Introdução
Baseadas na Terapia Narrativa, de Michael White e David Epston (1990), as Práticas Narrativas Coletivas buscam romper o espaço delimitado das paredes do consultório tradicional e caminhar em direção ao trabalho comunitário, promovendo a socialização da prática do psicólogo narrativo. Segundo seu proponente, David Denborough, as Práticas Narrativas Coletivas são alternativas para ofertar apoio psicossocial num contexto comunitário, desenvolvidas a fim de responder aos seguintes questionamentos:
Em contextos em que o aconselhamento individual não é possível ou culturalmente apropriado, como as abordagens narrativas ainda podem ser usadas para ajudar as pessoas que estão passando por dificuldades? Onde os recursos são escassos, como podemos desenvolver abordagens narrativas que possam ser colocadas em prática por pessoas da comunidade dedicadas, abordagens que possam ser engajadas além do mundo profissional? Como as abordagens narrativas podem ser relevantes para contextos de profundo sofrimento social coletivo, como o genocídio em Ruanda e a ocupação militar da Palestina? Ao responder a histórias de sofrimento social, como nosso trabalho pode contribuir para o “movimento social”? Ao respondermos a essas perguntas, como podemos minimizar as possibilidades de participação na colonização psicológica? (Denborough, 2012, p. 58)
Essas práticas partem do princípio de que pessoas que foram sujeitadas a traumas e dificuldades não são passivas frente a essas experiências e, ao longo do tempo, desenvolveram estratégias a fim de minimizar os efeitos dos problemas em suas vidas. Assim, tais práticas têm o potencial de explorar as habilidades desenvolvidas pelos membros da comunidade por meio da externalização e reautoria (White & Epston, 1990) e deixá-las visíveis a todos os seus membros, o que promove o senso de solidariedade, fortalece a cultura local e possibilita que a comunidade trace ações de enfrentamento coletivo (Denborough, 2008, 20, 2012). Esses princípios estão de acordo com a ideia de Paulo Freire de que “devemos nos esforçar para criar o contexto para que as pessoas desafiem a percepção fatalista de suas circunstâncias, para que possam desempenhar seu papel em fazer história” (Freire, 1999, p. 37). Nesse sentido, as práticas narrativas coletivas ofertam uma maneira de apoio psicossocial alternativa a comunidades e indivíduos que enfrentam traumas e se baseiam nos princípios da terapia narrativa, com potencial de desafiar os discursos sociais dominantes saturados de problemas, fortalecer o conhecimento local dos participantes em oposição ao conhecimento trazido pelo especialista, além de abordar assuntos de modo a não revitimizar os participantes (Casdagli et al., 2017; Hung, 2011; Nyirinkwaya, 2020).
Com o intuito de explorar o conhecimento coletivo, os profissionais utilizam metodologias de fácil aplicação e metáforas que ressoam nas comunidades, considerando sua cultura popular. Nesse sentido, foram desenvolvidas metodologias originais como a “Árvore da Vida” (Tree of Life) (Ncube, 2006), a fim de trabalhar com crianças que vivenciaram muitas perdas e encontravam-se em situação de negligência ou violência; “Time da Vida” (Team of Life) (Denborough, 2008), para permitir a expressão de jovens que vivenciaram graves dificuldades; listas de resistência psicológica e social, utilizadas com pessoas em contextos de guerra e conflito armado; linhas do tempo das narrativas coletivas e mapas da história, que viabilizam o compartilhamento pelos participantes de histórias pessoais conectadas ao tema coletivo; bem como documentos coletivos e canções de sustento (Denborough, 2008).
Portanto, a análise, pesquisa e disseminação de conteúdos acerca das práticas narrativas coletivas têm o potencial de auxiliar os profissionais a refletir sobre formas alternativas, não patologizantes, de prática profissional, além de promover a mudança e transformação social junto a diversas populações. As práticas narrativas coletivas não têm apenas o potencial de externalizar e elaborar os problemas; elas possibilitam contribuições coletivas, ação consoante ao exposto por Freire (1999): “temos a responsabilidade de criar formas de compreensão das realidades políticas e históricas que gerem possibilidades de mudança” (p. 37).
Numa perspectiva narrativa, os terapeutas desconstroem as ideias culturais que contextualizam o problema do cliente para demonstrar os efeitos das práticas sociais opressivas sobre eles e os convidam à reflexão sobre as práticas culturais que produzem essas narrativas dominantes. Segundo Monk e Gehart (2003), o terapeuta narrativo é um ativista sociopolítico, uma vez que essa representação implica “que os praticantes da terapia narrativa propõem intervenções políticas, dirigindo-se mais diretamente para o impacto dos fatores culturais e históricos sobre as experiências-problema” (p. 23) apresentadas pelo cliente. Com intuito de promover a ação política dentro e fora da terapia, os terapeutas narrativos abordam pautas políticas intrínsecas à desconstrução, visando a um resultado socialmente justo para seus clientes.
