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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.37  Rio de Janeiro  2025  Epub 06-Jun-2025

https://doi.org/10.33208/pc1980-5438v037e009 

Pesquisa empírica

MATERNIDADE E TRABALHO: ENTRELAÇAMENTO DOS DISCURSOS SOCIAIS EM NARRATIVAS DE MULHERES DURANTE A PANDEMIA

MATERNITY AND WORK: INTERTWINING SOCIAL DISCOURSES IN WOMEN’S NARRATIVES DURING THE PANDEMIC

MATERNIDAD Y TRABAJO: ENTRELAZAMIENTO DE DISCURSOS SOCIALES EN LAS NARRATIVAS DE MUJERES DURANTE LA PANDEMIA

Andressa Grando Hoewell, Concepção do estudo, análise do material da pesquisa e redação do manuscrito(1) 
http://orcid.org/0000-0003-2589-3258

Milena da Rosa Silva, Coordenação do projeto de pesquisa maior, orientação durante o estudo e revisão do manuscrito(2) 
http://orcid.org/0000-0003-1063-4149

(1) Psicóloga e Psicanalista. Mestre pelo PPG Psicanálise: Clínica e Cultura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), RS, Brasil. email: andressahoewell@gmail.com

(2) Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente e pesquisadora no PPG Psicanálise: Clínica e Cultura e na Graduação em Psicologia no Instituto de Psicologia da UFRGS,RS, Brasil. email: milena.silva@ufrgs.br


RESUMO

O presente texto toma a teoria dos discursos de Lacan para pensar sobre o entrelaçamento do discurso social vigente na subjetividade de mulheres que maternam e trabalham, no contexto a situação de distanciamento social imposta pela pandemia de Covid-19. Este artigo utiliza material empírico, resultante de uma pesquisa realizada em 2020, período inicial da pandemia. Coletaram-se, por meio das redes sociais, relatos de mulheres que são mães e trabalham em resposta à pergunta: “Como tem sido para você ser mulher e mãe em tempos de pandemia?”. A partir desses relatos e da teoria lacaniana dos discursos, tomamos como guia para reflexão a pergunta: como se entrelaçam os discursos sociais vigentes com a subjetividade de mulheres que são mães e profissionais? Observou-se que a vivência da pandemia lançou luz sobre questões que já existiam desde antes na vida das mulheres, não sem considerar as peculiaridades advindas da iminência de adoecimento e morte. Observou-se que o discurso capitalista colabora para a sobrecarga das mulheres, mães e profissionais ao demandar ideais de completude e totalidade. Porém, pela não fixidez de onde o sujeito se posiciona na estrutura discursiva, é possível fazer frente a tais demandas, questionando-as e viabilizando a circulação do desejo.

Palavras-Chave: maternidade; trabalho; psicanálise; teoria dos discursos; pandemia

ABSTRACT

The present text takes Lacan’s theory of discourses to think about the intertwining of the current social discourse in the subjectivity of women who mother and work, in the context of the situation of social distancing imposed by the Covid-19 pandemic. This article uses empirical material, resulting from a survey carried out in 2020, the initial period of the pandemic. Through social networks, reports were collected from women who are mothers and work in response to the question: “What has it been like for you to be a woman and a mother in times of a pandemic?”. From these reports and the Lacanian theory of discourses, we take as a guide for reflection the question: how do the prevailing social discourses intertwine with the subjectivity of women who are mothers and professionals? It was observed that the experience of the pandemic shed light on issues that already existed before in the lives of women, not without considering the peculiarities arising from the imminence of illness and death. It was observed that the capitalist discourse collaborates with the overload of women, mothers and professionals by demanding ideals of completeness and totality. However, due to the non-fixity of where the subject is placed in the discursive structure, it is possible to face such demands, questioning them and allowing for the circulation of desire.

Key words: motherhood; work; psychoanalysis; discourse theory; pandemic

RESUMEN

El presente texto toma la teoría de los discursos de Lacan para pensar sobre el entrelazamiento del discurso social actual en la subjetividad de las mujeres que viven la maternidad y trabajan, en el contexto de la situación de alejamiento social impuesta por la pandemia de la Covid-19. Este artículo utiliza material empírico, resultado de una encuesta realizada en 2020, período inicial de la pandemia. A través de las redes sociales se recogieron relatos de mujeres que son madres y trabajan en respuesta a la pregunta: “¿Cómo ha sido para ti ser mujer y madre en tiempos de pandemia?”. A partir de estos relatos y de la teoría lacaniana de los discursos, tomamos como guía para reflexión la pregunta: ¿cómo se entrelazan los discursos sociales imperantes con la subjetividad de las mujeres madres y profesionales? Se observó que la experiencia de la pandemia arrojó luz sobre cuestiones que ya existían desde antes en la vida de las mujeres, no sin considerar las peculiaridades derivadas de la inminencia de la enfermedad y la muerte. Se observó que el discurso capitalista colabora con la sobrecarga de mujeres, madres y profesionales al exigir ideales de plenitud y totalidad. Sin embargo, debido a la no fijeza de dónde se posiciona el sujeto en la estructura discursiva, es posible enfrentar tales demandas, cuestionándolas y viabilizando la circulación del deseo.

