Introdução
O comportamento suicida se refere a uma série de condutas, incluindo pensar (ideação suicida), planejar, tentar ou cometer efetivamente o suicídio (WHO, 2014). Trata-se de um fenômeno multifatorial, considerado um sério problema de saúde pública mundial. Embora seja um ato individual, reflete diversos aspectos biológicos, psicológicos, socioeconômicos e culturais (WHO, 2014).
A elevada ascensão de suicídios entre jovens de 15 a 29 anos preocupa e põe esse tipo de morte como a quarta causa de óbitos no mundo. Estima-se, que globalmente, 1,1 milhão de adolescentes morrem a cada ano, e o suicídio é uma das principais causas, juntamente com outras mortes violentas decorrentes de acidentes de trânsito e agressões interpessoais (WHO, 2021). Dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (2021) apontam que, no período de 2011 a 2018, foram notificados 339.730 casos de violência autoprovocada. A taxa geral do país, considerando-se as pessoas de 15 a 19 anos, em 2019, foi de 6,39 por 100 mil habitantes. Já no Rio Grande do Sul, na mesma faixa etária, a taxa ficou em 9,0 por 100 mil habitantes.
Além disso, estima-se que para cada suicídio é provável que tenham ocorrido cerca de 20 tentativas anteriores. As diversas formas de tentar pôr fim à própria vida, bem como as autolesões com intenção suicida, são os principais preditores de morte por suicídio em adolescentes (WHO, 2021). Embora os dados sejam alarmantes, representam apenas a ponta do iceberg, visto que os atos autodestrutivos são, muitas vezes, negados e escondidos pela própria família (Santos & Neves, 2014). A maioria das tentativas permanece desconhecida dos serviços de saúde, subnotificada e não tratada, instalando um ciclo de final trágico, no qual a morte precoce muitas vezes é a conclusão.
Entretanto, para compreender o comportamento suicida de adolescentes, é preciso desvendar esse período tão peculiar do desenvolvimento. Segundo o Ministério da Saúde (2007), a adolescência compreende a faixa etária dos 10 aos 19 anos. Nas balizas do processo socialmente incentivado, enlaçado e determinado pela cultura, trata-se de “adolescências”, devido às suas múltiplas possibilidades de expressão (Le Breton, 2017). Entende-se a adolescência não apenas como uma fase cronológica, mas muito mais como uma operação psíquica, no sentido de uma passagem. É um tempo precioso, no qual questões elementares do processo de estruturação psíquica serão retomadas (Corso & Corso, 2018). Le Breton (2017) a define como um tempo de suspensão, no qual as significações da infância se distanciam, enquanto as exigências da vida adulta se fazem presentes. Essa suspensão permite a maturação dos corpos, o desenvolvimento das habilidades psicológicas e relacionais e a tão almejada maturidade, necessários para os indivíduos serem alçados à posição de adultos.
Considerando o processo de desenvolvimento, cujas implicações subjetivas se constroem de acordo com a interação com o ambiente socioeconômico e cultural, deve-se contextualizar as adolescências dentro das famílias contemporâneas, as quais vêm sofrendo uma série de mudanças, responsáveis por novas e diferentes configurações (Roudinesco, 2003). A família de intenso autoritarismo cedeu espaço à família “frágil, neurótica, consciente de sua desordem” (p. 153), mas também interessada na busca de equilíbrio. Apesar das transformações e do momento histórico, a função social da família permanece baseada na proteção de seus membros, fornecendo afeto e segurança, contribuindo para a construção da subjetividade e estruturando o indivíduo em sua formação e socialização (Maluf, 2010).
Todavia, quem disse que crescer é fácil? A condição de desamparo do bebê é reeditada na adolescência (Macedo et al., 2012). Não se trata de uma repetição, mas de uma defasagem entre as demandas internas e externas e as condições de processá-las. São inúmeras as exigências: a elaboração de lutos, a reedição da conflitiva edípica e a necessidade de ressignificar a si mesmo e de se posicionar frente aos conflitos intrapsíquicos. Essa condição não é só de carência de recursos internos, mas de lacunas deixadas pelos vínculos parentais, que exercem influência na construção da subjetividade (Macedo et al., 2012).
A adolescência, ao menos na qualidade de idealização, deveria ser um tempo feliz, desprovido de preocupações e projetado para um futuro repleto de oportunidades. Porém, no fim da travessia, nem sempre o futuro espera os adolescentes com a felicidade plena. Na realidade, essa transição exige uma reorganização simbólica e afetiva, o que a torna complexa e turbulenta por natureza. Assim, entre o potencial de liberdade e a autonomia, a adolescência também pode ser fonte de sofrimento. E, para proteger-se da invasão angustiante, recorre-se a vários tipos de refúgio, manifestados em isolamento, agressividade com a família, tentativas de anestesiar-se pelo uso abusivo de álcool e outras drogas, comportamentos de risco, autolesões e o perigoso procedimento de desafiar a morte em condutas suicidas (Corso & Corso, 2018; Le Breton, 2017, 20, 2018).