A partir desse contexto, considerando o caráter recente e original das práticas narrativas coletivas, sua potencial contribuição teórico-metodológica e sua relevância social, este estudo teve como objetivo analisar como a literatura relata o desenvolvimento das práticas narrativas coletivas, especialmente quando utilizadas como intervenção de cuidado psicossocial. Para alcançar o objetivo do estudo, foi realizada uma revisão da literatura, descrevendo as características gerais das publicações e das intervenções desenvolvidas. Ressalta-se que revisões de literatura anteriores (Lock, 2016; Parham et al., 2019) sobre o tema se restringiram ao estudo da metodologia narrativa coletiva da “Árvore da Vida” (Tree of Life), que é apenas uma das metodologias abrangidas pelas práticas narrativas coletivas, e deixaram em aberto a análise de outras.
Método
Este estudo é derivado da dissertação de mestrado da primeira autora (Romite, 2023), sob a supervisão do segundo autor. A revisão da literatura foi realizada a partir da perspectiva epistemológica construcionista social. A revisão é entendida como uma prática de pesquisa que reconhece que as publicações, os bancos de dados e descritores são permeados por processos sociais que legitimam e produzem determinados sentidos sobre o mundo (Spink, 2013). Nessa perspectiva, a revisão de literatura permite refletir sobre motivações, interesses, valores e discursos sociais que são produzidos pelos pesquisadores (Vilela e Souza & Scorsolini-Comin, 2020).
Para a localização das publicações, foram realizadas buscas eletrônicas em outubro de 2022, em PePsic, Portal da CAPES, SciELO, BVS-LILACS, PsycINFO e PubMed. Essas fontes foram selecionadas por indexar artigos científicos produzidos no Brasil e no exterior, em diversas áreas de conhecimento. Além disso, foi realizada uma busca no International Journal of Narrative Therapy and Community Work, pois realiza publicações específicas sobre o tema pesquisado. As buscas utilizaram o campo “All”, com a expressão “collective narrative practice” (prática narrativa coletiva). O período definido para a busca de artigos foi até dezembro de 2021, sem limite inicial, resultando num total de 163 artigos.
Para a seleção do material, foram inicialmente descartados sete artigos com título duplicados; em seguida, foi realizada a leitura dos resumos dos artigos, que foram então selecionados a partir dos seguintes critérios de inclusão: (a) formato de artigos completos em periódicos científicos, exceto revisões bibliográficas; (b) nos idiomas português, inglês e espanhol; e (c) que continham como tema práticas narrativas coletivas. Assim, foram descartados 104 artigos por não contemplarem o tema, 11 por não terem sido publicados no formato de artigo, dois por serem revisões bibliográficas, e um por ter sido publicado em idioma distinto daqueles estabelecidos, resultando em 39 artigos, que passaram à etapa de avaliação, conforme demonstra a Tabela 1.
Tabela 1 — Descrição dos 39 artigos selecionados para análise
Nº | Título | Periódico | Ano | Autores |
---|---|---|---|---|
1 | Collective narrative practice with rape victims in the Chinese society of Hong Kong | IJNTCW | 2011 | S. S. L. Hung |
2 | Examining resiliency in adolescent refugees through the Tree of Life activity | Journal of Youth Development | 2019 | M. D. Stark, B. P. Quinn, K. A. Hennessey, A. A. Rutledge, A. K. Hunter, P. K. Gordillo |
3 | Pipa Corporativa: Uma ferramenta da terapia narrativa aplicada às famílias empresárias | Revista Brasileira de Terapia Familiar | 2019 | E. R. do Val |
4 | Collective narrative practice with young people with Aspergers syndrome who have experienced bullying | IJNTCW | 2016 | C. K. H. Tse |
5 | Narrative therapy: Constructing stories of dignity and resistance with survivors of torture and trauma in Colombia | IJNTCW | 2012 | M. S. Uribe |
6 | Exploring the bicycle metaphor as a vehicle for rich story development: A collective narrative practice project | IJNTCW | 2016 | M. F. Leger |
7 | Evaluating the Tree of Life project: An innovative way of engaging children and young people with type 1 diabetes | Diabetes Care for Children & Young People | 2017 | L. Casdagli, D. Christie, I. Girling, S. Ali, G. Fredman |
8 | My motherland, my heart: A collection of thoughts, feelings and emotions about Afghanistan, gathered from conversations with children of the Afghan diaspora | IJNTCW | 2021 | F. Ahmadi |
9 | Recipes for life: A collective narrative methodology for responding to gender violence | IJNTCW | 2017 | M. Tan |
10 | Passing hope around: Youth messaging strategies for becoming drug-free | IJNTCW | 2012 | W. Whyte |
11 | Presenting the League of Parents and Small People against Pocket Kering: Debuting the skills and knowledges of those who experience financial difficulties | IJNTCW | 2017 | E. S. M. Quek |
12 | Two-way learning as respectful community practice: Honouring, co-creating and facilitating access to the knowledge stories of the men of the Mimosa Creek Healing Centre | IJNTCW | 2016 | T. Holland |
13 | Listening for alternative stories: Narrative practice with vulnerable children and young people in India | IJNTCW | 2015 | L. Carmichael, D. Denborough |