Palabras-clave: maternidad; trabajo; psicoanálisis; teoría del discurso; pandemia

Introdução

O presente artigo, baseado em dissertação de mestrado da primeira autora (Hoewell, 2022), sob orientação da segunda autora, procura refletir sobre questões da maternidade e trabalho na vida das mulheres. Toma narrativas de mulheres no período pandêmico e reflete sobre o entrelaçamento dos discursos (Lacan, 1969-1970/1992), sobretudo o capitalista. Nossa investigação se deu no período inicial da pandemia do Covid-19, quando o Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias (NEPIs/UFRGS) desenvolveu o projeto de pesquisa “Maternidades: narrativas de mulheres que são mães em tempos de pandemia e isolamento social”. Tal pesquisa lançava a seguinte pergunta nas redes sociais: “Como tem sido para você a experiência de ser mulher e mãe em tempos de pandemia?”

A experiência da pandemia apresentou diferentes nuances durante seu enfrentamento. O período inicial teve como marca o distanciamento social, com o fechamento de escolas em modo presencial, além de tantos serviços de terceiros que dão suporte ao cotidiano de muitas famílias, o que causou alterações importantes na vida das mulheres. Muitas tiveram suas vidas profissionais trazidas para o ambiente de dentro de casa, concomitante à vida escolar dos filhos e ao convívio familiar. Eram recorrentes as queixas de mulheres relatando sobrecarga, cansaço e esgotamento. Essas queixas já são uma realidade na vida da maioria das mulheres, por serem elas as que mais se ocupam das atividades de cuidado, mas que naquele período tiveram uma lente de aumento colocada sobre essa dimensão do universo feminino. Um certo “se vira nos trinta” naturalizado em suas narrativas, como se tal esgarçamento da noção de cansaço fizesse parte natural da vida das mulheres. Porém, essa observação ficou ainda mais evidenciada no período de distanciamento social e permitiu investigar essa questão tão importante em nossa cultura e sociedade, na qual mulheres se ocupam ao mesmo tempo de cuidar dos filhos, da casa, da família e da vida profissional.

Para pensarmos na subjetividade de mulheres que maternam, partimos da noção de parentalidade, conforme definida por Iaconelli (2020a), como: “a produção de discursos e as condições oferecidas pela geração anterior para que uma nova geração se constitua subjetivamente em uma determinada época” (p. 17). Garrafa (2020) adverte que, por participarmos do mundo como sujeitos de linguagem, sempre há uma tomada de posição frente aos nomes que nos concernem. Nomear-se com os significantes mãe ou pai implica assumir um lugar na família, na sociedade e perante o(a) filho(a). Assim, a parentalidade envolve atos de nomeação e reconhecimento de lugares, considerando tanto a singularidade quanto o campo social que enlaça os sujeitos que se situam nessas posições. A parentalidade diz também da produção e transmissão de discursos que fará parte da constituição subjetiva de uma nova geração. Assim, salientamos a relevância de pensar o tema da maternidade, que se cruza com a vida profissional para muitas mulheres.

Carneiro (2003) conta que o trabalho, para a maioria das mulheres negras e pobres, esteve sempre presente em sua existência. Almeida (2007) aponta que o significado do trabalho remunerado na classe popular estaria relacionado à necessidade e possibilidade de ascensão da família. Já na classe média, estaria mais ligado à autonomia da mulher em relação ao homem e aos cuidados domésticos. Em nossa escuta clínica da classe média-baixa, ouvimos frequentemente expressões de ambivalência e culpa quando precisam deixar os filhos na escola no período pós-licença maternidade. Consideramos importante situar tais pluralidades, que fazem parte do cenário brasileiro, advindas de um sistema político, cultural e social que faz com que as diferenças sejam marcantes no que se refere às condições e possibilidades dadas aos diferentes grupos socioetnicorraciais. Devemos notar que o recorte desta pesquisa se situou mais próximo da realidade de mulheres brancas, de classe média.

Iaconelli (2019a) relata ser muito comum o sentimento de culpa entre os pais, advindo de nossa sociedade, que os sobrecarrega de responsabilidades, cobrando que garantam coisas que não são possíveis de garantir. Essa ideia de garantias diz da estrutura capitalista, que em seu discurso demanda a completude, que nada fique de fora. No universo feminino, tal discurso tem um peso ainda maior, pois é sobre as mulheres que recaem com maior intensidade as demandas de responsabilidades em cuidar (ILO, 2018). Além disso, são as mulheres quem desinvestem mais da vida profissional para gerir diferentes papéis com a chegada de um bebê à família (Martins et al., 2014). Durante a pandemia de Covid-19, observou-se uma redução de horas de trabalho, principalmente por parte das mulheres (Collins et al., 2021). Ainda, estudos apontam que o trabalho é tido como fonte de satisfação e identificação para muitas mulheres, ao mesmo tempo que desejam concomitantemente ser mães (Fabbro & Heloany, 2010; Pereira et al., 2019). A fim de refletir sobre as questões relativas à maternidade e ao trabalho nos relatos coletados durante a pandemia, levamos em consideração tais realidades.