No difícil limite entre “brincar” com a morte nas tentativas de suicídio e encará-la de frente no suicídio, há muito mais a ser desvendado: um emaranhado de vivências e sentimentos desconcertantes que permanece submerso e, por vezes, naturalizado pela impetuosidade ou pela tendência a agir na adolescência. Nesse cenário, a ideação suicida faz parte do processo da adolescência “normal”; cerca de um quarto dos adolescentes já pensou ou praticou algum ato autodestrutivo (Cassorla, 2021). Jucá e Vorcaro (2018) afirmam que os atos de violência dirigidos a si próprios revelam dificuldades importantes no processo de constituição (ainda em curso) do indivíduo e traduzem uma fragilidade no laço com as figuras parentais, que se intensificam com a potência adquirida na adolescência.
E quando os pais estão ausentes, física ou afetivamente? E quando há ruptura de vínculos? Quando o desamparo e o abandono acontecem? Nesses casos, outras pessoas acabam sendo incumbidas das responsabilidades parentais, mas sabe-se que essa tarefa não se limita aos cuidados físicos, pois envolve o sentido simbólico das funções maternas e paternas, que não se instalam como uma obrigação. Portanto, para aqueles que foram privados por diversas razões de estabelecer laços de afeto com seus pais ou substitutos, um vazio foi instaurado e um trauma precisará ser elaborado.
Nesse sentido, Bowlby (1982/2015) conceitualiza a vinculação afetiva como resultado de um comportamento social universal. Nos seres humanos, o primeiro e mais importante laço se estabelece entre a figura materna ou seu substituto e o bebê, construindo na interação diária a relação de apego. Se essa figura estiver acessível, disponível e atenta às necessidades, respondendo adequadamente, a criança internaliza uma base segura, que permitirá seu desenvolvimento saudável. Contudo, qualquer ameaça de ruptura desse laço gera raiva e ansiedade, e sua perda concreta acarreta uma profunda tristeza. Os vínculos rompidos na infância e na adolescência podem estar associados também ao desenvolvimento de transtornos de personalidade (antissocial) e de depressão. Todavia, em pessoas com comportamento suicida, ocorrem desvinculações afetivas em função da morte de um dos genitores ou afastamentos decorrentes de separações conjugais, com repetidas mudanças das figuras parentais (Bowlby, 1982/2015).
Entre os fatores psicológicos de risco de suicídio na adolescência está a qualidade dos laços familiares e das relações de apego. O vínculo parental fortalecido relaciona-se ao desenvolvimento de competências sociais e previne a ideação suicida. Contudo, as perdas, a separação recente de amigos/parceiros íntimos e a morte de uma pessoa significativa estão associados aos atos suicidas (Baldaçara et al., 2021; Nunes & Mota, 2017). Nesse sentido, Le Breton (2017) argumenta que a ausência, a negligência, os atos de ambivalência, as dificuldades afetivas e a agressividade desestabilizam a autoconfiança dos filhos e desnorteiam qualquer convicção de que a própria existência vale a pena ser vivida.
Nesse contexto, para a psicanálise, as tentativas de suicídio revelam muito mais um desejo de acabar com o sofrimento insuportável do que uma intenção real de morte. Os sentimentos invasivos predominantes são a angústia, a desesperança e o desamparo, que impulsionam os adolescentes, num momento de desespero, a fazer a passagem ao ato suicida, o qual representa a urgência da eliminação dessa sobrecarga de dor psíquica (Cassorla, 2021). Lacan (1962-1963/2005) compreende as tentativas de suicídio como “acting out” ou “passagem ao ato”. O conceito de “acting out” fala de um endereçamento, um apelo dirigido ao outro, com demandas de amor e reconhecimento. Assim, a tentativa de suicídio é compreendida como um ato de extremo desespero no qual o sujeito cria uma cena e atua nela, desejando o fracasso de seu ato. Na passagem ao ato, há uma ruptura marcada pela impossibilidade de simbolização e que não está destinada a interpretação.
Contudo, o que de fato as tentativas de suicídio desses adolescentes querem dizer? O que desejam comunicar além do ato em si? Infere-se que há uma margem de significações para além das aparentes “motivações”, o que faz pensar que algo está sendo enunciado por esse sujeito. Assim, este estudo buscou compreender os sentidos e os significados do rompimento de vínculos parentais em adolescentes que tentaram o suicídio.
Método
A presente pesquisa está ancorada no método clínico-qualitativo proposto por Turato (2013), o qual tem como pilares uma preocupação com as angústias e ansiedades do ser humano, conceitos básicos da psicanálise, além de uma atitude clínica que busca acolher os sofrimentos dos participantes. Tal método prioriza a compreensão dos sentidos e significados de qualquer experiência vivida, ou seja, a interpretação da relação de significações dos fenômenos pelos sujeitos e sociedade. Assim, conceituam-se os significados como símbolos que estruturam a vida psíquica e sociocultural dos sujeitos. Já os sentidos são dotados de uma carga positiva ou negativa devido às singularidades das atitudes de cada indivíduo (Turato, 2013).
Delineamento do estudo
O delineamento do estudo efetivou-se mediante estudos de casos múltiplos, que são mais consistentes e permitem maior generalização (Yin, 2001). Estudo de caso é “uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo, dentro de seu contexto de vida” (Yin, 2001, p. 32). É um recorte da realidade e representa a estratégia preferida quando se colocam as questões “como” e “por que”, buscando compreender os fenômenos psicológicos complexos, em que múltiplas variáveis intervêm. Ademais, nos estudos de casos múltiplos, cada caso deve ser selecionado de forma a prever resultados semelhantes ou produzir conclusões contrastantes por razões previsíveis (Yin, 2001).