14 | Stories and knowledge of responding to hard times: A narrative approach to collective healing in Hong Kong | IJNTCW | 2020 | J. T. C. Chiu |
15 | Collective narrative practice with unaccompanied refugee minors: “The Tree of Life” as a response to hardship | Clinical Child Psychology and Psychiatry | 2018 | S. F. M. Jacobs |
16 | Definitional ceremonies as rituals of hospitality | IJNTCW | 2016 | S. Strauven |
17 | Finding resiliency, standing tall: Exploring trauma, hardship, and healing with refugees | IJNTCW | 2009 | M. Boucher |
18 | Games, activities and narrative practice: Enabling sparks to emerge in conversations with children and young people who have experienced hard times | IJNTCW | 2020 | S. Nyirinkwaya |
19 | History re-authored: Young men responding to anger, trouble, and hopelessness in urban schools | IJNTCW | 2011 | A. Yuen |
20 | ‘I am more than the violence I survive’: Reflections from the Policing Family Violence Storytelling Project | IJNTCW | 2021 | L. Caulfield |
21 | ‘Leaving a legacy’ and ‘Letting the legacy live’: Using narrative practices while working with children and their families in a child palliative care program | IJNTCW | 2015 | L. Moxley-Haegert |
22 | Multiple family narrative practice: In search of family agency for Chinese families of children with dyslexia through externalising documentation | IJNTCW | 2018 | S. Chan |
23 | Narrative community work in Burundi, Africa: Working with orphaned children and teaching narrative practices to their caregivers | IJNTCW | 2018 | C. Moxley Haegert, M. Rachid, L. Moxley-Haegert |
24 | The narrative docket: Facilitating narrative practices with involuntarily referred adolescents | IJNTCW | 2018 | C. Yee |
25 | University students take action under the gaze of ‘the Eye of Success’: A narrative collective initiative | IJNTCW | 2010 | M. Polanco |
26 | Narrative therapy an evaluated intervention to improve stroke survivors’ social and emotional adaptation | Clinical Rehabilitation | 2015 | E. Chow |
27 | Researching the effectiveness of Tree of Life: An Imbeleko approach to counseling refugee youth | Journal of Child & Adolescent Trauma | 2021 | D. A. Stiles, E. Alaraudanjoki, L. R. Wilkinson, K. L. Ritchie, K. A. Brown |
28 | Sororidade: Fio que entrelaça histórias de resistência coletiva perante a velhice e o corpo feminino | Revista Família Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social | 2018 | L. P. Sanchez, M. R. de Ávila, G. C. Castañeda |
29 | Resonance, rich description and social-historical healing: The use of collective narrative practice in Srebrenica | IJNTCW | 2011 | D. Denborough |
30 | The Tree of Life: A review of the strengths-based narrative approach | Educational Psychology Research and Practice | 2016 | S. Lock |
31 | Narrative ideas for consulting with communities and organizations: Ripples from the gatherings | Family Process | 2009 | J. Freedman, G. Combs |
32 | Quiet or shy when we prefer to be, but always resisting silencing: A project of multi-storied descriptions and directions | IJNTCW | 2018 | T. Holland, T. Nowland, J. Swan, S. Lord, J. Johnson, A. Dudley, J. Langer, M. Dang, C. Beazley, B. St Clair |
33 | Seeing the forest for the trees: Exploring the forest aspect of the Tree of Life process to sustain and nourish socioecological activism | IJNTCW | 2021 | E. Nicholas |
34 | Witnessing practices of resistance, resilience and kinship in childbirth: A collective narrative project | IJNTCW | 2017 | P. Barton |
35 | Special knowledge and stories about dementia | IJNTCW | 2011 | D. Denborough |
36 | Uh oh! I have received an unexpected visitor: The visitor’s name is chronic disease – A Brazilian family therapy approach | Australian and New Zealand Journal of Family Therapy | 2014 | L. H. Abdalla, A. L. Novis |
37 | Dancing our own steps: A queer families’ project | IJNTCW | 2008 | K. Reid |
38 | Travelling down the neuro-pathway: Narrative practice, neuroscience, bodies, emotions and the affective turn | IJNTCW | 2019 | D. Denborough |
39 | The Story Kitchen in Nepal: Igniting and building the courage for justice – A response to Adelite Mukamana’s ‘Ways of living and survival by children born out of rape during genocide’ | IJNTCW | 2021 | J. Luintel |
Nota: IJNTCW = International Journal of Narrative Therapy and Community Work
Na etapa de avaliação, os artigos selecionados foram avaliados de forma quantitativa e qualitativa mediante as seguintes dimensões de análise, conforme demonstra a Tabela 2: (1) fonte das publicações; (2) ano das publicações; (3) autores das publicações; (4) país de origem dos autores; (5) tipo de estudo; (6) uso das práticas narrativas coletivas; (7) características da prática narrativa coletiva; (8) papel do terapeuta narrativo no contexto da prática narrativa coletiva; (9) área predominante de atuação dos autores; (10) visão do problema; (11) visão da mudança; e (12) ativismo do terapeuta narrativo. Essas dimensões de análise foram desenvolvidas com o intuito de levantar respostas à questão que norteou este estudo, bem como promover reflexão sobre como essas intervenções consideraram as motivações para a criação das práticas narrativas coletivas.