Recorremos à teoria de Lacan (1969-1970/1992), buscando pensar sobre o entrelaçamento dos discursos, sobretudo o capitalista, na produção narrativa dessas mulheres. Para Lacan (1969-1970/1992), a dimensão do Real está em todo discurso e é, ao mesmo tempo, o que o produz e o sustenta. Na perspectiva dessa teoria, o Real é da ordem do impossível, que não pode ser demonstrado, mas ali está, produzindo e sustentando os discursos onde um sujeito pode situar-se. Para Couto et al. (2018), os discursos são maneiras de lidar com o Real, com o vazio, ou a falta que não cessa de não se inscrever. Todo discurso onde um sujeito possa estar situado contém uma dimensão de incompletude, de insustentabilidade, e, por isso, tem um caráter dinâmico. Há uma verdade velada em todo discurso, uma dimensão de incompletude que nos constitui. Lacan (1969-1970/1992) diz que o sujeito é o fracasso do ideal, pois é incompleto.

Os discursos inicialmente propostos por Lacan (1961-1962/2003) lembram as profissões impossíveis, citadas por Freud (1930/1988): governar (discursos do mestre), educar (discurso universitário) e analisar (discurso do analista). Já o discurso histérico seria aquele capaz de questionar o mestre, mostrando que ele é castrado, faltante. Lacan (1969-1970/1992) propõe que os discursos tenham a estrutura de matemas compostos pelos elementos S1, S2, a e S⁄ , que marcam os discursos. Tais elementos são intercambiáveis e não são fixos, podendo girar em um quarto de volta.

A seriação ou ordenação dos elementos é um limite, é um ‘não’ que define a estrutura do matema dos quatro discursos.

Em ‘Radiofonia’ Lacan explicita esse limite do matema: 1. fica limitado por um não, por não ser possível a um vetor chegar à verdade; 2. fica limitado ao número de quatro por uma revolução não permutativa de sua posição em quatro termos. E os operadores seriam a progressão e a regressão em relação à verdade: a verdade da castração. Aqui a lei aparece não na exigência do giro em um quarto de volta dos elementos nos quatro lugares, mas na impossibilidade e impotência em se furtar à castração. (D’Agord, 2013, p. 442)

Nessa passagem, D’Agord (2013) aponta para a marca da castração existente nos discursos. Dizer que o sujeito pode situar-se em posições diferentes conforme a estrutura discursiva que esteja ocupando permite afirmar que ele pode produzir narrativas distintas no laço social e mudanças na maneira de lidar com as demandas culturais, ou seja, das possibilidades de deslizamentos para enfrentá-las.

Há um quinto discurso apresentado por Lacan (1972/2017): o discurso do capitalista. Trata-se de um discurso diferente no que se refere à marca da falta. É uma estrutura discursiva que tende a fechar-se em si mesma, tamponar o entre, o intervalo, ou a falta na estrutura que constitui o sujeito. Sabemos haver muitos impasses no exercício das funções parentais (Lacan, 1967-1968/2003), pois remete o sujeito à sua própria biografia como sujeito dividido e faltante. As operações subjetivas que uma pessoa conseguirá desempenhar com seu filho exigem certas condições a enfrentar os impasses que dizem de sua própria biografia e da cultura em que está inserido (Iaconelli, 2019a). Acreditando que a teoria dos discursos nos traz elementos para refletir sobre tais questões, o presente trabalho propôs analisar relatos de mulheres em tempos de pandemia, tendo como guia para reflexão a pergunta: Como se entrelaçam os discursos sociais vigentes com a subjetividade de mulheres que são mães e profissionais?

Método

O presente trabalho se configura como uma pesquisa psicanalítica. Iribarry (2003) traz a ideia de que o campo dessa modalidade de pesquisa é o inconsciente, o objeto é o enfoque a partir de uma posição do psicanalista/pesquisador, a fim de aceder ao inconsciente, e o método é a transferência. Lacan (1958/1998) aponta que o analista sustenta autenticamente sua práxis, ou seja, está implicado em seu fazer com sua leitura e com seu desejo. Elucidamos que a pesquisa psicanalítica precisa passar pelo trilhamento conceitual de seus autores e pela experiência e implicação do pesquisador, mas sem cair em mera repetição. Pelo processo de pesquisa vivido, buscamos lançar questionamentos e reflexões acerca do seu campo.

Freud (1937/1988), em Construções em análise, diz que as conjecturas do analista são preliminares às construções do analisante e que somente a posteriori é que teremos vista aos efeitos dessas construções. Isso implica dizer que a prática psicanalítica é viva, que está sempre se construindo. Em analogia, nas “construções em pesquisa psicanalítica” o pesquisador fará uma leitura dos significantes em sua escuta e anotações/escritas, para posteriormente apresentar ao público seu texto. O público é tido como um lugar da alteridade, convidado a examinar os achados e seguir em construções.

Por definição, a psicanálise entende o sujeito como indissociado do seu contexto social, pelo laço com o Outro. A chamada psicanálise em extensão ou extramuros aborda aquilo que diz da prática psicanalítica não estritamente ligada à situação do tratamento, mas referente ao sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos (Rosa, 2004). Dessa forma, conclui estarem presentes na psicanálise as relações com as ciências afins, assim como a articulação entre o sujeito e o campo sociopolítico “possibilitando tomar a pesquisa de psicanálise em extensão como um dos campos da Psicanálise, dispondo de dispositivos e metodologia para tal tarefa” (Rosa, 2004, p. 337). Esta pesquisa valeu-se de um método de investigação que se enquadra na chamada psicanálise em extensão, que é um método válido para pensar sobre os entrelaçamentos dos discursos sociais vigentes na produção narrativa de mulheres que são mães e trabalham na atualidade.

