“… o sentido da gordura pode revelar o da cultura de uma época” (Vigarello, 2012, p. 172).
Introdução
A prevalência da obesidade no Brasil tem aumentado aceleradamente. Uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020) revela que, em 2019, ela chegou a mais do que o dobro de 2003, com incidência maior entre mulheres (30,2%) do que entre homens (22,8%). Ainda segundo esse estudo, em 2019, uma em cada quatro pessoas apresentava obesidade, e 60,3% da população estava com excesso de peso (IBGE, 2020). Destaca-se, ainda, que esse índice parece ter sido amplificado no período da pandemia de Covid-19 (Costa et al., 2021).
A obesidade, definida como excesso de gordura corporal que provoca prejuízos à saúde, é considerada um problema de saúde pública (WHO, 2000). Assim, ela é entendida como uma doença, que tem um parâmetro numérico e mensurável: o índice de massa corporal. Mas a compreensão da gordura corporal nem sempre se deu segundo esse parâmetro. Foi apenas no século XIX que as classificações sobre os tipos de gordo/a se difundiram e que o cálculo e o uso da balança se impuseram, bem como a noção biomédica de obesidade.
Segundo Vigarello (2012), até o século XVII a gordura não era depreciada, e era inclusive distintivo de classe social na Europa. Em sociedades em que o alimento era escasso, era exclusividade de pessoas de classes abastadas. O máximo de repreensão que uma pessoa gorda poderia sofrer seria por razões morais-religiosas, pois a gula e a avidez eram consideradas pecado (Quellier, 2011). Com o Iluminismo, nos séculos XVII-XVIII, começaram a surgir transformações. O acúmulo de gordura passou a ser visto como sinal de descuido, e a pessoa gorda como impotente, estéril, marcada por uma carência vital e por um corpo ineficiente. Ou seja, ser gorda/o passou cada vez mais a ser algo anômalo. Não só isso, mas assistiu-se a um crescente individualismo e ao surgimento e difusão de um psicologismo, no qual se identificava cada vez mais a pessoa com seu corpo. Desse modo, a pessoa gorda não apenas teria um corpo ineficiente, mas seria ela mesma defeituosa, problemática e impotente: faltar-lhe-ia dinamismo, capacidade, controle de si. De um julgamento moral da/o gorda/o, passou-se a um julgamento psicológico (Vigarello, 2012).
A psicologização da sociedade andou de mãos dadas com o avanço da industrialização e do capitalismo, assim como a fabricação do sofrimento pela gordura, agora considerada pelo olhar biomédico como obesidade. Participou também desse processo a afirmação de determinados ideais estéticos até então inexistentes quando se falava de gordura. A/o gorda/o passou a ser considerado como feia/o, e não como pecador/a, como ocorria na Idade Média. Esse processo não foi linear nem homogêneo nas diferentes camadas sociais. Na cultura popular, a nutrição abundante ainda se impunha como sinal de saúde e de boa vida (Sant’Anna, 2016; Vigarello, 2012).
Outro aspecto importante é que os ideais e cobranças cada vez mais impostos em relação à gordura não foram os mesmos para homens e mulheres, ainda que a esbeltez tenha se disseminado como valor (Vigarello, 2012). A demarcação era mais ambígua para os homens e lhes concedia maior permissividade. Assim, para eles, ter uma “pança” poderia, sobretudo quando de classes privilegiadas, continuar sendo um distintivo de imponência. Para as mulheres, a prescrição foi crescentemente a da magreza, com uso cada vez mais difundido de vestidos justos e de espartilhos. Estes vão sendo paulatinamente abandonados, dando lugar às dietas restritas e ao “espartilho mental”. Elas aprendem que valem por seus corpos e que, para serem escolhidas como esposas e mães, precisam cuidar de suas medidas (Del Priore, 2011; Quellier, 2011; Vigarello, 2012).
Como aponta Dimen (1997), trata-se não só do adestramento do comportamento, mas de uma aprendizagem afetiva, na qual se ensinou às mulheres a não se excederem em seus prazeres (gozar de seu corpo), mas a objetificar seus corpos tendo como centro os homens. Estes, por seu turno, podem ser, com certo grau de tolerância, desmedidos em seus prazeres. De comer, mas não apenas. Na vida sexual também se consolidou a dupla moral: a monogamia para as mulheres e a poligamia consentida (ainda que escondida) para os homens (Del Priore, 2011; Lagarde, 2011; Zanello, 2018).
No Brasil, esse processo ocorreu sobretudo desde o final do século XIX até meados do século XX. Aqui, como grande parte da população era famélica, ser gordo também era um distintivo de riqueza. Quem primeiro comprou esse ideal de combate à gordura foram as classes mais abastadas, estabelecendo, sobretudo a partir de 1980, uma correlação negativa entre classe social e peso. Foram as classes populares que mais engordaram, em função do consumo cada vez maior de produtos industrializados e de alto teor calórico (Sant’Anna, 2016).
A gordura, que até então era vista como decorrente de uma vida boa (de rico), passa a ser condenada como mau funcionamento do corpo e má alimentação, quando a classe majoritariamente gorda é pobre (Oraka et al., 2020). Não só isso: espalhou-se, cada vez mais, a ideia psicologizante de que a pessoa gorda teria problemas psicológicos, imaturidade emocional, carência e descontrole (Sant’Anna, 2016). Isto é, construiu-se uma imagem negativa do gordo e, mais ainda, da gorda. O número de dietas, conselhos e produtos só aumentaram desde então. Dentre os vários procedimentos ofertados, surge a cirurgia bariátrica, descrita pela primeira vez em 1954 (Nascimento et al., 2012). No Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), esse tipo de cirurgia teve início na década de 1970, e somos, atualmente, o segundo país que mais realiza essa intervenção, atrás somente dos Estados Unidos da América (SBCBM, s.d.).
Vários movimentos se insurgiram contra essa construção histórica da ideia de obesidade como uma percepção interpretativa negativa de pessoas gordas, como pessoas doentes, com um corpo adoecido. Esse movimento tem se fortalecido cada vez mais em nosso país, inclusive na produção acadêmica, por meio de outros olhares (Gard & Wright, 2005; Jimenez, 2022; Paim & Kovaleski, 2020; Rangel, 2018; Santolim & Rigo, 2015; Seixas & Birman, 2012). A partir dessa crítica é que optamos pelo uso do termo “gordidade”, para apontar, sem a captura do discurso biomédico, as vivências de pessoas gordas numa sociedade gordofóbica. “Gordidade” quer dizer a vivência de um corpo considerado gordo – por si mesmo, pelos outros ou por ambos –, independentemente das classificações biomédicas desse corpo, como seria o caso do termo “obesidade”, que aponta para o entendimento de um corpo adoecido. Além disso, é fundamental que se busque captar se há e quais seriam as diferenças da vivência da gordidade para homens e mulheres. Para tanto, há que se pensar nos processos de subjetivação vigentes, que, em nossa sociedade organizada sobre o binarismo de gênero, num patriarcado capitalista, se dão de modo diferenciado para homens e mulheres (Zanello, 2018).