Nesta pesquisa, optou-se por trabalhar com quatro casos, tendo em vista o imperativo de delimitar a abrangência da pesquisa, devido à inclusão de outros participantes em cada caso, além dos principais envolvidos. Os casos escolhidos envolveram representações do gênero feminino e masculino, reconhecendo que há singularidades em relação à manifestação do comportamento suicida. No gênero feminino há prevalência de ideação e tentativas de suicídio, enquanto no masculino, ocorrem mais mortes por suicídio devido aos métodos mais violentos e letais utilizados. As mulheres, de um modo geral, estão mais suscetíveis a transtornos de humor e são menos encorajadas cultural e socialmente a expressar sua agressividade, de modo que os impulsos reprimidos podem eclodir em atos autoagressivos (Cassorla, 2021).
Participantes
A pesquisa envolveu a participação de adolescentes que tentaram suicídio, seus familiares e outros jovens afetivamente próximos, indicados por eles. A inclusão destes justificou-se pela necessidade de ampliação do olhar sob o fenômeno estudado, com a perspectiva de outras pessoas da mesma geração do adolescente. Sabe-se que nesse período do desenvolvimento o grupo de pares assume um papel fundamental nas tensões, identificações e pedidos de reconhecimento que dali emergem (Corso & Corso, 2018).
Houve um total de 17 participantes, nomeadamente quatro adolescentes, sete familiares, cinco amigos e uma namorada. Foram atribuídos aos adolescentes, por definição dos pesquisadores, a fim de preservar as suas identidades, os seguintes nomes de personagens de livros clássicos e atuais da literatura, bem como de filmes e séries sobre adolescência/juventude e comportamento suicida: Hannah (personagem do livro 13 Reasons Why, transformado em série), Nina (personagem do filme Cisne Negro), Holden (personagem do livro O apanhador no campo de centeio) e Werther (personagem do livro Os sofrimentos do Jovem Werther). Os participantes de cada um dos quatro casos estudados foram: caso 1: Hannah, sua mãe, seu pai e dois amigos; caso 2: Nina, sua mãe, sua avó materna e dois amigos; caso 3: Holden, sua irmã e uma amiga; caso 4: Werther, sua avó materna, sua tia materna e sua namorada. A descrição detalhada dos participantes consta no Quadro 1.
Quadro 1 — Descrição dos participantes da pesquisa
| Participante | Identificação | Idade |
|---|---|---|
| Caso 1 | ||
| Adolescente | Hannah | 17 anos |
| Familiar | Mãe de Hannah | 46 anos |
| Familiar | Pai de Hannah | 57 anos |
| Jovem afetivamente próximo | Amigo 1 de Hannah | 22 anos |
| Jovem afetivamente próximo | Amigo 2 de Hannah | 23 anos |
| Caso 2 | ||
| Adolescente | Nina | 18 anos |
| Familiar | Mãe de Nina | 43 anos |
| Familiar | Avó materna de Nina | 65 anos |
| Jovem afetivamente próximo | Amigo 1 de Nina | 19 anos |
| Jovem afetivamente próximo | Amigo 2 de Nina | 18 anos |
| Caso 3 | ||
| Adolescente | Holden | 18 anos |
| Familiar | Irmã de Holden | 29 anos |
| Jovem afetivamente próximo | Amiga de Holden | 19 anos |
| Caso 4 | ||
| Adolescente | Werther | 18 anos |
| Familiar | Avó de Werther | 56 anos |
| Familiar | Tia materna de Werther | 29 anos |
| Jovem afetivamente próximo | Namorada de Werther | 19 anos |
Instrumentos
A coleta de dados foi realizada mediante entrevistas semiestruturadas baseadas em eixos norteadores considerando a literatura científica sobre comportamento suicida na adolescência (Botega, 2015; Santos & Neves, 2014; WHO, 2014). Consideraram-se as vivências dos adolescentes, dos familiares e de outros jovens afetivamente próximos, no contexto das tentativas de suicídio. Os conteúdos dos eixos da entrevista abordaram: percepções sobre si mesmo, dos pais/responsáveis, dos amigos e namoradas; rotinas; lazer; relações familiares e sociais; e comportamento suicida (manifestação, fatores envolvidos e repercussões).
Procedimentos de coleta de dados
Os adolescentes foram contatados a partir das notificações de violências autoprovocadas registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), nos anos de 2019 e 2020, num município da região Noroeste do Rio Grande do Sul, com altas taxas de suicídio. Para tanto, foi solicitada a autorização institucional da Fundação Municipal de Saúde, equivalente à secretaria de saúde, por meio do Setor de Vigilância Epidemiológica. Foram selecionadas apenas as tentativas de suicídio, segundo a definição do Ministério da Saúde (2007). Foi respeitada a ordem das notificações no SINAN e priorizados quatro casos, dois envolvendo adolescentes do gênero feminino e dois do gênero masculino, com idades compreendidas entre 16 e 18 anos. A escolha dessa faixa etária prende-se ao fato de as maiores taxas de violências autoprovocadas na adolescência estarem entre 15 e 19 anos (Ministério da Saúde, 2021).