Tabela 2 — Dimensões de análise das Práticas Narrativas Coletivas
Características das práticas narrativas coletivas | n |
---|---|
Participantes | n |
pessoas em situações de adoecimento ou dificuldades de desenvolvimento | 5 |
vítimas de violência | 4 |
crianças e jovens em escola regular e universidade | 4 |
crianças e adolescentes em acolhimento institucional | 3 |
refugiados | 2 |
homens na prisão | 2 |
casais do mesmo sexo com filhos | 1 |
famílias de empresários | 1 |
famílias com filhos | 1 |
pessoas lidando com dificuldades financeiras | 1 |
pessoas da comunidade respondendo à política local | 1 |
Objetivos das intervenções * | n |
acolher e dar visibilidade às histórias e sofrimentos dos participantes, abordando-as de forma a não retraumatizá-los | 25 |
criar espaços coletivos a fim de romper o isolamento social e conectar-se com outros que vivenciaram as mesmas situações, estimulando a contribuição coletiva | 23 |
promover reflexões que desafiem os discursos sociais dominantes e que auxiliem na elaboração de novos projetos de vida | 20 |
Técnicas aplicadas * | n |
reautoria | 26 |
documentos coletivos | 25 |
cerimônias de definição | 25 |
testemunhas externas | 16 |
metodologias das práticas narrativas coletivas | 11 |
uso de metáforas | 5 |
timelines, mapas da prática narrativa e declaração de posição | 2 |
cartas terapêuticas | 1 |
mindfulness e meditação | 1 |
Número de encontros | n |
não especificado | 14 |
um a dois dias de encontros | 5 |
quatro a sete dias de encontros | 4 |
doze a vinte encontros | 2 |
Papel do terapeuta * | n |
buscar a dupla narrativa nas histórias de sofrimento dos participantes e @@promover conversas de reautoria | 26 |
ser anfitriões não experts que acolhem os sentimentos dos participantes e estimulam as conversações dialógicas entre si | 26 |
atuar como insider e copesquisador, que desenvolvem a prática narrativa coletiva e vivenciam as experiências dos participantes | 2 |
Área predominante de atuação dos autores * | n |
psicologia | 10 |
serviço social | 8 |
aconselhamento profissional | 2 |
trabalho comunitário | 2 |
profissional narrativo | 1 |
administração | 1 |
medicina | 1 |
área não informada | 1 |
autodenominados genericamente como ativistas, conselheiros, terapeutas, pensadores e escritores | 9 |
Visão do problema | n |
conhecimentos internos subjugados com narrativas saturadas pelos problemas vivenciados | 11 |
identidade negativamente afetada por discursos sociais opressivos | 5 |
vivência de situação de vulnerabilidade social | 5 |
vivência de realocação forçada do país de origem, acometido pela guerra | 2 |
sem descrição sobre a visão do problema | 2 |
Visão da mudança * | n |
desenvolvimento de estratégias para os participantes lidarem com o problema | 25 |
fortalecimento do senso de identidade dos participantes | 14 |
desenvolvimento de senso de solidariedade entre os participantes | 10 |
desconstrução de discursos sociais opressivos e normativos | 8 |
Ativismo social | n |
compartilhamento do conhecimento coletivo produzido pelos participantes | 14 |
promoção de encaminhamento dos participantes atendidos para acessarem atendimentos que garantam direitos fundamentais | 1 |
concessão de entrevistas em mídias sociais que forneçam orientações e informações à comunidade | 1 |
sem indicação de atuação, além da intervenção imediata | 9 |
Nota: * O total do n de cada dimensão pode ser maior que a quantidade de artigos ou intervenções, pois cada um destes pode se encaixar em mais de uma categoria.
Resultados e discussão
Características gerais das publicações
A análise das seis primeiras dimensões permitiu levantar as características gerais das publicações sobre as práticas narrativas coletivas e possibilitou mapear como os estudos acerca do tema estão sendo desenvolvidos e difundidos. Em relação à “fonte das publicações”, os 39 artigos analisados foram veiculados em nove periódicos, com 32 artigos provenientes do International Journal of Narrative Therapy and Community Work (IJNTCW). Os sete artigos restantes foram veiculados em sete periódicos diferentes, das áreas de psicologia, terapia familiar, área social, psiquiatria, pediatria e clínica geral. Considerando que a maioria dos artigos provêm do mesmo periódico (IJNTCW), dedicado à disseminação de produções sobre terapia narrativa e comunitária1, observa-se que a prática narrativa coletiva parece ser privilegiada por tal comunidade, mas é pouco disseminada em outras áreas de conhecimento.
As publicações sobre o tema se iniciaram no ano de 2008, com um aumento em 2011 (5) e oscilaram até o ano de 2021, com o maior registro de artigos no ano de 2018 (7). Nos demais anos, há um artigo em 2009, um em 2010, três em 2012, três em 2015, quatro em 2016, quatro em 2017, três em 2019, dois em 2020 e cinco em 2021. Não foram registradas publicações nos anos de 2013 e 2014. O ano de início das publicações, em 2008, coincide com o lançamento do livro Práticas Narrativas Coletivas: Trabalhando com indivíduos, grupos e traumas (Denborough, 2008), que é considerado o pioneiro na elaboração de tais práticas. Nota-se que o número de publicações anual não é expressivo, o que indica haver pouca produção e divulgação sobre o assunto.
Entre os autores das publicações são identificados 64 autores. David Denborough é o que tem mais publicações, com um total de cinco; Troy Holland e Linda Moxley-Haegert têm duas publicações cada; e os demais assinam um único estudo cada. Além da autoria de cinco trabalhos, David Denborough aparece como referência nas demais publicações, sendo o principal autor da área.