Os processos de subjetivação dos homens em nossa cultura são configurados, de acordo com Zanello (2018), pelo dispositivo da eficácia, que tem como pilares fundamentais a virilidade laborativa e a virilidade sexual. Segundo a autora, a virilidade laborativa se refere à centralidade que as esferas do trabalho, do dinheiro e do poder de consumo têm para os homens, a partir das quais eles terão sua honra, mérito e dignidade julgados e avaliados. Já a virilidade sexual diz respeito a uma dupla prescrição social feita aos homens: a de que sejam ativos e apresentem excelência na performance sexual, demonstrando-a e exibindo-a; e a de que não sejam passivos, não sejam penetrados e não tenham prazer sexual anal.
Já o processo de tornar-se mulher é marcado, no Brasil contemporâneo, por dois dispositivos principais: o dispositivo materno e o dispositivo amoroso (Zanello, 2018). O dispositivo materno é fruto do processo histórico e cultural que promoveu uma indiferenciação entre a capacidade de procriar e a capacidade de cuidar, produzindo, consequentemente, uma naturalização do cuidado como algo exclusivamente feminino. Nessa perspectiva, o dispositivo materno se refere às dinâmicas de subjetivação em que as mulheres são intimadas a priorizar os outros em detrimento de si mesmas e a se (auto)responsabilizar por todas as formas de cuidado, não apenas dos filhos.
Já o dispositivo amoroso articula-se com o processo histórico em que o amor foi configurado como dimensão central e vital para as mulheres. Ter o dispositivo amoroso enquanto caminho privilegiado de subjetivação significa que os processos de constituição e desenvolvimento subjetivos e identitários das mulheres são mediados pelo olhar avaliativo e pela escolha amorosa dos homens. Ou seja, ser escolhida amorosamente por um homem tem forte peso identitário e legitimador para as mulheres, do qual depende sua capacidade de (auto)validação e (auto)reconhecimento. Essa dinâmica é figurada por Zanello (2018) a partir da metáfora da “prateleira do amor”, lócus privilegiado de subjetivação para as mulheres, na qual elas são expostas, julgadas e avaliadas, para serem escolhidas (ou preteridas) pelos homens.
É importante ressaltar que essa prateleira é construída histórica e culturalmente a partir de um ideal estético opressor e excludente – branco, loiro, magro e jovem (Del Priore, 2000; Novaes, 2006) – e que ela tem alto poder de vulnerabilização subjetiva para todas as mulheres, mesmo para aquelas que estão mais próximas do ideal dominante. Diante dos processos naturais de envelhecimento e mudanças corporais, essas posições supostamente privilegiadas, que aumentam as chances de uma mulher ser escolhida por um homem, são altamente frágeis e fugazes, e põem todas as mulheres na constante iminência do rebaixamento e preterimento (Zanello, 2018). Destaca-se, assim, que a prateleira é permeada por desigualdades constituídas pelo racismo, gordofobia, capacitismo e etarismo. Portanto, para as mulheres gordas (assim como para as mulheres negras ou indígenas, velhas ou com deficiência), a lógica da prateleira/dispositivo amoroso se apresenta de modo muito mais nefasto, perverso e vulnerabilizante (Zanello et al., 2022).
Esses processos de subjetivação diferenciados para homens e mulheres devem ser compreendidos não apenas pela chave do gênero, mas por uma perspectiva que articule as diferentes estruturas de opressão, subjugação, discriminação e exclusão em nossa sociedade. Nesse sentido, destaca-se o conceito de interseccionalidade, que, como apontado por Crenshaw (2002) e Akotirene (2019), consiste numa matriz de opressões intersectadas, definidas pelas estruturas de raça, gênero e classe, que, interligadas, modelam experiências e subjetividades e atravessam corpos – muitas vezes violentamente –, significando-os e posicionando-os socialmente.
Em nossa sociedade gordofóbica, é essencial que a gordidade seja observada em suas declinações masculina e feminina, ou seja, em seu caráter gendrado, e que sejam examinados os impactos psíquicos e subjetivos dessa vivência. Dessa forma, o objetivo do presente estudo consiste em analisar se e como a experiência da gordidade interpela, de modo diferenciado, os aspectos subjetivos, psicodinâmicos e comportamentais de homens e mulheres, em suas interseccionalidades, impactando distintamente seu bem-estar psicológico e emocional. O momento de busca pela cirurgia bariátrica apresenta-se como um momento oportuno para a coleta de dados, visto que se constitui como uma espécie de “fenda” de análise, na qual muitos dos sentidos subjetivos relacionados às vivências da gordidade encontram-se intensificados.
Método
Foram realizadas entrevistas aprofundadas em uma clínica de cirurgia bariátrica de uma capital brasileira, na qual uma das autoras trabalhava como psicóloga. A clínica foi escolhida por ser uma das referências em cirurgia bariátrica na cidade. O atendimento ocorria por demanda particular, de convênio, bem como pelo SUS. Os convites para participar da pesquisa foram feitos na sala de espera para a consulta com o médico especialista. Foram feitas, entre junho e outubro de 2016, 15 entrevistas, com cerca de uma hora e meia de duração. Todas as entrevistas foram conduzidas pela primeira autora (que não trabalhava na clínica) e as pessoas entrevistadas foram escolhidas de acordo com sua presença e disponibilidade nos dias em que a pesquisadora estava na clínica (uma vez por semana). Ainda que o convite tenha sido aleatório (a depender de quem estivesse presente e disponível no mesmo dia que a pesquisadora), buscou-se contemplar uma amostra de homens e mulheres com diversidade de autoidentificação racial, de identidade de gênero e de orientação sexual.
O tamanho da amostra não seguiu um critério quantitativo, mas qualitativo. Desse modo, não foi definido a priori um número de pessoas entrevistadas. Como salientado por Minayo (2017), o estabelecimento epistemológico de um ponto de corte da amostra em pesquisas qualitativas é bastante complexo, uma vez que novas perguntas e diferentes linhas de aprofundamento podem ser inesgotáveis. Dessa forma, esta pesquisa seguiu uma perspectiva de saturação não como o momento em que a coleta de novos dados deixaria de trazer relevância e esclarecimentos sobre a questão, mas como o momento viável em que os dados proporcionaram reincidência, aprofundamento, complementariedade e riqueza para a questão investigada, permitindo a identificação de uma lógica interna e o estabelecimento de conexões e interconexões (Minayo, 2017).
Nesse sentido, o ponto de pausa ficou estabelecido em 15 entrevistas, quando se atingiu a saturação, na perspectiva descrita acima, para alguns grupos de entrevistados, a saber: mulheres e homens cis e heterossexuais. Contudo, cumpre ressaltar que essa saturação não foi atingida em relação a outros grupos, tais como homens e mulheres homossexuais e bissexuais. Isso ocorreu em função do limite do período disponível para a realização das entrevistas, bem como pelo surgimento mais raro de pessoas destes grupos na clínica, nos dias em que a pesquisadora-entrevistadora estava presente. Em nenhuma das visitas à clínica houve a presença de pessoas trans e/ou não binárias, motivo pelo qual esses grupos não foram contemplados na pesquisa. A classe social das pessoas entrevistadas variou entre classe média baixa e classe média alta.
Antes da realização de cada entrevista, foi feita uma breve explanação sobre a pesquisa em curso e as/os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília (CAAE 48077615.3.0000.5540, parecer 1.305.397).