Construímos como pergunta norteadora de nossa investigação: Como se entrelaçam os discursos sociais vigentes com a subjetividade de sujeitos que se nomeiam mulheres, mães e profissionais na atualidade e suas narrativas? Levamos também em consideração o contexto pandêmico. Os relatos utilizados (cerca de 340) foram coletados na pesquisa “Maternidades: narrativas de mulheres que são mães em tempos de pandemia e isolamento social”. A estratégia de coleta, por escrito, visava proporcionar uma manifestação livre, em tom de desabafo. Não houve questionamento sobre dados gerais das respondentes, considerando a referida sobrecarga vivenciada pelas mulheres. Priorizou-se proporcionar um momento de desabafo e inscrição de suas narrativas, oferecendo também uma certa rede de apoio naquele momento. Com isso, não foi possível estabelecer o perfil sociodemográfico delas, o que constituiu uma limitação da pesquisa. Porém, é relevante expor um viés socioeconômico que, não intencionalmente, se deu em função da maneira como foram coletados os relatos, via redes sociais das pesquisadoras. Pelo teor dos relatos, é provável que se trate de mães de classe média, que puderam, em sua maioria, manter-se em distanciamento social durante aquele momento da pandemia. Sabemos que as desigualdades sociais, inclusive entre as mulheres, tornaram-se ainda mais evidentes naquele período, o que trouxe diferentes possibilidades de enfrentamento da pandemia.

Como critério para selecionar os relatos, valemo-nos daqueles que faziam alguma referência aos significantes maternidade e trabalho. Lançamos mão ainda de anotações de fragmentos e significantes que foram surgindo e produzindo questões durante sua leitura. Utilizamos a técnica da leitura dirigida pela escuta psicanalítica dos relatos (Caon, 1994), lançando mão da teoria psicanalítica consultada e das anotações das autoras durante as leituras. Dessa maneira, visamos a construção deste texto a ser apresentado para as alteridades.

Apresentação de resultados e discussão

Para a psicanálise, o sujeito é atravessado pela cultura e pelo discurso social do qual, como sujeito de linguagem, faz parte. O sofrimento não é sem articulação com o mal-estar e o sofrimento de uma época e cultura (Dunker, 2015). Homercher e Iensen (2020) citam que “crises econômicas, guerras, transições culturais, rupturas de paradigmas, entre outras situações do campo coletivo, podem gerar novas formas de viver e de estar no mundo, novas subjetividades, e a clínica psicanalítica é parte dessas transformações” (p. 13). Assim, realizar uma investigação em meio a uma pandemia trouxe a ela uma complexidade que precisa ser considerada. A pandemia tem um peso imenso no relato dessas mulheres, mas eles também revelam conflitos e realidades vividos antes dela. Procuraremos fazer ecoar nessa escrita/reflexão significantes que estão na narrativa de mulheres que são mães e trabalham em nosso tempo, pensando sobre o entrelaçamento dos discursos sociais vigentes. Passemos à escrita reflexiva resultante da leitura dirigida pela escuta psicanalítica.

Dar conta de tudo, demandas de totalidade

Entre tantos aspectos que os relatos trouxeram, o significante “dar conta de tudo” se sobressaiu em nossa leitura; junto dele, as palavras “esgotada”, “cansada” e “sobrecarregada”. É fato que um certo malabarismo entre tantas tarefas e responsabilidades faz parte da vida de tantas mulheres, mesmo fora da pandemia. Observamos nos relatos um desdobramento cansativo para dar conta de cuidar dos filhos, da casa, do relacionamento conjugal, da beleza e do trabalho. Dar conta de cuidar:

Se virando nos trinta. Por ser profissional da saúde e o esposo trabalhando com tratamento da água, fazemos revezamento de horários para conseguir ficar com a filha de 7 anos. Fora os cuidados da casa e as aulas de 1 ano de ensino fundamental da filha. (Marisa, relato 56)1

Tal estado de tensão em meio ao caos na vida da mulher que materna e trabalha muitas vezes se naturaliza em falas que definem que ser mulher é mesmo isso: ser guerreira, driblar as dificuldades, aceitar que “o filho é da mãe”, como vemos no relato de Bruna: “Estas são as minhas reflexões, ser mãe, estudante e trabalhar são atividades ‘incorporadas’ às mulheres que resolvem construir família. Como uma amiga sempre me disse quando eu fiquei grávida: o filho é da mãe.” Bruna (relato 61). Esses ditos que naturalizam a mulher ocupar-se de tantas atividades favorecem a manutenção do discurso de estrutura capitalista que prepondera em nossa cultura.