Em relação ao país de origem dos autores, os resultados demonstram que o país com o maior número de autores é a Austrália (22), seguido pelos Estados Unidos da América (13), Canadá (6), Inglaterra (5), China (4), Cingapura, Brasil e México (3 cada), e Colômbia, Bélgica, Nepal, Holanda e Rwanda (1 cada). Tal achado demonstra que, apesar de as práticas narrativas coletivas terem sido difundidas em muitos países, há predomínio de publicações na Austrália, o que pode ser justificado por ser onde se situa o Dulwich Centre, responsável pela publicação do periódico International Journal of Narrative Therapy and Community Work e onde atua o autor pioneiro das práticas narrativas coletivas.
Quanto ao tipo de estudo, os resultados apontaram 37 estudos qualitativos, envolvendo 30 relatos de experiência ou documentos coletivos, 7 estudos teóricos e 2 estudos quanti-qualitativos. Os relatos ou documentos coletivos consistem num recurso de intervenção da prática narrativa coletiva por meio do qual o terapeuta coleta as histórias de competências dos participantes e redige um documento que, ao ser lido em cerimônia coletiva, fortalece o senso de comunidade e a capacidade de resistência, e pode ainda contribuir para outras pessoas em situações semelhantes. A forma do texto, apesar de descrever a experiência de trabalho e os conhecimentos produzidos junto com a comunidade, segue critérios de diversidade, inclusão e apreciação que não se pautam pelas normas da redação científica. Ressalta-se que a maioria dos estudos estão publicados no International Journal of Narrative Therapy and Community Work. Considerando os princípios de publicação dessa revista2, nota-se que a adoção de uma metodologia tradicional de redação científica não configura um pré-requisito para aprovação dos artigos submetidos, o que é coerente com a perspectiva epistemológica e metodológica das práticas narrativas e do movimento pós-moderno, o qual levanta a importância dos conhecimentos subalternos e existência de discursos plurais em oposição a narrativas únicas, constituindo uma crítica a uma visão cientificista e objetivista da ciência tradicional.
Em relação ao uso das práticas narrativas coletivas, observa-se que 25 artigos se referem à intervenção de cuidado psicossocial, 12 à prática de pesquisa e dois à prática de capacitação de profissionais. Considerando a questão norteadora deste estudo, as publicações que apresentaram as práticas narrativas coletivas como intervenção de cuidado psicossocial (25) foram analisadas a fim de descrever suas principais características. A análise dos 25 artigos a partir das seis dimensões finais permitiu compreender a forma pela qual têm sido desenvolvidas as práticas narrativas coletivas como intervenção de cuidado psicossocial em diferentes contextos.
Características das práticas narrativas coletivas
A dimensão características da prática narrativa coletiva contempla a análise de quatro aspectos: participantes, objetivos das intervenções, técnicas aplicadas e número de encontros. A partir desses aspectos, foi possível explorar quais as características básicas do desenvolvimento das práticas narrativas coletivas ao serem utilizadas como intervenção de cuidado psicossocial.
Em relação aos participantes, os achados apontaram pessoas em situações de adoecimento ou dificuldades de desenvolvimento, como cuidados paliativos, asperger, dislexia, dependência química, timidez (5); vítimas de violência (4); crianças e jovens em escola regular e universidade (4); crianças e adolescentes em acolhimento institucional (3); refugiados (2); homens na prisão (2); casais do mesmo sexo com filhos (1); famílias de empresários (1); famílias com filhos (1); pessoas lidando com dificuldades financeiras (1); e pessoas da comunidade respondendo à política local (1). Nota-se que o público-alvo majoritário das intervenções são pessoas em situações de adoecimento ou que têm dificuldades de desenvolvimento. Tais resultados demonstram que as práticas narrativas coletivas são utilizadas com participantes diversos, diferentes faixas etárias e em diferentes contextos.
Em relação aos objetivos das intervenções, buscou-se analisar de que forma os autores almejaram mudar o problema identificado. Nota-se que as intervenções se baseiam em mais de um objetivo. As categorias identificadas foram: (a) acolher e dar visibilidade às histórias e sofrimentos dos participantes, abordando-as de forma a não retraumatizá-los (25 artigos); (b) criar espaços coletivos a fim de romper o isolamento social e conectar com outros que vivenciaram as mesmas situações, estimulando a contribuição coletiva (23); e (c) promover reflexões que desafiem os discursos sociais dominantes e que auxiliem na elaboração de novos projetos de vida (20). Nota-se que os objetivos das intervenções buscam desempenhar um trabalho coerente com o que é postulado pela terapia narrativa.
Em relação às técnicas aplicadas, notou-se a prevalência da utilização de mais de uma técnica no desenvolvimento das práticas narrativas coletivas, tais como: reautoria (26 artigos); documentos coletivos (25); cerimônia de definição (25); testemunhas externas (16); metodologias das práticas narrativas coletivas – tais como a “Árvore da Vida” (3), “Pipa Corporativa” (1), “Bicicleta da Vida” (1), “Súmula Narrativa” (1), “Time da Vida” (1), “Trem da Vida” (1), “Receitas da Vida” (1), “Casa da Vida” (1) e “Smartphone da Vida” (1) – (11); uso de metáforas (5); timelines, mapas da prática narrativa e declaração de posição (2); cartas terapêuticas (1); e mindfulness e meditação (1). Tais resultados denotam, de forma geral, uma riqueza de recursos e combinação de metodologias da terapia narrativa com as das práticas narrativas coletivas.