As entrevistas foram abertas e começaram com a questão disparadora “Conte-me sua vida”. A opção por uma pergunta aberta foi justamente para não fechar, de início, o foco sobre uma ideia de obesidade, motivo pelo qual a pessoa buscava a clínica de cirurgia bariátrica. Isto é, visamos conhecer a história de vida da pessoa e, dentre os vários aspectos, suas vivências corporais e como se relacionavam com outras dimensões de sua vida, tais como relações (familiares, amorosas, amizades), estudo, trabalho e outras.
Foram feitas algumas intervenções durante o relato, para estimular a/o participante a aprofundar-se nas questões sobre as vivências do corpo e das relações sociais, familiares e íntimas envolvidas. Ao final, caso não tivessem sido abordados os temas, foram feitas três perguntas: (1) “Quando pensou/decidiu fazer cirurgia bariátrica?”; (2) “De que partes mais gosta do seu corpo? E de quais menos gosta?”; e (3) “Como se imagina mais magra/o e o que acha que vai ou não mudar em sua vida?”.
Todas as entrevistas foram gravadas e, após transcrição literal, foram submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 2016), realizada por duas pesquisadoras, uma professora de um programa de pós-graduação em psicologia clínica e a outra, pós-doutoranda no mesmo programa. As entrevistas foram divididas em dois grupos: mulheres e homens. Em cada um desses grupos, foram levantados os principais temas e “núcleos de sentido” emergentes (Bardin, 2016), segundo os critérios de reincidência e relevância (Turato, 2018). Em seguida, foram elencadas as categorias, cuja construção foi embasada pelos seguintes elementos: aspectos comuns e coesão entre os diferentes núcleos de sentido; suas diferenciações; e enquadre teórico dos estudos de gênero (Bardin, 2016; Turato, 2018).
Entre as 15 pessoas entrevistadas havia oito mulheres e sete homens. Apresentamos, a seguir, breve descrição das/os participantes, em que as mulheres foram identificadas com a letra M seguida de um número e os homens foram identificados com a letra H seguida de um número:
M1: branca, 34 anos, heterossexual, ensino superior, solteira e sem filhos; M2: branca, 40 anos, heterossexual, ensino superior, casada há 17 anos, 2 filhos; M3: negra, 51 anos, heterossexual, ensino superior, casada há 22 anos, 3 filhos; M4: branca, 31 anos, heterossexual, pós-graduação/mestrado, solteira, sem filhos; M5: negra, 52 anos, heterossexual, ensino fundamental, viúva, 3 filhos; M6: branca, 31 anos, heterossexual, pós-graduação/especialização, casada, sem filhos; M7: negra, 20 anos, heterossexual, ensino médio, solteira, sem filhos; M8: branca, 27 anos, homossexual, ensino superior, solteira, sem filhos.
H1: branco, 57 anos, heterossexual, ensino superior, casado, 3 filhos (de duas mulheres diferentes); H2: branco, 31 anos, heterossexual, ensino superior incompleto, solteiro, 4 filhos (de 3 mulheres diferentes); H3: negro, 55 anos, heterossexual, ensino superior, casado há 15 anos, 3 filhos (de 3 mulheres diferentes); H4: negro, 27 anos, heterossexual, ensino superior incompleto, casado, sem filhos; H5: negro, 33 anos, heterossexual, ensino superior, solteiro, sem filhos; H6: negro, 29 anos, homossexual, ensino superior, solteiro, sem filhos; H7: negro, 25 anos, bissexual, ensino superior, solteiro, sem filhos.
Como perspectiva teórica, foram adotadas as categorias analíticas dos dispositivos de gênero, tal como apontadas por Zanello (2018).
Resultados e discussão
O processo de análise de conteúdo resultou na construção de três categorias: (a) Pressão social; (b) Vida amorosa e sexual; (c) Motivadores da cirurgia e expectativas pós-cirúrgicas.
Pressão social
Nessa categoria, foram reunidos os relatos de homens e mulheres sobre experiências de reprimendas, violências e cobranças sobre seus corpos gordos. A pressão social apareceu, sobretudo, em experiências de bullying quando crianças (dos que foram gordos nessa etapa da vida) ou atuais, na vida adulta, por olhares julgadores e pressões exercidas pela família ou parceiros íntimos.
Essas vivências de bullying na escola foram relatadas tanto por mulheres quanto por homens, mas apareceram com maior frequência nas falas das mulheres. A principal manifestação do bullying se deu por meio de xingamentos feitos pelos pares. Esses xingamentos gordofóbicos foram bastante semelhantes, independentemente do sexo da pessoa, por exemplo: “baleia”, “rolha de poço”, “barril”. No caso das mulheres, também compareceram palavras associadas a um ideal estético, como “feia”. E, no caso dos homens, especificamente nas falas de homens negros, apareceram xingamentos gordofóbicos racializados, como “fuscão preto” e “besouro verde”. Também foram relatadas comparações feitas com pessoas famosas, como Ed Motta. As entrevistadas que eram gordas na infância se disseram “tímidas” nessa etapa da vida, revelando comportamentos de evitação social.
Apenas mulheres narraram situações de bullying na família de origem, cometidas sobretudo pela mãe: “Sempre fui gordinha (…) o sonho da minha mãe era me ver magrinha (…) ficava enchendo o saco, ‘você está comendo demais’” (M1). M2, por seu turno, apontou: “minha mãe me chamava de jumentona, né”. Muitas vezes, o julgamento se travestiu de avaliação estética e premonitória de menor sucesso em se fazer escolhida na prateleira do amor, como destacou M4: “minha mãe fica falando assim ‘não vai arrumar marido se continuar gorda’, ‘porque homem não gosta de mulher gorda’”. Houve também a imposição para as meninas de restrições alimentares e dietas milagrosas. Assim como percebido em pesquisas anteriores (Araújo & Zanello, 2024; Leal & Zanello, 2022), mães podem exercer o papel de sentinelas dos valores machistas. De um lado, trata-se de reproduzi-los; porém, de outro, trata-se de reconhecê-los e orientar, sobretudo as filhas, no sentido de sobreviver a eles (Lagarde, 2011).
Na fala dos homens, o bullying familiar em função da gordura não apareceu: o corpo gordo nunca foi objeto de comentário familiar, ou, quando o foi, “era com carinho… gordo fofinho” (H3). Cabe levantar aqui algumas hipóteses sobre a não emergência dessas situações nas falas dos homens: (1) se efetivamente essas situações não ocorreram; ou (2) se não foram retidas na memória, por não atingirem o cerne identitário dos homens e, consequentemente, por não atacarem de forma intensa a autoestima masculina; ou (3) se, no caso masculino, é mais comum a ocorrência da “gordofobia recreativa” – em referência ao conceito de “racismo recreativo” de Moreira (2019) – que, pelo caráter jocoso e aparentemente alegre, muitas vezes não é percebido como violência. Essa última hipótese pode ser observada na fala de H4: “Eu me lembro de uma piada (…) alguém falou que eu tava muito gordo. Aí meu amigo falou assim ‘não, H4 não está gordo não’, aí eu fiquei me achando um pouquinho, aí ele falou ‘pro H4 ficar gordo ele tem que perder 20kg’”.