Minha filha tem 1 ano e 7 meses, ela nunca foi para creche. Este ano havia planejado retornar totalmente a minha vida profissional, o que acabou sendo adiado com a pandemia. Ser mãe, esposa e dona de casa em tempo integral tem me deixado frustrada, ansiosa e muito cansada. Trabalho muito pouco quando e se consigo. Amo ser mãe, mas nesta idade a sensação que tenho é que não dou conta de inventar tantas atividades. Não é uma queixa, mas me sinto impotente e olha que sou muito criativa. Ela é uma criança maravilhosa, esperta e rapidinha, mas é muito desgastante. Jogamos, pintamos, desenhamos, corremos, brincamos de esconder, de dar comida para as bonecas e outras mil coisas, olho para o relógio e só passou 1 hora (risos), chego moída ao final do dia. (Juliana, relato 1)

Estávamos num momento crítico do distanciamento social quando recolhemos esses relatos e isso tinha um peso relevante nesse estado de frustração e cansaço. Esse quadro evidentemente se intensificou sobretudo para as mulheres que tiveram as atividades de trabalho profissional somadas aos cuidados da casa, filhos etc., alocados todos no mesmo ambiente e ao mesmo tempo. Por outro lado, um estado de cansaço por se sentirem demandadas a dar conta de tudo, nos diferentes papéis que ocupam, faz parte da cultura que envolve as mulheres.

Houve discursos que observaram que a sociedade exige excelência, totalidade, uma vida plena e feliz, além de ser bela, saudável, boa mãe, boa profissional etc., como se as mulheres, mais ainda as que são mães, estivessem banhadas pelo discurso capitalista com um adendo do peso cultural atribuído às figuras da mulher e da mãe. O discurso capitalista demanda tudo que pode, a ausência de falhas e a plenitude. Ocorreu pensarmos que, para a psicanálise, a plenitude remeteria à morte do sujeito. Essa, enquanto teoria, nos dá embasamento para afirmar tal questão, ao conceituar que na constituição subjetiva do sujeito, ainda bebê, ocorrem as operações da alienação e da separação, pela via da castração que barra o sujeito e o constitui marcado pela falta (Lacan, 1966/1998). Assim, uma vida plena seria algo de um fechamento ideal, impossível de alcançar, dado que somos sujeitos marcados pela falta.

Observamos tais questões na narrativa de Juliana, na presença dos significantes “total”, “dar conta de tudo”, bem como no significante “pleno”. Tomamos de sua narrativa também o significante “impotente”. Braunstein (2010) aponta que “o agente do discurso capitalista faz ‘semblante’ de ser o mestre, acredita não estar sujeitado a nada. É o sujeito, desconhecedor de sua incurável divisão, de sua servidão a esta verdade que o transcende” (p. 152). Na lógica do discurso capitalista, a dimensão da impossibilidade, advinda de sermos seres de linguagem e, portanto, divididos, castrados, faltantes, parece não poder operar, jogando os sujeitos ao lugar de impotência. Juliana indica sentir-se impotente, ou seja, incapaz de operar com as impossibilidades que nos concernem. Com isso, observamos sujeitos soterrados pelas demandas sem fim e dizendo-se angustiados por “não dar conta” de tudo. Nesse discurso, o ideal seria não apenas dar conta, mas ainda dar conta de tudo. O caráter das falhas, tropeços, fendas, faltas, enfim, da castração que nos concerne, é um dos importantes preceitos que a teoria psicanalítica nos dá a ver. É, portanto, uma valiosa teoria para pensarmos sobre o impossível de alcançar nessa busca pela totalidade e por dar conta de tudo.

Sobre o cansaço e a sobrecarga

Mencionado tantas vezes em falas de mulheres, o cansaço e a sobrecarga podem ser potencializados por recair sobre elas a responsabilidade dos cuidados. Em nosso meio cultural, a maternidade é mais cobrada que a paternidade no que se refere aos filhos (ILO, 2018). Percebe-se que o cenário familiar vem mudando, com maior participação masculina no cuidado com os filhos, mas ainda em pequena escala. A responsabilidade por cuidar dos filhos ainda é fortemente marcada, no imaginário coletivo, como um trabalho feminino. Isso esteve presente durante a pandemia, quando foram as mulheres quem mais se responsabilizou pelos cuidados da casa e dos filhos (Collins et al., 2021). Joana aponta o quanto isso esteve presente na pandemia, e conta ter sido “um desafio” conciliar o trabalho doméstico com as atividades escolares das crianças e sua vida profissional:

Um desafio! Como costumava trabalhar fora 40 horas por semana, foi muito difícil lidar com todos os trabalhos domésticos mais homeschooling para duas crianças e trabalhar home office. O meu marido faz poucas tarefas domésticas apesar de saber que o compromisso é de nós dois e também não participa das atividades de escola das crianças. Mas eu vejo um aspecto muito bom nesse período que foi um resgate da convivência com meus filhos… (Joana, relato 35)

A vida profissional feminina acontecendo dentro de casa pode ter sido uma experiência interessante para as relações de gênero. Talvez os companheiros tenham tido a chance de perceber a importância de assumirem mais as atividades de cuidado dos filhos e da casa, quiçá podendo dividir de forma menos desigual o tempo e a energia investida na vida profissional entre eles e as mulheres. Saberemos os possíveis efeitos dessa vivência em relação à maior participação masculina nas atividades de cuidado dos filhos e da casa e, por consequência, na vida profissional das mulheres, somente a posteriori.