Sobre o número de encontros, observou-se que 14 artigos não especificam a quantidade necessária para o desenvolvimento da prática narrativa coletiva, e os demais indicam prazos distintos, tais como um a dois dias (5), quatro a sete dias (4) e doze a vinte encontros (2). Tais resultados demonstram que, para muitos autores, o número de encontros não é um aspecto significativo na descrição da prática realizada. Além disso, eles sugerem que práticas narrativas coletivas podem ser aplicadas tanto como intervenção breve quanto por período mais longo; porém, as intervenções mais comumente abrangem um período de um a sete dias de encontro. Nota-se que na literatura não há delimitação de um período específico para aplicação dessas práticas.
Papel do terapeuta narrativo no contexto da prática narrativa coletiva
Nessa dimensão, nota-se que os autores propunham mais de uma descrição sobre seu papel no contexto da prática narrativa coletiva. Tais descrições podem ser categorizadas em: (a) aplicar a dupla escuta, ao buscar a dupla narrativa nas histórias de sofrimento dos participantes, e promover conversas de reautoria, separando as pessoas das narrativas saturadas de problemas (26); (b) ser anfitriões não experts que acolhem os sentimentos dos participantes e estimulam as conversações dialógicas entre si, situando-os como experts da sua vida (26); (c) atuar como insider e copesquisador, que desenvolvem a prática narrativa coletiva e igualmente vivenciam os mesmos sentimentos e experiências dos participantes, sendo tanto construtores quanto diretamente influenciados pelas reflexões produzidas no contexto coletivo (2). Desse modo, é possível notar profissionais comprometidos com a promoção de uma prática humanizada e pós-moderna, sensíveis ao acolhimento e valorização dos conhecimentos trazidos pelos participantes, e que utilizam uma abordagem respeitosa, não julgadora e não estigmatizante.
Área predominante de atuação dos autores
Em relação a essa dimensão, buscou-se analisar qual a área predominante de atuação dos autores. Os resultados apontam que dez são da psicologia, oito do serviço social, dois são conselheiros profissionais, dois são trabalhadores comunitários, um é profissional narrativo, um administrador, um atua na medicina, um autor não informa sua área de atuação e, num único artigo, 9 autores denominam-se genericamente como ativistas, conselheiros, terapeutas, pensadores e escritores. Nota-se que, destes 35 autores, dois assistentes sociais (Chiu, 2020; Rachid, 2018, citado em Moxley Haegert et al., 2018) também se identificam como membros da comunidade nas quais desenvolveram as práticas narrativas coletivas. Nesse sentido, nota-se que as práticas narrativas coletivas são utilizadas de forma majoritária por profissionais do cuidado psicossocial.
Visão do problema
Nessa dimensão, buscou-se explorar qual é a visão do terapeuta narrativo sobre o problema trazido pelos participantes. Nesse sentido, foi possível categorizar tal análise em: (a) conhecimentos internos subjugados com narrativas saturadas pelos problemas vivenciados, como asperger, crianças em escola regular, jovens em universidade, cuidados paliativos, dislexia, timidez, dependência química, casais com filhos, jovens na prisão (11 artigos); (b) identidade negativamente afetada por discursos sociais opressivos e estigmatizantes, como pessoas que vivenciaram violência, e casal do mesmo sexo com filhos (5); (c) vivência de situação de vulnerabilidade social, como crianças e adolescentes em acolhimento institucional, pessoas de uma comunidade influenciadas por política local; pessoas de uma comunidade com dificuldades financeiras (5); (d) vivência de realocação forçada do país de origem, acometido pela guerra, para país ocidental, como refugiados (2). Ressalta-se que em dois artigos os profissionais não são claros quanto à descrição dos problemas que mobilizaram a prática da narrativa coletiva. A partir desses resultados, nota-se que os autores apontam que o contexto social influencia diretamente no sofrimento e nas dificuldades sofridos pelo indivíduo e indicam que as narrativas pessoais dos participantes são subjugadas por discursos dominantes e práticas normalizantes da comunidade, o que restringe e prejudica os esforços dos indivíduos para liderarem seus próprios projetos de vida.
Visão da mudança
Nessa dimensão, buscou-se explorar qual mudança o terapeuta narrativo promoveu por meio da prática coletiva. Em relação aos resultados da análise, nota-se que os estudos explanam que as intervenções efetuaram mais de um tipo de mudança. Tais mudanças puderam ser categorizadas em: (a) desenvolvimento de estratégias para participantes lidarem com o problema, a partir do reconhecimento de suas habilidades e conhecimento interno (25 artigos); (b) fortalecimento do senso de identidade dos participantes, desenvolvendo narrativas alternativas sobre si mesmos (14); (c) desenvolvimento de senso de solidariedade entre os participantes (10); e (d) desconstrução de discursos sociais opressivos e normativos, a partir das reflexões produzidas pelos participantes (8). Tais achados indicam que as mudanças obtidas pelas práticas narrativas coletivas coincidem com aquelas postuladas pela terapia narrativa, demonstrando-se uma ferramenta efetiva para ofertar cuidado psicossocial, apesar de as mudanças serem majoritariamente observadas a nível individual dos participantes.