Experiências de um olhar julgador por parte de pessoas não íntimas, em diferentes interações sociais, foram reportadas mais por mulheres do que por homens. Para elas, essas experiências foram relatadas principalmente no âmbito estético, como em situações de comprar roupas. M1 apontou: “Pessoas me olham [em lojas] tipo assim, ‘não tem roupa pra você’ (…). Me olham com cara de ‘que é que ela está fazendo aqui dentro?’ (…). E eu detesto”. M2, por sua vez, destacou: “Ah me dá um desespero quando eu vou lá experimentar (…) A gente passava constrangimento de falar né, com a vendedora ‘ah essa não serviu, tem um tamanho maior?’. Isso é muito ruim e saber que a pessoa tá olhando e tá te julgando ali né. ‘Não conseguiu porque não se esforçou’. Isso é horrível”.
Se na infância e na adolescência a timidez foi apontada como característica presente nas mulheres que já eram gordas nessa época, foi comum dentre as mulheres adultas o relato de abdicar de atividades ou de sair de casa para se proteger da gordofobia, como mostra a fala de M5: “‘eu não vou porque eu tô gorda e as pessoas vão olhar’… eu realmente deixo de fazer coisas por causa da gordura”. Quase todas as mulheres destacaram sofrer, na vida adulta, o olhar julgador, como apontado por M5: “um olhar julgando, sabe”, e por M3: “porque as pessoas, com o olho, elas te medem”.
Identificou-se que estar gorda é entendido, segundo quase todas as entrevistadas e alguns dos entrevistados, como um fracasso moral, no qual se atribui às pessoas gordas uma ausência de força de vontade, preguiça e desleixo: “as pessoas olhavam pra mim num julgamento moral, como se eu fosse desleixada, eu trabalhava o dia inteiro e não tinha tempo e nem vontade de fazer esse tanto de coisa” (M5); “Porque a sociedade, ela olha a pessoa gorda como preguiçosa entendeu? Bom, se essa gorda não conseguiu emagrecer ela não vai conseguir ser pedagoga” (M2). Já um dos homens (H3) destacou: “tinham um certo preconceito (…) porque o gordo sempre foi tachado como lerdo, burro, idiota”. Esse julgamento chegou a interferir na vida laborativa, por exemplo, em entrevistas de seleção para um emprego, como relatado por H3: “notei assim em quem tava me entrevistando um certo receio e um cuidado com as palavras (…) com o teor de preconceito mesmo pela gordura. (…) Quantas vezes eu tinha as qualidades que eles queriam (…) em questão de profissionalismo, que no outro não tinha, mas eu fui desqualificado por causa que eu tava acima do peso”. Apesar de haver queixas na esfera do trabalho em ambos os grupos, pesquisas demonstram que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres parecem ser maiores (Lucas et al., 2023; Vasconcelos, 2020).
Vida amorosa e sexual
Na vida amorosa e sexual, encontramos dois recortes importantes, a depender da situação amorosa/matrimonial: solteiras/os ou casadas/os. Para as mulheres entrevistadas, se ou quando solteiras, as vivências amorosas e sexuais foram marcadas pelo binômio invisibilidade versus objetificação sexual. Em ambas as experiências, as mulheres enfrentaram a vivência do preterimento afetivo. Na experiência da invisibilidade, ficou nítido o péssimo lugar que elas ocupavam na prateleira do amor. Foi comum o relato de sair com as amigas e todas serem abordadas amorosa e sexualmente por um rapaz, com exceção delas, como disse M7: “saía com as amigas e elas todas bonitinhas (…) mó magrinhas, arrumadinhas (…). Aí você sabia que ninguém chega em você, né! Chega só nelas. Todo mundo olhava só para elas”. Outra experiência que se mostrou recorrente foi a de se apaixonar por um homem que se apaixonava por sua melhor amiga ou por sua irmã, como destacado por M4: “A minha irmã mais velha que fazia sucesso. E ela não ficava com ninguém, não queria saber de ninguém (…) e aí os guri, eles vinham tentar ser meus amigos pra tentar ficar com ela. Doía, doeu quando eu queria um cara e ela ficava com ele e aí tipo, eu queria o cara e o cara gostava dela”.
Já na vivência da objetificação sexual, a experiência comum era a da dificuldade de estabelecer relacionamentos afetivos com profundidade ou compromisso. Nesse sentido, os homens demarcavam sua indisponibilidade para o estabelecimento de um relacionamento amoroso, mas sem descartar o sexo casual e sem compromisso. A maioria inventava desculpas de que não estava preparado para uma relação. Essa aparente “abertura” para que essa indisponibilidade pudesse ser modificada foi o mecanismo que fisgou a maioria delas. A partir do funcionamento do dispositivo amoroso, elas persistiam nas relações em que eram objetificadas com a ilusão de que, com o tempo, isso mudaria. M1, por exemplo, contou que se envolveu com um rapaz, mas: “A gente não namorou, porque ele dizia que não era um homem pra namorar, e não sei o que, aí a gente ficava de vez em quando. (…) Eu queria, mas ele não queria. Aí eu inicialmente falei ‘ah, vou tentar (para ver se ele muda de ideia)’.” Foram 6 meses de investimento nessa relação e, com o tempo, ela foi se cansando.
M2, por seu turno, contou a história da relação com seu atual marido. Ele era seu professor de ciências. “Aí ele me chamou pra sair, tudo e nós ficamos juntos, né. Só que foi, era o seguinte era sempre ele deixando bem claro pra mim que não queria compromisso… não queria namorar. (…) Eu não gostava desse negócio de ficar, mas aí fui indo assim a pessoa agradável pra conversar e tudo. (…) Porque eu fui gostando e na esperança que ele fosse mudar (…). Ele não me tratava bem… eu falava com ele, ele não respondia, né, ou dava patada, eu tinha que ficar o tempo inteiro adulando (…). E aí foi indo, sempre ele me dando migalha e sempre eu aceitando (…)”. M4 também relatou essa experiência: “eu me apaixonei por ele e a gente começou a ficar (…). Só que ele não queria compromisso, só que eu comecei a me apaixonar por ele”. Ela ficou por meses nessa relação, porém, ao perceber o lugar em que estava sendo colocada, se cansou: “[ele] me comendo, usando pra me comer, porque tipo ah sentado lá assim e nem bola, depois de transar nem me beijou (…). Aí eu fui e desencantei dele de um jeito, assim fim, acabou”.
Além da vivência da objetificação sexual e da indisponibilidade afetiva dos homens, apareceu de modo recorrente entre as mulheres a queixa acerca da experiência de ser escondida, fetichizada como mero objeto sexual que deve ser usado em horários impróprios, de forma a fugir dos olhares alheios. Isso corrobora os dados de outro estudo (Zanello et al., 2022), que revela como as mulheres gordas – e também mulheres negras e mulheres com deficiência – são tratadas como “lanchinho da madrugada” (Eduardo, 2017).
Muitas mulheres se aproveitaram dessa fetichização para estabelecer relações sexuais e tentar usufruir, de alguma forma, dessa possibilidade, como apontou M5: “Homem gosta de comer mulher gorda, só que escondido (…) Sente tesão, gosta. (…) Eu nunca fiquei sem homem na minha vida, mesmo gorda”. Em poucos casos de explícita objetificação e fetichização, foi possível firmar compromisso e seguir numa relação amorosa, como foi para M4. O fetiche do parceiro por gordas quase a fez desistir da cirurgia bariátrica: “Encontrei (…) um homem né, que ele é maravilhoso só que ele é tipo, tem fetiche por gorda, sabe? E ele ficava dizendo assim pra mim né (…) ‘uai, tu vai murchar né, tu vai diminuir’ (…) aí eu falo isso pra ele ‘ah tu vai me largar depois que eu emagrecer’”.
