedimentos
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto e ao Comitê Científico de Pesquisa da Universidade Católica de Pernambuco, aprovada sob o CAAE 45947415.5.1001.5407 e Parecer nº 69/2020, e seguiu, rigorosamente, os preceitos éticos estabelecidos na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, assim como respeitou as instruções contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As salas de aula foram visitadas com o apoio da direção do colégio para a apresentação da proposta aos alunos e o subsequente convite à participação. Solicitou-se aos estudantes menores de idade que quisessem se voluntariar a autorização dos pais ou responsáveis por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como a assinatura do Termo de Assentimento.
A coleta de dados foi realizada de modo coletivo, numa sala apropriada, disponibilizada pelo colégio para tal finalidade. Formaram-se pequenos grupos de estudantes (5 a 7 participantes) para os quais foram distribuídos os instrumentos. Ressalta-se que as respostas foram escritas a mão, a partir do preenchimento anônimo do protocolo, do inventário e da escala. Os pesquisadores acompanharam o processo de coleta, dando instruções e fornecendo esclarecimentos individuais quando pertinentes.
Análise dos dados
Os dados foram analisados no programa estatístico SPSS, versão 24. A normalidade dos dados coletados foi avaliada mediante o teste de Kolmogorov-Smirnov. Já a homogeneidade da variância entre grupos foi averiguada por meio do teste de Levene. As variáveis apresentaram normalidade dos dados e homogeneidade de variância. Foram realizadas análises descritivas, qui-quadrado, análise da consistência interna (CDI e SCAS), diferença de médias (teste t) e correlação entre as variáveis investigadas. Para investigar se experiências de cibervitimização resultam em índices maiores de depressão e/ou ansiedade, dois testes t com amostras independentes foram conduzidos. Comparou-se a média dos escores obtidos no CDI e no SCAS entre os adolescentes que haviam ou não sido vítimas de cyberbullying.
Resultados
Dos 501 participantes questionados (M=14,2 anos; DP=0,9), um total de 162 (32,3%) estudantes revelaram ter sido vítimas de cyberbullying nos últimos dois meses. A Tabela 1 apresenta o teste qui-quadrado que foi empregado para averiguar a existência de associação entre cibervitimização, sexo e idade, sem que se encontrasse associação entre essas variáveis.
Tabela 1 Comparação entre cibervitimização, sexo e idade
| Ciber-vitimização | Sim | Não | Total | χ2 | gl | p | |||
|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| N | % | N | % | N | |||||
| Sexo | Menino | 56 | 34,6 | 129 | 40,3 | 185 | 1,50 | 1 | 0,161 |
| Menina | 106 | 65,4 | 191 | 59,7 | 297 | ||||
| Idade | 13 anos | 64 | 39,5 | 119 | 37,2 | 183 | 0,24 | 1 | 0,910 |
| 15 anos | 98 | 60,5 | 201 | 62,8 | 299 | ||||
A verificação da consistência interna das escalas de Depressão Maior Infantil (CDI) e Ansiedade Generalizada (SCAS) indicou alfa de Cronbach elevado para ambas (α=0,912 e α=0,883, respectivamente). Tais índices demonstram boa precisão dos instrumentos para a avaliação do grupo etário que compõe a amostra. Na comparação entre sintomas de depressão e ansiedade e experiências de cyberbullying, os resultados evidenciaram que adolescentes vítimas exibiram escores significativamente maiores no CDI do que adolescentes não vítimas (Tabela 2). Entretanto, ressalta-se que o tamanho do efeito da diferença foi fraco (d=0,28). Não foram encontradas diferenças entre sintomas de ansiedade nos dois grupos para escores no SCAS (Tabela 2).