Ativismo do terapeuta narrativo
Essa dimensão buscou analisar se há indícios de ativismo do terapeuta narrativo e dos participantes para além do contexto imediato da prática narrativa coletiva, e de que forma são realizados. Nesse sentido, nota-se que em 16 artigos os autores relatam ações para além do contexto da prática narrativa coletiva e 9 artigos não levantam indícios de práticas para além da intervenção imediata. Ao analisar os 16 artigos, observam-se: (a) o compartilhamento do conhecimento coletivo produzido pelos participantes (canções, cartas, panfletos informativos, textos e poemas, mapas geográficos explorando lugares de convivência comunitários, exibições de arte e exposições de conhecimentos coletivos em festa elaborada pelos participantes) no sentido de fortalecer e compartilhar seus conhecimentos internos, abrindo um canal de comunicação entre os participantes e a comunidade (14); (b) promoção de encaminhamento dos participantes atendidos para acessarem atendimentos que garantem direitos fundamentais (1); e (c) concessão de entrevistas em mídias sociais para fornecer orientações e informações à comunidade (1).
Tais resultados indicam que o ativismo do terapeuta narrativo fora do contexto imediato da prática narrativa coletiva visa majoritariamente à promoção de movimentos a nível cultural, pois promovem alguma interlocução dos participantes com a comunidade ou com pessoas que enfrentam situações similares, procurando auxiliar o outro. Apenas um estudo promoveu um movimento sociopolítico, no sentido de realizar uma interlocução com o Estado ou com a comunidade, a fim de garantir o acesso dos participantes aos seus direitos fundamentais.
Discussão geral
Considerando as características da prática narrativa coletiva, o papel do terapeuta narrativo, a área de atuação dos autores, a visão do problema e o ativismo do terapeuta narrativo identificados na análise, é possível observar um distanciamento quanto às motivações das práticas narrativas coletivas, tal como desenvolvidas por seu proponente (Denborough, 2012). A Tabela 3 enumera os poucos estudos que explicitamente sustentam motivações, contextos e atuação semelhantes às propostas pelos criadores de tais práticas. Tal distanciamento pode ser observado, inicialmente, no que diz respeito ao contexto e ao público-alvo, considerando que as práticas narrativas coletivas estão sendo utilizadas majoritariamente em contextos institucionais de cuidado em saúde mental, e não em locais onde o aconselhamento individual não é possível ou culturalmente apropriado, ou onde os recursos são escassos (Denborough, 2012).
Tabela 3 — Identificação das motivações das Práticas Narrativas Coletivas nos estudos analisados
Nota: * Conforme Denborough, 2012.
Além disso, percebe-se que o público-alvo das intervenções é constituído majoritariamente por participantes em situação de adoecimento pessoal (ou com dificuldades de desenvolvimento), e não por indivíduos, grupos e comunidades que experimentaram significativo sofrimento social coletivo (Denborough, 2008, 2012). Igualmente, tal distanciamento é observado em relação aos seus praticantes, notando-se o uso profissionalizado das práticas narrativas coletivas, no sentido de que há o predomínio do uso das práticas narrativas coletivas por profissionais do cuidado psicossocial em detrimento da utilização “por profissionais e por pessoas da comunidade” (Denborough, 2008).
Ainda, as práticas narrativas coletivas preveem o caráter sociopolítico da atuação do terapeuta, no sentido que foram desenvolvidas a fim de contribuir para o movimento social e minimizar as possibilidades de participação na colonização psicológica (Denborough, 2008, 2012). A colonização psicológica opera pela reprodução de saberes psicológicos, supostamente universais e a-históricos, em detrimento dos conhecimentos locais, culturalmente sensíveis. Nas práticas narrativas coletivas, a busca por minimizar tal colonização psicológica se dá pela valorização do conhecimento dos participantes e pelo questionamento da postura de expert do terapeuta, estimulando a construção coletiva de novas formas de narrar a experiência e transformar a realidade social (Denborough, 2008, 2012; White, 2007). Os resultados deste estudo apresentam uma divergência entre visão do problema e visão de mudança, devido a postularem visões do problema como social, ao passo que as propostas de mudança são atingidas a nível individual, sem que se note uma atuação voltada ao enfrentamento coletivo, no contexto social. Nesse sentido, ainda, percebe-se que os objetivos de intervenção e papéis elencados pelos profissionais se baseiam nos princípios da terapia narrativa, que preveem a descentralização e externalização dos problemas, a fim de possibilitar aos clientes que reescrevam sua própria história (Morgan, 2007; White, 2007). Contudo, não apresentam efetivamente intervenções que busquem engajamento ou contemplem o ativismo social.
Observa-se que a maior contribuição do ativismo sociopolítico do terapeuta (Monk & Gehart, 2003) ocorre em relação ao combate à colonização psicológica no contexto das práticas narrativas coletivas, ao valorizar o conhecimento interno dos participantes e minimizar a postura de expert do terapeuta (White, 2007), conforme a Tabela 3. Considerando o exposto por D’Arrigo-Patrick et al. (2017, p. 580), que entende o ativismo terapêutico como “a busca intencional de atender e romper contextos e processos sociopolíticos opressores”, nota-se que apenas um projeto (Caulfield, 2021) faz uma tentativa de promover a interlocução com o Estado ou a comunidade, a fim de garantir o acesso dos participantes aos seus direitos fundamentais.