O discurso social que demanda das mulheres dar conta de tudo precisa ser questionado. Assim, são importantes as discussões que pensam outras formas de criar os filhos, em que se possam reconhecer as incompletudes. Mudanças estão acontecendo nas estruturas subjetivas e sociais, não sem resistência do instituído. Há ainda uma forte incidência de discursos tradicionais sobre as formas de ser e existir enquanto mulheres no mundo. As falas feministas ganham mais espaço na atualidade e convocam a pensar no lugar da mulher na sociedade, confrontando o discurso instituído. Porém, ainda está muito presente que as atividades de cuidados sobrem para a mãe, somando-se a todas as demais atividades e papéis que as mulheres realizam.

Por vezes, exaustivo. Unir o trabalho que antes era fora com as tarefas da família e da casa é punk… o que de fato aconteceu foi que sobrou tudo prá mãe (eu no caso)… Meu sono tem se alterado, insônia muitas noites, sonhos com tarefas que não executei, qdo na verdade tinha feito, sonho que esqueço compromissos, acordo assustada e vou ver a conta do banco, se paguei, não paguei, paguei… Parece que todas as responsabilidades são minhas, até nos sonhos e pesadelos. (Judite, relato 9)

Chamou-nos a atenção que Judite se nomeia “a mãe”. Eu = a mãe. Esse relato deixa ver uma faceta muito marcada em nossa cultura de reduzir a mulher à mãe (Iaconelli, 2020b). O relato de Judite evidencia que unir o trabalho, que antes era fora, com as tarefas de dentro da família e da casa se tornou muito pesado. Estar dentro de casa para realizar o trabalho da vida profissional mais o da família ficou “punk”, como ela relata. A saída para a vida profissional tem muitas vezes uma relação com a saída do universo familiar. Trabalhar fora/sair muitas vezes representa um espaço, um intervalo salutar. O espaço fora como um terceiro que todas as relações necessitam. Não à toa ouvimos frequentemente de pessoas que trabalham com a família a experiência de certas dificuldades e situações estressantes por falta de um limite bem estabelecido entre as relações profissionais e de intimidade. A pandemia fez com que os intervalos ficassem suspensos: intervalos físicos para aquelas mulheres que precisavam executar suas atividades profissionais de casa, acumulando concomitantemente o home office e a maternidade. Também ausência de intervalo entre as relações de identificação mãe-mulher-profissional, postas todas na mesma cena.

Assim, se já tínhamos com o discurso preponderante do mestre moderno a demanda pela totalidade e a tendência a um tamponamento da impossibilidade que nos concerne, podemos dizer que essa demanda se potencializou com a ausência de intervalos imposta pelo distanciamento social, no período pandêmico. É provável que a presença do discurso capitalista a demandar dar conta de tudo, somado ao período pandêmico, tenha trazido como reflexo a vivência de um estado ansioso para muitas mulheres.

Referindo-se a todas as demandas que as mulheres têm no discurso que as circunda, Iaconelli (2019a) frisa que “a conta não fecha”. Como observamos em seu relato, na vida desperta Judite põe-se numa posição em que não pode falhar, muito menos como mãe. Apesar do discurso totalizante, a falta encontra uma maneira de se fazer presente, nem que seja em sonhos. Talvez fosse disso que Lacan (1972/2017) tratasse quando dizia que o discurso capitalista está fadado a explodir, pois “a conta não fecha”. Insistimos em ser sujeitos marcados por incompletudes, incongruências, marca de que o inconsciente está ali, a fazer parte de nós. Os sonhos como os dessa mulher, tomada pelo lugar de mãe, vêm de alguma forma lembrar que insistimos em ser imperfeitos, falhos e por isso humanos (ainda bem).

Trabalho e vida profissional

Braunstein (2010), ao teorizar sobre o discurso de mercado, utilizando como base o discurso capitalista de Lacan (1972/2017), aponta para o assujeitamento que tal estrutura comporta, pois deixa de fora a possibilidade de desejar. Sabemos que é somente com a barra, com a marca de um corte, que pode advir o sujeito desejante. No discurso capitalista, o desejo não está em questão (Lacan, 1972/2017). O estudo de Pereira et al. (2019) analisa criticamente, por meio da proposição lacaniana dos discursos e do laço social, a recente cultura do consumo e o papel planejado da frustração do gozo nas relações sociais e de mercado, além da influência desses elementos como produtores de subjetividade e ideologias de desejo. Consideram a deliberada utilização do desejo pelo capitalismo como forma de controle social e motor da máquina neoliberal, pensando como o discurso do capitalista e sua não produção de laço social se relacionam com o discurso do consumo na época de um capitalismo de marca decisivamente ideológica. Ao criar necessidades de consumo fetichistas que antes não existiam e que se tornam praticamente inacessíveis para a classe trabalhadora, o capital mantém tal classe inserida na mesma lógica da necessidade irracional do desejo de consumir algo. Para tanto, o proletário submete-se à lógica da exploração da força de trabalho, em que deixa de ser sujeito desejante para tornar-se objeto de gozo do Outro.

Nessa linha de pensamento, pode-se cogitar que, por vezes, banhadas por tais ideias, mulheres que são mães e trabalham podem não se interrogar sobre seu desejo, pois estão capturadas por demandas capitalistas. É evidente que a maioria das mulheres precisa trabalhar por necessidade financeira. Mas em que medida o trabalho profissional das mulheres estaria atrelado ao desejo?