M2 também relatou ter estabelecido uma relação amorosa depois de um período de falta de compromisso do homem. Ela vivenciava ter sido escolhida como uma benção, que ela deveria preservar com muito esforço e gratidão. Mas a relação de M2 foi se tornando cada vez mais abusiva: “de repente ele chegou, no mês de julho e falou ‘ó a gente vai casar em dezembro’ eu tomei um susto (…) Fui aceitando, porque eu buscava ser amada (…) Ele não falava [da minha gordura] (…) ele passou com piadinha a não aceitar depois que a gente casou”.
O mais frequente entre as entrevistadas foi o relato de situações em que a disponibilidade dos homens para o namoro acontecia em relação a outra mulher que não elas. Isso as levava a enfrentar não apenas o preterimento afetivo, mas a dor de perder um homem para uma suposta rival: “Acho que eu chorei sim escondida em casa assim, porque (…) escolheu ficar com ela, sabe? Tipo me preteriu e isso foi ruim demais aí eu fiquei pensando ‘ah é porque ela é gostosa’ (…) foi isso que eu pensei que era porque ela era gostosa e eu era gorda, sabe?” (M4).
Assim, o ser ou estar gorda vulnerabiliza as mulheres, por meio do dispositivo amoroso, por se ressentirem de ter um péssimo lugar na prateleira, apesar do fetiche de alguns homens com mulheres gordas. Como vimos, isso também as fragiliza, e faz com que o ser escolhida seja vivenciado com muita expectativa e como uma redenção. Nesse caso, é muito mais fácil que se aceite migalhas e que a assimetria de poder na relação seja ainda maior: “O primeiro [namorado] (…) era um psicopata, louco, doente, que eu levei um namoro, inclusive eu perdi a virgindade sob ameaça, né (…). Eu comecei a namorar porque eu achava que eu não ia conhecer ninguém no mundo, que ninguém ia gostar de mim. Era a minha salvação” (M2). Quanto mais explorada a autoestima da mulher por conta da gordura, parece que mais facilmente ela fica rendida numa relação abusiva: “Ele controlava, ele me beliscava, ele me xingava. De ridícula, de gorda que ninguém ia me querer (…) falava que eu era muito grande, gorda, que pra fazer um vestido pra mim tinha que ser com uma lona de circo, né, que eu parecia uma girafa e que ninguém ia me querer por isso, só quem ia me querer era ele” (M2).
Essa fala de M2 relaciona-se com o outro recorte dessa categoria: as situações em que a pessoa está numa relação amorosa. A vivência que apareceu com maior frequência nesse recorte para as mulheres foi a de ter o parceiro pressionando para que emagrecessem. Não obstante, também foi relatada a manifestação de insegurança por parte de parceiros quando elas se propunham a emagrecer. M6, por exemplo, relatou que, em todas as vezes que começava uma dieta, seu parceiro decidia ir para a cozinha criar pratos saborosos e calóricos. Se ela se negasse a comer, ele a chantageava, dizendo que seria uma desfeita. Trata-se aqui de uma forma de violência, mas exercida de modo a escamoteá-la, uma “opressão com carinho” (Zanello, 2018).
Sobre a pressão e julgamento exercidos pelos parceiros íntimos, direta ou indiretamente, foram abundantes os relatos de situações em que parceiros e ex-parceiros: (a) desistiram de se relacionar por elas serem gordas ou por terem engordado: “ele falou com todas as letras que não queria ficar comigo porque eu era gorda, mesmo ele sendo gordo (M4)”, “Inicialmente um garoto falou, ‘ah, eu fico com você se você emagrecer’” (M1), o que fez M1 emagrecer 15 quilos; “fiquei oito meses com o cara e ele terminou dizendo ‘Olha, tô terminando porque você engordou’ (M5)”; ou (b) fizeram comentários avaliadores depreciativos: “Ele fala que não tem uma mulher, tem um segurança (M2)”. Essa desumanização da mulher gorda também foi encontrada na pesquisa de Franco et al. (2022). Algumas mulheres relataram vergonha e relutância dos companheiros em assumi-las perante o olhar público, como apontou M4: “Eles têm vergonha de mostrar pra sociedade, entendeu? Mas lá a pantufa, sabe mulher pantufa? Pantufa é ótima em casa, mas dá vergonha de sair na rua (risos)”.
Em suma, entre as mulheres em relacionamentos estáveis com homens, emergiram, de forma massiva: a persistência em relações abusivas, nas quais claramente existia uma hierarquia de poder e uma assimetria entre o que se dava e o que se recebia; vários tipos de violências psicológicas relacionadas à gordidade, tais como xingamentos, pressão para emagrecer, piadas sexistas e gordofóbicas; o término do relacionamento por parte dos parceiros, devido ao fato de estarem gordas; e a descoberta de traições e situações em que foram trocadas por mulheres mais magras.
Um aspecto que também se destacou na assimetria das relações amorosas estáveis foi a sobrecarga desigual do cuidar, fosse da relação, da casa ou dos filhos. M3 ressaltou: “Trabalhava muito e ainda carregava as responsabilidades sozinha”. Como o marido era cirurgião, ela, que também era médica, pediu demissão de um emprego, para ter mais tempo para se dedicar aos filhos e à casa: “o X é que bancava a casa, assim, o grosso, e eu levava pra natação, pra não sei o que, nhemnhemnhem… e eu fiquei [trabalhando] só meio período. O X ajuda, mas não ajuda. O X trabalhando o tempo todo e eu trabalhando o tempo todo eu tive que frear (…) sempre quem freou no trabalho fui eu”. Ainda assim, isso era insuficiente para o marido: “Ele se importa se o sabonete não estiver no banheiro. Se não tiver roupa ou cueca lavada lá à disposição. Mas quem fez isso? Quem fez o milagre?”. O acúmulo de tarefas relacionadas ao cuidar e ao âmbito doméstico, motivo de queixa e sofrimento para M3, é naturalizado em nossa cultura como trabalho feminino (Federici, 2019; Fraser, 2023; Tronto, 2009). Ele aponta para a divisão estrutural do trabalho, no patriarcado capitalista, entre os âmbitos públicos público e privado, em que este cabe quase exclusivamente às mulheres (Federici, 2019; Fraser, 2023). Além disso, espera-se que abram mão de si mesmas em prol dos interesses e necessidades do marido e dos outros membros da família.
M3 disse ter percebido que seu peso aumentou à medida que foi acumulando cada vez mais o trabalho de cuidar, para além dela mesma, de seu marido, filhos e da casa: “Foi aumentando, porque eu aumentei minha carga de trabalho com filho. (…) antes era só eu. Depois virou eu e o X, depois eu e cada menino e mais o X, e mais a casa e mais o trabalho. (…) teve um tempo que eu corria cinco quilômetros. (…) Eu tava magra”. Além disso, o marido de M3 sempre a pressionava para que usasse a piscina de casa para nadar e emagrecer: “uma vez ele chegou para mim e falou assim ‘eu tenho uma saudade de te abraçar e conseguir te abraçar’… eu choro, às vezes choro”.