A partir disso, nota-se que, apesar de os profissionais nomearem suas intervenções como práticas narrativas coletivas, muitas vezes elas são semelhantes à terapia narrativa em grupo. Tal reflexão considera que a terapia narrativa em grupo é, segundo Menard et al. (2018), desenvolvida a fim de apoiar o cliente como especialista em sua própria vida, abordando questões multiculturais, demonstrando ser eficaz para atender pacientes com dificuldades em relação à saúde mental (entre outros), acolhendo os sentimentos de isolamento dos indivíduos e promovendo a exteriorização de problemas, na busca pelo empoderamento identitário. Tais resultados podem ser alcançados igualmente pelas práticas narrativas coletivas; porém, percebe-se que essas práticas se diferenciam da terapia narrativa em grupo ao considerar o caráter comunitário, que, conforme exposto por Denborough (2012), prevê o desenvolvimento de recursos para responder a um sofrimento social coletivo e contribuir para o movimento social em locais que o atendimento não é possível ou culturalmente apropriado e com recursos escassos, elaborando abordagens narrativas que possam ser postas em prática por pessoas da própria comunidade.
Portanto, os resultados desta revisão da literatura podem ser interpretados por dois vieses, nos quais é possível perceber ganhos e perdas: por um lado, demonstram a versatilidade da aplicação das práticas narrativas coletivas, que podem ser aplicadas por diferentes profissionais, em diferentes participantes e contextos, promovendo benefícios aos profissionais de instituições, os quais ganham recursos ou técnicas para desenvolver trabalhos efetivos; por outro lado, nota-se um distanciamento dos princípios e fundamentos das práticas narrativas coletivas, o que acarreta perdas no desenvolvimento de trabalhos de empoderamento e fortalecimento comunitário.
Nesse sentido, percebe-se que as práticas narrativas coletivas são oportunidades para o desenvolvimento do ativismo social, mas que não têm sido ativamente aproveitadas pelos terapeutas, no sentido de que é possível perceber nas intervenções a apropriação das técnicas e sua utilização em grupo, mas não há necessariamente o desenvolvimento de intervenções comprometidas com o caráter comunitário. Portanto, este estudo convida os terapeutas narrativos a explorar a oportunidade de desenvolver o ativismo sociopolítico ao trabalhar com as práticas narrativas coletivas, resgatando o caráter comunitário dessas práticas.
Considerações finais
Esta revisão da literatura propôs uma análise sobre como os profissionais estão desenvolvendo as práticas narrativas coletivas, abordando características gerais das publicações e características específicas das intervenções relatadas. Em relação às características das publicações, observa-se que: a maioria dos artigos foi publicada no International Journal of Narrative Therapy and Community Work; eles se iniciaram em 2008, sendo ainda reduzida a produção e a divulgação sobre o assunto; as práticas narrativas coletivas foram difundidas em muitos países, mas há um predomínio de práticas na Austrália; as publicações compreendem, tipicamente, relatos de experiência e documentos coletivos, e assim servem como ilustração das práticas narrativas coletivas em diferentes contextos.
Em relação às características das práticas narrativas coletivas analisadas, observa-se que o público-alvo majoritário são pessoas em situações de adoecimento ou que têm dificuldades de desenvolvimento atendidas num contexto institucional; os objetivos e o papel do profissional são fortemente influenciados por princípios da terapia narrativa e as intervenções se desenvolvem num período de um a sete dias de encontro. Ainda, ressalta-se que há uma riqueza de recursos e combinação de metodologias da terapia narrativa com as das práticas narrativas coletivas e seus autores são, de maneira geral, profissionais do cuidado psicossocial. A revisão dos estudos também sugere que a visão de problema expõe a influência do contexto social no sofrimento do indivíduo; a visão da mudança focaliza-se principalmente nos participantes; o ativismo do terapeuta, para além do contexto de atendimento, se dá majoritariamente por intervenções culturais; o combate à colonização psicológica se dá pela valorização do conhecimento interno dos participantes e pela minimização do papel de expert do terapeuta narrativo.
Ressalta-se que este estudo contribui para a literatura científica por disseminar conhecimentos sobre as práticas narrativas coletivas, promovendo um panorama de como estão sendo desenvolvidas como intervenção de cuidado psicossocial. Esta revisão também propõe uma reflexão crítica, fomentando discussões quanto ao ativismo sociopolítico dos terapeutas narrativos nos contextos em que atuam.
Apesar da relevância e das implicações deste estudo, ressalta-se que ele se limitou a analisar artigos científicos, não contemplando resumos de congressos e eventos, os quais potencialmente permitem que mais pessoas narrem suas experiências com as práticas narrativas coletivas, especialmente aquelas que não são profissionais de saúde mental. Nesse sentido, nota-se, ainda, que os pressupostos de uma revisão da literatura podem não coincidir com o pensamento pós-moderno, baseado em múltiplas formas de produzir conhecimento. Assim, é importante reconhecer os limites de um olhar moderno e científico, promovido por uma revisão da literatura, sobre as práticas narrativas coletivas. Por fim, os resultados do estudo apontam como necessidade de pesquisa futura a realização de entrevistas com pessoas que se utilizam das práticas narrativas coletivas, a fim de abordar sua compreensão sobre suas práticas, motivações e justificativas teórico técnicas.