Vejo que meu lado profissional ficou bastante de lado depois da chegada das minhas filhas (fui mãe em dois anos seguidos – sempre fui muito focada no trabalho, e agora esse foco mudou totalmente, e sinto falta de mim, da antiga eu). (…) Minha vida pessoal – fazer algo pra mim, por mim, está tão difícil, não tenho oportunidade, não dá tempo, quando faço me sinto culpada, pois penso que deveria estar destinando esse tempo para as minhas filhas! Minha vida profissional… parou no tempo depois das filhas! (…) Tem outras profissionais mulheres, que fazem tanto, e eu não tenho conseguido! Isso não costumava ser assim, e sinto falta disso… de me focar em outras coisas, que não minhas filhas! Amo estar com elas… mas amo estar sem elas! Será que é pecado falar isso? Será que eu vou pro céu?? Kkkkkkk Me sinto esgotada delas! Que horror! (Suzana, relato 79)

Suzana denota o fato de muitas mulheres na atualidade se identificarem simultaneamente com os lugares de mãe e profissional. Diz sentir falta de si, de sua “antiga eu” antes das filhas. Ama estar com as filhas, mas também sente falta de estar sem elas, de exercer outras formas de ser que não somente mãe. Estudos apontam para a ideia do trabalho presente não apenas como necessidade, mas como fonte de realização pessoal e sentido para a vida (Almeida, 2007; Fabbro & Heloany, 2010; Pereira et al., 2019). Muitas vezes o trabalho está a serviço da necessidade financeira e do atendimento às demandas capitalistas, mas também pode representar para algumas mulheres a realização pessoal, perpassada pela via da identificação, envolvendo aí suas singularidades e desejo. Por vezes é no espaço do trabalho, de sua identificação com a dimensão profissional, que muitas mulheres encontram o contraponto para equilibrar a sobrecarga das demandas em ser mãe.

Embora a maternidade tenha se consolidado como o cerne do destino das mulheres por séculos, se sustentando pela via de um discurso patriarcal, machista, envolvendo jogos de uso de poder, tê-la como único destino para o desejo feminino na atualidade é insuficiente e inconcebível (Braga et al., 2018). Isso ocorre tanto pelo fato de o desejo não ser universal, quanto pela constatação de que muitas mulheres desejam se realizar pela via de uma vida profissional. Para além disso, a identificação com a vida profissional parece apontar para um respiro necessário, que as mulheres buscam da maternidade. Não quer dizer que não se identifiquem como mães ao se identificarem como profissionais, mas que essas identificações podem ser complementares.

Culturalmente, a imagem da mulher por muito tempo foi fortemente colada à imagem da mãe. O fato de a psicanálise postular que as identificações não são fixas para o sujeito permite dizer que o trabalho na vida das mulheres permite obter satisfação em outra via e descolar essa identidade fixa que a cultura por muito sustentou da mulher = mãe. A vida profissional também pode ser pensada como um terceiro a fazer um corte na relação mãe/bebê e, portanto, como uma operação simbólica salutar na constituição subjetiva do bebê. Ao observar o lado da mãe, pensamos que ligar sua libido a outras formas de identificação pode proporcionar a circulação do desejo na tessitura das subjetividades. Se por um lado tornou-se mais cansativo o acúmulo de tarefas, ao dedicar sua energia tanto para o trabalho profissional quanto para o exercício da maternidade, por outro, a saída para o trabalho pode ser pensada como uma marca de corte nas relações, como a presença da castração às demandas de completude. Pensando nas estruturas discursivas, vemos que a estrutura histérica, bem como a do analista, são potentes nessa ideia de corte/furo à totalidade capitalista.

A possibilidade de giros: os discursos não são fixos

Alguns relatos evidenciaram uma capacidade reflexiva e de reconhecimento das faltas como naturais, que fazem parte de nossa condição humana. Atentamos à escrita de Ana, em que o reconhecimento da impossibilidade de fazer caber tudo aparece. Não sem um tanto de ansiedade, seu relato evidencia a posição discursiva de alguém capaz de operar com a castração, com aquilo que não consegue realizar, fazer o que é possível:

Eu preciso me conformar de que não vou conseguir fazer tudo bem feito. Não consigo me dedicar inteira ao trabalho, tendo um filho pequeno em casa, que ainda mama. Além disso, os cuidados com a casa ficam em terceiro plano, e eu e meu marido fazemos quando é possível, porque ele trabalha fora meio período e no outro período ele fica com o nosso filho pra eu trabalhar. Isso me causa ansiedade, mas tento pensar no privilégio de poder trabalhar de casa nessa pandemia, pra me confortar. (Ana, relato 46)

No relato de Judite se anunciava: “Por vezes, exaustivo. Unir o trabalho que antes era fora com as tarefas da família e da casa é punk… o que de fato aconteceu foi que sobrou tudo pra mãe (eu no caso)” (Judite, relato 9). Diferente de Ana, Judite parece estar tomada pelas demandas impostas a ela como mãe. Sente o peso de todas as responsabilidades recaindo sobre si. O que faz com que algumas mulheres possam estar numa posição mais questionadora, conseguir fazer furos discursivos, reconhecer seus limites, fazer frente às demandas que lhes impõem dar conta de todas as responsabilidades, enquanto outras demonstram em seus relatos estarem engolfadas na demanda de um discurso que não admite o erro, a impossibilidade, a imperfeição? Nessa esteira, nos remetemos à teoria lacaniana: os discursos permitem ao sujeito uma certa flexibilidade, uma mudança de posição em um quarto de giro (Lacan, 1970/2003). Lembramos que há um discurso que Lacan (1969-1970/1992) chamou de discurso da histérica. Seria um discurso potente a fazer furo naquele instituído, do mestre (capitalista), onde impera o ideal que banha o universo feminino: dar conta de tudo.