Tabela 2 Comparação de médias entre cibervitimização, sintomas depressivos (CDI) e ansiosos (SCAS)
| Ciber-vitimização | Sim | Não | t | p | d | ||||
|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| N | M | DP | N | M | DP | ||||
| Depressão | 162 | 15,4 | 9,4 | 320 | 12,8 | 9,5 | 2,83 | 0,020 | 0,28 |
| Ansiedade | 162 | 41,1 | 15,3 | 320 | 39,4 | 16,0 | 1,08 | 0,610 | 0,15 |
A Tabela 3 exibe a correlação entre a frequência específica dos tipos de cibervitimização investigados, os escores do CDI (sintomas de depressão), do SCAS (sintomas de ansiedade) e a vitimização por bullying tradicional. Evidenciou-se correlação positiva significativa entre o recebimento de mensagens instantâneas ofensivas e o vazamento não permitido de fotos com o escore no CDI. Da mesma forma, foi possível observar correlação positiva entre os dois tipos de cibervitimização investigados. Ainda, verificou-se que a vitimização por bullying tradicional estava correlacionada positivamente tanto à cibervitimização por mensagens instantâneas, quanto à cibervitimização por vazamento não permitido de fotos (Tabela 3). Após correlação, o teste de transformação de Fisher foi utilizado para comparar a magnitude dos valores encontrados, demonstrando que a vitimização por bullying tradicional estava mais fortemente associada ao cyberbullying por mensagens ofensivas do que o cyberbullying por vazamento não autorizado de fotos (z=1,89; p<0,00).
Tabela 3 Correlação de Spearman para as variáveis investigadas
| Mensagens ofensivas | Vazamento de fotos | Depressão (CDI) | Ansiedade (SCAS) | Vitimização tradicional | |
|---|---|---|---|---|---|
| Mensagens ofensivas | — | ||||
| Vazamento de fotos | 0,375‡ | — | |||
| Depressão (CDI) | 0,108† | 0,131‡ | — | ||
| Ansiedade (SCAS) | 0,051 | 0,059 | 0,414‡ | — | |
| Vitimização tradicional | 0,250‡ | 0,158‡ | 0,070 | 0,035 | — |
Notas:
† p<0,05; ‡ p<0,01.
Discussão
Os resultados encontrados neste estudo com adolescentes pernambucanos sugerem prevalência de 32,3% para o cyberbullying, demonstrando que cerca de um terço da amostra havia sido vítima de provocações digitais (por mensagens ou fotos) pelo menos uma vez nos últimos dois meses. Tal constatação fornece uma estimativa moderada do cyberbullying, ao passo que corrobora a revisão sistemática conduzida por Bottino et al. (2015), na qual os autores concluíram que a prevalência do fenômeno varia entre 6,5% e 35,4%. Não obstante, é necessário discutir a diferença entre a porcentagem aqui apresentada e a literatura brasileira recente. Por exemplo, Wendt e Lisboa (2020) e Vieira et al. (2019) reportam, respectivamente, prevalência de 75,6% e 1,9% para o cyberbullying no mundo infanto-juvenil.
A discrepância entre os achados científicos aparenta ser ocasionada por uma série de questões que variam desde discordâncias conceituais, até os instrumentos utilizados para coleta de dados (Kwan et al., 2020). Dentre essas questões, deve-se considerar ainda o alcance das TDICs em áreas menos favorecidas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), cerca de 75% dos domicílios no Nordeste do país contam com internet desde 2019. Em comparação, o Sul e o Sudeste apresentam 87,6% e 88,8% de acesso domiciliar à rede, respectivamente. Regiões nas quais a incorporação da comunicação digital ainda é recente podem apresentar índices menores de cyberbullying, pois não há ajustamento total da população às novas formas de interação sociovirtual (Vieira et al., 2019).
Assim, uma estimativa moderada do fenômeno talvez seja mais adequada, visto que outro fator de influência no cálculo da prevalência é o período de rememoração utilizado. O HBSC indaga a respeito da cibervitimização nos últimos dois meses; assim, facilita a exclusão de eventos potencialmente irrelevantes. Em contrapartida, vários estudos questionam se o participante foi vítima de cyberbullying nos últimos 3 a 6 meses ou até no último ano (Aboujaoude et al., 2015; Kwan et al., 2020). Dessa forma, a utilização de um período amplo nas perguntas pode aumentar o número de respostas afirmativas, propiciando um recorte impreciso da realidade.
No que tange às variáveis sociodemográficas, na amostra investigada, as vítimas do cyberbullying foram majoritariamente meninas; contudo, a diferença entre sexos não se mostrou estatisticamente relevante. Ressalta-se que a literatura é conflitante nesse quesito. Existem estudos que indicam homens como principais vítimas da violência digital devido aos ambientes virtuais que frequentam (Magalhães et al., 2019; McInroy & Mishna, 2017). Contudo, especialmente no que se refere à adolescência, outros trabalhos apontam haver maior índice de cibervitimização em indivíduos do sexo feminino (Heerde & Hemphill, 2019; Mallmann et al., 2018). Ainda, é possível encontrar artigos que propõem não haver correlação entre sexo e cibervitimização (Bottino et al., 2015).