Os familiares, assim como os jovens afetivamente próximos, foram selecionados a partir da indicação dos próprios adolescentes, no momento da entrevista. A pesquisadora sugeriu que os familiares fossem seus pais, devido à proximidade de vínculos, mas como alguns não tinham laços afetivos ou haviam vivenciado a morte de um dos genitores, indicaram outras pessoas adultas que representam as figuras parentais e são identificadas como seus familiares responsáveis. Dessa forma, o grupo de participantes constituído de familiares foi representado por: pais, avó, irmã e tia. Em relação aos jovens afetivamente próximos, foi solicitado que os adolescentes indicassem pessoas de sua geração com as quais tivessem vínculos significativos e esses integraram o estudo: melhores amigos e namorada.
No intento de contato com os participantes, inicialmente ocorreu um telefonema com agendamento de visita domiciliar, para a apresentação da pesquisa aos pais ou responsáveis e aos adolescentes, em vista da exigência do termo de consentimento parental. Após o aceite, agendaram-se as entrevistas, que aconteceram em sua maioria de forma presencial na casa dos participantes ou em locais públicos, como praças e parques, de acordo com o desejo deles. Contudo, devido a quatro participantes residirem em outro município, suas entrevistas foram realizadas pela plataforma de videoconferência Google Meet. As entrevistas tiveram cerca de uma hora de duração, foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra.
Análise dos dados
A interpretação dos dados coletados efetivou-se pelo método de análise de conteúdo proposto por Bardin (1977/2015). Turato (2013) considera a utilização da análise de conteúdo adequada à metodologia clínico-qualitativa e entende como objetivo principal dessa técnica a descoberta dos sentidos contidos nas entrevistas, a partir da ênfase no conteúdo das mensagens. Nessa perspectiva, a análise de conteúdo compõe-se das seguintes fases: pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados; e interpretação. Portanto, inicialmente desenvolveu-se uma leitura abrangente das informações, com o intuito de identificar os aspectos comuns e as particularidades dos dados. Após, realizou-se a exploração do material, com a produção de inferências e a categorização, articulando os dados coletados com as categorias de análise e o referencial teórico da pesquisa.
Procedimentos éticos
O projeto de pesquisa Construindo sentidos e significados para comportamento suicida na adolescência (CAAE 44284621.7.0000.5346) teve a aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria, sob o parecer 4.594.102. Foram observadas as orientações da Resolução 510, do Conselho Nacional de Saúde (Ministério da Saúde, 2016), que define as diretrizes e normas para a realização de pesquisas com seres humanos nas áreas de ciências humanas e sociais. Os participantes formalizaram o ingresso no estudo após a apresentação do Termo de Assentimento e do Termo de Consentimento Livre Esclarecido. Por fim, os dados coletados ficarão sob responsabilidade dos pesquisadores por um período de cinco anos e serão apagados posteriormente.
Resultados e discussão
Os resultados e discussões retratam um recorte da realidade e não pretendem abarcar a totalidade das manifestações do comportamento suicida na adolescência. Estão embasados nas concepções teóricas psicanalíticas, sem desconsiderar as dimensões socioeconômica e culturais envolvidas. Para facilitar a compreensão das diversas nuances dos laços desfeitos entre pais/responsáveis e filhos, os resultados foram separados em duas subcategorias: “Quando o pai sai de cena” e “Quando a mãe se ausenta”.
Quando o pai sai de cena
Quando o laço conjugal é desfeito, o casal passa a ser liberado de suas “obrigações”; porém, não está livre de seus deveres no que concerne às funções parentais (Mello e Silva & Amazonas, 2010/2021). No entanto, Cúnico e Arpini (2014) destacam a dura realidade da ausência paterna após o divórcio em muitas famílias brasileiras, já que alguns homens não conseguem sustentar-se na função de pais e rompem os vínculos, inclusive com os filhos.
A ausência física do pai ou a presença de um corpo afetivamente vazio impacta diretamente nos processos de constituição psíquica de crianças e adolescentes, tendo em vista que a figura paterna tem importante função identificatória, atuando como representante da lei social, caminho para a entrada na cultura e estabelecimento de confiança e segurança. Sob essa perspectiva, a mãe de Nina fala do vazio deixado pelo pai após a separação conjugal e o relaciona ao sofrimento da menina: “Ela é bem carente. É uma carência afetiva. Eu acho que é predominante a falta do pai, mesmo” (mãe de Nina). A própria adolescente conta que o distanciamento entre ambos é tão intenso que passaram a agir como desconhecidos, o que faz pensar que a frágil demarcação entre o aparente descaso pelo pai e a dor de seu abandono possam balizar sua indiferença pela própria vida.