Se há possibilidade de giro, isso quer dizer que a posição discursiva do sujeito não é fixa, mas dada a movimentos. O sujeito ora pode estar em uma posição discursiva, ora em outra. Vimos que, no exercício das funções parentais, os sujeitos são lançados mais do que nunca à sua condição de ser sexuado e, portanto, dividido, faltante (Lacan, 1967-1968/2003), e que para a teoria psicanalítica as verdades do sujeito têm estrutura de ficção, o que nos liberta do absoluto (D’Agord, 2013). Assim, são nas outras posições discursivas, que não a do capitalista, que se faz possível o exercício da maternidade quando pautadas no desejo. Admitir a face das não totalidades, das limitações, permite que cada mulher, ao seu modo, possa inscrever sua maneira de ser mãe, conciliando a maternidade com outras fontes de satisfação e identificação, como a vida profissional.

Os relatos das mulheres com quem esta pesquisa teve contato nos mostram que as demandas capitalistas, nesse discurso fechado e ideal, tornam difícil o terreno para o sujeito operar com seu desejo e singularidade, o que se torna ainda mais intenso quando as mulheres também se ocupam como profissionais. Ao dirigir sua energia a diferentes papéis e possibilidades, parece ser importante que a dimensão da falta nos discursos seja fomentada para que o exercício do feminino, da maternidade e da vida profissional possa se dar de acordo com o desejo e as singularidades. Sendo os sujeitos ligados ao Outro social, essa operação será mais ou menos favorecida conforme o peso das demandas que incidem sobre elas. Exercer a vida profissional na vida das mulheres, investir sua libido nessa outra área da vida subjetiva, só é possível se a criação dos filhos não depender apenas da mãe. É preciso uma rede, outros a dar suporte para que subjetivamente o sujeito mulher possa se dedicar a outras posições que não apenas a maternidade. Quanto mais o discurso social possa reconhecer tais limitações, mais se torna possível o exercício da maternidade conciliado com a vida profissional de modo menos pesado para as mulheres.

O que percebemos é que a pressão do discurso capitalista, que demanda a totalidade de todos, parece ser ainda mais cruel sobre as mulheres, pois demanda que ocupem sozinhas as atividades de cuidado que se refletem numa posição subjetiva de sobrecarga. Destacaram-se para nós como saídas possíveis para fazer frente ao discurso capitalista, para as mulheres que são mães e trabalhadoras, tanto o discurso histérico, questionador do instituído, bem como o analista, ao sustentar não respostas, mas reflexões possíveis para a constituição das ficções/saídas singulares frente ao impossível e ao faltante do ser presentes no exercício da parentalidade.

Conclusões finais

Os conflitos e a sobrecarga relatados por mulheres ao tentarem conciliar a maternidade e a vida profissional podem, então, dizer do fato de termos na cultura um discurso capitalista que demanda das mulheres a totalidade e perfeição, não apenas como mulheres, mas também como mães e profissionais. Se a condição que o próprio exercício das funções parentais impõe é a de aceitar que as mulheres sejam sujeitos sexuados/divididos/faltantes, como aponta Lacan (1967-1968/2003), essa conta não fecha, como afirma Iaconelli (2019b). Tal contradição entre demandas e possibilidades enquanto sujeitos transparece em conflitos e sofrimentos que pedem espaços de reflexão, que ofereçam apoio e sustentação à condição faltante que nos constitui enquanto seres humanos.

Bancar o desejo não é tarefa fácil, sobretudo num tempo no qual somos banhados pelo discurso capitalista, onde prepondera o “dar conta de tudo” e o “ser feliz”. Espaços que deem possibilidade de reflexão pela escuta das singularidades, como propõe a atividade psicanalítica, bem como levar em conta a história pessoal e sobretudo as limitações, as possibilidades e as singularidades de cada uma, se fazem necessários. Tais espaços podem produzir giros na posição do sujeito em relação às estruturas discursivas, considerando que os discursos histérico e do analista são potentes a fazer furos nas demandas e ditos fechados do discurso que prepondera em nossa cultura capitalista. Nesse sentido, este estudo concorda com o que diz Iaconelli:

Acreditamos que só refletindo sobre as bases nas quais as possíveis escolhas estão sendo feitas, mulheres e seus companheiros podem se beneficiar de uma situação em que a parentalidade se basearia no desejo dentro das possibilidades e limitações de cada caso e não segundo forças da natureza, e com isso poderíamos falar em humanização. (Iaconelli, 2015, p. 98)

Referências

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Notas

1 Os relatos preservam erros de ortografia e gramática, conforme a escrita original das participantes. Os grifos são nossos. Os nomes são fictícios.

Não se declararam fontes de financiamento.

Recebido: 12 de Julho de 2022; Aceito: 17 de Julho de 2024

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