Há razões para assumir que ambos os sexos podem apresentar números similares de vitimização cibernética. Atualmente, cada vez mais as mulheres adentram espaços que costumavam ser mais frequentados por homens, como o ambiente cibernético e as profissões a ele relacionadas (Lopez-Fernandez et al., 2019). Logicamente, esse fato deve acarretar um aumento no número de interações digitais feitas por mulheres, o que, por sua vez, tornam-nas igualmente vulneráveis a ataques virtuais (Wendt & Lisboa, 2020). Além do mais, há dois tipos de ciberagressão que são mais comumente direcionados ao sexo feminino: a exposição não autorizada de fotos ou vídeos por terceiros e o slut-shaming – ato sexista que envolve humilhar mulheres nas redes sociais por meio de insultos com conteúdo sexual (Souza & Lordello, 2020). Desse modo, mesmo que homens se engajem em comportamentos de risco com mais frequência e sejam as vítimas primárias do bullying tradicional (Silva et al., 2013), a adoção de um posicionamento de que ambos os sexos correm riscos de vitimização por cyberbullying é justificável.
Também não foi encontrada diferença significativa na variável cibervitimização entre os participantes divididos por idade. A literatura aponta que indivíduos em diferentes fases da vida utilizam as TDICs com frequências e funções distintas (Czaja & Lee, 2019; Olson et al., 2011). Bruni et al. (2015) mostraram que os pré-adolescentes passam boa parte do tempo jogando videogames, suscitando interação indireta com outros jogadores. Enquanto isso, os adolescentes tendem a passar mais tempo em redes sociais, interagindo diretamente com outros jovens, especialmente durante a madrugada. Apesar disso, as análises indicaram que, para as idades que demarcam a transição entre a pré-adolescência e a adolescência, o risco de sofrer ciberagressão é o mesmo.
Foi encontrada correlação positiva entre o cyberbullying e bullying tradicional, confirmando os achados científicos de terceiros (Beran & Li, 2007; Schneider et al., 2012; Vieira et al., 2019). Deve-se ressaltar que a magnitude da correlação foi maior para provocações por meio de mensagens instantâneas. Tal achado pode ser explicado por meio da constatação de que os insultos desferidos durante o bullying presencial são facilmente espelhados na ciberagressão por mensagens instantâneas. Isso sugere que, em certas ocasiões, o cyberbullying é praticado como uma extensão do bullying tradicional.
A relação entre cyberbullying e saúde mental é bem documentada na literatura. Tornar-se alvo dessa forma de violência está associado a índices elevados de depressão e ansiedade (Jenaro et al., 2017; Wendt & Lisboa, 2020), de fobia social e estresse emocional (Bottino et al., 2015), e de desesperança e impotência (Raskauskas & Stoltz, 2007). Em contrapartida, Nixon (2014) apontou que os perpetradores reportaram maior consumo de drogas, bem como se envolveram em práticas delinquentes mais frequentemente e apresentavam alto nível de agressividade.
Os dados do presente estudo também expõem a associação entre depressão e cyberbullying. A diferença de escores no CDI para adolescentes vítimas e não vítimas foi significativa. Além do mais, tanto ser provocado por mensagens instantâneas quanto ter sua foto vazada por terceiros se correlacionaram positivamente com a medida de depressão empregada. No entanto, vítimas e não vítimas apresentaram escores similares no SCAS e não houve correlação entre as formas de cibervitimização investigadas e sintomas ansiosos. Hamm et al. (2015) esclareceram que a literatura é mais consistente a respeito da associação entre cyberbullying e depressão do que cyberbullying e ansiedade. As evidências aqui discutidas sustentam essa conclusão.
O vínculo entre depressão e cibervitimização é preocupante, pois indivíduos deprimidos interpretam a realidade de maneira distorcida, selecionando aspectos negativos sobre si e sobre o futuro (Beck, 2013). Essa condição psiquiátrica está associada a uma série de marcadores negativos para qualidade de vida, como desempenho acadêmico precário, prejuízo cognitivo, dificuldades funcionais, isolamento social e estresse (DeRoma et al., 2009; Hammer-Helmich et al., 2018). Calvete et al. (2016) demonstraram que a piora da autoestima corporal e o aumento da desconfiança predizem a severidade dos sintomas depressivos, após experiências de vitimização por cyberbullying. Na mesma direção, Li et al. (2018) identificaram a importância do apoio social e da segurança psicológica como mediadores da depressão frente ao bullying cibernético.