A mãe de Hannah reconhece que o divórcio complicado e o decorrente afastamento do pai constituíram uma ruptura devastadora na vida da adolescente, e relaciona-a às possíveis “motivações” de sua tentativa de suicídio: “Pra te falar bem a verdade, o pior de tudo foi a separação minha e do pai dela. Isso aí é a causa maior” (mãe de Hannah). O vínculo, mesmo que frágil, entre pai e filha foi por longos anos esfacelado, e somente reatado após a ameaça de morte da adolescente. A mãe de Hannah relata: “Porque ele se achegou mais nela depois que aconteceu isso aí [tentativa de suicídio]. Ele não era muito chegado nela, e ela era muito agarrada com ele”. A perda em vida desse pai descortina sentimentos de decepção, tristeza, desamparo e desesperança em relação à retomada dos laços e da função parental, e leva Hannah a buscar na morte o sufocar da sua dor.
Nesse contexto, os adolescentes Werther e Holden são frutos de relações “casuais”, sem projeto de família e de futuro conjugal, sem investimento afetivo, em que os pais foram apenas responsáveis pela concepção e em nenhum momento desejaram exercer a função parental. Assim, já vieram ao mundo desprovidos de um lugar simbólico na vida desses pais. Werther compartilha suas experiências: “Meus pais são separados desde sempre para mim […] Quando eu era mais novo, ele vinha me buscar pra passar um fim de semana. Mas, depois de um tempo, ele foi largando. Difícil até contar com ele agora”. Consequentemente, ele foi desistindo desse pai e, como no caso de Nina, o afastamento foi inevitável. Então, os avôs maternos de Werther e Nina, sempre presentes em suas vidas, assumiram como figuras paternas e são nomeados de “pais” pelos adolescentes.
No caso de Holden, a realidade é uma das mais complexas. O adolescente sofreu o seu primeiro abandono por parte do pai biológico, um fato não relatado por ele, que parece desejar esquecer, mas compartilhado pela irmã: “Ele é filho de outro homem, fruto de uma traição da minha mãe. E o meu pai, mesmo sabendo, quis ele” (Holden). Como agravante para o sofrimento, a verdade sobre os fatos somente foi revelada há cerca de dois anos, durante uma briga familiar. O adolescente, invadido pelo impacto da verdade externalizada, passou a questionar a própria existência. A irmã de Holden relata: “Ele começou a se julgar, porque ele sempre foi um erro, desde o começo”. Ao refletir sobre a sua vida, desde a concepção, Holden pensa em suicídio como uma fantasia, na qual matar-se não implica necessariamente morrer, mas, como, diz Cassorla (2021), envolve o desejo por uma outra forma de vida, na qual não haveria abandonos, ausências nem rejeições, na qual o amor das figuras parentais seria preponderante.
Desde a trágica revelação, os laços com o pai afetivo ficaram desestabilizados e as bases familiares, que já eram instáveis, causaram uma ruptura difícil de reparar. Segundo a irmã, o pai sempre fez todos os esforços para não deixar que o fator genético afetasse o relacionamento com Holden. Apesar desse amor incondicional, o adolescente precisou ir em busca das verdades, que lhe foram negadas. Ele, então, descobriu a identidade do pai biológico, mas infelizmente não foi possível estabelecer uma relação parental. O suporte continuou sendo ofertado pelo pai afetivo, que sempre esteve presente e a quem realmente pode-se conferir a função paterna.
No entanto, apesar do intenso apelo por afeto e ancoragem implícito nos atos suicidas, Nina e Werther permaneceram convivendo com o vazio do abandono de seus pais. A tia de Werther desabafa: “Nunca teve aquela proximidade de dizer, assim, que ele foi um pai presente”. No caso de Nina, o pai sequer soube de sua ameaça à própria vida, pois já não fazia sentido informar algo tão íntimo a um desconhecido. Somente Hannah experienciou a reaproximação do pai, porém apenas como forma de cumprir uma obrigação, como fica evidente no discurso paterno: “É melhor depender da gente, do que vai depender de estranhos” (pai de Hannah). Então, mesmo que próxima fisicamente do pai, ela ainda convive com uma lacuna importante para a consolidação dos laços afetivos com a figura paterna.
Em vista dessas duras realidades, procuraram-se respostas para as possíveis reverberações do abandono paterno na vida dos adolescentes. Pereira e Arpini (2012) destacam consequências como sofrimento emocional, perplexidade e incompreensão em face dos motivos do distanciamento. Além disso, Sganzerla e Levandowski (2010) afirmam que, diante da falta do pai decorrente de morte, os filhos são invadidos por um sentimento de tristeza. Por outro lado, na separação conjugal aparece a revolta e a indignação, pois entende-se que tal situação depende da atitude e do desejo dos genitores. Ainda, evidenciam o frágil relacionamento com os pares, sentimento de rejeição, baixa autoestima, depressão, ansiedade, envolvimento com drogas e tendência a comportamentos antissociais. Todos esses impactos emocionais constituem fatores de risco para o comportamento suicida na adolescência (Botega, 2015; Santos & Neves, 2014).
É necessário, também, ponderar a respeito das capacidades individuais, dos recursos psíquicos, das experiências vivenciadas, do suporte familiar e social, das condições socioeconômicas e culturais que influenciam as diversas possibilidades envolvidas na construção da vinculação entre pai e filho. Nesse sentido, a situação familiar e o relacionamento constituído com a figura materna serão balizadores importantes, já que, muitas vezes, são elas que ficam, que “seguram as pontas”, quando o pai sai de cena.