Por fim, destaca-se a diferença do relato da única mulher homossexual entrevistada. Em suas falas, não apareceu nenhuma situação na qual tenha se sentido cobrada por parte de uma parceira (mulher) amorosa. Ela se reconheceu lésbica somente aos 18 anos, mas antes teve pouquíssimos namorados. Engordou já adulta e, assim como os homens, como veremos, isso em nada afetou, na sua percepção, sua vida sexual e amorosa, pelo contrário: “Apesar de ser gorda isso nunca me foi um problema pra atrair pessoas, pra ficar com pessoas… pra ficar com outras mulheres” (M8). Ela também ressalta que “a parte estética nunca me incomodou não”. Ao comparar suas experiências de relação com homens ou mulheres, conclui: “a relação é diferente, o companheirismo é diferente, a entrega é outra… É, a ligação é outra, o cuidado”. Uma das hipóteses pelas quais podemos entender essa vivência de M8 coaduna-se com aquela por meio da qual compreendemos o que ocorre com os homens e que discutiremos a seguir: ao se relacionar com mulheres, há um lucro afetivo de seus dispositivos amorosos. Porém, no caso das lésbicas, o que se estabelece, em geral, é uma relação qualitativamente diferente, mais simétrica, por se tratar de dois dispositivos amorosos (Baére & Zanello, 2020; Zanello, 2018), o que não ocorre comumente em uma relação heterossexual.
Entre os participantes homens, se ou quando solteiros, observou-se uma mudança diacrônica, na qual, com o passar do tempo, a vivência da gordidade se transformou. Se gordos quando criança ou adolescente, a experiência relatada, em geral, foi de menor acesso à prateleira do amor. No entanto, de forma incompreensível para eles, essa situação mudou com o passar do tempo: “Por incrível que pareça, só aumentou (a vida amorosa e sexual)! (H2)”. Aparentemente, ele busca explicar a mudança em função de fatores e qualidade pessoais: “Aumentou porque eu não sei o que eu tenho. Aumentou… não sei se é a lábia, não sei se é o jeito, ou a forma de eu me expressar, de conversar”. Já H5 afirmou: “sempre magro ou gordo eu tive um uma característica de liderança, sempre. Eu sou uma pessoa e não é, digamos, assim me gabando, não (…) depois da universidade […], eu nunca mais deixei de ter mulher… A hora que eu queria… sem ter que pagar”.
No entanto, há que se pensar gênero de forma interacional. Ao envelhecer, mulheres migram progressivamente para a parte posterior da prateleira do amor, na qual, de forma constante, paulatina e crescente, vivenciam o preterimento afetivo marcado pelo etarismo (Zanello et al., 2022). Isso faz com que elas se vulnerabilizem ainda mais no dispositivo amoroso, aceitando “qualquer negócio” para não ficarem sozinhas (Zanello, 2018, 2022). Esse processo acaba por ser altamente lucrativo, afetivamente, para os homens, mesmo para aqueles que não se encontram no topo da masculinidade hegemônica, como os homens gordos. Já para os homens, o envelhecimento melhora o acesso às mulheres, justamente em função de sua vulnerabilização no dispositivo amoroso. Ambos os processos parecem estar completamente imbricados. Isso não reduz o maior acesso de homens dentro do padrão hegemônico à prateleira do amor, às mulheres mais cobiçadas, apenas não exclui os demais homens do acesso às mulheres, diferentemente do intenso preterimento afetivo e objetificação sexual que as mulheres gordas parecem sofrer.
Assim, todos os entrevistados relataram intensa vida sexual em suas histórias, inclusive com vários episódios de traição às parceiras com quem mantinham vínculo afetivo, como relatado por H3: “muito sexo… envolvimento emocional não existia… era coisa assim mais de carne”. Mesmo depois de se casar, H3 não renunciou à sua intensa vida sexual e mantinha mais de uma amante fixa: “nunca saí fora de casa, tive contato lá fora e voltava pra casa e sempre tinha com a minha ex-mulher também… Terminou por que… começou a entrar o ciúme, sabe? A minha ex-mulher começou assim a pegar no pé, pegar no pé, pegar no pé”.
Essas falas de que a gordidade não atrapalha em nada suas vidas amorosas e o acesso sexual a mulheres foram as que mais sobressaíram entre os homens. Porém, na vida sexual destacaram-se os problemas pessoais que a obesidade traz: dificuldade de manter a ereção e ter várias relações sexuais no mesmo dia (pelo cansaço e pelas dores no corpo), como exemplificado no relato de H2: “Eu era daqueles que fazia duas, três, quatro vezes na noite. Hoje são duas no máximo. Sinto cansaço. Cansa muito, às vezes não fica ereto”. Todos os entrevistados, independentemente da orientação sexual, apresentaram essa queixa. Ela surgiu em suas falas como insatisfações provindas deles mesmos, e não pela insatisfação ou cobrança das parceiras. Portanto, em certa medida, a gordidade afeta a virilidade sexual, pilar identitário fundamental para os homens, dentro do dispositivo da eficácia (Zanello, 2018). Nesse sentido, H1 relatou: “Aquele sexo selvagem que a gente fazia… hoje não existe mais”. Ou nas palavras de H5: “O desempenho, né, muda. Você não fica mais a mesma coisa, né (…) o tempo que você faz, o fôlego. Isso tudo atrapalha, né, pra você conseguir ter um bom desempenho… não tenho”.
No caso dos homens que estão ou já foram casados ou em relações estáveis, destacaram-se as falas de que receberam muito apoio das companheiras e ex-companheiras e os relatos de nunca terem enfrentado um término ou mau tratamento por conta de seu corpo, como mostra a fala de H5: “Ela sempre falou que independente de como eu era, ela sempre me admirou, me achou bonito, que ela acha meu rosto bonito, tudo”. E a fala de H4: “A questão da minha esposa é que ela sempre me via reclamando do meu corpo pra ela. (…) mas ela não dizia nada. Ela dizia que isso não tem nada a ver não. Ela tentava mais me tranquilizar naquilo tudo, né. Ela nunca comentou nada de ruim”.
Um dos entrevistados apontou, inclusive, que sua esposa sentiu alívio quando ele ficou muito obeso, pois seu desejo sexual era alto e constante, e ela sofria por não ter a mesma intensidade de libido que ele. Nesse caso, a gordidade não diminuiu a libido, mas dificultou o ato sexual, ou pelo menos sua quantidade ao dia, em função da dor que começou a provocar nas articulações. Aqui novamente, vemos que a gordidade dele foi, para a esposa, um reforço negativo, pois dessa forma ela pôde se esquivar de ter que se submeter a algo que aparentemente não desejava, a saber, o cumprimento do “débito conjugal” (Del Priore, 2011).
O apoio e o cuidado que os entrevistados homens heterossexuais relataram receber de suas companheiras apareceram como fator importante para a escolha de permanecer com elas. H3 relatou que sempre foi mulherengo, em suas próprias palavras, mas resolveu estabilizar-se numa relação com Y, pois “Com ela senti algo diferente, um amor meio puro, não senti só aquela coisa assim de só tesão. (…) Ela cuida de mim, entendeu? (…) Então uma mulher que cuida e que zela, você não tem que sacanear… E a mulher quando cuida, quando ela zela, todo homem vai observar isso, até um gesto, um ato, uma palavra de… pra levantar tua auto estima… É ‘calma, relaxa, vai melhorar, a situação tá difícil, mas nós vamos sair dessa’ (…) São atitudes e gestos que te levam a respeitar mais aquela situação… aquela pessoa”. Ou seja, o respeito parece vir mais do que se recebe do que daquilo que se sente ou não pela pessoa. Ainda assim, ele a traiu diversas vezes e só renunciou, em parte, à variedade em sua vida sexual, quando engravidou uma moça fora do casamento. Sua esposa o perdoou e, até a data da entrevista, continuavam juntos.