Wang et al. (2020) também revelaram que a depressão é um mediador da relação entre cibervitimização e dependência eletrônica. De acordo com os autores, sintomas depressivos levam vítimas de cyberbullying a adotar comportamentos típicos de adicção ao uso de internet para aliviar emoções negativas. O problema é que o aumento no tempo de uso da internet leva a mais experiências de cibervitimização (Chang et al., 2015), o que, por sua vez, intensifica sintomas depressivos. Assim, cria-se um círculo vicioso do qual é difícil escapar.
A natureza cíclica da relação cyberbullying-depressão também foi explorada por Rose e Tynes (2015). Fundamentados em um estudo longitudinal, os pesquisadores argumentaram que, da mesma maneira que vítimas de cyberbullying apresentam risco aumentado para o desenvolvimento de sintomas depressivos, indivíduos com quadro sintomatológico de depressão têm chance maior de se tornarem alvo de ciberagressões. Isso ocorre porque pessoas que exibem sinais de doenças psiquiátricas são percebidas como vulneráveis e são avaliadas desfavoravelmente por seus companheiros (Gámez-Guadix et al., 2013).
Por fim, é importante ressaltar que o impacto negativo da cibervitimização não se restringe ao período em que ela ocorre. Evidências sugerem que a vitimização por cyberbullying durante o ensino fundamental ou médio está associada a níveis baixos de ajustamento psicológico na universidade (Jenaro et al., 2017). Em razão disso, é indispensável que sejam implementados planos de intervenção durante a época escolar que visem a mitigar os prejuízos causados por essa violência, bem como diminuir sua periodicidade. Baseado no que foi apresentado e discutido ao longo desse artigo, propõe-se que as estratégias de ação contra o cyberbullying devem promover mudanças sistemáticas, estimular a autoeficácia e favorecer o trabalho em grupo. Tal perspectiva é ratificada pela literatura, ao passo que Cantone et al. (2015) classificam as intervenções que atuam a nível institucional escolar como mais eficazes.
Considerações finais
O objetivo principal desta pesquisa foi verificar a prevalência do cyberbullying em adolescentes pernambucanos e seu impacto na saúde mental. Nesse sentido, investigou-se diferenças nos índices de depressão e ansiedade dos adolescentes vítimas de cyberbullying quando comparados aos de não vítimas. Além disso, procurou-se detalhar o contexto que circunscreve o fenômeno, destacando possíveis interações entre cibervitimização, sexo, idade e bullying tradicional. Dentre as hipóteses investigadas, apenas se confirmou o vínculo entre cyberbullying e depressão na adolescência, e a associação entre cibervitimização e vitimização por bullying tradicional. Não foram verificados índices elevados de ansiedade nos adolescentes vítimas de cyberbullying se comparados a seus companheiros, nem se demonstrou correlação significativa entre variáveis sociodemográficas e cibervitimização.
No que tange a limitações, a medida de cyberbullying utilizada foi composta meramente por dois itens. Assim, é possível que a complexidade do fenômeno em questão não tenha sido capturada completamente. Mesmo assim, esta investigação tem o mérito de se tratar de uma pesquisa nacional com amostra representativa, conduzida em um estado da região Nordeste do país. De conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo que aborda o cyberbullying em Pernambuco e sua associação com sintomas depressivos e ansiosos. Ademais, foi mostrado o potencial do HBSC enquanto ferramenta de pesquisa e instrumento de coleta de dados. Espera-se que os resultados discutidos possam fundamentar estratégias de combate ao cyberbullying, contribuindo para a diminuição da violência digital na adolescência e promovendo o cuidado com a saúde mental.
Por fim, sugere-se que a escola possa ser um espaço propício para ampliação do conhecimento acerca da utilização segura de tecnologias por meio de palestras com profissionais da área para adolescentes, familiares e os próprios profissionais da educação. Ainda, a família deve aumentar o monitoramento de conteúdos acessados e o controle do tempo e horário de uso de TDIC, para fomentar a utilização segura dos adolescentes. O suporte social e familiar é indispensável às vítimas; assim, mudanças sistemáticas e planos de intervenção precisam ser inseridos nas diretrizes escolares e de saúde pública.











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