Quando a mãe se ausenta
Sabe-se que o ser humano tem a tendência de selecionar uma figura principal na procura de contenção, ancoragem e afeto, que, em primazia, é a mãe ou seu substituto (Bowlby, 1982/2015). Para atender a tais demandas, a mãe precisa estar no estado de “preocupação materna primária”, conceito relacionado à capacidade de se pôr no lugar do bebê (empatia) e corresponder às suas necessidades. Somente assim essa mãe poderá fornecer um contexto favorável à sua constituição psíquica. Em vista disso, é necessário que as condições ambientais sejam adequadas para o desenvolvimento de uma maternagem “suficientemente boa”, que envolve três funções: holding (sustentação), handling (manejo) e a apresentação dos objetos (Winnicott, 1988/1999). No entanto, a realidade de muitas famílias não permite um contexto favorável para a sustentação de uma maternagem adequada. As condições socioeconômicas, a fragilidade no suporte familiar e do próprio cônjuge não possibilitam o estabelecimento do holding, que é necessário para o desenvolvimento da saúde mental da criança ou adolescente.
A função materna supre o bebê do estado de desamparo primordial e inaugura a constituição do psiquismo. Confere um lugar simbólico ao recém-nascido e possibilita sua entrada na vida (Freud, 1926-1929/1996). E quando há falta ou privação da figura materna? Respondendo a essa questão, Bowlby (1982/2015) afirma que a criança sofre uma série de efeitos prejudiciais, de acordo com o grau de privação física/afetiva, incluindo: exagerada necessidade de amor, fortes sentimentos de angústia, raiva, culpa e depressão, que podem, inclusive, aniquilar totalmente a capacidade de estabelecimento de relações futuras.
Couto e Tavares (2016) sugerem que o apego inseguro e o vínculo parental inadequado são potenciais fatores de risco de suicídio para adolescentes, especialmente quando mediados por sintomas depressivos. Uma relação materna inconsistente, empobrecida em cuidados e afeto, aliada a um déficit nas competências sociais, à defasagem na comunicação e à baixa confiança no pai, podem constituir importantes fatores de risco para a ideação suicida na adolescência (Nunes & Mota, 2017; Suárez-Colorado & Campo-Arias, 2020).
Nesse contexto, destaca-se que Holden vivenciou o abandono da mãe ainda muito cedo, e sua irmã precisou desempenhar a função materna. Independentemente de todos os esforços para garantir o melhor cuidado, não foi suficiente para aplacar o vazio que ficou, como se pode observar quando o adolescente desabafa: “Se eu pudesse ter a minha mãe junto” (Holden). Invadido pela busca incessante por afeto de uma mãe idealizada, já fez várias tentativas de ser acolhido por ela, mas a frustração do abandono foi reiterada. Apesar de tudo, tenta a todo custo preservar a imagem construída em torno de um ideal materno e não revela suas fragilidades. O adolescente teve várias tentativas de suicídio endereçadas a essa mãe. A primeira foi ainda na infância, devido a vivências de violência interpessoal no ambiente escolar (bullying). A irmã de Holden relata: “Eles [colegas] falavam muito da minha mãe pra ele, julgavam a mãe”. Todavia, o adolescente não consegue revelar os motivos, em nome da proteção materna. No entanto, pode-se inferir que as acusações sejam em função dos problemas associados ao uso prejudicial de drogas e das consequentes dificuldades dessa mãe para exercer a função materna. O adolescente fez outras tantas tentativas, com um aparente desejo de mobilizá-la. Holden relata, então, uma briga que teve com a mãe: “Acabou que ela falou que eu só saí de casa. Ela foi olhar lá atrás e eu tava pendurado na árvore. Daí ela foi lá, pegou uma faca e cortou a corda. Daí conseguiu me salvar a tempo”. No entanto, o sofrimento e as tentativas de tirar a própria vida foram invalidados pela mãe, como ele descreve: “Ela achava que era tudo bobagem, que eu tava tentando chamar a atenção, que eu tava inventando tudo” (Holden). Provavelmente havia um endereçamento desse ato de desespero. O seu real desejo era mesmo ser reconhecido, receber carinho e contenção afetiva, o que se pode verificar na fala em que descreve o desfecho do ato: “Daí ela me acalmou, me botou pra dormir. Ela não conseguia dormir, por causa que tava com medo de eu fazer alguma coisa” (Holden).
Assim como na história de Holden, os prejuízos pelo uso abusivo de drogas por parte da mãe também se fazem presentes no caso de Nina, e possivelmente estão relacionados às ausências, ao afastamento afetivo e às dificuldades para assumir a função materna. Em decorrência disso, Nina e os irmãos sempre estiveram sob a responsabilidade dos avós, que passaram a ser um suporte estrutural em suas vidas. No entanto, ainda assim, a adolescente segue em busca de uma “mãe” suficientemente boa, que a aconselhe e proteja, e com a qual possa realmente vincular-se afetivamente. Nina preocupa-se com a mãe e associa também a esse estado afetivo suas “motivações” para tentar o suicídio, como descreve, com voz de choro: “Acho que a questão foi principalmente os problemas por todas essas situações com a minha mãe” (Nina). Como se não bastasse a angústia diante da dependência química materna, a adolescente foi incumbida pelos avós de responsabilidades que não eram suas, sendo-lhe imposta uma carga emocional muito pesada para seus ombros frágeis. Nina relata: “Daí tipo a minha vó sempre queria que eu fosse resolver as coisas. Só que eu penso que eu não tenho capacidade pra resolver esses problemas. Eu não podia, porque eu não tinha nem capacidade de me ajudar”.