Sobre os dois entrevistados heterodissidentes, é importante apontar que a lógica apresentada em relação aos homens heterossexuais foi bastante semelhante. Tanto o homem gay quanto o bissexual afirmaram que a gordidade não afeta a vida sexual, em termos de acesso a pessoas. Mas ficou evidente que as razões são diferentes. Como vimos, no caso dos homens gordos heterossexuais, esse acesso até aumenta com o passar do tempo, em função da interseccionalidade entre faixa etária e dispositivo amoroso. Já no caso de homens gays e nas relações com homens entre bissexuais, a razão parece se relacionar com a fetichização do homem gordo, que passa a ser lido e desejado como pertencente ao nicho denominado de “bear”: “no universo homossexual existem os homens ursos, né, que é tanto a questão do porte físico, que normalmente os ursos têm o porte físico grande, independente de ser um gordo forte ou um (…) gordinho gelatinoso (…) O critério principal de ser urso é a questão do tamanho (…)” (H7). Segundo H7, seus parceiros curtiam o universo bear: “é um destaque, tem a questão afetiva e a atração sexual”. Da mesma forma, H6 relatou experiências nas quais seus ex-parceiros tinham preferência, no mundo gay, pelos bears. Devido ao baixo número de pessoas gordas heterodissidentes entrevistadas, seria interessante a realização de nova pesquisa com o recorte exclusivo dessa população. Destaca-se, também, que tanto H7 quanto H6 se queixaram dos limites que a gordidade traz para o desempenho sexual, sobretudo pelo cansaço.
Motivadores da cirurgia e expectativas pós-cirúrgicas
Nessa categoria, apareceu como elemento comum entre mulheres e homens a expectativa de mudança em relação à própria corporeidade vivida: foi frequente a fala de que esperavam que, após a cirurgia, se sentissem “leves”, no sentido concreto e figurado. Também foi comum a ambos os grupos a expectativa de realização de certas atividades, das quais se sentiam privados em função do peso, como dançar, passear, nadar, fazer exercício. O principal motivador apontado, tanto por mulheres quanto por homens, foi a saúde, sobretudo em função das dores corporais advindas da gordidade.
Especificamente nos relatos das mulheres, foram apontadas limitações para realizar atividades como correr e brincar com os filhos, revelando que a vontade de emagrecer apareceu, dentre outras razões, motivada pela possibilidade de cuidar “adequadamente”, ou seja, enquadrada pelo dispositivo materno. Portanto, identifica-se que o emagrecimento é colocado como o elemento que as habilitaria para o exercício de papéis sociais e performances tidos como o cerne do ser mulher em nossa sociedade (Franco et al., 2022; Gelsleichter, 2019). M1, por exemplo, destacou: “eu quero ser mãe, quero entrar pro processo de adoção e foi um dos fatores que me fez ter mais interesse na cirurgia. Quero ter saúde (…) [a criança] vai querer correr, brincar e eu não tenho hoje o pique pra isso…”.
Já M2 destacou: “a cirurgia é por causa dos meus filhos, porque eu tô adoecendo e eu quero cuidar dos meus filhos”. M5 ressaltou que queria cuidar e não mais ser cuidada por filho: “se eu vou pro trabalho, eu não dou conta de ir de ônibus. Ele [filho mais novo] me busca. Eu quero cuidar de mim. Eu não quero que ninguém cuide de mim (…) Eu não me sinto bem dependendo dos outros”. E M5 disse ainda que gostaria de poder cuidar de seu pai, mesmo que ele tenha sido ausente: “já é velhinho, nós somos quatro filhas (…) praticamente só uma cuida dele… Eu ajudo ele financeiramente, mas (…) eu queria ficar mais tempo com o meu pai… Eu não dou conta de ir lá, né. Me sinto culpada”. M6, por seu turno, destacou: “quero emagrecer pra ser mãe… porque eu sempre vi aquelas mulheres… magra com aquele barrigão acho lindo, mulher grávida magra, é muito linda!”.
Na fala dos homens, as limitações destacadas foram, sobretudo, concernentes à realização de esportes e ao desempenho sexual, na manutenção da ereção e na frequência do ato sexual, como apontou H1: “com a obesidade, você tem mais dificuldade ainda, porque você tem que ter mais sangue para bombear pra você, então isso… dificulta manter a ereção por longo tempo”. Em sentido semelhante, H2 disse: “Cansa muito, às vezes não fica ereto. A primeira, sempre. Já a segunda… é só rezando”. Ou seja, a principal motivação relatada pelos homens foi a busca pela possibilidade de voltar, dentre outras coisas, a performar o desempenho e a virilidade sexual aparentemente perdidos. Nesse sentido, sua principal expectativa pós-cirúrgica centrava-se na retomada do desempenho sexual, sem dores, cansaço ou privações. Quando a paternidade foi citada, a cirurgia apareceu mais como garantidora de saúde, no sentido de evitar complicações decorrentes do sobrepeso e prolongar seu tempo de vida como figura de segurança para os filhos. O único homem que destacou a necessidade de cuidar (da mãe) foi o homem bissexual.
Outro fator que apareceu de maneira secundária entre os homens, mas que se destacou entre as mulheres, foi o ideal estético, mostrando novamente a adequação aos estereótipos de gênero como elemento fulcral do desejo pela magreza (Franco et al., 2022). M1 apontou que “Não vou dizer que essa questão de estética, de corpo não vai contribuir, mas por causa da saúde, entendeu?”. Já entre as mulheres, esse ideal compareceu associado à queixa de não haver roupas bonitas para gordas e à expectativa, após a cirurgia, de conseguirem adquirir e vestir essas roupas. M1 destacou: “[quero] me sentir bem com qualquer roupa (…) poder colocar a roupa apertando… poder usar um salto”. M3 disse: “Tudo melhora, sexo, relação social… Qualquer roupa te serve”. M7 relatou que queria “vestir roupas mais bonitinhas, ficar mais bonita, poder escolher roupas”. E complementou: “não pretendo ficar, tipo, magra, magra assim. Mas pelo menos vestir umas roupas e ficar mais bonitinha. Pelo menos poder escolher minhas roupas (…) Poder ir numa loja assim e falar ‘ah, eu quero isso aqui’, ‘me dá isso aqui porque dá’ (…) é muito ruim cê sair… tipo eu saio de casa eu me sinto mó desarrumada, porque eu não tenho nada para vestir… nada fica bem. (…) nada combinando com nada (…) Eu olho no espelho… e não gosto”.
M1 ressaltou que esperava poder se olhar no espelho “e não ter que ir numa loja e ficar olhando. (…) eu detesto comprar roupa, porque nunca tem nada (…) hoje melhorou, porque antigamente era só [roupa] de velho”. O único entrevistado homem que falou de roupas e da possibilidade de comprá-las destacou não a questão estética, mas o valor delas: “É difícil de achar roupa. (…) Ah, promoção, gola polo 50 reais, 30 reais. Então as minhas camisas eu mando fazer. Tudo 90 reais, 100 reais. Tudo mais caro” (H2).
Como também identificado pelo estudo de Franco et al. (2022), o ideal estético apareceu, em algumas falas das mulheres, explicitamente associado ao dispositivo amoroso e à expectativa pós-cirúrgica de serem mais desejáveis sexual e amorosamente. No caso das mulheres casadas, essa expectativa era aventada sobretudo no âmbito das relações amorosas vigentes, como mostra M2: “Já pensei que assim, eu vou estar bonita e vou começar a ouvir o que eu quero (…) ‘Ah você tá bonita, tá magra’”. M2 tinha a expectativa de que a cirurgia e sua magreza pudessem melhorar sua atual relação com o marido: “por causa da cirurgia, eu vou melhorar e eu vou estar bonita, talvez pra ele [marido], né, que eu não sei, talvez com a cirurgia pode ser que assim melhore nosso relacionamento”. M5 também manifestou expectativa semelhante, diante da queixa de seu marido de que ela não estava mais realizando os passeios de que ele gostava: “Acho que nessa coisa do sair, vamos caminhar juntos, porque o Z gosta muito de caminhar no parque e eu não tô conseguindo”.
Já no caso das mulheres solteiras, a motivação para a cirurgia apareceu relacionada à expectativa de conseguir estabelecer uma relação amorosa estável, como mostra a fala de M4: “eu quero me casar de noiva e acho gorda vestida de noiva ridículo”. Além disso, as mulheres solteiras também apontaram frequentemente a expectativa de uma reviravolta que a magreza poderia trazer na lógica da prateleira: se antes preteridas, agora caberia a elas dizer “não” para as investidas. Isso aparece explicitamente na fala de M7: “véi, a gente vai chegar nas festas e vai… nossa! Todos os homens que não quiseram a gente, a gente vai… tipo, também… tipo dizer não… só pra esnobar”. Ou, de modo mais indireto ou em negação, na fala de M1: “eu vejo que sou bonita, as pessoas falam ‘ah, você tem o rosto bonito’ (…) e eu sei que engordei demais. Antes eu chamava a atenção, depois eu engordei muito. (…) possivelmente acho que vou chamar a atenção, não sei, mas eu não quero (…) dar o troco, porque eu não sou vingativa, principalmente com relacionamento”.
M8, a única lésbica entrevistada, também foi a única mulher que não apontou o ideal estético como um dos principais motivadores para a realização da cirurgia. Suas razões se aproximaram daquelas apresentadas pelos homens: saúde e voltar a fazer exercícios físicos, ainda que expectativas de mudanças estéticas tenham aparecido de forma secundária.
Todos os homens em relacionamento estável relataram insegurança de suas parceiras com o resultado pós-cirúrgico, no sentido de sentirem ciúmes e do medo de serem trocadas ou ameaçadas por possíveis rivais. Apesar disso, todos relataram receber apoio na decisão de realizar a cirurgia. No caso das mulheres em relacionamentos estáveis, nenhuma delas relatou abertamente a insegurança de seus parceiros, que, quando apareceu, foi de forma maquiada, como relatado anteriormente, no caso em que o parceiro sabotava todas as dietas e tentativas de emagrecimento por parte da mulher. A única mulher casada que relatou apreensão por parte de marido em relação à cirurgia, apontou que seu medo era de que algo grave lhe ocorresse e que ele pudesse perdê-la. Por amor? Não, pelo que ele perderia de seu cuidado e funcionalidade: “ele tem uma dependência muito grande de mim. Tudo que ele vai fazer eu tenho que estar junto. (…) ele tem medo disso, né, que eu morra e como que ele vai ficar… ele não consegue encontrar a cueca dele”. Importante destacar que o tom dessa fala era de satisfação pelo reconhecimento decorrente daquilo que nomeamos em estudos anteriores como o “empoderamento colonizado” do dispositivo materno, em que a satisfação e o prazer aparecem relacionados com o “precisar ser precisada” (Zanello, 2007, 2018).
Considerações finais
A depreciação de pessoas gordas e a construção histórica do ideal da magreza, embora tenham se disseminado amplamente, se impuseram e se impõem de modo distinto para os homens e mulheres, assim como para os diferentes segmentos sociais. Este estudo revelou que a experiência da gordidade não é vivenciada de forma igual por homens e mulheres, mas apresenta manifestações subjetivas e comportamentais gendradas, com diferentes impactos sobre a saúde mental. Três categorias principais resultaram da análise de dados.
A primeira categoria, “Pressão social”, revelou que as experiências de bullying na escola quando crianças, de reprimendas, violências, cobranças e xingamentos relacionados ao corpo gordo atingiram tanto mulheres quanto homens; porém, elas, além da escola, foram alvos de pessoas da família, sobretudo da mãe, em forma de avaliações estéticas e de premonições de que elas não seriam dignas de serem escolhidas amorosamente por homens.
A segunda categoria, “Vida amorosa e sexual”, foi a que apareceu de forma mais significativa e revela como os dispositivos de subjetivação gendrados atravessam a gordidade. Para as mulheres solteiras, suas vivências amorosas e sexuais foram marcadas pelo binômio invisibilidade versus objetificação sexual, ambas atravessadas pelo preterimento afetivo. No recorte dos relacionamentos amorosos heterossexuais e estáveis, os dados revelaram que a maioria das mulheres gordas interpretava o “ser escolhida” para uma relação amorosa como uma grande bênção e uma salvação. Foram identificados muitos relatos sobre as pressões diversas e julgamentos condenatórios cometidos vindos do parceiro íntimo. Para os homens solteiros, identificou-se que a vivência da gordidade se transformou com a passagem do tempo: quando adolescentes, tinham menor acesso à prateleira do amor, mas, conforme envelheciam, sentiam que esse acesso melhorava progressivamente. Já para os homens casados ou em relações estáveis, destacou-se o relato de que receberam apoio, cuidado e admiração de suas companheiras, sem a ocorrência de situações de julgamentos depreciativos, pressões ou hostilidade relacionados aos seus corpos gordos, como nos casos das mulheres.
Na terceira categoria, identificou-se que os motivadores para a realização da cirurgia bariátrica e as expectativas pós-cirúrgicas se distinguiram entre homens e mulheres em dois aspectos principais. O primeiro revelou que, para as mulheres, esses motivadores e expectativas são enquadrados pelo dispositivo materno, tendo na capacidade de cuidar adequadamente (sobretudo de filhos) um dos principais fundamentos para o desejo de magreza. Já para os homens, os motivadores e expectativas se apoiaram principalmente na recuperação da virilidade e do desempenho sexual. O segundo aspecto mostrou que o ideal estético, como um dos elementos centrais dos motivadores e expectativas da cirurgia, foi bastante presente entre as mulheres, mas apareceu de modo secundário entre os homens.
Como significativa limitação deste estudo, destaca-se que, por ser centrado nas diferenças gendradas da vivência da gordidade, não foi possível analisar de modo aprofundado como os aspectos de raça e etnia e de classe social impactam essas experiências. Destaca-se, assim, a importância da realização de pesquisas que investiguem a gordidade a partir da interseccionalidade de diferentes marcadores sociais. Outro limite a ser salientado refere-se ao baixo número de pessoas gordas heterodissidentes entrevistadas, o que aponta para a necessidade de realização de novas pesquisas com o recorte exclusivo dessa população.