Além de toda essa pressão psicológica, do peso de ter uma mãe ausente afetivamente e envolvida com seus próprios problemas, Nina foi obrigada a reatualizar o abandono materno no nascimento da irmã caçula. A adolescente desabafa: “Eu acho que basicamente foi [intensificação do seu sofrimento] no ano em que a minha irmã nasceu. Até eu fiquei um bom tempo sem falar com a minha mãe, fiquei trancada no meu quarto. Acho que ela nunca soube os motivos na verdade” (Nina). Esse aparente descaso diante de seu sofrimento confirma para a adolescente o sentimento de invisibilidade e o distanciamento afetivo por parte dessa mãe. A avó de Nina confirma as repercussões emocionais da iminência do desamparo: “Daí desde ali [gestação] a guria ficou desse jeito. Ela se fechou muito, ela foi parando, foi parando…” (avó de Nina). Nina justifica o “motivo” de não desejar mais uma irmã: “Eu sentia que não ia dar certo a relação da minha mãe com o meu padrasto. E pensei que seria a mesma situação que aconteceu comigo e com meu irmão” (Nina). Naquele momento, a adolescente percebeu que a mãe também poderia não exercer a função materna com a irmã, assim como acontecera com ela ou, pior, que a irmã poderia ocupar o lugar que ela sempre quis e agora não poderia mais ter. A possibilidade dessa criança ser amada, como ela nunca havia sido, foi insuportável e desencadeou o temor do desamparo, de um outro abandono, colocando, assim, a menina na posição de rival e levando Nina a uma atitude de desespero, a chegar a pensar na própria morte como forma de calar sua dor.
Nesse contexto de laços rompidos, Hannah foi a única que permaneceu morando com a genitora. Apesar dos conflitos e instabilidades, das aproximações e distanciamentos, próprios do processo de “adolescer”, a mãe é sua figura de referência. Entretanto, com o afastamento paterno, a mãe precisou se responsabilizar sozinha pela filha, “sobrando” para Hannah muito pouco de seu investimento afetivo. O amigo 2 de Hannah percebe essa falta e revela: “Ela é uma pessoa que cresceu sozinha. Sem muito apoio da mãe dela”. Hannah retrata a mãe como uma pessoa desequilibrada e denuncia seu comportamento agressivo:
A minha mãe é louca. Ela é uma pessoa que não consegue controlar a raiva. Então ela sai explodindo em todo mundo. Ela quer jogar um monte de verdades. Não pode falar assim com quem tem problema, porque a pessoa não está em condição de ouvir tudo aquilo. (Hannah)
As atitudes da mãe revelam uma dificuldade para exercer a função materna, que pode ser compreendida pela realidade dura de ser “mãe solo”, num contexto de dificuldades econômicas e sociais. Esses atravessamentos ambientais repercutiram no estabelecimento de uma maternagem capaz de acolher e ancorar o sofrimento de Hannah, que se sente desamparada e incompreendida: “A mãe não entendeu [o sofrimento] até hoje. Pode até perceber, mas acho que ela prefere não falar, porque ela não sabe muito lidar” (Hannah). Assim, pode-se concluir que as tentativas de suicídio de Hannah tenham um direcionamento para essa mãe, já que, quando ingere as medicações, lhe comunica sobre o ato e parece esperar uma contenção afetiva. Isso fica evidente na seguinte fala: “Eu tava muito triste aquele dia, cansada. Aí, peguei a cartela e comecei a tomar. Daí ela [mãe] chegou no meu quarto, aí eu falei: ‘Mãe, eu tomei remédio’. Assim, grogue, grogue, eu nem sabia o que tava falando” (Hannah).
Contudo, no caso de Werther a relação entre o adolescente e a mãe era alicerçada em bases sólidas de afeto, companheirismo e cumplicidade, mas foi precocemente interrompida pela morte materna em decorrência de um câncer. Ao perdê-la, Werther perdeu também suas referências. E busca nas palavras traduzir o tormento da sua dor: “Ela era a minha figura maior, que me apoiava em tudo. Daí, perder ela foi e sempre vai ser provavelmente muito difícil pra mim” (Werther). A angústia aterrorizante da tomada de consciência da falta permanente de seu objeto de amor impulsionou a tentativa de suicídio. A avó de Werther confirma o laço forte entre mãe e filho e o impacto violento da perda: “Ele era muito apegado à mãe, muito apegado mesmo. Então, pra ele, foi muito difícil”. Nesse caso, a tentativa de suicídio está revelando um desejo inconsciente de reencontro com a mãe morta. Por meio desse ato, o adolescente fantasia resgatar o vínculo interrompido e reencontrar a plenitude do amor materno (Cassorla, 2021).
Todavia, há que se considerar que a maternagem é uma construção cultural e social que molda os papéis que se desenvolvem em torno das questões de gênero (Machado et al., 2019; Vieira & Ávila, 2018). Deve ser contextualizada à luz de fatores internos (subjetivos e inconscientes) e sobretudo externos (socioeconômicos). Os aspectos subjetivos envolvem a reatualização da própria história da mulher que se torna mãe. O que está em jogo são os registros inconscientes relativos ao lugar materno, ao lugar de filha e a todas as questões envolvidas no desenvolvimento da maternagem. Portanto, para exercer a função materna de forma “suficientemente boa” é necessário que a figura materna tenha internalizado experiências consideradas satisfatórias com seus próprios cuidadores (Ferrari & Piccinini, 2010).
Por fim, as vivências de laços desfeitos e as “falhas” da figura materna em sua função de sustentação e ancoragem repercutem em sentimentos difíceis de decifrar. Porém, as palavras de Holden conseguem aproximar-se do que foi por eles vivenciado:
Eu tenho fortes problemas com a questão do abandono. Meu maior medo é de chegar um momento em que eu vou me sentir sozinho, vou olhar pros lados e não vou ver ninguém. Eu tenho um forte medo de abandono. Qualquer lugar que eu tô, eu sempre sinto que as pessoas a qualquer momento elas vão virar as costas e vão embora. Eu não consigo criar essa segurança em ninguém assim. (Holden)
Concluindo, as consequências do abandono materno estão relacionadas inclusive à fragilidade da autoconfiança desses adolescentes e a seus temores da reedição do estado de desamparo. Os significados desses sentimentos emergem nas palavras de Holden: “Não consigo ser eu mesmo. Eu me adapto ao lugar que estou, no momento que estou, porque sinto que se eu for eu mesmo as pessoas vão me abandonar. Então vou ser alguém que elas querem que eu seja” (Holden). Além dessas, muitas outras marcas invisíveis do esfacelamento dos laços de afeto ficaram registradas no psiquismo desses adolescentes e são reverberadas nas manifestações de sofrimento intenso, culminando nos atos violentos dirigidos a si próprios.
Considerações finais
Os sentidos e os significados do rompimento dos vínculos com as figuras parentais, seja por abandono afetivo, seja por morte dos genitores, emergem na adolescência com muita força devido ao intenso trabalho psíquico e à reedição da condição de desamparo. Esses adolescentes que sofreram as ausências físicas, conviveram com “corpos” paternos vazios, que perderam suas referências e foram “terceirizados” em seus cuidados, permanecem buscando o preenchimento das lacunas deixadas pela partida precoce, pela falta de ancoragem e pelo lugar simbólico de afeto, que é vivenciado como impossível de ser restaurado.
Ao se desvendarem as repercussões emocionais dos laços desfeitos, é possível aproximar-se de um dos fatores envolvidos na complexidade do comportamento suicida na adolescência. É necessário considerar também as diversas realidades familiares, com seus atravessamentos econômicos, sociais e culturais, além das vivências subjetivas dos genitores que influenciam o exercício da parentalidade e a constituição dos vínculos afetivos.
A ameaça à vida desses adolescentes denuncia as condições de angústia, desamparo e desesperança que os acompanham ao longo de suas existências, condições essas que geram uma dor psíquica insuportável e os levam a acreditar que a morte é a única solução. Conclui-se que as tentativas de suicídio traduzem atos de desespero desses adolescentes, que desafiam a morte num perigoso endereçamento a seus pais.
Assim, evidencia-se a necessidade de desvendar os significados ocultos desses atos para escapar das explicações simplistas que os associam a atitudes de “chamar a atenção”. Sobressai, também, a demanda de escuta desses adolescentes e de suas figuras parentais por pesquisadores e profissionais especializados, além da sensibilização dos pais (ou substitutos) para a promoção do acolhimento, da compreensão e do respeito ao sofrimento de seus filhos, para que, assim, possam constituir recursos de ancoragem e sustentação em face da dor psíquica que impulsiona os atos suicidas. Não se pretende atribuir responsabilidade somente aos pais pelas tentativas de suicídio de seus filhos, já que no universo do comportamento suicida não há culpados, nem causalidade única. No entanto, os laços parentais desfeitos emergem com uma potência de violência autodirigida que necessita ser reconhecida e analisada.
Como limitação deste estudo, destaca-se a compreensão do fenômeno somente pelo olhar da psicologia, numa perspectiva individual e familiar, em contraste com sua multifatorialidade. Ademais, são indispensáveis novos estudos sobre as implicações das relações familiares e sociais na emergência do desejo de pôr fim à própria vida na adolescência.
Evidencia-se, por fim, a urgência de investimento em políticas públicas que visem ao fortalecimento e à preservação dos vínculos na infância e adolescência. Deve-se atuar no desenvolvimento de competências e habilidades que ofereçam suporte emocional às figuras parentais e aos adolescentes, assim como trabalhar a dinâmica das relações familiares. É imprescindível, ainda, sensibilizar os pais ou substitutos quanto aos fatores de risco do comportamento suicida e orientá-los sobre a influência parental no desenvolvimento físico e psíquico saudável, assim como engajá-los no cuidado e tratamento de seus filhos. Além disso, é necessário o incremento de serviços públicos capazes de acolher o sofrimento psíquico da população infantojuvenil. Acredita-se que tais ações são potências de vida, constituindo importantes elementos de prevenção do suicídio na adolescência.














